Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ACUSAÇÃO PARTICULAR
INSUFICIENTE DESCRIÇÃO DO TIPO DE CRIME
POSSIBILIDADE DE DEDUÇÃO DE NOVA ACUSAÇÃO
DEVOLUÇÃO DOS AUTOS AO MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário
I - A rejeição da acusação particular, por ser manifestamente infundada (no sentido de nela não estarem descritos, de modo suficientemente completo, os elementos subjetivos dos crimes imputados ao arguido), ao abrigo do disposto no artigo 311º, nºs 2, al. a), e 3, al. b), do C. P. Penal, não tem como consequência direta e necessária o arquivamento dos autos, devendo ser concedida ao assistente a possibilidade de apresentar nova acusação em que supra tal deficiência, após o que, poderá o Ministério Público, querendo, utilizar a possibilidade que lhe confere o nº 4 do artigo 285º daquele diploma legal. II - A insuficiência na descrição de um elemento típico não inviabiliza a persecução penal, desde que sejam respeitados os limites legais e assegurados os direitos de defesa do arguido, pelo que a rejeição liminar da acusação não conduz necessariamente ao arquivamento, mas sim à devolução dos autos para a correção da insuficiência apontada.
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO De ÉVORA
1. RELATÓRIO
A – Decisão Recorrida
Nos autos 257/23.9GBVNO.E1 que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Criminal de Ourém, pelo assistente C foi deduzida acusação particular contra D, pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de injúria, um crime de difamação e um crime de ultraje por motivo de crença religiosa, p.p., respectivamente, pelos Artsº 181, 180 e 251 nº1, todos do C. Penal.
O MP proferiu despacho de arquivamento em relação ao crime de ultraje por motivo de crença religiosa e não acompanhou a acusação particular no que toca aos crimes de injúria e difamação.
Recebidos os autos em tribunal para a marcação de julgamento, foi tal acusação rejeitada, nos termos do Artº 311 nsº1, 2 al. a) e 3 al. b) do CPP.
B – Recurso
Inconformado com o assim decidido, recorreu o assistente, com as seguintes conclusões (transcrição):
1ª A decisão recorrida rejeitou a acusação particular apresentada pelo ora recorrente ao considerar que esta não continha a descrição dos factos necessária à configuração do elemento subjetivo dos crimes de difamação e injúria imputados, levando a que a acusação fosse julgada manifestamente infundada e rejeitada ao abrigo do art. 311º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal (CPP). 2ª Embora se apresentam algumas discordâncias quanto às conclusões retiradas, na decisão em crise, quanto à objectiva definição das expressões proferidas pelos arguidos, bem como às suas atitudes perpetradas contra o recorrente, o fundo deste recurso prende-se com a consequência que o Tribunal aquo retira da nulidade da acusação particular, como se verá infra melhor explicado. 3ª Não é verdade que, conforme consta da decisão recorrida “a acusação particular,efetivamente,nãosó nãoindica asexpressõesqueforamescritasou ditas,comoasqueimputasãovagas”. 4ª As expressões que configuram elemento típico dos ilícitos em causa encontram-se descrita na acusação particular, nomeadamente, nos seguintes pontos:
- No ponto 13º da acusação particular encontra-se expressamente descrito que o arguido, na data concreta de 12/06/2023, se dirigiu à coordenadora do curso, referindo-se ao assistente com a expressão “tem um idiota que está-me processando”;
- No ponto 15º da acusação particular encontra-se expressamente descrito que o arguido, na data concreta de 15/06/2023, se dirigiu ao assistente, em tom de provocação, proferindo as expressões “Deus te proteja, volta-me a ofender, vai ter problemas sérios comigo” e “Não vai haver santos nem santas que o ajudem”, referindo-se ainda ao assistente como “fanático religioso”;
