I - O STJ vem apontando em jurisprudência uniforme como condição de admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência a verificação de um conjunto de pressupostos, uns de forma e outros de fundo.
a) São pressupostos formais:
1. A interposição do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (acórdão recorrido);
2. A identificação pelo recorrente do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão fundamento) e, estando este publicado, o lugar da publicação;
3. O trânsito em julgado tanto do acórdão recorrido como do acórdão fundamento, não sendo assim qualquer deles susceptível de recurso ordinário;
4. A justificação pelo recorrente da oposição que determina o conflito de jurisprudência.
b) Por seu turno, constituem pressupostos de natureza substancial:
1. A prolação de dois acórdãos consagrando soluções divergentes para a mesma questão de direito, a implicar que em ambos tenha sido discutida a mesma questão de direito, com aplicação das mesmas normas jurídicas;
2. Que os acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação, considerando-se verificada esta condição quando no lapso de tempo que intercorreu entre a prolação de um e do outro não se tiver verificado modificação legislativa que interfira, directa ou reflexamente, na solução da questão de direito controvertida;
3. Que ocorra identidade das situações de facto subjacentes aos acórdãos em conflito;
4. Que ambas as decisões sejam decisões expressas, não decisões meramente implícitas (e, como está implícito nos parâmetros anteriormente referidos, que se trate de acórdãos, excluindo-se as decisões singulares).
II - Não existe identidade fáctica quando no acórdão recorrido se aprecia situação em que o MP tinha ordenado a realização de buscas e de pesquisas informáticas em material informático existente nas instalações das sociedades investigadas sem que tivesse sido determinada a apreensão de correio electrónico e o tribunal entendeu que, tendo o correio eletrónico sido encontrado na sequência das diligências legitimamente autorizadas pelo MP (busca e pesquisa informática), nos termos do arts. 15.º e 16.º, n.os 1 e 3, da Lei do Cibercrime, tais dados podiam ter sido extraídos e selados para que o juiz de instrução, após análise, inteirando-se do respetivo conteúdo, decidisse se os mesmos deveriam ou não ser apreendidos para junção ao processo, considerando que tal extração e selagem dos dados constituía uma medida cautelar de preservação dos dados e não uma apreensão; e por seu turno, no acórdão fundamento se aprecia situação em que o MP ordenou a busca e pesquisa informática ao conteúdo dos sistemas informáticos que viessem a ser encontrados na posse dos buscados, com a advertência de que, caso fosse encontrado correio eletrónico, deveria ser efetuada uma cópia cega, sem visualização de conteúdo a fim de ser exibida à mm.ª juíza de instrução, entendendo o tribunal que se o MP, quando ordenou as diligências, pretendia que fosse apreendida ou extraída correspondência de qualquer tipo, nomeadamente eletrónica, teria que requerer a prévia autorização judicial para essa apreensão, por só no caso de inadvertidamente encontrada correspondência eletrónica no decurso de uma busca devidamente autorizada ser possível apresentá-la judicialmente sem autorização prévia e por essa razão julgou verificada a nulidade, por força do art. 17.º da Lei do Cibercrime e do art. 179.º, n.º 1, do CPP.
III - As soluções encontradas em cada um daqueles acórdãos divergem por serem diferentes as situações fácticas verificadas nos inquéritos, o que foi determinante para que naqueles acórdãos se fizesse uma diferente interpretação do direito aplicável.
I – Relatório:
Mediante requerimento datado de 07.02.2025, PRIO SUPPLEY, S.A. e PRIO BIO, S.A., sustentando-se (…) no disposto nos artigos 437.º, n.os 2 a 5, e 438.º do Código de Processo Penal, (…), interpuseram recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 11.12.2024 no processo com o NUIPC supra indicado, transitado em julgado em 08.01.2025, alegando, em síntese, que nele foi apreciada e decidida questão de direito em oposição com a decisão proferida em 22.02.2022 no acórdão nº 8811//17.1T9SNT-A.L1-5 do Tribunal da Relação de Lisboa.
Identificam a questão de direito decidida em sentido diverso nos dois acórdãos como a competência do Ministério Público para autorizar pesquisas informáticas em correspondência electrónica em diligências de buscas sem autorização prévia do Juiz de Instrução Criminal.
