CRIME DE HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
REQUERIMENTO DA ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ELEMENTO SUBJECTIVO DO CRIME
Sumário

1 - O requerimento de abertura de instrução constitui, substancialmente, uma “acusação alternativa” sujeita a comprovação judicial por parte do juiz de instrução criminal, razão pela qual deve observar forçosamente os requisitos legais postulados pelo n.º 2 do artigo 287.º. e pelo artigo 283.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal.
2 - No caso de serem descritos no requerimento de abertura da instrução factos que integram o elemento subjetivo do tipo de ilícito, nomeadamente o dolo, tal não configura um obstáculo intransponível que deva levar à rejeição do requerimento, podendo haver convolação para a imputação do mesmo crime base, a título de negligência, por via da alteração não substancial dos factos descritos.
3 - A narração fáctica constante do requerimento de abertura da instrução não obedece a melhor técnica jurídica na explicitação do tipo subjetivo do ilícito, porém, apesar dessa imperfeição, consegue-se aferir os elementos do tipo subjectivo.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª. Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra.


I - Relatório

No processo de instrução nº. 102/22.2GDCTB.C1, que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, Juízo Local Criminal de Castelo Branco - Juiz 1, foi proferido despacho judicial de rejeição, por inadmissibilidade legal, do requerimento da abertura de instrução,  apresentado pela assistente AA, na sequência de um despacho de arquivamento de inquérito por parte do Ministério Público.

Não se conformando com esta decisão, a assistente AA  interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões que se transcrevem:

“1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho de fls. dos autos, datado de 27.11.2024, que indeferiu o requerimento de abertura da instrução (RAI) apresentado pela Recorrente, por inadmissibilidade legal, nos termos do artigo 287.º, n.º 3, do CPP.

2. Ao contrário do decidido, a instrução requerida cumpre todos os requisitos legais para ser admitida.

 3. Para além da descrição pormenorizada do tipo objectivo de crime, a Assistente descreveu os factos consubstanciadores da violação de um dever objectivo de cuidado por parte do Agente, descreveu os factos integradores de uma negligência consciente, descreveu os factos integradores de uma comissão por omissão, da livre determinação do Agente e, também, da possibilidade de agir de modo diverso e da confiança na não ocorrência do resultado morte, terminando por aludir ao tipo incriminador em causa, tudo em cumprimento do estatuído nos artigos 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, ambos do CPP.

4. A menção conformou-se com essa possibilidade que o Tribunal a quo interpretou como referindo-se à morte do malogrado BB, referia-se sim à possibilidade de ocorrência do naufrágio, não havendo, por isso, qualquer razão para concluir a Recorrente alegou factos integradores de um crime de homicídio com dolo eventual.

5. Tudo o mais será, já não uma questão de cumprimento dos requisitos legais para a instrução poder ser admitida, mas sim matéria de substância da própria instrução.

 6. Inexiste qualquer razão para alteração substancial dos factos descritos no RAI, convite ao aperfeiçoamento ou, sequer, verificação de uma qualquer nulidade – a qual, a existir, que não é o caso, sempre seria sanável por não constar do elenco taxativo do artigo 119.º do CPP.

 7. Deve, por isso, o despacho recorrido ser revogado e substituído por douto acórdão que admita a instrução requerida pela Recorrente, com as legais consequências.

8. O despacho recorrido viola, entre outras normas e princípios legais, o disposto nos artigos 283.º, n.º 3, alínea b) e 287.º, n.ºs 2 e 3, do CPP.

NESTES TERMOS E nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e de acordo com as presentes conclusões, assim se fazendo JUSTIÇA.”

Na 1ª. instância o Magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso no sentido de ser negado provimento ao mesmo e mantida a decisão recorrida, concluindo tal resposta nos seguintes termos:

“i. O despacho que indeferiu o requerimento para a abertura de instrução, por inadmissibilidade legal da instrução, não padece de qualquer vício, devendo ser mantido in totum.

ii. O despacho a que aludimos não interpreta incorrectamente o texto do RAI, subsumindo as normas legais aplicáveis ao seu teor literal e àqueles que a hermenêutica admite como possíveis.

iii. O RAI não contém os elementos subjectivos que permitem aferir se o arguido/navegador previu ou não como possível a morte de BB.

 iv. O RAI não contém os elementos subjectivos que permitem aferir se o arguido/navegador podia, de acordo com as suas capacidades, evitar o resultado morte.

v. Devendo o despacho do Tribunal de Instrução, por não padecer de qualquer vício ou merecer censura, ser confirmado in totum.

Por estas razões, entende o Ministério Público que o presente recurso deve improceder, com o que os Venerandos Desembargadores farão A COSTUMEIRA JUSTIÇA.”

Neste Tribunal da Relação o Exmo. Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo:

“1. A rejeição do RAI padece de rigor formal exagerado ao entender que, estando descritos factos consubstanciadores de homicídio simples por dolo eventual, mas sendo a qualificação jurídica por crime de homicídio negligente do art.º 137.º, n.º 1 do Código penal, com referência implícita ao art.º 15.º, al.ª a), do Código Penal, deve o mesmo ser rejeitado.

2. Tal entendimento não é compatível com os motivos legais para a sua recusa elencados 287.º, n.º 2 e 3 do CPP, lido à luz dos artigos 358.º e 359.º do mesmo diploma legal.

3. Na verdade, muito embora a negligência consciente não se confunda com o dolo eventual, se do RAI são alegados factos de onde resulte a negligência consciente e, no entanto, o requerente da abertura da instrução, ao descrever o elemento subjetivo, o integra antes no dolo eventual, tal não configura um obstáculo intransponível que deva levar à rejeição do RAI, antes devendo demandar um aperfeiçoamento do mesmo, ou até a abertura de instrução, sem prejuízo de posterior correção ao abrigo do art.º 358.º, n.ºs 1 e 3 do CPP.