- No ponto 16º da acusação particular encontra-se expressamente descrito que o arguido, na data concreta de 11/10/2023, se dirigiu ao assistente, proferindo a seguinte expressão “falta honestidade para muito, aqui com aquele bocadinho noroeste”. 5ª Pelo que não se encontra, de forma alguma, violado o direito de defesa doarguido, que bem pode perceber os factos que lhe são imputados, pondo de lado o fundamento da aplicação do art. 311º do CPP. 6ª Devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por uma que aceite aacusação particular deduzida, levando o arguido a julgamento. Paraocasodeassimnãoseentender, 7ª A decisão recorrida determinou o arquivamento do processo, mandando “darbaixa” do mesmo, merecendo tal decisão a mais veemente rejeição. 8ª Sendo certo que uma nova acusação pode apenas colmatar as faltasidentificada, sem introduzir novos factos ou alterar a descrição original além do estritamente necessário para atender aos requisitos legais o assistente deveria ser notificado para deduzir nova acusação que suprisse as omissões apontadas pelo douto Tribunal aquo. 9ª Tal entendimento encontra estribo na mais ampla jurisprudência dos nossos Tribunais da Relação e até do Tribunal Constitucional, como se poderá verificar pela leitura dos Acórdãos da Relação de Évora de 06/03/2012 e 12/01/2021, do Acórdão da Relação de Coimbra de 08/05/2018, do Acórdão da Relação de Lisboa de 07/05/2024 e do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 246/2017. 10ª Pelo que, caso permaneça a conclusão de que a acusação se encontramanifestamente infundada, sempre se mostra evidente a necessária revogação do despacho que determinou o arquivamento do processo e a substituição por um que determine a notificação do assistente para deduzir nova acusação no prazo legal e a concomitante devolução dos autos ao Ministério Público para a tramitação subsequente, em conformidade com o previsto no CPP. TERMOSEMQUE,
Deve o despacho de não recebimento da acusação particular apresentada ser revogado e substituído por um que receba a acusação deduzida, Ou,paraocasodeassimnãoseentender,
Deve, o despacho de não recebimento da acusação ser revogado parcialmente, sendo substituído por um que, não recebendo a acusação, por força da nulidade determinada, convide o assistente a deduzir nova acusação corrigida, seguindo o processo os seus ulteriores trâmites, nos termos do nº 4 do art. 285º do CPP.
C – Resposta ao RecursoO M.P. respondeu ao recurso, com as seguintes conclusões (transcrição):
1- O recurso apresentado pelo assistente/recorrente, quer na sua motivação, quer nas suas conclusões, não indica as concretas normas jurídicas violadas,
2- Pelo que deverá o recurso ser rejeitado.
3- Nos presentes autos foi proferido despacho que rejeitou a acusação particular, nos termos do disposto no art. 311, nº 1, 2, a) e 3, b) do Código de Processo Penal, e determinou o arquivamento dos autos.
4- O assistente/recorrente discorda do referido despacho, por um lado, entende que a acusação particular não é manifestamente infundada e, por outro lado, discorda da decisão de arquivamento dos autos, entendendo que a consequência da rejeição não deveria ser o arquivamento dos autos.
5- Não assiste qualquer razão ao recorrente.
6- Entendemos que andou bem o Tribunal a quo ao rejeitar a acusação particular e, nessa sequência, a determinar o arquivamento dos autos.
7- Com efeito, o despacho recorrido foi de encontro ao anteriormente preconizado pelo Ministério Público, que não acompanhou a acusação particular e promoveu a sua rejeição por considerar a mesma nula, por não cumprir com o disposto no art. 283, nº 3, b) do Código de Processo Penal.
8- De facto, a acusação particular é genérica, vaga, recorrendo a remissões para “descrever” os elementos objetivos do(s) tipo(s) de ilícito-penais em causa, o que inquina desde logo, a descrição dos seus elementos subjetivos.
9- Deste modo, a decisão recorrida não merece qualquer reparo.
10-Em consequência, deverá o recurso apresentado pelo recorrente ser julgado improcedente.
Por todo o exposto, não deve ser dado provimento ao recurso apresentado pelo assistente/recorrente, e consequentemente, manter-se a decisão recorrida, assim se fazendo, uma vez mais, a costumada JUSTIÇA!
D – Tramitação subsequente
Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que se limitou a dar por reproduzida a resposta do MP ao recurso.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
A – Objecto do recurso
De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim sendo, importa tão só apreciar se existe razão ao recorrente, quando solicita a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que receba a acusação deduzida e designe data para julgamento, ou, se assim não se entender, que determine que o assistente formule nova acusação corrigida.
