CRIME DE CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
DEVER DE PONDERAÇÃO DA APLICAÇÃO DE PENAS DE SUBSTITUIÇÃO
PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
SANAÇÃO DA NULIDADE
Sumário

1 - O Código Penal, para penas de prisão aplicadas em medida não superior a dois anos consagra, para além da pena de substituição em que se traduz o regime de permanência na habitação (artºs 43º e 44º), a pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 58º do Código Penal).
2 - Verificados os respetivos pressupostos, o tribunal não pode deixar de optar por uma pena de substituição, pois a sua aplicação não é uma faculdade discricionária, mas um poder/dever.
3 - O Tribunal a quo omitiu o dever de ponderar a aplicação da pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade, relativamente à qual estão presentes os respetivos requisitos formais (pena de prisão aplicada em medida não superior a 2 anos) e, nessa medida, não se pronunciou sobre questão que deveria conhecer.
4 - No caso de omissão de pronúncia não compete ao Tribunal de recurso proceder à respectiva sanação.

Texto Integral

            Acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. RELATÓRIO

            1. No processo abreviado com o NUIPC132/24.0GDCBR que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, no Juízo Local Criminal, foi proferida sentença, em 06-11-2024 [referência 95544332], com o seguinte dispositivo (transcrição):

«Pelo exposto, decide-se:

a) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido no art.º 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01, com referência ao artº 121º, nº 1 do Código da Estrada, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão;

b) Condenar o arguido no pagamento das custas do processo (artº 8º do Regulamento das Custas Processuais), fixando a de taxa de justiça em 2 UC, que reduzo a metade por via da confissão dos factos – artºs 374º, n.º 4, 513º, n.º 1 e 514º, n.º 1 do Cód. Processo Penal.»

            2. Inconformado com a decisão, interpôs recurso o arguido AA.

            O recorrente formulou as seguintes conclusões e petitório (transcrição):

                «1 – O presente recurso é essencialmente jurídico, e no que concerne à condenação do arguido “…pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido no art.º 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01, com referência ao artº 121º, nº1 do Código da Estrada, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão”

2 – O recorrente, com todo o devido respeito, entende que a medida concreta da pena deveria fixar-se no seu mínimo legal, suspensa na sua execução, ou em pena de multa.

3 – O recorrente tem vindo a alterar e a modificar os seus padrões de vida, com a frequência de diversos programas.

4 – O arguido tomou plena consciência da censura dos factos ilícitos que cometeu, derivado da sua confissão livre, integral e sem reservas.

5 – A confissão do arguido traduz-se numa verdadeira e imprescindível colaboração para a descoberta da verdade material.

6 – O arguido culpabiliza e revelou contrição, tendo tomando plena consciência da sua errada e lamentável conduta, revelando assim arrependimento, devendo-lhe ser dada uma nova oportunidade.

7 – O Acórdão recorrido, com o devido respeito, devia ter levado em consideração os motivos que levaram o arguido a actuar da forma que actuou.

8 – O art.º 70.º do CP estabelece, com clareza, uma preferência pelas penas não detentivas, sempre que tal se mostre possível.

9 – A culpa ou o grau de culpa elevado, não são realidades que devam ser ponderadas especificamente na tarefa de escolher a espécie da pena, mas antes, o seu campo de incidência.

10 – O Estado deve, sempre que possível, lançar mão do leque de medidas que encontrar ao seu dispor para ajudar a construir todo um processo que permita ao arguido criar uma “identidade não criminal” no sentido de permitir e dar oportunidade deste prosseguir uma vida regrada, sustentável e condiga, em respeito ao artigo 58.º da C.R.P., conjugado com o art.º 65.º do Código Penal.

11 – São evidentes as circunstâncias que conduzem à inclusão do arguido em condutas conforme o direito, estando a prognose favorável do arguido bem patente.

12 – É seguro efectuar um juízo positivo no sentido de que a censura do facto e a simples ameaça de pena criminal, ainda que suspensa, é manifestamente suficiente para afastar o arguido da prática de novos crimes.

13 – O novo ordenamento jurídico-penal estatuído com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 400/82, de 3 de Setembro consagrou, de forma dogmaticamente iniludível, a suspensão da execução da pena de prisão como pena de substituição, como a jurisprudência bem refere.

14 – O princípio da aplicação de pena de prisão como última alternativa tem sempre       que imperar, estando                verificados os pressupostos do n.º 1 do artigo 50º do CP.

15 – A pena aplicada ao arguido não pode, nem deve, ser a pena efectiva a que foi condenado, mas sim pena de prisão suspensa na sua execução, pelo mínimo legal.

16 – Os artigos 43º e 44º do Cód. Penal consagram com pena de substituição para penas de prisão aplicadas em medida não superior a dois anos, o regime de permanência na habitação.