4. Na verdade, a convolação do dolo eventual para a negligência consciente não configura alteração substancial dos factos, mas apenas alteração não substancial, pois convola-se de factos mais graves para factos menos graves, não havendo surpresa para a defesa que não possa ser acautelada pelas regras da alteração não substancial.

5. Não deixando de ser relevante a descrição do elemento intencional do dolo eventual, a correção desse elemento intencional, por via do disposto no art.º 358.º do CPP, é perfeitamente permitida, porque não enquadrável na alínea f) do n.º 1 do art.º 1º do CPP, só podendo consubstanciar, reafirmamos, alteração não substancial dos factos.

 6. Essa correção não se traduz num adicionamento de factos mais graves, ou de alteração de factos que ultrapassam os limites do objeto do processo definido na dita peça processual (cf. o RAI).

7. A omissão de perícia na investigação, determinada em reclamação hierárquica após um primeiro arquivamento dos autos, configura nulidade do art.º 120.º, n.º 2, al.ª d), parte final, por omissão posterior de diligência que foi considerada pelo superior hierárquico na reclamação essencial para a descoberta da verdade.

8. Todavia, tendo a assistente optado pela abertura de instrução, em vez da reclamação hierárquica, passou a valer o regime do art.º 303.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, ou seja, o regime da alteração substancial.

 9. A falta de alegação da imputabilidade do arguido no RAI configura nulidade da acusação ele inserta, que não pode ser suprida, pois o seu suprimento levaria a uma alteração substancial dos factos.

10. Do art.º 303.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, contrariamente ao disposto no art.º 359.º, n.º 3 do CPP, resulta que a alteração substancial não pode ser superada pelo acordo dos sujeitos processuais, não sendo legítimo o recurso à analogia in malam partem.

 11. Por outro lado, o Acórdão n.º 1/2015 do STJ [Rodrigues da Costa (Relator) DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27] decidiu que «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem (…) na livre determinação do agente (…), não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do Código de Processo Penal.»

12. A falta de alegação da imputabilidade penal não constitui um facto autonomizável. Como refere Sousa Mendes, «O conceito de factos autonomizáveis resume-se à possibilidade de os desligar daqueloutros que já constituem o objeto do processo, de tal sorte que, sem prejudicar o processo em curso, sejam criadas as condições para se iniciar um outro processo penal sem violação do princípio ne bis in idem (que ninguém seja julgado, no todo ou em parte, mais do que uma vez pelos mesmos factos!)” (cf. “O Processo Penal em Acção: Hipótese e Modelo de Resolução”, in Sousa Mendes et al., Questões avulsas de processo penal, Lisboa, AAFDL, 2000, pág. 112. Cfr. também Sousa Mendes, “O Regime da Alteração Substancial de Factos no Processo Penal”, in Mário Ferreira Monte (coord.), Que Futuro para o Direito Processual Penal, cit., págs. 758-759).

 Termos em que entendemos dever ser mantida a rejeição do requerimento de abertura de instrução, sem prejuízo do suprimento de V.ªs Ex.ªs, assim se realizando a tão costumada justiça.”

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º., nº2 do Código de Processo Penal.

Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO

Objeto do recurso

De harmonia com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

No caso vertente, a questão a dirimir consiste em apurar se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela recorrente contém todos os elementos necessários ao seu recebimento e, consequentemente, se deveria ter sido admitido ou se, tal como sustenta a decisão recorrida, se revela legalmente inadmissível em virtude de não conter a narração das materialidade relativa ao elemento subjetivo do tipo de ilícito imputado ao arguido.

III. Da decisão Recorrida

A decisão recorrida tem o seguinte conteúdo:

        “ Proferido despacho de arquivamento do inquérito, nos termos constantes com refª. 37710691, quanto à prática de factos eventualmente configuradores de um crime de homicídio, p. p. pelo art. 131º do Código Penal, e de homicídio por negligência, p. p. pelo art. 137º, nº 1 do Código Penal, veio a assistente AA requerer a abertura de instrução, com refª. 3787809, requerendo que seja proferido, a final, despacho de pronúncia de CC, pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. p. pelo art. 137º, nº 1 do Código Penal.