B – Apreciação
Exposta a questão em discussão, eminentemente jurídica, importa atentar, no despacho recorrido, que é do seguinte teor (consignando-se que não se procede à transcrição da acusação particular por a mesma não ter sido fornecida a este tribunal em formato informático editável):
DA NULIDADE DA ACUSAÇÃO PARTICULAR
O Ministério Público não acompanhou a acusação particular e considerando existir falta de narração dos factos que preencham os elementos do tipo dos crimes que o assistente imputou na acusação particular o que constituiu uma “nulidade, por manifestamente infundada em razão da omissão total das indicações tendentes à identificação do arguido (cfr art 285º, nº 3, al. a) e 311º, nº 1, al. a) e nº 3, al. a) do C.P.P. ”
Cumpre apreciar e decidir.
A acusação particular, pese embora “impute” factos ao arguido que, no entender da assistente, consubstanciam o preenchimento dos tipos legais de crime de Injuria e Difamação, nunca os descreve.
É que, a descrição dos acontecimentos feita nos pontos acima indicados sob os números 6º a 17º, dada a indefinição das expressões escritas e/ou faladas que encerra, não permite o contraditório, impossibilitando qualquer defesa por parte do arguido.
Como se diz no douto Ac. do TRP, de 30.09.2015, proferido no Processo nº 775/13.7GDGDM.P1 (in www.dgsi.pt), «As imputações genéricas, sem uma precisa especificação das condutas e do tempo e lugar em que ocorreram, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado no art.32.º, n.º1, da CRP, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente.»
No mesmo sentido, vejam-se os seguintes acórdãos, todos em www.dgsi.pt:
- Ac. do STJ, de 05.04.2006, Processo nº 05P2932: «O STJ tem vindo a decidir que não são factos suscetíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado».
- Ac. STJ, de 21.02.2007, Processo nº 06P3932: «O arguido só pode contrariar a acusação ou a pronúncia, de forma adequada e eficaz, se naquelas peças processuais se encontrarem vertidos especificadamente e com clareza os factos imputados, isto é, o caso concreto ou particular submetido a julgamento. De outro modo, ou seja, perante uma acusação ou uma pronúncia constituídas por factos genéricos, não individualizados, fica ou pode ficar prejudicada a possibilidade de o arguido se defender.»
Sendo correspondentemente aplicável à acusação particular o disposto no art.º 283.º, 3, al. b) do CPP (cfr. art.º 285.º, 3 do CPP), terá a mesma de conter, sob pena de nulidade “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”
A acusação particular, efetivamente, não só não indica as expressões que foram escritas ou ditas, como as que imputa são vagas.
Ora se o juiz não é passível tal ato, igualmente se acha vedado ao MP, sob pena de ficar na dependência do Magistrado, titular do processo, a boa vontade ou permissividade na prática de atos cujos prazos legais são imperativos.
Face ao exposto, nos termos do art.º 311.º, 1, 2 a) e 3 b), do Cód. Proc. Penal, rejeita-se a referida acusação particular, porque nula e manifestamente infundada.
Custas pela assistente.
Taxa de justiça: 3 UC (art.ºs 515.º, 1 f), do CPP e 8.º, 1, do RCP).
Em face do exposto, igualmente não se admite o pedido de indemnização civil.
Dê baixa e insira em marcador.
Oportunamente, e mantendo-se o presente despacho, arquive.
*
O recorrente deduziu acusação particular contra D, pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de injúria, um crime de difamação e um crime de ultraje por motivo de crença religiosa, p.p., pelos Artsº 181, 180 e 251 nº1, todos do C. Penal.
No que respeita ao último dos ilícitos (ultraje por motivo de crença religiosa), o mesmo, como se alcança do estatuído no Artº 48 nº1 do C. Penal, tem natureza pública, pelo que o assistente não tem legitimidade para deduzir qualquer acusação, cabendo a mesma ao titular da acção penal, o MP.
Em processo penal, o assistente apenas pode deduzir acusação, desacompanhado do MP, quando o crime revestir natureza particular.
Ora, não cabendo ao assistente a prossecução criminal por tal ilícito e não tendo o MP, no âmbito das suas competências quanto a crimes públicos ou semi-públicos (Artsº 284 e 285, ambos do CPP), proferido qualquer acusação pelo ilícito em causa, tal implica que a acusação proferida pelo ora recorrente, no que toca à imputação do crime de ultraje por motivo de crença religiosa terá de se considerar nula, por absoluta ausência de competência de quem a lavrou (Cfr. neste sentido, Acórdão desta Relação, de 26/02/2013).
