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CONTRATO DE TRABALHO DESPORTIVO
COMPETÊNCIA DO JUÍZO DO TRABALHO
TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO
Sumário
1. Nos termos conjugados dos arts. 4.º, n.º 4 e 5.º, n.º 1 da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, do art.º 1.º, n.º 1 da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, e do art.º 387.º, n.º 1 do Código do Trabalho, uma vez que a regularidade e licitude do despedimento só pode ser apreciada por tribunal judicial, tal questão está excluída da possibilidade de recurso a arbitragem voluntária. 2. Estando em causa um contrato de trabalho desportivo, os litígios dele emergentes, incluindo a apreciação da regularidade e licitude do despedimento, podem ser submetidos ao Tribunal Arbitral do Desporto, desde que tal se encontre previsto em convenção colectiva outorgada entre associações representativas de entidades empregadoras e de praticantes desportivos, nos termos dos arts. 4.º do Regime Jurídico do Contrato de Trabalho do Praticante Desportivo, aprovado pela Lei n.º 54/2017, de 14 de Julho, e 7.º da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, anexa à Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório
Nos presentes autos de acção declarativa de condenação, com processo especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, em que é trabalhadora AA e empregador MADEIRA ANDEBOL SAD, este suscitou no articulado de motivação do despedimento a “incompetência material do tribunal e jurisdição” por preterição de tribunal arbitral, alegando, em suma, que as partes, no contrato que celebraram e no aditamento ao mesmo, declararam que as questões, divergências e litígios emergentes da interpretação ou execução daquele seriam resolvidos com recurso ao processo de arbitragem.
Na contestação, a trabalhadora pugnou pela improcedência da referida excepção dilatória.
Foi proferido despacho saneador em 7/10/2024, em que, além do mais, se decidiu nos seguintes termos: «No articulado motivador a Ré empregadora suscita a incompetência absoluta deste tribunal alegando para o efeito que no contrato de trabalho celebrado com a Autora foi estabelecido um pacto privativo de jurisdição e, como tal, existe preterição do tribunal arbitral. Em contestação, a Autora trabalhadora respondeu pugnando pela improcedência do alegado atenta a natureza especial da presente acção, sendo que a regularidade e licitude do despedimento apenas pode ser apreciada por tribunal judicial. Cumpre apreciar e decidir. Nos termos do artigo 126º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), “compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”. E é consabido que a competência do tribunal em razão da matéria se afere pela natureza da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo autor na petição inicial, isto é, determina-se pelo thema decidendum, pelo pedido conjugado com os factos jurídicos que fundamentam a pretensão deduzida, não estando o tribunal vinculado às qualificações jurídicas do autor, como resulta do artigo 5º, n.º 3 do Código de Processo Civil, nem às vivências no caso das partes para o que ao caso interessa. Nos presentes autos está em causa a apreciação da regularidade e licitude da aplicação da medida disciplinar de despedimento com justa causa, o que nos remete para o processo especial, previsto nos artigos 98ºB e ss, do Código de Processo do Trabalho. Como tal, e conforme bem faz notar a Autora trabalhadora, este é o próprio e o único meio de reacção contra uma decisão judicial de despedimento escrito, como é o caso dos presentes autos. Deste modo, é no âmbito desta acção especial emergente de acidente de trabalho e perante este Tribunal especializado que deve ser apreciada e decidida a medida disciplinar aplicada à Autora pela Ré. Nestes termos, julgo competente em razão da matéria este Tribunal, julgando improcedente o requerido.»