 Dispõe o art. 286º, nº 1 do Código de Processo Penal que “[a] instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Assim, só o escopo de submissão ou não da causa a julgamento determina a existência de instrução. Da mesma forma, a instrução só é admissível relativamente a factos e pessoas cuja responsabilidade criminal já tenha sido apreciada pelo Ministério Público no final do inquérito, proferindo despacho de acusação ou de arquivamento, ou notificando o assistente do resultado do inquérito, em ordem a este último deduzir acusação particular. Em suma, a instrução destina-se a obter o reconhecimento jurisdicional da legalidade ou ilegalidade processual da decisão do Ministério Público (ou do assistente) no final do inquérito, “para o que o juiz tem o poder-dever de a esclarecer, investigando-a autonomamente” (GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Processual Penal Português, Vol. III, pág. 144). Desta forma, a instrução não tem por finalidade direta a fiscalização ou complemento da atividade de investigação e recolha de prova realizada no inquérito. A instrução é uma fase processual de caráter facultativo, que, nos termos do art. 287º, nº 1 do Código de Processo Penal, pode ser requerida pelo arguido (pelos factos de que vem acusado) ou pelo assistente (em relação aos factos sobre os quais recai despacho de arquivamento, ou, em caso de acusação, por factos que impliquem alteração substancial dos factos pelos quais o arguido vem acusado). Ademais, de acordo com o disposto no art. 308º do Código de Processo Penal, o juiz de instrução, no final da mesma, aprecia se existem nos autos indícios suficientes da prática dos factos que consubstanciam o crime, pelo arguido, pronunciando em caso afirmativo e não pronunciando em caso negativo. Isto é, faz uma apreciação crítica de toda a prova recolhida durante o inquérito e durante a instrução, de acordo com a sua livre convicção. Na verdade, o princípio do acusatório impõe que a entidade que investiga e acusa seja distinta da entidade que julga. Desta forma, o juiz de julgamento encontra-se limitado pelo objeto do processo definido pela acusação ou pela pronúncia, se a houver. Não obstante, também a atividade do juiz de instrução, nesta fase processual intermédia da instrução, se encontra limitada pelo objeto definido na acusação e no despacho para abertura de instrução (princípio da vinculação temática do tribunal). Portanto, o juiz de instrução não pode investigar livremente os factos, tendo de conformar-se com o objeto do processo assim previamente definido. Qualquer alteração substancial ou não substancial dos mesmos, bem como da sua qualificação jurídica, implica o cumprimento das formalidades previstas no art. 303º do Código de Processo Penal. Este regime encontra-se diretamente relacionado com o direito de defesa do arguido, permitindo a lei que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias não constantes da acusação, desde que daí não resulte afetada a defesa de modo insuportável, ou seja, desde que o núcleo essencial da acusação se mantenha o mesmo. Com efeito, o regime previsto no art. 303º do Código de Processo Penal demonstra a estreita ligação entre o objeto da acusação, que se deve manter essencialmente o mesmo até à decisão final, e as garantias de defesa do arguido, permitindo a consideração, pelo tribunal, de factos novos, mas apenas daqueles que não a alterem substancialmente, e sendo assegurada preparação da defesa em relação aos novos factos. Do referido regime decorre, sem margem para dúvidas, que a finalidade da instrução não é tanto a de continuar a investigação realizada no inquérito, mas a de comprovar judicialmente a decisão de encerramento do inquérito proferida pelo Ministério Público, com base nas provas recolhidas no inquérito e, eventualmente, completadas na instrução.

Nos termos do disposto pelo art. 287º, nº 2 do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283.º”. Assim, o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente há de conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” (al. b) do nº 3 do art. 283º do Código de Processo Penal) e “a indicação das disposições legais aplicáveis” (al. c) do mesmo nº 3). Com efeito, “o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente assume formalmente a natureza de uma acusação, que fixa o objeto da instrução. Podendo embora o juiz de instrução investigar autonomamente (art. 288º, nº 4), ele terá de o fazer no quadro temático definido pelo requerimento do assistente” (MAIA COSTA, Código de Processo Penal Comentado, 2ª Edição Revista, 2016, p. 961). Desta forma, “o requerimento do assistente para abertura da instrução contém materialmente uma acusação e esta, do mesmo modo que a acusação formal, condiciona, limitando-os, os poderes de cognição do juiz. (…) O essencial da fase da instrução é a sindicância da acusação, quer tenha sido deduzida pelo Ministério Público ou pelo assistente e deste, quer se trate de acusação formal, nos crimes particulares, quer de acusação implícita no requerimento instrutório, nos crimes públicos e semipúblicos” (GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Processual Penal Português, Vol. III, p. 143 e 144).

Portanto, sendo o objeto da instrução os factos descritos na acusação formal ou na acusação implícita no requerimento instrutório do assistente, “se no requerimento de instrução do assistente não tiverem sido descritos os factos, a instrução não tem objeto, sendo consequentemente inexistente juridicamente” (GERMANO MARQUES DA SILVA, ob. cit., p. 147).

Aqui chegados, cumpre assinalar que CC assume a qualidade de arguido, por ter sido requerido contra si abertura de instrução, nos termos do art. 57º, nº 1 do Código de Processo Penal. Ademais, cumpre averiguar se o requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente preenche os requisitos impostos pelo art. 287º, nº 2 do Código de Processo Penal, nomeadamente se contém a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena. A conclusão, adianta-se já, não pode deixar de ser negativa.

 De acordo com o disposto no art. 137º, nº 1 do Código Penal, “[q]uem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. O tipo objetivo de ilícito consiste em matar outra pessoa, já nascida, por ação ou omissão, independentemente dos meios utilizados para o efeito (crime de execução livre). Portanto, o bem jurídico protegido pela presente incriminação é a vida humana, ou seja, a vida de outra pessoa já nascida. A vida inicia-se com o início do ato de nascimento, ou seja, quando se iniciam contrações ritmadas, intensas e frequentes que previsivelmente conduzirão à expulsão do feto. Se estas não tiverem lugar e for necessário lançar mão de um processo cirúrgico (cesariana), considera-se que existe vida desde o início desse processo, através de uma intervenção sobre o corpo da grávida. Por outro lado, considera-se que a vida termina com a cessação irreversível das funções do tronco cerebral (art. 2.º da Lei n.º 141/99, de 28 de agosto). Assim, atualmente, a morte corresponde à morte cerebral. Trata-se de um crime de resultado e de dano, porquanto o tipo legal de crime em análise supõe a produção de um resultado, a morte de outra pessoa, que tem de ser imputado à conduta ou à omissão do agente, de acordo com as regras gerais previstas no art. 10.º do Código Penal, bem como, para a sua consumação, é necessário que o bem jurídico seja efetivamente atingido, não bastando a sua mera colocação em perigo. Assim, o agente deve ter criado ou potenciado, com a sua atuação, um perigo não permitido para a vida da vítima, tendo sido esse perigo criado ou potenciado pelo agente que se concretizou no resultado morte. Ademais, a imputação objetiva e a tipicidade devem ser negadas nos casos em que a assunção do comportamento devido (comportamento lícito alternativo) não teria evitado, com segurança ou elevada probabilidade, a verificação do resultado. O preenchimento dos elementos objetivos do tipo de ilícito de homicídio negligente exige a violação, pelo agente, de um dever de cuidado juridicamente imposto, ou seja, é necessário apurar “se há violação pelo agente de exigências de comportamento em geral obrigatórias cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respetiva, para evitar realizações não dolosas da morte de outrem” (FIGUEIREDO DIAS e NUNO BRANDÃO, Comentário Conimbricense, Tomo I, 2ª Edição, p. 177). Portanto, no que ao tipo de ilícito negligente diz respeito, não relevam as capacidades individuais do agente, exceto quando superiores às do homem médio, caso em que deverão as mesmas ser tidas em consideração para fundar o tipo de ilícito negligente. Como fontes normativas do dever de cuidado avultam as normas jurídicas de comportamento, por diversas vezes, elas próprias, objeto de tutela sancionatória direta em sede contraordenacional, como é o caso das prescrições relacionadas com a circulação rodoviária e o uso e porte de armas. Relativamente ao tipo de culpa, é necessário averiguar se o agente podia, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que estava obrigado. Com efeito, a negligência pode ser consciente ou inconsciente (art. 15.º do Código Penal), dependendo se o agente representou como possível a realização do tipo de ilícito, mas não se conformou com essa realização, ou se nem sequer chegou a representar a possibilidade de realização do facto.