Em qualquer caso, sempre a mesma seria de rejeitar, como acertadamente procedeu a decisão recorrida, por padecer de vícios insanáveis, in totum, ou seja, quer no que toca ao aludido crime, quer no que concerne aos ilícitos de injúria e difamação.
Sendo o crime, como bem se sabe desde os bancos da faculdade, doutrinariamente definido com facto típico, ilícito e culposo, os elementos da noção de crime, na definição de Cavaleiro Ferreira, “… são partes do todo que é o crime, e não uma justaposição ou soma de elementos autónomos. Na análise do crime não se constrói a estrutura do crime pela sobreposição de elementos autónomos” ( Lições de Direito Penal, I, 2010, pág. 85 )
Mas, se assim é, por razões metodológicas, de compreensão da norma e de correcta subsunção de factualidade, há que decompor o crime em partes.
A bipartição em tipo objectivo e tipo subjectivo é, como se disse, tradicionalmente seguida pela doutrina e unanimemente assumida pela jurisprudência.
Ora, não sendo os crimes em causa punível a título de negligência (Artº 13 do C. Penal), importa situar-nos na análise do tipo subjectivo do crime doloso de acção e/ou de omissão, na classificação quadripartida de Figueiredo Dias ( Direito Penal, I, 2004, pág. 246 ), que se desdobra, muito sinteticamente, nas bem conhecidas componentes cognoscitiva ou intelectual e volitiva ou intencional, respectivamente correspondentes, ao conhecerou saber e ao querer o desvalor do facto, sendo esta a estrutura do crime, especificamente no que ao dolo diz respeito, de todo o crime, por mais simples ou menos grave que seja, incluindo, aqueles que o assistente imputa ao arguido.
Ora, descendo ao concreto da situação dos autos, constata-se que, como bem anotou o tribunal a quo, na acusação particular formulada pelo assistente, inexiste qualquer menção ao elemento intelectual do dolo, ou seja, ao conhecimento, por parte do arguido, dos elementos constitutivos dos crimes e a sua vontade em os realizar, pois em nenhum momento ali se diz que aquele representava a sua conduta como um crime, querendo assim actuar com tal conhecimento.
É também factualmente que tem de resultar que o agente quer e sabe que comete o crime pelo qual vem acusado, devendo por isso a base factual abranger esses domínios estruturantes do dolo – a intenção do cometimento do facto típico e ilícito e o conhecimento desse cometimento nesses moldes – sem os quais se torna impossível a consequente imposição do direito.
É pois indiscutível que à dita acusação particular falta o dolo, como um dos elementos típicos da noção de crime – numa das modalidades previstas no Artº 14 do C. Penal – sendo seguro que tal lacuna não pode ser preenchida pelo tribunal, na medida em que o aditamento dos factos correspondentes a esses elementos, intelectual e volitivo, redundaria numa alteração substancial dos factos constantes da acusação não permitida por lei.
Na verdade, como resulta do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2015, publicado no DR, 1ª Série, de 27/01/15, “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal”.
Nessa medida, de forma incontroversa, inequívoca e inquestionável, a acusação particular deduzida pelo assistente não contêm todos os elementos exigíveis para dela poder resultar, em sede de julgamento, a condenação do arguido.
A acusação fixa, como se sabe, o objecto do julgamento e, sob pena de nulidade, contêm, como exige o nº3 do Artº 283 do CPP, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o que se impõe por força do princípio do acusatório e como forma de assegurar ao arguido todas as garantias de defesa, nos termos do Artº 32 nº1 da Constituição da República Portuguesa.
O nosso modelo processual penal, vigente desde 1987, estrutura-se, no princípio do acusatório, embora mitigado com uma vertente investigatória, estabelecendo-se uma distinção clara entre a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e, nesse âmbito, produz uma acusação, e uma outra, que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto dessa acusação. In casu, o tribunal da 1ª instância, ao abrigo do plasmado no Artº 311 nsº1 e 2 al. a) e 3 do CPP, rejeitou a acusação por a considerar manifestamente infundada, por dela não constarem os elementos facticos do dolo relativos aos crimes aí assacados ao arguido, sendo seguro que nunca os poderia aditar, sob pena de cometer uma nulidade por alteração substancial dos factos constantes nessa acusação.