17 – O regime de permanência na habitação consiste na obrigação        de o aqui arguido permanecer na habitação,                mediante fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, in casu, 1 ano e 4 meses.

18 – Torna-se possível a formulação de um juízo de prognose favorável ao arguido Recorrente, para ser decretada a aplicação do regime de permanência na habitação, previsto no art.º 43º do CP.

Termos em que deve ser revogada a douta sentença recorrida por outra em que se decida e determine a redução da pena efectiva a que foi condenado, a qual deverá ser aplicada pelo seu mínimo legal, sendo a mesma suspensa na sua execução ou noutra medida que V.ª Exªs. melhor entendam por conveniente.»

            3. Ao recurso interposto pelo arguido respondeu o Ministério Público, pugnando pela sua improcedência posição que sintetiza nas seguintes conclusões (transcrição):

            «Com relevância para a decisão em causa, afere-se que o Tribunal a quo formou a sua convicção na conjugação dos factos trazidos a juízo pela acusação, alicerçada na prova produzida, assim como, nas próprias regras da experiência.

Pelo que, ponderadas as várias circunstâncias do caso concreto, é patente que a escolha e medida da pena aplicada se revela adequada, proporcional e necessária às finalidades punitivas que se fazem sentir, quer quanto aos propósitos preventivos de estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, quer quanto às intenções ressocializantes e regeneradoras do arguido nessa mesma comunidade.

Não se verificando presentes os requisitos legais que poderiam determinar a suspensão da pena de prisão aplicada, atento o vindo de expor e em conjugação com o disposto no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal.

Critérios que foram assertivamente ponderados e fundamentados na sentença recorrida, a qual se afigura, assim, perfeitamente ajustada, devendo, em consequência, o recurso interposto ser declarado totalmente improcedente, por infundado, mantendo-se aquela integralmente.»

           

            4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Senhor Procurador-geral Adjunto, emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso e remetendo para o teor da resposta do Ministério Público junto da 1ª instância.

            5. Não foi apresentada qualquer resposta ao aludido parecer.

           

            6. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, n.º 3, alínea c) do citado código.

            II. FUNDAMENTAÇÃO

            1. Delimitação do objeto do recurso.

            Segundo jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - como seja a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto resultantes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal[1], e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do mesmo código - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza os fundamentos de discordância com o decidido e resume as razões do pedido (artigo 412º, n.º 1, do referido diploma), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do conhecimento do mesmo pelo tribunal superior.

            Atentas as conclusões formuladas pelo Recorrente, a questão a decidir é a de saber se a pena de prisão aplicada deve ser substituída por pena de prisão suspensa na sua execução (artigo 50º do Código Penal), executada em regime de permanência na habitação (artigo 43º do Código Penal) ou, como decidiu o Tribunal a quo, não deve ser substituída por nenhuma delas.

           

            2. Da decisão recorrida.

            A sentença proferida pelo Tribunal a quo é do seguinte teor (transcrição):

«II) FUNDAMENTAÇÃO

1. Fundamentação de facto

A) Factos provados

1) No dia 26/04/2024 pelas 22H00, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-PB, na Rua ..., em ..., quando foi sujeito a fiscalização por uma patrulha de Militares da GNR.

2) O arguido não é titular de carta de condução válida que o habilitasse a conduzir aquele veículo

3) O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, ciente de que a condução do veículo automóvel na via pública, sem estar devidamente habilitado com carta de condução válida, emitida por autoridade portuguesa ou reconhecida como tal que o habilitasse a conduzir aquele tipo de veículos em território nacional, lhe era vedada por lei e era criminalmente punível.

4) Tal conhecimento que não o impediu de agir da forma descrita, o que quis e concretizou.

5) O arguido reside com a mãe de 77 anos, reformada, em habitação social camarária (T2), sendo a mesma a arrendatária.

6) Descreveu o ambiente familiar de entreajuda, sendo o apoio de sua mãe, devido à idade e problemas de saúde.

7) O processo de desenvolvimento do arguido, foi marcado na sua infância pelo divórcio dos pais, com impacto negativo no processo educativo, a nível da organização e supervisão.

8) Frequentou um curso profissional de jardinagem na CEARTE, durante 3 anos, que lhe deu equivalência ao 9º ano.

9) Aos 17 anos o arguido saiu de casa do pai e foi viver para ..., trabalhando numa empresa como operador de máquinas para se sustentar financeiramente.

10) Dois anos depois regressou a ... ao meio familiar.

11) Apresenta um percurso laboral de frequente instabilidade, alterando com frequência de local de trabalho.

12) Presentemente, encontra-se desempregado e efetua precariamente, tarefas no ramo da construção civil, auferindo 50,00€ diários, com almoço incluído.

13) A sua situação económica depende do seu rendimento diário e da pensão de reforma de sua mãe, (citou não saber o valor exato, sendo inferior a 300,00€/mensais) considerada como satisfatória para as necessidades do agregado.