Da motivação do recurso extraíram as recorrentes as seguintes conclusões (transcrição – itálico nosso):
1. O presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência é interposto pelas ora Arguidas Recorrentes Prio Supply, S.A. e Prio Bio, S.A. do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 11 de Dezembro de 2024 (Acórdão Recorrido), ao abrigo do disposto nos artigos 437.º, n.os 2 a 5, e 438.º do CPP, restrita e especificamente quanto ao segmento decisório vertido nas páginas 46 a 49 do Acórdão Recorrido relativamente à competência do Ministério Público para autorizar pesquisas informáticas em correspondência electrónica em diligências de buscas (sem autorização prévia do Juiz de Instrução Criminal), por oposição com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (5.ª Secção Criminal), de 22 de Fevereiro de 2022, proferido no processo n.º 8811/17.1T9SNT-A.L1-5 (Acórdão Fundamento), cuja certidão é junta a este recurso.
2. No quadro dos artigos 15.º e 17.º da Lei do Cibercrime e artigo 179.º, n.º 1, do CPP, no Acórdão Recorrido, foi decidido que o Ministério Público tem competência, por si só e sem necessidade de autorização prévia do Juiz de Instrução Criminal, para autorizar e determinar a realização de pesquisas informáticas em correspondência electrónica em buscas durante o inquérito, com a consequente extração e cópia desta correspondência electrónica com vista à sua apresentação selada para primeira visualização pelo Juiz de Instrução Criminal, enquanto que, no aludido Acórdão Fundamento, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que estes mesmos actos necessitam de autorização prévia do Juiz de Instrução Criminal antes da realização das aludidas pesquisas informáticas em correspondência electrónica, sob pena de violação do artigo 17.º da Lei do Cibercrime e artigo 179.º, n.º 1, do CPP.
3. Este recurso é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do Acórdão Recorrido (que se considerou notificado às ora Arguidas Recorrentes em 16 de Dezembro de 2024, por força do artigo 113.º, n.º 2, do CPP), o qual transitou em julgado em 9 de Janeiro de 2025 (porque desde 22 de Dezembro de 2024 até 3 de Janeiro de 2025 foram férias judiciais), pelo que o prazo de 30 dias previsto no artigo 438.º, n.º 1, do CPP termina em 7 de Fevereiro de 2025, sem prejuízo dos 3 dias de multa subsequentes (artigo 107.º-A do CPP) terminarem em 12 de Fevereiro de 2025.
4. O Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento são ambos acórdãos proferidos por Tribunais da Relação, tendo o Acórdão Recorrido sido proferido pelo Tribunal da Relação do Porto e o Acórdão Fundamento foi proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
5. O Acórdão Recorrido e Acórdão Fundamento já transitaram em julgado (artigos 437.º, n.º 4, e 438.º, n.º 1, do CPP). Por um lado, o Acórdão Recorrido transitou em julgado em 9 de Janeiro de 2025 e é insusceptível de recurso ordinário (artigo 400.º, n.º 1 - c), do CPP), sendo que apenas seria susceptível de ser arguida a sua nulidade no prazo de 10 dias, e, por outro lado, o Acórdão Fundamento e já transitado em julgado em 24 de Março de 2022.
6. A orientação perfilhada no Acórdão Recorrido não corresponde a jurisprudência anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
7. Em primeiro lugar, há identidade da questão de direito objecto das decisões vertidas no Acórdão Recorrida e no Acórdão Fundamento.
8. Com efeito, quer no Acórdão Recorrido, quer no Acórdão Fundamento, foi decidida a questão jurídica relativa a saber se os actos de pesquisas informáticas em correspondência electrónica realizadas em sede de buscas – com a subsequente cópia e extracção de e-mails do local buscado – podem ser praticados apenas com base em autorização / mandado emitido pelo Ministério Público ao abrigo do artigo 15.º da Lei do Cibercrime, sendo os correios electrónicos copiados e extraídos posteriormente presentes ao Juiz de Instrução Criminal de forma selada, ou se a prática destes actos relativos às pesquisas informáticas em correios electrónicos, incluindo a sua cópia e extracção, carece de autorização prévia do Juiz de Instrução Criminal, por força do artigo 17.º da Lei do Cibercrime, sob pena de violação desta norma (cfr., por exemplo, página 46 do Acórdão Recorrido e referência às conclusões e objecto do recurso do Ministério Público descritos no Acórdão Fundamento).