Ora, como é amplamente ensinado pela doutrina e jurisprudência, a aplicação da norma citada implica que a acusação, nessas situações, padeça de deficiências estruturais de tal modo graves que, em face dos seus próprios termos, não tenha condições de viabilidade, por os factos nela descritos não constituírem crime, mas tal conclusão, a da irrelevância penal dos factos imputados ao arguido, tem de ser manifesta, indiscutível, evidente, inequívoca, não bastando que seja meramente discutível por uma das várias correntes seguidas pela jurisprudência.
Nessa medida, só e apenas quando de forma incontroversa os factos que constam na acusação não constituem crime, é que o tribunal a pode rejeitar por manifestamente infundada, ao abrigo do aludido comando legal.
Essa é, manifestamente, a situação sub judice, porquanto mesmo a provarem-se todos os factos ali narrados, nunca o arguido poderia vir a ser condenado pelos crimes de injúria e difamação, na medida em que, para estes, sempre faltaria o dolo (no seu elemento intelectual), critério indispensável para que as imputadas condutas pudessem ser penalmente sancionadas.
Acresce, que também na narração da acusação particular nada se diz quanto à consciência da ilicitude por parte do arguido nas alegadas condutas delitivas e mesmo ao nível objectivo dos crimes em causa, a dita peça processual apresenta falhas insuperáveis, como sejam a inexistência de qualquer conduta assacada ao arguido que se pudesse traduzir no crime de difamação – no sentido daquele, dirigindo-se a terceiro, ter imputado ao assistente um facto, ou formulado sobre este um juízo que se pudessem considerar ofensivos da sua honra e consideração – o mesmo sucedendo em relação ao crime de injúria, já que, salvo melhor opinião, também aqui não são aduzidos factos concretos que, objectivamente, se possam enquadrar nesse quadro criminal, tendo em conta que este tem de relevar de forma suficientemente grave que mereça a tutela do direito.
Nessa medida, ter-se-á de concluir que a factualidade imputada ao arguido pelo assistente na sua acusação particular não preenche os elementos constitutivos dos crimes de injúria e difamação, existindo assim motivos para que a dita acusação seja rejeitada, nos termos do Artº 311 nº3 al. d) do CPP.
Quando o tribunal de julgamento verifica uma situação indiscutível como é a dos autos, em que a acusação falece, por a matéria factual que dela consta não admitir a possibilidade de o arguido ter cometido os crimes que ali lhe são imputados - por carecer de elementos estruturais sem os quais não se pode assacar aquele comportamento criminoso - ter-se-á necessariamente de concluir que tal acusação particular carece de objecto útil, porquanto do seu prosseguimento, e ainda que se provassem os factos ali plasmados, apenas poderia redundar uma decisão, a absolvição do arguido, o que torna o consequente julgamento um acto processualmente inútil e por isso, proibido por lei, como estipula o Artº 137 do CPC, aplicável por força do Artº 4 do CPP.
Nessa medida e sendo certo que, in casu e no que respeita à acusação particular deduzida pelo assistente, não foi requerida a abertura da instrução pelo arguido, não tendo havido, por isso, despacho de pronúncia, não se pode deixar de concluir que para os casos de manifesta, incontroversa e inquestionável improcedência da acusação (como é a situação dos autos), exista motivo para a sua rejeição, nos termos do normativo citado, na medida em que, sendo absolutamente adquirido que os factos em causa não constituem crime, o julgamento, de forma evidente, mais não consubstanciaria que um acto inútil e, nessa medida, não deve ter lugar, por ser proibido por lei.
Nesta medida, nada há a censura ao despacho recorrido, quando rejeitou a acusação.
Já o mesmo, contudo, não sucede, na parte em que determinou o arquivamento do processo.
Nesta parte e mau grado se reconhecer que a solução não é pacífica na jurisprudência, defende-se o entendimento que deve ser dada a oportunidade ao assistente para deduzir nova acusação, corrigindo-a com o que está em falta e motivou a sua rejeição, sendo certo que a nova acusação do assistente se tem de limitar a isso mesmo, ou seja, colmatar os vícios de que padecia.
Já esta Relação, por aresto de 12/01/21, no Proc. 482/19.7T9FAR.E1, havia decidido em idêntico sentido, sendo que pelo seu evidente acerto, aqui se reproduz o seu teor:
“Seguimos de perto o acórdão desta relação de 10/4/2018, …sumariado nos seguintes termos:
“1 - O despacho que rejeita a acusação por manifesta improcedência somente forma caso julgado formal (artigo 620º, n. 1 do C.P.C.), na medida em que não conhece do mérito da causa e apenas tem força obrigatória no processo e nos precisos termos em que foi lavrado. Isto é, não existe caso julgado material.