14) Relativamente ao montante de despesas fixas revelou um total de 94,50€ (42,50€ comunicações; água - 22,00€; eletricidade e gaz - 30,00€;).

15) A mãe paga a renda da casa, não tendo mencionado o valor, mas indicou comparticipar no pagamento da mesma.

16) AA assume de forma crítica o seu passado criminal, não obstante demostra alguma indiferença perante o sistema de justiça.

17) O arguido confessou a prática dos factos.

18) Do certificado do registo criminal do arguido constam as seguintes condenações:

- Processo Sumário nº 49/04...., do Tribunal Judicial de Penacova, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por sentença datada de 27/04/2004, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);

- Processo Comum Singular nº 303/03...., das Varas de Competência Mista e Juízos Criminais de Coimbra – 3º Juízo Criminal, pela prática de um crime de dano simples e de um crime de furto simples, por sentença datada de 14/04/2004, na pena única de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de € 4,00 (quatro euros);

- Processo Comum Singular nº 109/04...., do Tribunal Judicial da Lousã, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por sentença datada de 25/02/2005, na pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 3,00 (três euros);

- Processo Sumário nº 56/05...., do Tribunal Judicial da Lousã, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por sentença datada de 06/04/2005, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);

- Processo Sumário nº 40/05...., do Tribunal Judicial de Penacova, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por sentença datada de 08/03/2005, na pena de 7 (sete) meses de prisão;

- Processo Comum Singular nº 58/04...., do Tribunal Judicia de Penacova, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por sentença datada de 25/01/2006, na pena de 8 (oito) meses de prisão;

-Processo Comum Singular nº 1048/04...., das Varas de Competência Mista e Juízos Criminais de Coimbra – 2º Juízo Criminal, pela prática de um crime de abuso de confiança, por sentença datada de 25/01/2007, na pena de 1 (um) ano de prisão, substituída por 275 (duzentas e setenta e cinco) horas de prestação de trabalho a favor da comunidade;

- Processo Comum Singular nº 6/04...., das Varas de Competência Mista e Juízos Criminais de Coimbra – 2º Juízo Criminal, pela prática de um crime de furto qualificado, um crime de falsificação de documento e um crime de condução sem habilitação legal, por sentença datada de 26/03/2007, na pena única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão;

- Processo Comum Colectivo nº 311/05...., das Varas de Competência Mista e Juízos Criminais de Coimbra – Vara de Competência Mista – 2ª Secção, pela prática de um crime de furto qualificado, um crime de resistência e coação sobre funcionário e um crime de condução sem habilitação legal, por acórdão datado de 05/05/2008, na pena única de 3 (três) anos de prisão;

- Processo Sumário nº 45/13...., do Tribunal Judicial de Condeixa-a-Nova, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, um crime de condução perigosa de veículo rodoviário e um crime de coacção contra órgãos constitucionais, por sentença datada de 15/03/2013, na pena única de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de um ano;

- Processo Abreviado nº 56/13...., do Tribunal Judicial de Condeixa-a-Nova, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por sentença datada de 14/05/2013, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão;

