COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO DO TRABALHO
ACORDO REVOGATÓRIO
Sumário

Competência material dos juízos do Trabalho – Cessação do Contrato de trabalho – Acordo revogatório – Estipulação de uma compensação global – Artigos 340.º, 349.º e 350.º do Código do Trabalho – Artigo 126.º n.º 1 -b) da Lei 62/2013 de 26 de Agosto.

Texto Integral

Recorrente/autor
AA, titular do número de identificação fiscal ..., residente na ...

Recorrida/ré
Turbe – Distribuição e Marketing de Produtos Electrónicos, Sociedade Unipessoal Lda., titular do número único de pessoa colectiva e de identificação fiscal …, com sede na ...

Decisão sumária
1. Afigura-se ser de proferir decisão sumária nos termos do artigo 656.º do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho (CPT), pelos seguintes fundamentos: na petição inicial, o autor fundamenta a sua pretensão com base no incumprimento, pela ré, de uma obrigação de pagar a compensação pecuniária emergente de um acordo revogatório do contrato de trabalho; tais factos convocam a aplicação do disposto nos artigos 340.º, 349.º e 350.º do Código do Trabalho (CT); a questão de direito a resolver reveste-se de simplicidade; é maioritariamente reconhecido pela jurisprudência e pela doutrina que a apreciação das questões descritas na petição inicial convoca a aplicação e interpretação de normas do Código do Trabalho (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 2827/22.3T8MAI.P1.S1, Acórdãos da Relação de Lisboa, processos 24665/15.0T8LSB.L1-4 e 17381/21.5T8SNT.L1-4, acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo 412/10.1TTMAI.P1 e Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, 9.ª Edição, Almedina, páginas 947 a 956, assim como a restante doutrina aí citada).
2. Por fim, convém sublinhar que a opção pela decisão sumária não representa uma compressão injustificada dos direitos das partes atenta a faculdade, conferida pelo artigo 652.º n.º 1-c) e n.º 3 do CPC, à parte que se considere prejudicada, de requerer que sobre a presente decisão recaia um acórdão.
3. Dito isto, o recurso é o próprio, subiu pelo modo e com o efeito adequados.
Sentença recorrida
4. Por sentença de 25.6.2024 (referência citius 436620660), cujo teor se dá por integralmente reproduzido, o 3.º Juízo do Trabalho de Lisboa, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, (doravante também Tribunal de primeira instância, Tribunal recorrido ou Tribunal a quo), proferiu a seguinte decisão:
“Por todo o exposto, rejeito liminarmente a petição inicial, declarando a incompetência absoluta, em razão da matéria, deste tribunal para a apreciação da causa.
Custas pelo A., fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal (cfr. art.527º, nºs.1 e 2 do CPC).”
Alegações do recorrente
5. Inconformado com a sentença mencionada no parágrafo anterior, o recorrente (autor) dela veio interpor o presente recurso, mediante requerimento com a referência citius 39903820 de 10.7.2024, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, formulando o seguinte pedido:
“(...) deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se integralmente a decisão recorrida ou declarando-se a mesma nula, com todas as demais legais consequências, concluindo-se como na petição inicial (...)”
6. Nas suas alegações vertidas nas conclusões, o recorrente alega, em síntese, que os Juízos do Trabalho são materialmente competentes para a presente acção e que a sentença impugnada violou o disposto nos artigos 126.º n.º 1 – b) e 130.º da Lei 62/2013 e o artigo 337.º do CT.
Citação da recorrida
7. A recorrida/ré, foi citada para a presente acção conforme ordenado por despacho que admitiu o recurso (cf. referência citius 439644293 de 29.10.2024).
8. A recorrida não contra-alegou.
Parecer do Ministério Público
9. O digno magistrado do Ministério Público junto ao Tribunal da Relação, emitiu parecer cujo teor se dá por integralmente reproduzido (cf. referência citius 22364273 de 22.11.2024), ao abrigo do disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT, no qual pugnou por que seja concedido provimento ao recurso.
10. As partes não responderam ao parecer mencionado no parágrafo anterior.
Delimitação do âmbito do recurso
11. Tem relevância para a decisão do recurso a seguinte questão, vertida nas conclusões:
A. Competência material do Tribunal
Factos processuais que o Tribunal leva em conta
12. O Tribunal leva em conta na presente decisão os factos processuais acima descritos nos parágrafos 4 a 9, constantes dos autos e termos com as referências citius aí mencionadas.
Quadro legal relevante
13. Para a apreciação do recurso tem relevo, essencialmente, o quadro legal seguinte:
Código do Trabalho ou CT
Artigo 340.º
Modalidades de cessação do contrato de trabalho
Para além de outras modalidades legalmente previstas, o contrato de trabalho pode cessar por:
a) Caducidade;
b) Revogação;
c) Despedimento por facto imputável ao trabalhador;
d) Despedimento colectivo;
e) Despedimento por extinção de posto de trabalho;
f) Despedimento por inadaptação;
g) Resolução pelo trabalhador;
h) Denúncia pelo trabalhador.
Artigo 349.º