9. Em segundo lugar, verifica-se uma oposição ou contradição efectiva e explícita das decisões (definitivas / transitadas em julgado) proferidas no Acórdão Recorrido e no Acórdão Fundamento.
10. Com efeito, por um lado, no Acórdão Recorrido foi decidido que, exclusivamente ao abrigo do disposto no artigo 15.º da Lei do Cibercrime, o Ministério Público tem, por si só, competência para ordenar a realização de pesquisas informáticas – sem necessidade de obter previamente qualquer decisão ou autorização do Juiz de Instrução Criminal – em correspondência electrónica em buscas, procedendo à extracção e cópia desta correspondência electrónica para disco externo com vista à sua posterior (sublinhe-se, apenas posterior) apresentação ao Juiz de Instrução Criminal, o que não violaria o disposto no artigo 17.º da Lei do Cibercrime (páginas 48 e 49 do Acórdão Recorrido).
11. Em sentido diametralmente oposto, no Acórdão Fundamento, foi aí decidido que foi decidido que as pesquisas informáticas em correspondência electrónica realizadas em buscas dependem de autorização prévia do Juiz de Instrução Criminal, por força (e sob pena de violação) do artigo 17.º da Lei do Cibercrime (entre outros), sendo insuficiente a autorização ou despacho prévio do Ministério Público para esse efeito (“defendemos que a pesquisa de mensagens de correio electrónico tem que ser autorizada a priori pelo Juiz, nos termos dos arts. 179º e 269º nº 1 d) do Cód. Proc. Penal e art. 17º da Lei 109/2009 de 15.09 – no mesmo sentido cfr. o Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 30.09.2021 (proc. 3546/20.0JFLSB-A.L1-9)”).
12. Em terceiro lugar, sem prejuízo de se verificar a identidade da “questão jurídica” que é requerida pelo artigo 437.º do CPP, acresce que as situações de facto ou enquadramentos processuais em causa no Acórdão Recorrido e no Acórdão Fundamentos são também idênticas.
13. Com efeito, quer no caso do Acórdão Recorrido, quer no caso do Acórdão Fundamento, estão em causa situações em que foram realizadas pesquisas informáticas em correspondência electrónica, no âmbito de buscas, tendo estas pesquisas informáticas sido ordenadas previamente apenas através de despacho / mandado do Ministério Público (sem autorização prévia do Juiz de Instrução Criminal para o efeito), tendo sido extraídos e copiados e-mails nessas pesquisas, que foram apresentados, de forma selada, ao Juiz de Instrução Criminal, com vista a que este procedesse à sua abertura e primeira visualização (cfr. por um lado, páginas 12 e ss. e 47 e 48 do Acórdão Recorrido e, por outro lado, a citação dos parágrafos 13. a 18., 28. e 30. das conclusões do recurso interposto pelo Ministério Público transcritas no relatório do Acórdão Fundamento e, ainda, a respectiva fundamentação).
14. Em quarto lugar, o Acórdão Recorrido e o Acórdão Recorrente foram proferidos no domínio da mesma legislação (atenta a remissão do n.º 2 do artigo 437.º do CPP para o respectivo n.º 1).
15. Por um lado, conforme resulta do ponto 14. das conclusões do recurso do Ministério Público transcrito no relatório do Acórdão Fundamento, as diligências de busca aí em causa (em que foram realizadas as pesquisas informáticas em correspondência electrónica) ocorreram em 7 de Outubro de 2021 e o Acórdão Fundamento foi proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 22 de Fevereiro de 2022.
16. Por outro lado, no caso do Acórdão Fundamento: (i) o despacho / mandado do Ministério Público a ordenar a realização de pesquisas informáticas em diligências de buscas às ora Arguidas Recorrentes foi emitido em 25 de Março de 2024; (ii) as pesquisas informáticas em correspondência electrónica foram realizadas em buscas que ocorreram em 10 e 18 de Abril de 2024; e (iii) o Acórdão Recorrido foi proferido em 11 de Dezembro de 2024.