- Processo Sumário nº 209/19...., do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Coimbra – JL Criminal – Juiz 1, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por sentença datada de 28/10/2019, na pena de 1 (um) ano de prisão.
B) Factos não provados
Da audiência de julgamento não resultaram factos não provados.
C) Motivação~
Os factos acima provados assentaram, desde logo, nas declarações do arguido que confessou a prática dos factos, explicando o que o motivou ao exercício da condução, nas circunstâncias supra descritas.
Foram também valorados auto de notícia de fls. 5, a informação do IMT de fls. 13, o relatório social junto com a Refª 9235634 e o certificado do registo criminal junto ao processo electrónico com a Refª 9186358.
Não se provou qualquer outra matéria para além da consignada supra, pois não se produziu mais nenhuma prova que permitisse acrescentar aos provados outros factos, além dos aludidos.
2. Fundamentação de direito
2.1. Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido
Vem o arguido acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artº 3º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01.
Estabelece o n.º 1 do art.º 3º do DL n.º 02/98, de 03/01 que quem conduzir veículo a motor na via pública sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com pena de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, dispondo o nº 2 do mesmo artigo que “se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel, a pena é de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias”.
De acordo com o disposto no art.º 121º, n.º 1 do Código da Estrada, “só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito”, sendo que nos termos do preceituado nos nºs 1 e 2 do art.º 122º do mesmo diploma, designa-se carta de condução o documento que titula a habilitação para conduzir automóveis e motociclos e licença de condução, o documento que titula a habilitação para conduzir motociclos de cilindrada não superior 50cm3 e outros veículos a motor que não sejam automóveis ou motociclos.
Entendeu o legislador que as necessidades de prevenção de condutas que, por colocarem frequentemente em causa valores jurídicos de particular relevo, como a vida, a integridade física, a liberdade e o património, se revestem de acentuada perigosidade, pelo que impunham a criminalização do exercício da condução por quem não esteja legalmente habilitado para o efeito (Cfr. nº 2 do Preâmbulo do Decreto-Lei nº 02/98, de 03/01).
Deste modo, nos termos do art.º 3º da Lei n.º 97/97, de 23/08 (lei que autorizou o Governo a proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio), ficou o Governo autorizado a estabelecer a punição como crime de condução de veículo com motor por pessoa não habilitada para o efeito, com penas de prisão ou multa não excedendo dois anos e 240 dias, respectivamente.
Neste sentido, surgiu a previsão do art.º 3º do Decreto-Lei n.º 02/98, de 03/01, que pune com prisão até 1 ano ou multa até 120 dias quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado e com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias se o exercício da condução nessas condições for de motociclo ou automóvel.
São, assim, elementos do crime de condução de veículos a motor sem habilitação legal: a) a acção de condução; b) de veículo automóvel ou de outro veículo a motor; c) sem habilitação legal; d) em via pública ou equiparada (Cfr. António Augusto Tolda Pinto, “Código da Estrada Anotado”, em anotação ao artº 121º, pág. 292).
Comete-se este tipo de ilícito conduzindo, isto é, manejando os mecanismos de direcção de um veículo de modo a movê-lo de um ponto para outro, o que supõe que a acção de conduzir tem de ter uma certa duração temporal e traduzir-se em o agente haver percorrido um determinado espaço.
Trata-se de um crime de perigo abstracto, exigindo-se que a conduta seja objectivamente adequada a colocar em perigo a segurança da circulação rodoviária, enquanto bem jurídico protegido por este tipo legal de crime. Nesta medida, o arguido tem que ter posto, ou acabado de pôr, a circular o veículo a motor, sendo indiferente o tempo ou a distância. Estamos perante um crime de mão própria.
Feita a descrição do tipo legal de crime pelo qual vem o arguido acusado, importa verificar se da matéria dada como provada nos presentes autos, resultam preenchidos os elementos integradores da sua prática por parte daquele.
Da análise da matéria supra dada como provada, podemos concluir estarem preenchidos todos os elementos objectivos do tipo legal de crime de condução sem habilitação legal, no que respeita à conduta do arguido.
Com efeito, aquele no dia 26/04/2024 pelas 22H00, conduziu o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-PB, na Rua ..., em ..., quando foi sujeito a fiscalização por uma patrulha de Militares da GNR. O arguido não é titular de carta de condução válida que o habilitasse a conduzir aquele veículo
A estes elementos acrescem elementos de cariz subjectivo que, também nesta sede, resultaram provados, pois o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, ciente de que a condução do veículo automóvel na via pública, sem estar devidamente habilitado com carta de condução válida, emitida por autoridade portuguesa ou reconhecida como tal que o habilitasse a conduzir aquele tipo de veículos em território nacional, lhe era vedada por lei e era criminalmente punível. Tal conhecimento que não o impediu de agir da forma descrita, o que quis e concretizou.
Pelo exposto, encontrando-se preenchidos todos os elementos que integram o tipo legal do crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.º 3º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01, importa considerar praticado este crime pelo qual o arguido vem acusado, e pelo qual deverá ser condenado.
2.2. Determinação da pena concreta aplicável
Para determinação da medida da pena aplicável no caso concreto impõe-se, em primeiro lugar, considerar a moldura penal prevista pelo tipo legal respectivo. Neste caso, o crime de condução sem habilitação legal, previsto pelo art.º 3º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 02/98, de 03/01, é punível com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Uma vez fixada a moldura penal que cabe em abstracto ao caso, temos que encontrar a pena que concretamente caberá à conduta do arguido.