O empregador veio interpor recurso desta decisão, formulando as seguintes conclusões: «1. Vem o presente recurso de apelação interposto da decisão tomada no despacho saneador pela meritíssima juíza “a quo” através da qual julgou o Tribunal do Trabalho do Funchal materialmente competente para, em primeira instância, apreciar da impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento com invocação de justa causa efectuado pela agora apelante MADEIRA ANDEBOL, SAD à apelada AA, uma vez que, “ nos termos do art.º 126.º n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho (?!) e doenças profissionais”(fim de transcrição, sublinhados e entre e comas nosso). 2. Aceite que está pela apelante e apelada a qualificação de relação jurídica existente entre ambas como de trabalho desportivo – praticante desportiva profissional na modalidade de andebol feminino – decisão agora sob recurso, ignora a escolha expressa e inequívoca as partes em submeter as questões, divergências e litígios emergentes da interpretação ou execução do respectivo contrato de trabalho a um processo de arbitragem voluntaria (tribunal arbitral); 3. A decisão recorrida sustenta competência material do Tribunal do Trabalho do Funchal remetendo para o processo especial previsto nos arts. 98.º B e ss do Código de Processo do Trabalho. 4. Di-lo mesmo o despacho saneador, na parte agora objecto de recurso, isto ainda: “como tal, e conforme bem faz notar a Autora (apelada) trabalhadora, este é o próprio e o único meio de reacção contra uma decisão judicial (?!) de despedimento escrito, como é o caso dos autos presentes. Deste modo, é no âmbito desta acção especial emergente de acidente de trabalho (?!) e perante este tribunal especializado que deve ser apreciada e decidida a medida disciplinar aplicada à Autora pela Ré”. (fim de transcrição, sublinhado e entre comas nosso). 5. A apelante arguiu a incompetência material absoluta do tribunal “a quo”, em primeira instância, – Tribunal do Trabalho do Funchal – em dia anterior ao da audiência de partes ocorrida a 11 de Julho de 2024 e a 26 de Julho de 2024 no articulado de motivação do despedimento. 6. Tendo o a meritíssima juíza “a quo” na falta de acordo e contra lei (art.º 98.º I, n. 3 do CPT), julgado improcedente a arguição de incompetência absoluta em razão da matéria apenas no despacho saneador; 7. A decisão objecto do presente recurso tal como está fundamentada – não existe qualquer decisão judicial, nem a situação é acidente de trabalho - não faz escorreita aplicação da lei e da jurisprudência unanime, sendo, desde logo, nula, o que apelante se pretende prevalecer, como efetivamente se prevalece (arts. 205.º da CRP, 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do Código de Processo Civil, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 2ª Secção, Apelação n°. 2585/16.0T8LSB-B.L1 e Revista do STJ, 4.ª Secção, 3157/17.8T8VFX.L1.S1de 03 de Março de 2021). 8. A meritíssima juíza “ a quo”, desde logo, na audiência de partes e na falta de acordo destas, sem prejuízo da nulidade invocada, deveria ter decidido pela incompetência absoluta do Tribunal do Trabalho do Funchal, em primeira instância, para julgar da regularidade e licitude do despedimento da apelada, o que constitui uma exceção dilatória, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar ao indeferimento liminar, tudo ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 96.º, al. a), 97.º, 99.º, 278.º, n.º 1, al. a), 576.º, n.º 1 e 2, 577.º, al. a), todos do Código de Processo Civil». 9. O tribunal “a quo”, em primeira instância, ao declara-se absoluta e materialmente competente para julgar da regularidade e licitude do despedimento da apelada, pratica um erro na forma do processo, em que inexistem actos que possam ser aproveitados, o que determina a nulidade de todo o processo, configurando uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso (cf. artigos 577º, al. b), 193º e 578º do Código de Processo Civil, ex. vi art.º 1º, n.º 2, al. a), do Código de Processo do Trabalho). 10. Nem por economia processual, nem por aproveitamento de actos praticados, nem a praticar, em especial a realização da audiência de julgamento marcada para 29 de Outubro de 2024, em preterição, em primeira instância, de um tribunal arbitral expressa e inequivocamente escolhido pelas partes, o presente recurso pode subir em separado e em efeito meramente devolutivo, sob pena de causar à apelante prejuízos consideráveis. 11. Tais prejuízos consideráveis concretizam-se na limitação do número de testemunhas a apresentar pelas partes e no carácter urgente do processo especial previsto nos arts. 98.º B e ss. do CPT que, como aliás se vem verificando, não permite à apelante a junção integral aos autos antes do julgamento de prova de factos supervenientes aos articulados relacionados com a apelada que, na qualidade de jogadora profissional de andebol feminino, facto público, notório e do conhecimento geral, estar a jogar andebol na equipa principal e a treinar os escalões de formação da Associação Academia São Pedro do Sul mediante retribuição que se desconhece. 