2 - Daqui decorre, naturalmente, que nada obsta à reformulação da acusação, desde que o seu conteúdo material seja alterado com a inclusão dos factos pertinentes que conduziram à sua rejeição. Essa reformulação da acusação não constitui nem violação de caso julgado – formal ou material – nem violação do princípio ne bis in idem.
3 - Não é admissível considerar que uma decisão que rejeitou uma acusação (logo, que não permitiu sequer que o processo chegasse à fase de julgamento) corresponde a um julgamento por um crime, arremedo interpretativo que a clareza do artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa («Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime») não permite.
4 - Resta saber que fazer ao processo, questão onde se surpreendem duas posições jurisprudenciais que, em regra, coincidem com as anteriormente referidas quanto à existência de caso julgado e violação do princípio ne bis in idem. Assim: a) - Há quem defenda que só se forma caso julgado formal e que não ocorre violação do princípio ne bis in idem e sustente, consequentemente, que o processo não deve ser arquivado e deve ser devolvido ao Ministério Público para os fins que tiver por convenientes; b) – Há uma segunda posição que defende que a rejeição da acusação implica, se repetida, violação de caso julgado e violação do princípio ne bis in idem e entende que o arquivamento dos autos é a consequência lógica a impor-se.
5 - Esta segunda posição olvida uma simples questão processual de índole prática: o processo é um inquérito e não perdeu a sua qualidade de inquérito. E o domus do inquérito é o Ministério Público, não é o juiz de julgamento, nem o juiz de instrução. Quando o juiz de julgamento recebe uma acusação manda “registar e autuar” o processo de inquérito como processo seguindo a forma adequada para julgamento, comum ou especial. É a consequência lógica processual do recebimento de uma acusação.
6 - Porém, se rejeita a acusação o juiz não manda registar e autuar o processo de inquérito como processo comum ou especial. E bem! Se o fizesse estaria a praticar uma nulidade. E se a acusação foi rejeitada por uma questão procedimental a realidade nua e crua é que o Ministério Público não pôs fim ao processo de inquérito. E nessa fase o Ministério Público volta a ser confrontado com a necessidade de tomar posição, apenas limitado pelos factos indiciados e pelo caso julgado formal amoldado pelo despacho judicial de rejeição da acusação.”
As considerações feitas a propósito da acusação pública valem aqui também para a acusação particular sob pena de, assim não sendo, se criar uma discriminação inadmissível.
Não ocorre qualquer violação de caso julgado formal, o que só se verificará se a assistente apresentar nova acusação exactamente igual à anterior, isto é, mantendo os motivos que levaram à rejeição anterior.
Não ocorre qualquer violação de caso julgado material uma vez que no despacho que rejeitou a acusação o tribunal não se debruçou sobre o mérito da causa.
Como bem refere Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, p. 827: “Por exemplo, o despacho de rejeição da acusação manifestamente infundada faz caso julgado formal, embora não faça caso julgado material, uma vez que o juiz não chega a proferir decisão sobre o mérito da causa, pronunciando-se apenas sobre a inadmissibilidade daquela mesma acusação qua tale dada a existência de vícios estruturais na mesma.”
Pelas mesmas razões, igualmente não ocorre violação do princípio ne bis in idem, sendo certo que a arguida não vai ser julgada duas vezes pelo mesmo crime, como nos parece evidente. Nem sequer se pode considerar que foi (ou vai ser) acusada duas vezes pelos mesmos factos: a primeira acusação nem sequer chegou a ser recebida, não teve qualquer consequência para a arguida, não a “conduziu” para um julgamento. Por outro lado, a segunda acusação, a existir, não poderá ser igual à primeira, pois que deverá conter (ou eliminar, se fosse o caso) o que levou à anterior rejeição.
Com especial relevância para a conclusão a que chegamos é o que se decidiu no acórdão do tribunal constitucional nº 246/2017 (Processo n.º 880/2016) ao “não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.”