A determinação da pena em sentido estrito tem como princípios regulativos essenciais a culpa e a prevenção, conforme o preceituado no art.º 71º, n.º 1 do Código Penal, sendo que o modo como estes princípios regulativos irão influir no processo de determinação do quantum da pena se reconduz a dois postulados ou pressupostos: o de que as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e na reintegração do agente na comunidade, e o de que toda a pena há-de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta cuja medida não poderá em caso algum ultrapassar (art.º 40º, nºs 1 e 2 do Código Penal).
As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. A culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas.
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a sua extensão, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade.
Como factores concretos da medida da pena, deverão ser levadas em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (princípio da proibição da dupla valoração), deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente os factores elencados no art.º 71º, n.º 2 do Código Penal.
Em primeiro lugar, consideramos os factores relativos à execução do facto que abrangem o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência e ainda os sentimentos manifestados na preparação do crime e os fins e motivos que o determinaram (art.º 71º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do Cód. Penal).
Em segundo lugar, há que considerar os factores relativos à personalidade do agente, como sejam as condições pessoais e económicas do agente, a sensibilidade à pena e susceptibilidade de ser por ela influenciado ou as qualidades da personalidade manifestadas no facto (alíneas d) e f) do n.º 2 do art.º 71º citado).
Por último, o art.º 72º, n.º 2, alínea e) põe em relevo os factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime.
Em matéria de escolha da pena, rege o princípio geral da preferência pela pena alternativa não privativa da liberdade, a qual deverá ser aplicada sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, se revele adequada e suficiente á realização das finalidades da punição, de acordo com o disposto no art.º 70º do Código Penal.
Assim, desde que imposta ou aconselhada, face às exigências de prevenção especial de socialização, só não será de aplicar a pena alternativa não detentiva se a pena de prisão se mostrar indispensável para que não seja irremediavelmente posta em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.
No caso concreto a pena de multa não satisfaz de forma suficiente e adequada as finalidades da punição, designadamente as exigências de reprovação e prevenção do crime, estando, pois, indicada uma pena de prisão. Com efeito, como decorre dos factos assentes, o arguido já tem antecedentes criminais pela prática de diversos tipos legais de crime, tendo dez condenações pela prática de crimes de idêntica natureza ao que está em consideração nos autos, sendo que à data da prática dos factos já tinha todas estas condenações, algumas das quais em prisão efectiva, persistindo com a prática deste crime.
No que se refere à medida concreta da pena, esta é fixada de acordo com os critérios gerais do art.º 71º do Cód. Penal, com base nas seguintes directivas já enunciadas: o princípio da culpa que funciona como limite máximo da pena, as exigências de prevenção geral positiva ou de integração que funcionam como limite mínimo da pena e as exigências de prevenção especial de ressocialização que, dentro dos limites máximos e mínimos referidos, actua, determinando, em último termo, a medida da pena.
Ora, no caso concreto verifica-se que levando em conta a intensidade do dolo, no que se refere quer ao tipo-de-ilícito, quer ao tipo-de-culpa, tal intensidade é elevada, pois o arguido agiu com dolo directo.
No que diz respeito à ilicitude dos factos esta é também elevada, por referência ao bem jurídico violado e às consequências emergentes da conduta ilícita, pois estamos perante uma conduta objectivamente adequada a colocar em perigo a segurança da circulação rodoviária, sendo que o nosso país regista elevados níveis de sinistralidade rodoviária.
As exigências de prevenção geral positiva são de um nível bastante elevado, tendo em conta a necessidade de desincentivar eficazmente a comissão de crimes do tipo daquele que nos autos está em consideração.
As exigências de prevenção especial são muito elevadas, pois do CRC junto aos autos constata-se que o mesmo tem dez condenações por crimes da mesma natureza do que está em consideração nos autos, algumas das quais em prisão efectiva, demonstrando uma personalidade desconforme ao direito, sendo que a anteriores condenações, mesmo em pena de prisão efectiva, não o demoveram da prática deste crime. A seu favor é de salientar que confessou a prática dos factos.
Assim, nos termos do art.º 71º do Cód. Penal, aplica-se ao arguido uma pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão pela prática do crime de condução sem habilitação legal.
O Cód. Penal consagra uma pena de substituição para penas de prisão aplicadas em medida não superior a dois anos, qual seja o regime de permanência na habitação (artºs 43º e 44º).
Também o artº 50º do Código Penal dispõe que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 (cinco) anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias dele, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sendo que o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.
No caso concreto, tendo em atenção que o arguido já tem um elevado número de condenações, por crimes de idêntica natureza ao que está em consideração nos autos, demonstrando uma personalidade desvaliosa e indiferente às anteriores condenações que lhe foram aplicadas, incluindo as penas de prisão efectiva, persistindo com este tipo de conduta, conduzindo sem ser portador de habilitação legal, consideramos que a pena de substituição ou a suspensão da pena não se mostra adequada no caso concreto, dado que não é possível efectuar um juízo de prognose favorável no sentido de que a aplicação de qualquer um destes institutos surtisse o efeito desejado, nomeadamente dissuadindo o arguido da prática de futuros crimes.
Por todo o exposto, afigura-se-nos adequado e proporcional aplicar ao arguido uma pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, pela prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal previsto no art.º 3º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01.»