Cessação de contrato de trabalho por acordo
1 - O empregador e o trabalhador podem fazer cessar o contrato de trabalho por acordo.
2 - O acordo de revogação deve constar de documento assinado por ambas as partes, ficando cada uma com um exemplar.
3 - O documento deve mencionar expressamente a data de celebração do acordo e a do início da produção dos respetivos efeitos, bem como o prazo legal para o exercício do direito de fazer cessar o acordo de revogação.
4 - As partes podem, simultaneamente, acordar outros efeitos, dentro dos limites da lei.
5 - Se, no acordo ou conjuntamente com este, as partes estabelecerem uma compensação pecuniária global para o trabalhador, presume-se que esta inclui os créditos vencidos à data da cessação do contrato ou exigíveis em virtude desta.
6 - Constitui contra-ordenação leve a violação do disposto nos n.ºs 2 ou 3.
Artigo 350.º
Cessação do acordo de revogação
1 - O trabalhador pode fazer cessar o acordo de revogação do contrato de trabalho mediante comunicação escrita dirigida ao empregador, até ao sétimo dia seguinte à data da respectiva celebração.
2 - O trabalhador, caso não possa assegurar a recepção da comunicação no prazo previsto no número anterior, deve remetê-la por carta registada com aviso de recepção, no dia útil subsequente ao fim do prazo.
3 - A cessação prevista no n.º 1 só é eficaz se, em simultâneo com a comunicação, o trabalhador entregar ou puser, por qualquer forma, à disposição do empregador a totalidade do montante das compensações pecuniárias pagas em cumprimento do acordo, ou por efeito da cessação do contrato de trabalho.
4 - Exceptua-se do disposto nos números anteriores o acordo de revogação devidamente datado e cujas assinaturas sejam objecto de reconhecimento notarial presencial, nos termos da lei.
Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto, também Lei 62/2013
Artigo 126.º
Competência cível
1 - Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível:
a) Das questões relativas à anulação e interpretação dos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho que não revistam natureza administrativa;
b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;
c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;
d) Das questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efetuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais;
e) Das ações destinadas a anular os atos e contratos celebrados por quaisquer entidades responsáveis com o fim de se eximirem ao cumprimento de obrigações resultantes da aplicação da legislação sindical ou do trabalho;
f) Das questões emergentes de contratos equiparados por lei aos de trabalho;
g) Das questões emergentes de contratos de aprendizagem e de tirocínio;
h) Das questões entre trabalhadores ao serviço da mesma entidade, a respeito de direitos e obrigações que resultem de atos praticados em comum na execução das suas relações de trabalho ou que resultem de ato ilícito praticado por um deles na execução do serviço e por motivo deste, ressalvada a competência dos tribunais criminais quanto à responsabilidade civil conexa com a criminal;
i) Das questões entre instituições de previdência ou de abono de família e seus beneficiários, quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de umas ou outros, sem prejuízo da competência própria dos tribunais administrativos e fiscais;
j) Das questões entre associações sindicais e sócios ou pessoas por eles representados, ou afetados por decisões suas, quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de uns ou de outros;
k) Dos processos destinados à liquidação e partilha de bens de instituições de previdência ou de associações sindicais, quando não haja disposição legal em contrário;
l) Das questões entre instituições de previdência ou entre associações sindicais, a respeito da existência, extensão ou qualidade de poderes ou deveres legais, regulamentares ou estatutários de um deles que afete o outro;
m) Das execuções fundadas nas suas decisões ou noutros títulos executivos, ressalvada a competência atribuída a outros tribunais;
n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente;
o) Das questões reconvencionais que com a ação tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão;
p) Das questões cíveis relativas à greve;
q) Das questões entre comissões de trabalhadores e as respetivas comissões coordenadoras, a empresa ou trabalhadores desta;
r) De todas questões relativas ao controlo da legalidade da constituição, dos estatutos e respetivas alterações, do funcionamento e da extinção das associações sindicais, associações de empregadores e comissões de trabalhadores;
s) Das demais questões que por lei lhes sejam atribuídas.
2 - Compete ainda aos juízos do trabalho julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contraordenação nos domínios laboral e da segurança social.
Apreciação do recurso
A. Competência material do Tribunal