17. Neste contexto temporal, o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento foram proferidos no quadro da mesma legislação, nomeadamente no quadro legal consagrado nos artigos 15.º e 17.º da Lei do Cibercrime e artigo 179.º, n.º 1, do CPP, que se mantiveram em vigor (e ainda sem mantém) sem alterações no aludido período temporal.
18. Desde já, se antecipa que se pretende a fixação de jurisprudência no seguinte sentido (acolhido no Acórdão Fundamento): A pesquisa de mensagens de correio electrónico e de registos de comunicações de natureza semelhante, incluindo nomeadamente a extração e cópia de correios electrónicos dos locais buscados no decurso do inquérito, tem de ser previamente autorizada pelo Juiz de Instrução Criminal, nos termos dos artigos 15.º, n.º 1, e 17.º da Lei do Cibercrime (aprovado pela Lei n.º 109/2009) e artigo 179.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sendo insuficiente uma autorização prévia do Ministério Público para o efeito, ainda que os correios electrónicas, pesquisas, copiados e extraídos sejam depois presentes, de forma selada, a Juiz de Instrução Criminal”.
19. Assim, perante a verificação e preenchimento dos requisitos previstos nos artigos 437.º, n.os 2 a 5, e 438.º do CPP, nos termos acima demonstrados, o presente recurso (extraordinário) para fixação de jurisprudência deve ser admitido e julgado procedente e, em consequência, ser fixada jurisprudência no sentido ora exposto, concedendo-se, previamente, a possibilidade de as ora Arguidas Recorrentes apresentarem alegações por escrito, no prazo de 15 dias, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 442.º do CPP.
20. Na verdade, como antecipado acima, ao contrário do que foi decidido no Acórdão Recorrido, os actos relativos às pesquisas, extracção e cópia de correios electrónicas pelo OPC, com base em autorização do Ministério público, do sistema informático das Arguidas (aquando das diligências realizadas no Escritório do Grupo Prio, em 10 e 18 de Abril de 2024) violaram o artigo 17.º da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009), conjugado com os artigos 118.º, n.º 1, 122.º, 126.º, n.º 3, e 179.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por falta de Despacho e Mandado prévios do Juiz de Instrução Criminal.
21. As invalidades (maxime nulidade) resultantes da violação do artigo 17.º da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009), conjugado com os artigos 118.º, n.º 1, 122.º, 126.º, n.º 3, e 179.º, n.º 1, do CPP, por falta de Despacho e Mandado prévios do Juiz de Instrução Criminal, foram, tempestivamente, invocadas logo nas aludidas diligências realizadas no Escritório do Grupo Prio em 10 e 18 de Abril de 2024, tendo, depois, sido indeferidas por Despacho proferido pela 1.ª Instância, de 22 de Maio de 2024, e pelo Acórdão Recorrido.
22. Salvo o devido respeito, não assiste razão ao Acórdão Recorrido.
23. EM PRIMEIRO LUGAR, a acolher-se o sentido do Acórdão Recorrido, isto implicaria uma verdadeira “revolução” e abnegação da interpretação da lei e da prática judiciária, porquanto a decisão vertida no Acórdão Recorrido levaria ao entendimento inadmissível de que, em caso algum, seria necessário Despacho e Mandado prévios do Juiz de Instrução para realizar buscas que implicassem a extracção e cópias de correios electrónicos de sistemas informáticos, com a sua remoção do(s) local(ais) buscado(s).
24. Neste sentido, como já antecipado acima, no Acórdão Fundamento proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 22 de Fevereiro de 2022 foi decidido o seguinte: “defendemos que a pesquisa de mensagens de correio electrónico tem que ser autorizada a priori pelo Juiz, nos termos dos arts. 179º e 269º nº 1 d) do Cód. Proc. Penal e art. 17º da Lei 109/2009 de 15.09” (cfr. certidão junta acima, processo n.º 8811/17.1T9SNT-A.L1-5, www.dgsi.pt).