3. Apreciação do recurso.

Pese embora as questões colocadas no recurso e que, como dissemos, delimitam o objeto do mesmo, outra se coloca, de conhecimento oficioso e que, atentas as consequências a retirar da mesma, cabe conhecer em primeiro lugar por afetar o conhecimento das demais.

           

            3.1. Da nulidade da sentença por força do disposto no artigo 379º nº1 alínea c) do Código de Processo Penal.

O Código de Processo Penal estabelece, no seu artigo 379º, um regime específico das nulidades da sentença.

Assim, e nos termos das três alíneas do seu nº 1, é nula a sentença penal quando, não contenha as menções previstas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do artigo 374º [1. a)]; quando condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos previstos nos artigos 358º e 359º [1.b)], e quando o tribunal omita pronúncia ou exceda pronúncia [1. c)].

Acrescenta o número 2 deste mesmo preceito legal que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n. º4 do artigo 414.º

            A propósito deste preceito legal, refere o Juiz Conselheiro Oliveira Mendes[2]: “Quanto ao seu conhecimento pelo tribunal de recurso, a lei, mediante a alteração introduzida em 1998, com o aditamento do nº2, estabelece que «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso», o que não pode deixar de significar que o tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a conhecê-las. A letra da lei é unívoca: «as nulidades da sentença devem ser…conhecidas em recurso».

            (…) “Aliás, nem poderia ser de outra forma, sob pena de o tribunal de recurso, na ausência de arguição, ter de confirmar sentenças sem qualquer fundamentação, violadoras do princípio do acusatório e mesmo sem dispositivo. A não serem as nulidades da sentença suscetíveis de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, passaríamos a ter decisões, quer absolutórias, quer condenatórias, eivadas de vícios e de anomias, algumas inexequíveis, apesar de sindicadas por tribunal superior”.          

      Como se disse, e no que aqui nos importa, o artigo 379º nº 1 alínea c) é do seguinte teor:

Artigo 379.º

Nulidade da sentença

1 – É nula a sentença:

(…)

c) Quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”

Como assinala José Mouraz Lopes[3] em anotação ao preceito transcrito:

Todas as questões suscitadas pelos sujeitos processuais nas peças processuais (acusação, contestação/contestações) têm que ser objeto de pronúncia pelo Tribunal na sentença. Igualmente, todas as questões que sejam do conhecimento oficioso do Tribunal (…).

São inúmeras as situações/questões que podem evidenciar-se, passíveis de conformarem omissões de pronúncia. Como exemplo (Mota Ribeiro, 2020 p. 62) podem identificar-se o não conhecimento (…) da aplicação das penas de substituição (…)

Compulsada a sentença recorrida verifica-se ser a mesma omissa quanto à ponderação da substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 58º do Código Penal).

Na verdade, ao contrário do que ali é afirmado, o Código Penal, para penas de prisão aplicadas em medida não superior a dois anos consagra, para além da pena de substituição em que se traduz o regime de permanência na habitação (artºs 43º e 44º), a pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 58º do Código Penal).

É o que resulta do disposto no artigo 58º do código Penal:

Artigo 58.º

Prestação de trabalho a favor da comunidade

1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.”

Ora, no caso dos autos, tendo o Tribunal a quo fixado a medida concreta da pena em 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, deveria ter ponderado a aplicação desta pena.

É bem certo que se pronunciou sobre a aplicação das penas de substituição referidas supra e que, atenta a argumentação adotada para fundamentar a sua não aplicação, poderíamos considerar que também não aplicaria a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, mas pensamos não poder fazer esse exercício.

A pena de prestação de trabalho a favor da comunidade é uma pena de substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a 2 (dois) anos e, como refere Figueiredo Dias[4] as «penas de substituição» são aquelas que, uma vez determinada a medida da pena de prisão, podem ser aplicadas em vez desta.

Verificados os respetivos pressupostos, o tribunal não pode deixar de optar por uma pena de substituição, pois a sua aplicação não é uma faculdade discricionária, mas um poder/dever.

Sendo abstratamente possível a opção por penas de substituição, o tribunal, antes de decidir a aplicação da prisão efetiva, deverá indicar as razões porque não opta por elas. Se não o fizer, isso é gerador da nulidade da sentença prevista no artigo 379 nº 1 alínea c) do CPP – o tribunal deixar de se pronunciar sobre questão que devia apreciar.

Foi questão controvertida na Jurisprudência saber se o tribunal tinha de especificadamente indicar as razões porque não optava pelas penas de substituição. As divergências surgiram a propósito do dever de fundamentação da decisão de não suspender a execução da prisão, mas nenhuma razão existe para não estender a solução ao caso das demais penas de substituição.

            Trata-se de querela ultrapassada, pois o Tribunal Constitucional decidiu “julgar inconstitucionais, por violação do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, as normas dos artigos 50.º, n.º 1, do Código Penal e 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do CPP, interpretadas no sentido de não imporem a fundamentação da decisão de não suspensão da execução de pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos” – ac. 61/06 de 18-1-06, DR IIª série de 28-2-06. Neste acórdão do TC enumeram-se várias decisões do STJ no mesmo sentido.

            Como se disse, o Tribunal omitiu o dever de ponderar a aplicação da pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade, relativamente à qual estão presentes os respetivos requisitos formais (pena de prisão aplicada em medida não superior a 2 anos) e, nessa medida, não se pronunciou sobre questão que deveria conhecer[5].