Refere-se na fundamentação do referido acórdão do tribunal constitucional: “Na verdade não será isenta de dificuldade uma solução que, perante qualquer erro (designadamente, a insuficiente descrição de um elemento típico) que torne a acusação “não-apta” para conformar o objeto do julgamento, conduza sempre e inexoravelmente à falência do processo penal e à impossibilidade da perseguição criminal, sob pena de se frustrarem os objetivos do próprio sistema processual penal, sem com isso (só com isso) se salvaguardar qualquer interesse importante do arguido. No limite, a justiça penal poderia ficar, assim, por realizar em virtude de meras imprecisões e erros superáveis, desfecho que, certamente, o legislador ordinário não pretenderia e, acima de tudo, a Constituição não parece impor.
Afigura-se, pois, razoável que, no processo penal, o legislador encontre soluções que permitam a correção de lapsos e omissões, até certo ponto, ultrapassando a “não-aptidão” da acusação, desde que sejam respeitados certos limites (…) e se continue a assegurar ao arguido um julgamento justo e com as devidas garantias de defesa.”
Também no sentido aqui defendido (e igualmente estando em causa uma acusação particular) se decidiu no acórdão da rel. de Coimbra de 8/5/2018 (referido na motivação e recurso), assim sumariado: “A rejeição liminar da acusação por insuficiente descrição de tipo de crime [cfr. 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. d), do CP] não determina o imediato arquivamento dos autos; ao invés, pode a entidade acusadora (MP/assistente), respeitando o mesmo condicionalismo naturalístico, suprimir a dita insuficiência através da dedução de novo libelo acusatório.”
Igualmente no mesmo sentido o ac. da rel. de Évora de 6/3/2012 (referido na resposta apresentada pelo Ministério Público), assim sumariado:
“A mera insuficiência de articulação dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (imposta pelo art.º 283º 3 b) do CPP), conduzindo à rejeição da acusação, implica a devolução dos autos ao MP para os fins que tiver por convenientes e não a extinção do procedimento criminal.”
Temos, portanto, que o que há a fazer é conceder à assistente a possibilidade de, no prazo geral de 10 dias, apresentar nova acusação em que colmate a deficiência apontada no despacho recorrido, e nada mais do que isso.
Caso se tratasse de acusação pública não haveria dúvidas de que a concessão da referida possibilidade passaria pela devolução dos autos ao Ministério Público para, querendo, formular nova acusação.
Tratando-se no caso concreto de acusação particular não se vislumbram razões para proceder de forma diferente, uma vez que terá que haver um “retrocesso” na tramitação processual.
Deverão os autos, assim, ser devolvidos ao Ministério Público, titular da fase processual para o final da qual se regride, de modo a que se proceda à notificação da assistente para, querendo, formular nova acusação, a que se deverá seguir, se assim se entender, a possibilidade de utilização pelo Ministério Público do previsto no nº 4 do artº 285º do C.P.P. (para além do mais, também a acusação pública foi rejeitada por virtude do aditamento feito à acusação particular rejeitada), bem como a possibilidade de a arguida, face à nova acusação, requerer a realização de instrução.”
A transcrição foi longa, mas particularmente expressiva quanto ao entendimento de que a insuficiência na descrição de um elemento típico não inviabiliza a persecução penal, desde que sejam respeitados os limites legais e assegurados os direitos de defesa do arguido, pelo que a rejeição liminar da acusação não conduz necessariamente ao arquivamento, mas sim à devolução dos autos para a correcção da insuficiência apontada.
Nesta medida, a rejeição da acusação particular por ser manifestamente infundada no sentido de nela não estar descrito, de modo suficientemente completo o elemento subjectivo do crime imputado ao arguido, nos termos do Artº 311 nº1, 2 al. a) e 3 al. b), do CPP, não tem, como consequência directa e necessária, o arquivamento dos autos, devendo ser concedida ao assistente a possibilidade de apresentar nova acusação em que supra tal deficiência, após o que, poderá o MP, querendo, utilizar a possibilidade que lhe confere o nº4 do Artº 285 daquele diploma legal.
E assim procede o recurso, parcialmente.
3. DECISÃO
Nestes termos, decide-se manter o despacho recorrido na parte em que rejeitou a acusação particular, mas, concedendo provimento parcial ao recurso, revoga-se aquele na parte em que determinou o arquivamento dos autos, devendo o mesmo ser substituído por outro em que, face à rejeição da acusação, se determine a devolução dos autos ao MP para os fins acima referidos.
Sem custas.
xxx Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 08 de abril de 2025
Renato Barroso
Renata Whytton da Terra
Maria Perquilhas