12. A Académica São Pedro do Sul (ASPS) não sendo sociedade desportiva como a apelante, não estar sujeita aos registos dos contratos de trabalho desportivo na Federação de Andebol de Portugal nos termos do disposto no regime jurídico das sociedades desportivas, estabelecido pela Lei n.º 39/2023, de 4 de agosto. 13. Essa não obrigatoriedade de registo dos contratos de trabalho desportivos da ASPS limita gravemente o exercício do direito de defesa da apelante e aqueloutro de fazer-se valer do disposto no art.º 390.º n.º 2 do CT, ou seja, e no caso de ilicitude do despedimento, das deduções à retribuição a pagar daquelas que comprovadamente tenha a apelada esteja a auferir por efeito da cessação do contrato de trabalho desportivo. 14. Tais limitações de direito de defesa que, sem o carácter urgente do processo do trabalho, inexistem no âmbito de um processo arbitral, salvaguardando-se o equilíbrio de interesses assentes em razões de economia processual a justificar o princípio da utilidade (art.º 2.º, 4.º e 5.º do CPC). 15. No caso de praticantes desportivos profissionais, como é a apelada, o carácter urgente do processo de trabalho em caso de despedimento com justa causa previsto nos arts. 98.º B e ss. do CPT, não tem fundamento legal, o esbate-o, por ausência de reintegração do trabalhador desportivo na sua anterior entidade empregadora e pela cessação do contrato de trabalho desportivo permitir a celebração de um novo vínculo desportivo profissional com outra entidade desportiva. 16. De qualquer forma, a recorrente e apelante, com a fundamentação acima alegada, e se assim entender o tribunal “à quo” sem mais, ao abrigo do disposto no art.º 647.º n.º 4 do CPC, requerer que o presente recurso de apelação tenha efeito suspensivo, oferecendo-se para prestar caução nos termos e prazo que venha aquele a fixar. 17. A apelante e a apelada, na relação de contratual de trabalho desportivo que celebraram, fixaram, em primeira instância, a competência material de um tribunal arbitral da seguinte forma: “as questões, divergências e litígios emergentes da interpretação ou execução deste contrato e aditamento serão resolvidas com recurso ao processo de arbitragem.” 18. A cessação ou extinção da relação de trabalho desportivo por despedimento com justa causa integra, necessariamente, o conceito da respectiva execução - é mesmo um conflito que emerge dela (neste sentido, artigo 96.º, alínea b) do CPC e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.º 253/10.6TTFUN.L1-4 de 04/13/2011, e a parte do sumario que se aplica, por analogia, ao objecto do presente recurso). A saber: “I – Nada impede que os conflitos emergentes de contrato de trabalho desportivo, em que se questione a justa causa da resolução pelo trabalhador, independentemente da natureza dos direitos e obrigações que se pretendam ver definidos, sejam objecto de convenção de arbitragem voluntária, e possam ser dirimidos pela comissão, pois, não existe norma que a tal obste e a indisponibilidade de direitos no domínio laboral, consignada a favor do trabalhador, desaparece com a extinção do contrato.” (negrito e sublinhado nosso). 19. Donde – e por ter sido essa a vontade das partes no exercício de um direito disponível que nada contraria o disposto nas normas 387.º n.º 1 do CT e 98 C, n.º1 do CPT - o tribunal a quo, em primeira instância, padece de incompetente material absoluta para apreciar, discutir e decidir a acção de impugnação da regularidade e licitude do despedimento com justa causa interposto pela apelada. 20. No caso concreto – e mesmo sem estar qualificada por lei a competição como profissional e inexistir comissão e convenção de arbitragem voluntaria no andebol feminino – naquelas (competições) podem ser celebrados contratos de trabalho desportivos profissionais como o havido entre a apelante e a apelada. e, neles, as partes submeterem, com a exclusão dos tribunais de trabalho em primeira instância, as questões, divergências e litígios emergentes da respectiva interpretação ou execução a apreciação, discussão e julgamento a uma convenção de arbitragem - a um tribunal arbitral. 21. Não se trata de afastar por vontade a das partes a regras da competência do tribunal do trabalho em razão da matéria proibida pelo art.º 95.º n,º 1 do CPC, trata-se, apenas e só, de escolher, em primeira instância, que a questão seja julgada por um tribunal arbitral conforme consagra a jurisprudência do citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.º 253/10.6TTFUN.L1-4 de 04/13/2011. 22. Donde, extinto que está a relação laboral entre a apelante e a apelada por despedimento desta com a invocação de justa causa, o tribunal “a quo” apenas é competente em sede de recurso da decisão arbitral se para tal for constituído o respectivo tribunal nos termos a definir pela lei e partes. 23. No mínimo, e sem prescindir do que ficou dito quanto á arbitragem para os praticantes desportivos profissionais de futebol, trata-se de uma arbitragem “ad hoc” em que as regras do processo são determinadas pelas partes em consonância direta com as leis da arbitragem voluntária (Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro). 