Outra seria a situação se, ponderada a aplicação de qualquer das outras penas de prisão, o Tribunal optasse pela aplicação de uma delas, caso em que não se lhe exigiria que se pronunciasse sobre a não aplicação das restantes, pois que, o dever de fundamentação das decisões jurisdicionais apenas abrange os atos decisórios concretos tomados pelo Tribunal, não lhe cabendo motivar as razões por que não optou por decisão diferente da que tomou.

            Neste sentido, veja-se o acórdão de 21-9-09[6] do Tribunal da Relação de Guimarães, onde se afirma:

            “I – Sendo o arguido condenado em prisão passível de ser substituída por outra pena, deve o juiz, sob pena de nulidade da sentença, pronunciar-se sobre a adequação ao caso concreto das penas de substituição.

            II – Porém, decidindo a aplicação de uma determinada pena de substituição, não tem de indicar as razões da não aplicação de cada uma das demais penas de substituição abstratamente admissíveis no caso, pois a aplicação duma exclui necessariamente as demais.”

            Quanto a eventual sanação da nulidade em causa por parte deste Tribunal de recurso, estabelece o artigo 379º nº2 do Código de Processo Penal:

            “2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º”

            E estabelece o artigo 414º nº4 do mesmo código que:

            “4 - Se o recurso não for interposto de decisão que conheça, a final, do objecto do processo, o tribunal pode, antes de ordenar a remessa do processo ao tribunal superior, sustentar ou reparar aquela decisão.”

            Esta redação do nº2 do artigo 379º do Código de Processo Penal foi introduzida pela Lei nº 20/2013, de 21/2, sendo que, na anterior redação constava a expressão «sendo lícito ao tribunal supri-las».

Daí que, em face do próprio teor literal do preceito, tenha passado a defender-se que, em princípio, constitui um dever do tribunal de recurso o suprimento das nulidades da sentença recorrida, a menos que, obviamente, a nulidade só seja suscetível de suprimento pelo tribunal recorrido.

Isso mesmo se propugna no acórdão do STJ de 20-10-2016[7] em cujo sumário consta: “II - Nos termos do art. 379.º, n.º 2, do CPP é um dever do tribunal de recurso o suprimento das nulidades da sentença recorrida, razão pela qual sobre o tribunal de recurso impende a obrigação de suprir as nulidades de que padeça a sentença recorrida. Deste modo, com excepção dos casos em que isso não for possível, designadamente por insuficiência de matéria factual, o tribunal de recurso, se o acolher, substitui a decisão por aquela que considere ser a legal. Dispondo os autos de todos os elementos necessários à decisão da eventual aplicação do regime penal especial para jovens, a nulidade cometida pelo tribunal recorrido pode e deve ser suprida por este STJ.”

Alinhamos, contudo, com o entendimento da Doutrina e Jurisprudência no sentido de que, neste caso (omissão de pronúncia) não compete a este Tribunal de recurso proceder àquela sanação.

            Neste sentido se pronunciou o STJ no acórdão prolatado no âmbito do processo nº1193/04.3TDLSB.L2.S1 – 5ª Secção 16-05[8], ainda na vigência da redação do preceito dada pela  Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto:

            “II – A norma do art.379º nº2 do CPP, segundo a qual «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º», tem sido entendida como permitindo ao Tribunal superior suprir nulidades  no recurso; tal porém, só é possível nos casos em que o tribunal recorrido se tenha pronunciado sobre questões de que não podia conhecer, declarando, então o tribunal de recurso suprimida na decisão recorrida a parte respeitante à questão que não podia ter sido apreciada, pois, nos demais casos, a supressão da nulidade redundaria na supressão de um grau de jurisdição”.

            Também nesse sentido se pronuncia o Juiz Conselheiro Oliveira Mendes[9] mesmo em face da redação dada ao preceito pela Lei nº20/2013 de 21 de fevereiro, sustentando que:

            “Por efeito da alteração introduzida ao texto do nº2 pela Lei nº20/2013, de 21 de fevereiro, passou a constituir um dever do tribunal de recurso o suprimento das nulidades da sentença recorrida (é o que decorre da atual letra da lei «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las …»), razão pela qual sobre o tribunal de recurso impende a obrigação de suprir as nulidades de que padeça a sentença recorrida, a menos, obviamente, que a nulidade só seja suscetível de suprimento pelo tribunal recorrido, situação que será a comum, visto que na grande maioria dos casos o suprimento pelo tribunal de recurso redundaria na supressão de um grau de jurisdição.”