Ora, analisado o requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente, constata-se que a mesma começou por expor as razões de facto e de direito de discordância relativamente ao despacho de arquivamento, misturando-as com considerações sobre a prova constante dos autos. Por fim, elencou, de forma sequencial, os factos pelos quais o arguido haveria de ser pronunciado. No entanto, quanto ao elemento subjetivo do tipo de crime em apreciação, a assistente limitou-se a imputar que: - “[c]ompetia ao responsável e navegador da embarcação, CC, zelar para que na mesma não seguissem mais pessoas que a lotação legalmente admitida, assegurar-se de que a carga não excedia a capacidade do barco e diligenciar e dar as indicações necessárias para uma correta distribuição do peso, o que, manifestamente, não fez”. - “[o] navegador CC, atenta a habilitação legal de que dispunha, sabia que o incumprimento desses procedimentos, em violação da lei, comprometia as condições de navegação da embarcação, nomeadamente o equilíbrio, a manobrabilidade e a flutuabilidade e podia, como efetivamente veio a acontecer, resultar num naufrágio e, infelizmente, na morte do malogrado BB e conformou-se com essa possibilidade, não tendo tomado as medidas que lhe eram exigíveis para a evitar, nomeadamente optando por fazer duas viagens de transporte em vez de uma só”. Acontece, porém, que a assistente imputou ao arguido a prática de um crime de homicídio por negligência. De acordo com o disposto no art. 15º do Código Penal, “[a]ge com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização, ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”.

 Desta forma, conclui-se que a assistente imputou ao arguido factos integradores da violação do dever objetivo de cuidado, ou seja, que o arguido não agiu com a precaução que lhe era devida no caso concreto, mais especificamente que não zelou para que a embarcação não seguisse com excesso de lotação e peso, o que afetou as condições de navegabilidade e provocou o naufrágio. No entanto, não imputou ao arguido que o mesmo tivesse representado como possível a morte de BB e que tenha atuado sem se conformar com essa realização, ou que o mesmo não tivesse sequer chegado a representar a possibilidade de atingir a vida de outrem, embora devesse ter representado essa circunstância. Conforme realça FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, p. 887, “[u]ma coisa é certa: a não observância do cuidado objetivamente devido não torna perfeito, por si própria, o tipo de ilícito negligente, antes importa que ela conduza – como expressamente afirma o art. 15º do CP – a uma representação imperfeita ou a uma não representação da realização do tipo”. Pelo contrário, a assistente aduziu que o arguido atuou conformando-se com a morte de BB, ou seja, imputou-lhe factos integradores do dolo eventual, o que é totalmente contrário às demais considerações expendidas pela assistente. Aliás, a assistente não afirma, em parte alguma, que o arguido, pelo menos, agiu de forma livre e voluntária. Na verdade, a verificação do tipo de culpa negligente exige que o arguido possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que se encontra obrigado e ainda que represente como possível o resultado verificado e não se conforme com a sua realização ou que, ao invés, nem sequer tenha representado como possível esse resultado, devendo tê-lo feito. A assistente, no requerimento para abertura de instrução que apresentou, descreve os factos integradores da violação do dever objetivo de cuidado, mas não da negligência consciente ou inconsciente, na medida em que não especifica se o arguido previu ou não como possível a morte de BB e se podia, de acordo com as suas capacidades, evitar o resultado sucedido.

Desta forma, conclui-se que inexistem no requerimento para abertura de instrução factos integradores do elemento subjetivo do crime de homicídio por negligência, p. p. pelo art. 137º do Código Penal. Falhando o requerimento de abertura de instrução na descrição dos factos que preencham os elementos dos tipos objetivo e subjetivo, o juiz não pode substituir-se ao assistente, colocando por sua iniciativa os factos em falta, que eram essenciais para a imputação do crime em questão. Aliás, “[u]ma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância” (art. 303º, nº 3 do Código de Processo Penal).