25. Acresce que, igualmente no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30 de Setembro de 2021 (citado, aliás, no Acórdão Fundamento), foi decidido o seguinte: «no caso presente, o MºPº para investigar o eventual crime de abuso de poder p. e p. pelo art. 382º do Cód. Penal imputado ao suspeito J, carecia de competência para ordenar (no âmbito da busca não domiciliária ao local de trabalho deste, situado nas instalações do I…, que incluía a busca/pesquisa aos computadores, sistemas informáticos e suportes informáticos para a apreensão de elementos relacionados com o referido tipo de ilícito) a apreensão da correspondência electrónica e não eletrónica trocada com e pelo suspeito, ainda que sem tomar conhecimento do seu conteúdo, sem que estivesse munido de prévia autorização judicial nos termos do disposto no art. 179º nº 1 do C.P.P. por força da remissão do art. 17º da LCC» (processo n.º 3546/20.0JFLSB-A.L1-9, www.dgsi.pt).
26. Materialmente, o juízo decisório formulado neste Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30 de Setembro de 2021, é manifestamente aplicável à questão em apreciação no presente recurso.
27. De resto, em sentido concordante, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de Outubro de 2022 decidido o seguinte: «Cabe, pois, concluir que a pesquisa de mensagens de correio eletrónico tem que ser autorizada previamente pelo Juiz de Instrução, nos termos dos artigos 179º e 269º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Penal e artigo 17º da Lei do Cibercrime, o que não sucedeu no caso em apreço. A consequência dessa omissão não pode deixar de ser a nulidade da apreensão – que corresponde, na verdade, a uma proibição de prova – como decorre do disposto no artigo 179º do Código de Processo Penal.” (processo n.º 103/21.8TELSB-A.L1-5, www.dgsi.pt).
28. EM SEGUNDO LUGAR, quer o Acórdão Fundamento, quer o citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30 de Setembro de 2021, recorreram, inclusivamente, à ratio e fundamentação do Acórdão n.º 687/2021 do Tribunal Constitucional, de 30 de Agosto de 2021, (processo n.º 830/2021), que inviabilizou a alteração da Lei do Cibercrime, com base num juízo de inconstitucionalidade material.
29. No parágrafo 35. da fundamentação do Acórdão n.º 687/2021 do Tribunal Constitucional, foi aí referido o seguinte: «Os casos em que apenas esteja em causa “pesquisa informática legitimamente ordenada e executada nos termos do artigo 15.º” consagram uma regulamentação paralela à prevista no n.º 1 da versão ora questionada do artigo 17.º da Lei do Cibercrime, nos termos da qual, em fase de inquérito, se o Ministério Público tiver legitimamente ordenado a pesquisa, também os Órgãos de Polícia Criminal podem, por si só, efectuar a apreensão, sendo esta posteriormente validada pelo próprio Ministério Público, sem intervenção necessária do Juiz de Investigação Criminal».
30. Acresce que, conforme expressamente referido neste mesmo parágrafo 38. do Acórdão n.º 687/2021 do Tribunal Constitucional, a realização de pesquisas informáticas em correspondência electrónica constitui, efectivamente, uma intrusão na vida privada.
31. Aliás, no parágrafo 9.2. do Acórdão n.º 403/2015 do Tribunal Constitucional, de 27 de Agosto de 2015, foi entendido que o segredo das comunicações e a reserva da privacidade abrange não apenas os dados de conteúdo da correspondência electrónica ou informática, mas também a existência e demais características desta correspondência (processo n.º 773/15).
32. Assim, ao contrário do que foi entendido no Acórdão Recorrido, o facto de o Juiz de Instrução Criminal ser o primeiro a visualizar a correspondência electrónica que lhe foi apresentada selada em resultado de dados extraídos e copiados em pesquisas informáticas ordenadas apenas pelo Ministério Público afigura-se insuficiente para salvaguardar as garantias fundamentais previstas no artigo 32.º, n.º 8, da CRP (cfr. parágrafo 40. da fundamentação do Acórdão n.º 687/2021 do Tribunal Constitucional).
33. Assim, as pesquisas informáticas de correspondência electrónica nas buscas, enquanto medida intrusiva da reserva da privacidade, têm de ser autorizadas previamente pelo JIC. Isto é assim de forma ainda mais evidente nos casos que, tal como sucedeu nos presentes autos, os autos das pesquisas informáticas colocam em evidência que o OPC já havia identificado os utilizadores / titulares da correspondência electrónica em causa.