14. A decisão recorrida julgou que o Tribunal não é competente em razão da matéria, em síntese, porque: o litígio configurado na petição inicial tem por objecto o incumprimento de um acordo bilateral de rescisão (revogação) do contrato de trabalho; esse acordo não convoca a aplicação de normas do direito do trabalho; o artigo 126.º n.º 1 – b) da Lei 62/2013 engloba apenas questões emergentes de uma relação laboral existente, o que não sucede no presente caso, porque a relação laboral findou.
15. A recorrente discorda e defende que o Tribunal a quo ao julgar-se incompetente em razão da matéria infringiu o disposto nos artigos 126.º n.º 1 – b) e 130.º da Lei 62/2013 e o artigo 337.º do CT. O digno magistrado do Ministério Púbico aderiu aos fundamentos do recurso.
16. Para resolver o problema o Tribunal da Relação começa por recordar que a competência dos Tribunais do Trabalho, em razão da matéria, afere-se pelos factos descritos na petição inicial e pela pretensão do autor nela formulada (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 93/15.6T8GRD.S1).
17. A esse propósito, o Tribunal leva também em conta que não está sujeito às alegações das partes no que toca à indagação, aplicação e interpretação das regras de direito – cf. artigo 5.º n.º 3 do CPC, ex vi, artigo 1.º n.º 2 – a) do CPT.
18. Nesse contexto, os factos descritos na petição inicial consistem na celebração entre as partes de um acordo de revogação de um contrato de trabalho pré-existente, tendo nesse acordo revogatório sido estipulado o pagamento de uma compensação pecuniária global, pela empregadora ao trabalhador. O recorrente/autor (trabalhador), alega o incumprimento da obrigação daí emergente para a recorrida/ré (empregadora) de lhe pagar a compensação pecuniária acordada e pede a condenação da recorrida no seu pagamento.
19. Os factos e a pretensão sintetizados no parágrafo anterior convocam a aplicação do regime da cessação do contrato de trabalho mediante acordo revogatório celebrado entre as partes, nos termos previstos nos artigos 340.º - b), 349.º e 350.º do CT.
20. Com efeito, a lei admite (cf. artigo 349.º n.º 4 do CT) e é frequente na prática, que as partes prevejam no acordo revogatório do contrato de trabalho ou conjuntamente com ele, o pagamento ao trabalhador de uma compensação pecuniária global pela cessação do contrato (cf. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, 9.ª Edição, Almedina, página 950).
21. A celebração de um acordo revogatório como forma de cessação do contrato de trabalho está sujeita a exigências de forma, previstas no Código do Trabalho, que têm por objectivo proteger o trabalhador (cf. artigo 349.º n.º 2 do CT). Adicionalmente, o Código do Trabalho confere ao trabalhador o direito ao arrependimento (cf. artigo 350.º do CT). A estipulação de uma compensação pecuniária global, no acordo revogatório, convoca ainda a aplicação da presunção consagrada no artigo 349.º n.º 5 do CT, cuja natureza e/ou validade deve ser apreciada à luz do disposto no artigo 337.º do CT.
22. Pelo que, é forçoso constatar que a apreciação do litígio, tal como é descrito pelo autor na petição inicial, convoca a aplicação de normas de direito laboral, consagradas no Código do Trabalho, como tem sido maioritariamente reconhecido pela jurisprudência nacional sobre a interpretação dessas normas (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 2827/22.3T8MAI.P1.S1, Acórdãos da Relação de Lisboa, processos 24665/15.0T8LSB.L1-4 e 17381/21.5T8SNT.L1-4, acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo 412/10.1TTMAI.P1).
23. Acresce que, a circunstância de a relação laboral já ter terminado, não obsta à competência material dos Juízos/Tribunais do Trabalho, como resulta da seguinte jurisprudência, proferida numa situação que não é idêntica mas é análoga no que aqui releva (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 1267/15.5T8FNC-A.L1.S1, pontos 2 e 3 do sumário):
“2 – Tendo as partes inserido no contrato de trabalho uma cláusula de confidencialidade para vigorar até três anos após a cessação do contrato de trabalho, esta obrigação, livremente assumida pela trabalhadora, é inerente à relação laboral e dela emerge diretamente.
3 – Sendo pedida a condenação da ex-trabalhadora no pagamento da indemnização estabelecida na cláusula penal, em consequência da violação da cláusula de confidencialidade, estão em causa questões emergentes de relações de trabalho subordinado, ainda que a violação tenha ocorrido após a cessação do contrato de trabalho, cabendo, por isso, a competência para a ação à secção do trabalho, nos termos do art.º 126, nº 1, al. b) da LOSJ.”
24. Em consequência, o presente litígio está abrangido pelo disposto no artigo 126.º n.º 1 – b) da Lei 62/2013 e é competente em razão da matéria o 3.º Juízo do Trabalho de Lisboa..
25. Motivos pelos quais procede o recurso, é revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julga o 3.º Juízo do Trabalho de Lisboa competente em razão da matéria para conhecer a presente acção.
Decisão
I. Julgo procedente o recurso e, em conformidade revogo a decisão recorrida.
II. Julgo o 3.º Juízo do Trabalho de Lisboa competente em razão da matéria para conhecer a presente acção.
III. As custas do recurso ficarão a cargo de cada uma das partes na proporção em que ficar vencida a final na acção.

Lisboa, 2.4.2025
Paula Pott