Consequentemente, é nula a decisão instrutória que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura da instrução (art. 309º, nº 1 do Código de Processo Penal). Arredada a hipótese do juiz, por iniciativa própria, integrar factos novos na sua decisão instrutória, não constantes do requerimento para abertura da instrução, cabe apreciar se é possível convidar a assistente a aperfeiçoar o requerimento que apresentou. Segundo o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 7/2005, “[n]ão há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287º, nº 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”. Ademais, o entendimento transcrito, expresso no AUJ nº 7/2005, foi já declarado não inconstitucional nos Acórdãos nºs 27/2001, 389/2005, 358/2004, 636/2011 e 175/2013. Em suma, a assistente não cumpriu, no requerimento que formulou, as exigências contidas no art. 283º, nº 3, al. b) ex vi art. 287º, nº 2 do Código de Processo Penal. Assim, falta ao requerimento de abertura de instrução a delimitação factual sobre a qual há de incidir a instrução, uma verdadeira “acusação alternativa”, com o mesmo rigor e precisão que é exigível ao libelo acusatório (público ou particular). “A falta de narração, por parte do assistente, requerente da instrução, dos factos integradores do crime imputado, constitui uma nulidade (art. 283º, nº 3), o que é facilmente compreensível, uma vez que o requerimento de abertura de instrução, pelo assistente, no caso de arquivamento por parte do Ministério Público, deve fixar o âmbito ou objeto do processo (art. 303º e 309º). (…) Ora, uma instrução que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido, como pretende o assistente no seu requerimento, é uma instrução que a lei não pode admitir. É um requerimento de abertura de instrução sem objeto. Não faz qualquer sentido admitir uma instrução que, desde o início, está condenada ao insucesso” – vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.04.2015, proc. nº 2393/12.8TACBR.C1, consultável em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, vide acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13.01.2016, proc. nº 682/10.5TAVFR.P1, consultável em www.dgsi.pt).

 Em face do exposto, indefere-se o requerimento para abertura de instrução deduzido pela assistente AA contra o arguido CC, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do art. 287º, nº 3 do Código de Processo Penal”

        *

Nos presentes autos, o Ministério Público, encerrado o inquérito, proferiu despacho de arquivamento do processo, por entender que não tinham sido recolhidos indícios suficientes da prática do crime sob investigação, dando assim cumprimento ao disposto no artigo 277º. do Código de Processo Penal.

                                       *

A assistente AA, na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, veio requerer a abertura da fase de instrução através do requerimento  com o seguinte teor:

“ AA, Assistente nos autos em referência, notificada do douto despacho de arquivamento de fls., vem, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 287.º do CPP, requerer a ABERTURA DA INSTRUÇÃO, nos termos e com os seguintes fundamentos:

I – DA DISCORDÂNCIA RELATIVAMENTE AO DESPACHO DE ARQUIVAMENTO:

1.Salvo o devido respeito, que é muito, não pode a Assistente concordar com o despacho de arquivamento proferido pelo Digníssimo Procurador da República na parte em que determinou o arquivamento do inquérito por inexistência de indícios da prática de crime.

Com efeito e salvo melhor opinião,

2. Dos elementos carreados para os autos no decurso do inquérito, incluindo as diligências ordenadas no seguimento da intervenção hierárquica requerida pela Assistente, resultam indícios fortes de que o naufrágio sub judice e a consequente morte por afogamento do malogrado BB se ficou a dever a excesso de lotação, excesso de carga e má distribuição do peso da embarcação, o que comprometeu as respectivas condições de navegação, nomeadamente equilíbrio, manobrabilidade e flutuabilidade.

Senão vejamos,

3. Resulta dos autos que ao desacelerar a embarcação a mesma afocinhou de proa entrando água para o interior o que levou a embarcação a virar – depoimento de CC, condutor da embarcação, prestado à GNR em 19.11.2022.

Ora,

4. Tratando-se de navegação fluvial, sem a verificação de ondulação ou qualquer outra circunstância extraordinária que interferisse nas condições de navegação, a única causa que pode ter levado a embarcação a afocinhar de proa foi o facto de, no momento do acidente, a mesma navegar com uma lotação e carga superior à respectiva capacidade e mal distribuída.

5.Circunstância que, na realidade, se encontra suficientemente indiciada nos autos e foi ignorada no despacho de arquivamento.

Com efeito,

6.No decurso do inquérito foi possível apurar que, no momento do naufrágio, seguiam a bordo da embarcação, três homens adultos, a saber, CC, DD e o malogrado BB, homem alto (1,88 metros) e forte – conforme relatório de autópsia junto aos autos - com mais de 90 kg de peso, com o respectivo vestuário e botas de caça.

7. Pelo menos duas carabinas de caça, uma mochila, um tripé, duas miras telescópicas, uma faca de remate e o respectivo coldre e dezassete munições calibre 300 pertencentes a DD e uma carabina de caça propriedade de BB.

8. E cinco peças de caça grossa, a saber, quatro javalis e um veado, todos adultos -auto de ocorrência da GNR de 19.11.2022.
9. No Sul da Europa, um javali macho adulto pesa entre 75kg e 100 kg e um javali fêmea adulto pesa entre 60 kg e 80 kg-conforme dados disponíveis na Wikipédia:https://www.google.com/search?client=firefox-b-d&
sca-esv=ae093cb415ffb20d&q=javali&stick=H4sIAA
AAAAAAAONgVuLQz9U3SCkyMX_EaMwt8PLHPWEprUl
rTl5jVOHiCs7IL3fNK8ksqRQS42KDsnikuLjgmngWsbJl
JZYl5mQCAJeLzq1LAAAA&sa=X&ved=2ahUKEwjL-LE
6teJAxWZ-QIHHRSfAXsQ1i96BAgJEAM&biw=1280&b
ih=531&dpr=1.5

10.Um veado adulto macho pesa entre os 100 kg e os 160 kg e um veado fêmea adulto pesa até 100 kg – conforme dados disponíveis no sítio da Internet https://biodiversidade.com.pt/biogaleria/veado-o-maior-mamifero-na-natureza-em-portugal/

11.A que acresce todo o equipamento da embarcação como sejam o motor, o depósito de combustível, remos, âncora, boias, cabos de amarração, coletes salva-vidas, etc…

Sucede que,

12. A embarcação tinha uma lotação de apenas 2 lugares e uma tonelagem de 500 kg –conforme resulta do respectivo certificado de matrícula junto pela APA com o ofício n.º 37046898, sem data, e da proposta de seguro junta pela A... aos autos, por e-mail datado de 10 de Janeiro de 2024.