34. EM TERCEIRO LUGAR, em suporte do entendimento Jurisprudencial dos Tribunais Superiores e Tribunal Constitucional acima referido e ao contrário do que foi entendido no Acórdão Recorrido, saliente-se que as pesquisas informáticas de correio electrónico carecem de Despacho Judicial prévio – que, neste caso concreto, não existiu –, porquanto se afigura aplicável o regime previsto no artigo 17.º da Lei do Cibercrime.
35. Ora, na Jurisprudência citada no próprio Despacho proferido pela 1.ª Instância nos presentes autos em 22 de Maio de 2024 sob a Referência ...76 (confirmado pelo Acórdão Recorrido) (ainda que a propósito de outra questão relativa às palavras-chave na realização das buscas, apreensões e pesquisas informáticas) relativa ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de Janeiro de 2024 (processo n.º 1/21.5ICLSB-A.L1-9, www.dgsi.pt), as pesquisas informáticas aí em causa foram determinadas e ordenadas pelo Juiz de Instrução Criminal.
36. EM QUARTO LUGAR, em linha com o que se acaba de expor, acresce que o artigo 17.º da Lei do Cibercrime refere e exige a autorização judicial no que diz respeito à correspondência electrónica, até porque esta norma não distingue entre autorização “inicial” ou “final”, pelo que a extracção e cópia de e-mails pelo OPC e Ministério Público depende, efectivamente, de Despacho judicial prévio (o que está em linha com a Jurisprudência invocada acima).
37. O que acima se expôs é, por si só, suficiente para determinar a admissão e a procedência do presente recurso e, bem assim, fixar jurisprudência no sentido exposto acima.
38. Por conseguinte, a realização das pesquisas informáticas, extracção e cópia de correspondência electrónica realizada pelo Ministério Público e OPC do sistema informático em cloud Microsoft Azure das ora Arguidas Recorrentes violaram o artigo 17.º da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009), conjugado com os artigos 118.º, n.º 1, 122.º, 126.º, n.º 3, e 179.º, n.º 1, do CPP, por falta de Despacho e Mandado prévios do Juiz de Instrução Criminal, o que determina a nulidade dos aludidos actos processuais, o que se requer que seja declarado, bem como o Acórdão Recorrido deve ser revogado.
39. EM QUINTO LUGAR, acresce que, ao contrário do que foi entendido no Acórdão Recorrido, a realização da extracção e cópias dos e-mails pelo OPC / Ministério Público de sistema informático em buscas integram o conceito material de apreensão, para efeitos do artigo 17.º da Lei do Cibercrime, tal como decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 7 de Março de 2018 (processo n.º 184/12.5TELSB-B.L1-3), e no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de Outubro de 2022 (processo n.º 103/21.8TELSB-A.L1-5, ambos em www.dgsi.pt).
40. Acresce que as circunstâncias e o enquadramento processuais sob os quais o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de Outubro de 2022, foi proferido no processo n.º 103/21.8TELSB-A.L1-5 são, também, equivalentes ao enquadramento dos presentes autos. Com efeito, tal como no caso dos presentes autos, também no caso do processo n.º 103/21.8TELSB-A.L1-5, o Ministério Público determinou a extracção e cópia de correspondência electrónica no âmbito de uma busca, sem que, anteriormente, tivesse havido um Despacho prévio do Juiz de Instrução Criminal a autorizar essa extracção e cópia de correspondência, tendo, depois, o Ministério Público apresentado ao JIC a aludida correspondência electrónica selada, com vista à sua primeira visualização por parte do JIC.
41. Ora, no aludido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de Outubro de 2022, foi entendido que o facto de o Ministério Público sustentar que a realização de pesquisas informáticas em buscas, com a consequente extracção e retirada de correspondência electrónica em resultado destas buscas, é materialmente uma apreensão (na medida em que os dos informáticos de correspondência estão já a ser retirados da esfera do buscado), porquanto o controlo ex post do JIC (em sede de primeira visualização, com vista à junção da correspondência electrónica ao processo) é insuficiente para salvaguarda da garantia da reserva da privacidade.