24. O tribunal arbitral poderá ser constituído por um único árbitro ou por vários, em número ímpar. 2 - Se o número de membros do tribunal arbitral não for fixado na convenção de arbitragem ou em escrito posterior assinado pelas partes, nem deles resultar, o tribunal será composto por três árbitros (Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, em especial, o art.º 2.º (requisitos)). 25. A decisão recorrida inserta no despacho saneador na parte em através da qual o tribunal “a quo” se declarou absolutamente competente em razão da matéria para, em primeira instância, julgar a regularidade e licitude da decisão de despedimento com justa causa da apelada, ao decidir como decidiu, violou, pois, o disposto nos arts. 205. n.1 da Constituição da República Portuguesa), arts. 2.º, 4.º e 5.º 95.º n,º 1, 96.º, al. a), 97.º, 98.º, 99.º n.º 1, 154.º, 193º, 278.º, n.º 1, al. a), 576.º, n.º 1 e 2, 577.º, al. a) e b), 578.º, 615.º, n.º 1, al. b) e c) do Código de Processo Civil ex. vi art.º 1º, n.º 2, al. a), do Código de Processo do Trabalho), arts. 98.º B, 98.º, C, n.º 1, 98.º I, n. 3 do Código do Processo de Trabalho, 387.º n.º 1 e 390.º n.º 2 do CT, 29.º n. 4, 42.º n.1, 80.º n. 1 e 150.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei orgânica do sistema judiciário) e Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro (arbitragem voluntaria).»
A trabalhadora apresentou resposta ao recurso do empregador, pugnando pela sua improcedência.
Foi admitido o recurso, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
Observado o disposto no art.º 87.º, n.º 3 do CPT, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o previsto no art.º 657.º do CPC, cabe decidir em conferência.
2. Questões a resolver
Tal como resulta das conclusões do recurso, que delimitam o seu objecto, as questões que se colocam a este Tribunal são as seguintes:
- nulidade do despacho recorrido;
- excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal por preterição de tribunal arbitral.
3. Fundamentação
3.1. Os factos a atender são os decorrentes do Relatório supra e ainda, com base nos documentos identificados e acordo das partes nos articulados, os seguintes:
a) Está estipulado na Cláusula Nona do denominado "contrato de prestação de serviços" datado de 26/12/2023, bem como no parágrafo último do denominado "aditamento n.º 1 ao contrato de prestação de serviços" datado de 23/12/2023, que as partes outorgaram, que: As questões, divergências ou litígios emergentes da interpretação ou execução deste contrato / aditamento serão resolvidos com recurso ao processo de arbitragem;
b) Através do aludido acordo que consubstancia um contrato de trabalho desportivo, a trabalhadora, jogadora profissional de andebol, obrigou-se a exercer esta actividade, mediante retribuição, na equipa sénior feminina do empregador, sob a autoridade, direcção e fiscalização deste.
3.2. A Apelante vem arguir a nulidade do despacho recorrido pelo facto de, segundo se percebe, o mesmo conter referências que não correspondem à realidade, como sejam a de estarmos em presença duma acção emergente de acidentes de trabalho e doenças profissionais e perante uma decisão judicial de despedimento escrito.
Vejamos.
Por força do disposto nos arts. 613.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1 do CPC, um despacho é nulo quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Por seu turno, de acordo com o preceituado nos arts. 613.º, n.º 3 e 614.º, n.º 1 do CPC, se o despacho, entre outras situações que não relevam para o caso, contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigido por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz. Acrescenta o n.º 2 do art.º 614.º que, em caso de recurso, a rectificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à rectificação.
Ora, afigura-se inequívoco que, no contexto da acção em apreço e do próprio despacho recorrido, pelas demais menções que dele constam, as referências invocadas pelo Apelante se devem a lapso manifesto do tribunal a quo, devendo entender-se, conforme o Recorrente demonstra perfeitamente ter percebido, que o tribunal recorrido pretendia referir-se a estarmos perante uma acção de impugnação judicial da regularidade e licitude de despedimento baseado em decisão patronal de despedimento por escrito.
E, assim sendo, com essas rectificações, o despacho recorrido não enferma de qualquer uma das causas de nulidade indicadas no art.º 615.º, n.º 1 do CPC, designadamente as das alíneas b) e c), que o Apelante invoca, pois, substituídas as referências inexactas, devidas a lapso manifesto, pelas referências correctas, nos sobreditos termos, é seguro que o despacho especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e aqueles estão em perfeita consonância com esta, sem qualquer ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível.
Improcede, pois, a nulidade arguida.
3.3. Vejamos, então, se ocorre a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal por preterição de tribunal arbitral.