Significa isto que,

13. No momento do naufrágio a embarcação seguia em sobrelotação.

14.E com uma carga total de peso não concretamente apurado, mas sempre superior a 750 kg.

Ou seja,

15.Lotação e carga muito acima do legalmente permitido e da capacidade da embarcação.

Por outro lado,

16.

No tocante à distribuição da carga, dois dos três adultos que seguiam a bordo, mais concretamente, DD e o malogrado BB, iam sentados à proa da embarcação, de costas para o sentido de navegação - conforme resulta do depoimento da testemunha DD prestado em 20.03.2024.

Sendo que,

17.Foi precisamente a proa da embarcação que afocinhou - de acordo com o depoimento de CC.

Ou seja,

18.

Em virtude do excesso de carga total, inclusivamente por força da sobrelotação, e da concentração de peso à proa da embarcação, a mesma afocinhou, levando à entrada de água no casco, viragem e consequente projecção dos tripulantes na água, assim se dando o acidente.

19. E tudo isto resulta suficientemente indiciado ainda antes, até, da realização da perícia ordenada nos autos pelo superior hierárquico do MP, que por motivos que se desconhecem não terá sido realizada e em relação à qual o despacho de arquivamento é totalmente omisso.

Acontece que,

20. Competia ao responsável e navegador da embarcação, CC, zelar para que na mesma não seguissem mais pessoas que a lotação legalmente admitida, assegurar-se de que a carga não excedia a capacidade do barco e diligenciar e dar as indicações necessárias para uma correcta distribuição do peso, o que, manifestamente, não fez.

21.O navegador CC, atenta a habilitação legal de que dispunha podia e devia ter antecipado que o incumprimento desses procedimentos, em violação da lei, podia, como efectivamente veio a acontecer, resultar num naufrágio e, infelizmente, na morte do marido da Assistente.

Assim,

22. Por resultarem do inquérito indícios suficientes da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao navegador CC de uma pena, deve o despacho de arquivamento proferido ser revogado e substituído por douto despacho que pronuncie o referido CC pela prática de um crime de homicídio por negligência previsto e punido no artigo 137.º do CP, com as legais consequências.

II – CUMPRIMENTO DO DISPOSTO NAS ALÍNEAS B) E D) DO N.º 3 DO ARTIGO 283.º DO CPP EX VI ARTIGO 287.º, N.º 2, PARTE FINAL, DO CPP:

23.Resulta dos autos de inquérito o seguinte:

No dia 19.11.2022, BB, identificado nos autos, participava numa actividade cinegética, comummente designada montaria, em ....

Por volta das 16h00, junto à localidade de ..., BB, no decurso da montaria, atravessou o rio Tejo a bordo da embarcação com o registo n.º...07... da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), com a designação “...”, propriedade de EE, melhor identificado nos autos, colocada ao serviço da organização da montaria para transporte de caçadores, equipamento e peças de caça, e navegada por CC, melhor identificado nos autos.

A bordo da referida embarcação, que iniciou a travessia do Rio Tejo, da margem esquerda para a margem direita, seguiam três tripulantes, a saber, o navegador CC, o caçador DD e o caçador malogrado BB.

A embarcação transportava, ainda, pelo menos duas carabinas de caça, uma mochila, um tripé, duas miras telescópicas, uma faca de remate e o respectivo coldre e dezassete munições calibre 300 pertencentes a DD e uma carabina de caça propriedade de BB.

E cinco peças de caça grossa, a saber, quatro javalis e um veado, todos adultos.

Bem como todo o equipamento da embarcação como sejam o motor, o depósito de combustível, remos, âncora, boias, cabos de amarração, coletes salva-vidas, etc…

O que totalizava uma carga total de peso não concretamente apurado, mas superior a 750 (setecentos e cinquenta) kgs.

A lotação máxima da embarcação era de 2 (dois) tripulantes.

A carga máxima admitida pela embarcação era de 500 (quinhentos) kgs.

No momento do naufrágio, dois dos três tripulantes da embarcação iam sentados à proa da embarcação, de costas para o sentido de navegação.

Em virtude da sobrelotação e do excesso de peso, bem como da incorrecta distribuição dos ocupantes, a embarcação, quando atravessava o rio, perdeu a estabilidade e submergiu de proa.

Acto contínuo, começou a entrar água para o interior da embarcação, o que a fez virar e naufragar a cerca de 1,5 kms a norte do Cais de ....

Todos os tripulantes foram lançados à água.

O navegador CC e o tripulante DD conseguiram nadar até à margem.

O malogrado BB permaneceu agarrado à embarcação durante alguns minutos até que submergiu e despareceu na água.

Efectuadas buscas, o respectivo corpo, já cadáver, veio a ser encontrado a boiar no Rio Tejo no dia 24.11.2022, cerca das 09h40, a 800 metros a norte do cais de ....

Realizada a autópsia concluiu-se que a morte de BB resultou de afogamento.

Competia ao responsável e navegador da embarcação, CC, zelar para que na mesma não seguissem mais pessoas que a lotação legalmente admitida, assegurar-se de que a carga não excedia a capacidade do barco e diligenciar e dar as indicações necessárias para uma correcta distribuição do peso, o que, manifestamente, não fez.

O navegador CC, atenta a habilitação legal de que dispunha sabia que o incumprimento desses procedimentos, em violação da lei, comprometia as condições de navegação da embarcação, nomeadamente o equilíbrio, a manobrabilidade e a flutuabilidade e podia, como efectivamente veio a acontecer, resultar num naufrágio e, infelizmente, na morte do malogrado BB e conformou-se com essa possibilidade, não tendo tomado as medidas que lhe eram exigíveis para a evitar, nomeadamente, optando por fazer duas viagens de transporte em vez de uma só.