            Também Mouraz Lopes[10], reportando-se ao artigo 379º nº 2 do Código de Processo Penal se refere à possibilidade de sanação do vício, mesmo por parte do tribunal recorrido, em moldes muito restritos:

            “O nº2 do artigo por via da remissão que efetua para o artigo 414º/4 permite que o tribunal recorrido em caso de nulidade da sentença supra as situações que a originam. Trata-se de um mecanismo atribuído ao juiz que admite o recurso no sentido de apreciar no próprio despacho em que isso ocorra as questões suscitadas ou por ele detetadas oficiosamente, numa clara consequência do princípio da celeridade processual, sem que seja posto em causa qualquer outro princípio fundamental (defendendo a inconstitucionalidade desta possibilidade normativa, Albuquerque, 2009. P. 962)

            Ainda sobre esta questão, mas a propósito da possibilidade de sanação da nulidade por parte do Tribunal de recurso, escreve Paulo Pinto de Albuquerque[11]:

            “O tribunal de recurso tem o poder de “suprir” as nulidades da sentença. Mas este poder é muito reduzido na prática, porque ele só poderá ser exercido negativamente. Isto é, o tribunal de recurso só pode exercer o poder de suprir a nulidade nos casos em que o tribunal recorrido se tenha pronunciado sobre questões de que não podia conhecer (nulidade da 2ª parte da alínea c) do nº1). Neste caso, o tribunal superior exerce o seu poder de suprimento da nulidade simplesmente declarando suprimida na sentença recorrida a parte atinente à questão que não deveria ter sido conhecida. Em todos os outros casos, o tribunal de recurso não pode exercer o seu poder de suprimento, pois esse exercício corresponderia à supressão de um grau de jurisdição (acórdão do TRL, de 14.4.2003, in CJ, XXVIII, 2, 143, e acórdão do TRE, de 8.7.2003, in CJ, XXVIII, 4, 252). A sentença deve ser anulada e os autos devem baixar ao tribunal a quo para que nele se proceda à elaboração de nova sentença, completando-se a sentença com as “menções” em falta (nulidade da alínea a) do nº1) ou conhecendo-se nela das “questões” que o tribunal deveria ter apreciado (nulidade da 1ª parte da alínea c) do nº1). Não deve, pois, nestes casos anular-se o próprio julgamento (acórdão do STJ , de 31.5.2001, in SASTJ, 51, 97). Do exposto resulta também evidente a inaplicabilidade no processo penal da disposição do artigo 715, nº1 do CPC.”  

            Atento tudo o exposto, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, mostra-se o acórdão recorrido ferido de nulidade a qual, nos termos explicitados supra, não pode ser sanada por este Tribunal de recurso sob pena de assim, ser negado um grau de recurso, violando-se por essa via o duplo grau de jurisdição exigido pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.  

Assim sendo, devem os autos baixar à primeira instância para que aí seja proferida nova sentença que supra a omissão apontada, devendo, caso assim o entenda, o Tribunal reabrir a audiência para o efeito de averiguar do consentimento do arguido.

Nesta medida, fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pelo Recorrente e identificadas supra.

            III. DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes da 4º Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em, por omissão de pronúncia, declarar nula a sentença recorrida e, em consequência, determinam a baixa dos autos à primeira instância para que aí seja proferida nova sentença que supra a omissão apontada, nos termos explicitados supra.

            Sem tributação.


            (Texto elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)

                                               Coimbra, 09-04-2025       

Os Juízes Desembargadores

Fátima Sanches (Relatora)

Isabel Gaio Ferreira de Castro (1ª Adjunta)

Teresa Coimbra (2ª Adjunta)

 (data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)


           


[1] Neste sentido, vd. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95, proferido pelo Plenário das Secções Criminais do STJ em 19 de outubro de 1995, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de dezembro de 1995, que fixou jurisprudência no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
[2] In “Código de Processo Penal Comentado”, 2014, Almedina, pág. 1183
[3] In “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo IV, Almedina, setembro de 2022, páginas 800 e 801.
[4] In “As Consequências Jurídicas do Crime”, pag. 326.
[5] Neste sentido, vejam-se, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-07-2023 (processo nº1008/22.0PBFIG.C1, Relator: Vasques Osório) e de 24-04-2024 (processo nº37/14.2IDLRA.C1, Relatora: Helena Lamas) e do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-11-2023 (processo nº1667/16.3T9GMR.G1, Relator: Pedro Freitas Pinto), todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt

[6] Prolatado no âmbito do processo nº235/09.0GAEPS.G1, relatora: Nazaré Saraiva, disponível para consulta em www.dgsi.pt

[7] Prolatado no âmbito do processo nº 10/15.3GMLSB.E1.S1; reatora Cons.ª Rosa Tching, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[8] Citado pelo Juiz Conselheiro Pereira Madeira em anotação ao artigo 414º do código de processo Penal, in “Código de Processo Penal Comentado”, 2016, 2ª Edição Revista, Almedina, página 1320
[9] In “Código de Processo Penal Comentado”, 2016, 2ª Edição Revista, Almedina, página 1133
[10] In “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo IV, Almedina, setembro de 2022, página 802.
[11] In “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, 3ª Edição atualizada, página 962/963