Estabelece o art.º 96.º do CPC:
Casos de incompetência absoluta
Determinam a incompetência absoluta do tribunal:
a) A infração das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional;
b) A preterição de tribunal arbitral.
Verifica-se, pois, que uma coisa é a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, hierarquia e nacionalidade, e outra a incompetência absoluta por preterição de tribunal arbitral, do que se conclui que tanto o tribunal recorrido como as partes incorreram em erro ao confundir a incompetência em razão da matéria com a preterição de tribunal arbitral: uma e outra são situações distintas, tendo em comum serem ambas causas de incompetência absoluta do tribunal, que dão lugar à absolvição do réu da instância – arts. 278.º, n.º 1, al. a), 576.º e 577.º, al. a) do CPC.
Assim, como, nos termos conjugados dos arts. 60.º, 64.º e 65.º do CPC e do art.º 126.º, n.º 1, al. b) da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho, não oferece dúvida alguma que o juízo do trabalho recorrido é competente em razão da matéria para conhecer duma acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, como aquela que ora nos ocupa.
Coisa diversa é saber se ocorre a incompetência absoluta do tribunal recorrido por preterição de tribunal arbitral.
Com efeito, prevê o art.º 150.º da citada Lei da Organização do Sistema Judiciário:
Tribunais arbitrais
1 - Salvo nos casos expressamente previstos por lei, a submissão de qualquer litígio à apreciação de um tribunal arbitral depende da vontade expressa e inequívoca das partes.
2 - A competência, a organização e o funcionamento dos tribunais arbitrais são definidos em diploma próprio.
Este diploma é actualmente a Lei da Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, sendo certo que esta ressalva o seguinte, no que ora interessa:
Artigo 4.º
Disposição transitória
(…)
4 - A submissão a arbitragem de litígios emergentes de ou relativos a contratos de trabalho é regulada por lei especial, sendo aplicável, até à entrada em vigor desta o novo regime aprovado pela presente lei, e, com as devidas adaptações, o n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março.
Artigo 5.º
Norma revogatória
1 - É revogada a Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, com excepção do disposto no n.º 1 do artigo 1.º, que se mantém em vigor para a arbitragem de litígios emergentes de ou relativos a contratos de trabalho.
(…)
O referido n.º 1 do art.º 1.º da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, prescreve que, desde que, por lei especial, não esteja submetido exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária, qualquer litígio que não respeite a direitos indisponíveis pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros.
Ora, nos termos do art.º 387.º, n.º 1 do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, a regularidade e licitude do despedimento só pode ser apreciada por tribunal judicial.
Estabelece, contudo, o art.º 4.º do Regime Jurídico do Contrato de Trabalho do Praticante Desportivo, aprovado pela Lei n.º 54/2017, de 14 de Julho:
Arbitragem voluntária
Para a solução de quaisquer conflitos emergentes de contrato de trabalho desportivo e de contrato de formação desportiva, as associações representativas de entidades empregadoras e de praticantes desportivos podem, por meio de convenção colectiva, prever o recurso ao Tribunal Arbitral do Desporto, criado pela Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro.
Por seu turno, dispõe a Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, anexa à Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, no que ora releva:
Artigo 6.º
Arbitragem voluntária
1 - Podem ser submetidos à arbitragem do TAD todos os litígios, não abrangidos pelos artigos 4.º e 5.º, relacionados directa ou indirectamente com a prática do desporto, que, segundo a lei da arbitragem voluntária (LAV), sejam susceptíveis de decisão arbitral.
2 - A submissão ao TAD dos litígios referidos no número anterior pode operar-se mediante convenção de arbitragem ou, relativamente a litígios decorrentes da correspondente relação associativa, mediante cláusula estatutária de uma federação ou outro organismo desportivo.
Artigo 7.º
Arbitragem voluntária em matéria laboral
1 - O disposto no artigo anterior é designadamente aplicável a quaisquer litígios emergentes de contratos de trabalho desportivo celebrados entre atletas ou técnicos e agentes ou organismos desportivos, podendo ser apreciada a regularidade e licitude do despedimento.
2 - De acordo com o definido no número anterior é atribuída ao TAD a competência arbitral das comissões arbitrais paritárias, prevista na Lei n.º 28/98, de 26 de Junho.