Com a descrita conduta, o navegador CC cometeu, em autoria material, um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal.

MEIOS DE PROVA:

Todos os dos autos, nomeadamente os referidos no presente requerimento.

Em suma,

Resultam do inquérito factos mais do que suficientes para indiciar o preenchimento dos crimes referidos.

NESTES TERMOS e nos demais de direito, deve o despacho de arquivamento ser revogado e proferido despacho de pronúncia do referido CC, melhor identificado nos autos, como autor material de um crime de homicídio por negligência, previsto e punidos pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, com as consequências legais.

ACTOS DE INSTRUÇÃO REQUERIDOS PELA ASSISTENTE:

I - Requer a realização de perícia, a requisitar à Agência Portuguesa do Ambiente (ou

qualquer outra entidade tida por mais indicada), tendente a apurar os seguintes factos:

- Qual a classe, lotação e carga máxima admitida pela embarcação com o n.º de registo ...07... envolvida no naufrágio sub judice?

- Atentas as informações disponíveis nos autos, qual o peso total que a mesma transportava no momento do naufrágio?

- Esse peso excedia a capacidade da embarcação?

- A embarcação navegava em sobrelotação?

- Como se encontravam distribuídos pela embarcação os tripulantes e a respectiva carga?

- A sobrelotação e o excesso de carga, bem como a respectiva distribuição, contribuíram para a ocorrência do naufrágio? Porquê?

- Quantos coletes estavam na embarcação considerando que a lotação é para 2 pessoa e seguiam 3 pessoas a bordo no momento do naufrágio?

II - Requer a inquirição das seguintes testemunhas:

- FF, Guarda-Principal n.º ...56, a prestar serviço no Posto Territorial ... da GNR, identificado nos autos; esta testemunha tomou conta da ocorrência, juntamente com o seu Colega procedeu à identificação dos intervenientes e à apreensão da embarcação e acompanhou as buscas, devendo responder à matéria factual constante dos artigos 6.º a 11.º e 14.º do presente requerimento, o que se requer;

- GG, Guarda-Principal n.º ...52, a prestar serviço no Posto Territorial ... da GNR, identificado nos autos; esta testemunha tomou conta da ocorrência, juntamente com o seu Colega procedeu à identificação dos intervenientes e à apreensão da embarcação e acompanhou as buscas, devendo responder à matéria factual constante dos artigos 6.º a 11.º e 14.º do presente requerimento, o que se requer;

- HH, com residência em ..., França, cuja morada completa se protesta juntar no prazo de 10 dias e cuja inquirição, em virtude de residir no estrangeiro, se requer seja feita via Webex; esta testemunha, irmão do malogrado BB, é um caçador experiente, participou na montaria e acompanhou as buscas desde o momento do naufrágio até o corpo ter sido encontrado, devendo responder à matéria factual constante dos artigos 4.º (até navegação), 6.º a 11.º e 14.º do presente requerimento, o que se requer.”

IV - Apreciação do mérito do recurso

Conforme estatui o artigo 286.º,  nº.1 do Código de Processo Penal:

“ a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.”

Diz o artigo 287.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Requerimento para abertura da instrução”:
“1 - A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:
a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
2 - O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas.
3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução. (…)”
Esclarece o artigo 283º. que se reporta à acusação formulada pelo Ministério Público, na parte que importa considerar:
“ 3 - “ A acusação contém, sob pena de nulidade:
(…)b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
(…)  d)A indicação das disposições legais aplicáveis(…)”.
Na situação vertente a assistente requereu a abertura da instrução com vista a sindicar a decisão de arquivamento do inquérito por parte do Ministério Público, que, findo essa fase, entendeu que os autos não reuniam indícios suficientes da prática do crime sob investigação, pretendendo, assim, que o Juiz de Instrução Criminal verifique se se justifica, ou não, submeter o arguido a julgamento, sendo que tal fase processual termina com a prolação de um despacho de pronúncia ou de não pronúncia, consoante “até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos (ou não) indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”, artigo 308º, nº 1 do Código de Processo Penal.

Daí que, como decorre dos preceitos citados, a apresentação do requerimento de abertura da instrução pela assistente, na sequência de despacho de arquivamento do inquérito, deve conter todos os elementos de uma acusação, descrevendo os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, designadamente, no que tange às circunstâncias de tempo, modo e lugar, em que os factos integradores do crime foram cometidos, à motivação da sua prática e grau de participação do agente, bem como todas as demais circunstâncias relevantes para a determinação da sanção e a indicação das disposições legais aplicáveis.

Com efeito, o requerimento de abertura de instrução constitui, substancialmente, uma “acusação alternativa” sujeita a comprovação judicial por parte do juiz de instrução criminal, razão pela qual deve observar forçosamente os requisitos legais postulados pelo n.º 2 do artigo 287.º. e pelo artigo 283.º, n.º 3 ambos do Código de Processo Penal.

Tal exigência é norteada pela estrutura acusatória do processo penal português que impõe que o objeto do processo seja fixado com a máxima clareza precisão, rigor e, por sua vez, impede qualquer eventual alargamento arbitrário do objeto proposto através do requerimento de abertura de instrução por forma a assegurar o respeito da garantia de defesa do arguido, artigo 32.º, n.º 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.

Vale isto por dizer que a materialidade descrita no requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente tem que se estruturar como uma acusação e tal como esta baliza não só a atividade cognitória  levada a cabo pelo juiz de instrução como a própria decisão instrutória.

Omitindo-se esses elementos não pode o juiz, na sua natural postura de isenção e imparcialidade, substituir-se à assistente, procedendo à enumeração e descrição dos factos, elaborando uma acusação que não lhe compete formular, sob pena de violar o princípio da estrutura acusatória do processo penal, constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

Em tais casos, restará ao Juiz de instrução criminal proceder à rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal, sendo certo que não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, neste sentido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 7/2005, de 12.05, publicado no Diário da República, n.º 212 – S-A de 4.11,2005.