De notar que esta Lei n.º 28/98, de 26 de Junho, que estabelecia o regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo e do contrato de formação desportiva, revogado pela acima citada Lei n.º 54/2017, de 14 de Julho, dispunha a tal propósito:
Artigo 30.º
Convenção de arbitragem
1 - Para a solução de quaisquer conflitos de natureza laboral emergentes da celebração de contrato de trabalho desportivo poderão as associações representativas de entidades empregadoras e de praticantes desportivos, por meio de convenção colectiva, estabelecer o recurso à arbitragem, nos termos da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, através da atribuição, para tal efeito, de competência exclusiva ou prévia a comissões arbitrais paritárias, institucionalizadas, nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 425/86, de 27 de Dezembro.
2 - A convenção que estabelecer o recurso à arbitragem prevista no número anterior deverá fixar as competências próprias da comissão arbitral paritária, bem como a respectiva composição.
3 - As comissões e tribunais arbitrais já existentes à data da entrada em vigor do presente diploma consideram-se competentes nos termos do n.º 1 do presente artigo, desde que tal competência resulte da convenção que determinou a sua constituição.
Aqui chegados, retornando ao caso em apreço, cumpre relembrar que se mostra provado que:
a) Está estipulado na Cláusula Nona do denominado "contrato de prestação de serviços" datado de 26/12/2023, bem como no parágrafo último do denominado "aditamento n.º 1 ao contrato de prestação de serviços" datado de 23/12/2023, que as partes outorgaram, que: As questões, divergências ou litígios emergentes da interpretação ou execução deste contrato / aditamento serão resolvidos com recurso ao processo de arbitragem;
b) Através do aludido acordo, que consubstancia um contrato de trabalho desportivo, a trabalhadora, jogadora profissional de andebol, obrigou-se a exercer esta actividade, mediante retribuição, na equipa sénior feminina do empregador, sob a autoridade, direcção e fiscalização deste.
Ora, como se viu, nos termos conjugados dos arts. 4.º, n.º 4 e 5.º, n.º 1 da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, do art.º 1.º, n.º 1 da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, e do art.º 387.º, n.º 1 do Código do Trabalho, uma vez que a regularidade e licitude do despedimento só pode ser apreciada por tribunal judicial, tal questão está excluída da possibilidade de recurso a arbitragem voluntária.
É certo que, estando em causa um contrato de trabalho desportivo, os litígios dele emergentes, incluindo a apreciação da regularidade e licitude do despedimento, podem ser submetidos ao Tribunal Arbitral do Desporto, desde que tal se encontre previsto em convenção colectiva outorgada entre associações representativas de entidades empregadoras e de praticantes desportivos, nos termos dos citados arts. 4.º do Regime Jurídico do Contrato de Trabalho do Praticante Desportivo, aprovado pela Lei n.º 54/2017, de 14 de Julho, e 7.º da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, anexa à Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro1.
Porém, na situação dos autos, apesar de estar em causa um contrato de trabalho desportivo, não existe convenção colectiva outorgada entre associações representativas da ora trabalhadora e da ora empregadora que preveja a submissão de litígios ao Tribunal Arbitral do Desporto2.
Acresce que, nos termos do citado art.º 150.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a submissão de qualquer litígio à apreciação de um tribunal arbitral depende da vontade expressa e inequívoca das partes.
Ora, tendo a ora trabalhadora e a ora empregadora declarado que as questões, divergências ou litígios emergentes da interpretação ou execução do contrato / aditamento serão resolvidos com recurso ao processo de arbitragem, não decorre de tal declaração, expressa e inequivocamente, que quisessem submeter ao Tribunal Arbitral do Desporto as questões, divergências ou litígios emergentes da cessação do contrato de trabalho desportivo que as ligava, ainda que existisse convenção colectiva de trabalho que o permitisse, o que não é o caso.
Por todo o exposto, improcede necessariamente o recurso em apreço.
4. Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente e confirmar o despacho recorrido.
Custas pelo Apelante.
Lisboa, 30 de Abril de 2025
Alda Martins
Manuela Fialho
Paula Doria C. Pott
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1. Cfr. os Acórdãos da Relação de Lisboa de 12-10-2016, proferido no processo n.º 2130/14.2T8CSC.L1-4, e da Relação do Porto de 06-11-2017, proferido no processo n.º 472/17.4T8VNG.P1, disponíveis em www.dgsi.pt.
2. V. Artur Flamínio da Silva e Daniela Mirante, «Arbitragem voluntária e contrato de trabalho desportivo», in Revista Julgar, Setembro de 2018, pp. 11-12, disponível em https://julgar.pt/arbitragem-voluntaria-e-contrato-de-trabalho-desportivo/.