Não obstante o nosso processo penal encontrar-se subordinado ao princípio da vinculação temática não é de acusatório puro, mas sim temperado por um princípio de investigação da verdade material. Assim, admite que a narração dos factos na acusação não seja exaustiva e que factos ou circunstâncias relativas ao crime possam surgir durante a discussão da causa, após a acusação, conforme decorre dos artigos 1.º, al. f), 283.º, 303.º, 358.º e 359.º do Código de Processo Penal que distinguem entre “alteração substancial” e “alteração não substancial” dos factos descritos na acusação ou pronúncia.

Com efeito, o juiz não está impedido de averiguar por si, autonomamente, a verdade material do caso, sem estar sujeito ao acervo factual aduzido pelo Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido, podendo investigar livremente e ex officio, desde que respeitados os ditames do due process of law e necessariamente com subordinação ao princípio do contraditório.

Sustenta a assistente e ora recorrente que, no requerimento de abertura da instrução, mostra-se narrada a materialidade que integra os elementos constitutivos do crime de homicídio por negligência, mormente o elemento subjetivo.

Atentemos, agora, em tanto quanto releva, no tipo de crime que a assistente pretende ver imputado ao arguido.

Preceitua o artigo 137º. do Código Penal:

“ 1 . Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

2. Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos”
Segundo o disposto no artigo 15º do Código Penal age com negligência “ quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz.

a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas atuar sem se conformar com essa realização; ou

b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”

Para que seja preenchido o elemento objetivo deste tipo de ilícito é necessário que da conduta do agente resulte a morte de uma pessoa.

Do ponto de vista subjetivo, o juízo de censura ao agente com base na negligência, exige:
- Uma atuação desconforme com o cuidado exigível segundo as circunstâncias do caso;
- A capacidade para agir do modo expectável, que a não existir poderá, ainda assim, conduzir à responsabilidade do agente sempre que este tivesse ou devesse ter a capacidade de reconhecer que não estava à altura das exigências de cuidado colocadas pela concreta situação;
- A possibilidade de agir de outro modo, ou seja, a exigibilidade de um comportamento conforme à ordem jurídico-penal;
- A imputabilidade do agente.
Percorrido o requerimento de abertura da instrução impõe dizer que descreve a materialidade suscetível de tipicidade objetivo do ilícito imputado ao arguido.

No concernente à conduta atinente ao elemento subjetivo mostra-se imputada ao agente  nos seguintes termos: “O navegador CC, atenta a habilitação legal de que dispunha sabia que o incumprimento desses procedimentos, em violação da lei, comprometia as condições de navegação da embarcação, nomeadamente o equilíbrio, a manobrabilidade e a flutuabilidade e podia, como efectivamente veio a acontecer, resultar num naufrágio e, infelizmente, na morte do malogrado BB e conformou-se com essa possibilidade, não tendo tomado as medidas que lhe eram exigíveis para a evitar, nomeadamente, optando por fazer duas viagens de transporte em vez de uma só.”

A  recorrente assume claramente que visa a pronúncia do arguido por um crime de homicídio por negligência, contudo, aponta para uma formulação da conduta como se fosse dolosa, artigo 14º., 3 do Código Penal.

No caso de serem descritos no requerimento de abertura da instrução factos que integram o elemento subjetivo do tipo de ilícito, nomeadamente o dolo, tal não configura um obstáculo intransponível que deva levar à rejeição do requerimento, podendo haver convolação para a imputação do mesmo crime base, a título de negligência, por via da alteração não substancial dos factos descritos, nos termos previstos nos artigos 303º., nº.1  e , 358º.do Código de Processo Penal.

E certo que a convolação de um crime doloso para um crime negligente importará algum alinhamento factual, uma vez que os factos que traduzem o elemento subjetivo do crime não são coincidentes, mas tal não implica a imputação de um crime diverso, nem agrava os limites máximos das penas aplicáveis.

Importa salientar que, no caso em apreço, a narração fáctica constante do requerimento de abertura da instrução não obedece a melhor técnica jurídica na explicitação do tipo subjetivo do ilícito, porém, apesar dessa imperfeição, consegue-se aferir os elementos do tipo subjetivo, nomeadamente a capacidade de autodeterminação, do agir de forma  livre e voluntária.

         Da descrição constante do requerimento de abertura da instrução  consta que o arguido, atenta a habilitação legal, sabia os  procedimentos a levar a cabo na travessia do rio e que efetuando a travessia nas condições descritas comprometia a segurança de navegabilidade da embarcação, nomeadamente o equilíbrio, a manobrabilidade e a flutuabilidade e, com tal atuação, podia causar um naufrágio e a morte da vítima.

         Também se afere da descrição o suporte da existência da  imputabilidade, da capacidade de autodeterminação, do agir de forma  livre e voluntária, porquanto ali se refere que o arguido “optou por não fazer duas viagens de transporte em vez de uma só”. Essa opção do arguido pressupõe lógica e necessariamente a liberdade de agir,  a capacidade de  autodeterminação e, assim, a vontade de praticar o ato que vitimou o malogrado BB.

         Outrossim, da descrição afere os factos que integram a consciência da ilicitude na medida em que é dito que o arguido sabia que a conduta que levava a cabo violava a lei, portanto, que era ilícita e proibida.

        Atento o exposto, o recurso procede.

V. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso interposto pela assistente e, em consequência, revogar a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que declare aberta a instrução, em conformidade com o supra exposto.

Sem custas.

Notifique-se

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelas signatárias.

Coimbra, 9 de Abril de 2025

Maria da Conceição Miranda

Maria Alexandra Guiné

Sandra Rocha Ferreira