42. Na verdade, conforme referido aludido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de Outubro de 2022, a tese do Ministério Público (e, nos presentes autos, também do Acórdão Recorrido) assenta num inadmissível “jogo de palavras” quando tem defende que o Ministério Público pode autorizar, previamente, a cópia e extracção de ficheiros de correspondência electrónica em resultado de pesquisa electrónica em buscas, com vista à sua apresentação ao JIC, porquanto o Ministério Público tem competência para apreender dados informáticos, mas a verdade é que, materialmente, o Ministério Público não pode ordenar a extracção e cópia de ficheiros de correspondência electrónica em caso algum.
43. Assim, afigura-se claro que a extracção, cópia e apreensão material (ainda que provisória) correios electrónicos realizadas pelo Ministério Público e OPC do aludido sistema informático em cloud Microsoft Azure localizado no estrangeiro (aquando das diligências realizadas no Escritório do Grupo Prio, em 10 e 18 de Abril de 2024) violaram o artigo 17.º da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009), conjugado com os artigos 118.º, n.º 1, 122.º, 126.º, n.º 3, e 179.º, n.º 1, do CPP, por falta de Despacho e Mandado prévios do Juiz de Instrução Criminal, o que determina a sua nulidade e dos actos processuais subsequentes que dele dependessem, o que se requer que seja declarado.
44. Portanto, o presente recurso deve ser admitido e julgado procedente e, em consequência, ser fixada jurisprudência com o sentido exposto acima, concedendo-se, previamente, a possibilidade de as ora Arguidas Recorrentes apresentarem alegações por escrito, no prazo de 15 dias, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 442.º do CPP.
Em face do exposto, o presente recurso deve ser admitido e julgado procedente e,
em consequência, ser fixada jurisprudência no sentido seguinte: A pesquisa de mensagens de correio electrónico e de registos de comunicações de natureza semelhante, incluindo nomeadamente a extração e cópia de correios electrónicos dos locais buscados no decurso do inquérito, tem de ser previamente autorizada pelo Juiz de Instrução Criminal, nos termos dos artigos 15.º, n.º 1, e 17.º da Lei do Cibercrime (aprovado pela Lei n.º 109/2009) e artigo 179.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sendo insuficiente uma autorização prévia do Ministério Público para o efeito, ainda que os correios electrónicas, pesquisas, copiados e extraídos sejam depois presentes, de forma selada, a Juiz de Instrução Criminal”.
E, este efeito, deve conceder-se, previamente, a possibilidade de as ora Arguidas
Recorrentes apresentarem alegações por escrito, no prazo de 15 dias, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 442.º do Código de Processo Penal.
No Tribunal da Relação do Porto o Ministério Público respondeu ao recurso, admitindo a existência de oposição de julgados e concluindo nos termos seguintes:
Assim, pelo exposto, encontrando-se verificados os requisitos estabelecidos pelo artº 437º do CPP, deve o recurso para fixação de jurisprudência interposto pelas arguidas PRIO SUPPLY, S.A. e PRIO BIO, S.A ser admitido, fixando-se a final jurisprudência que apazigue a necessidade de congruência.
No Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em extenso e bem fundado Parecer, analisou meticulosamente o acórdão recorrido a par do acórdão fundamento, emitindo parecer em que considera que, embora verificados os pressupostos de natureza formal, estão ausentes os pressupostos substanciais, inexistindo identidade de situações fáctico-processuais nos acórdãos apontados como estando em oposição e não sendo idêntico o respectivo enquadramento jurídico.
Observado o contraditório, os recorrentes pronunciaram-se nos seguintes termos:
PRIO SUPPLY, S.A. e PRIO BIO, S.A., Arguidas Recorrentes nos autos acima melhor identificados, notificadas do visto do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 440.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e do Despacho do Supremo Tribunal de Justiça com a Ref. ...39, vêm exercer o contraditório ao aludido visto do Ministério Público, o que fazem com base nos termos e fundamentos seguintes:
1. O Ministério Público pronunciou-se no sentido de que o presente Recurso de Fixação de Jurisprudência não deveria ser admitido, porquanto “as soluções adotadas nos acórdãos são diferentes porque as situações de facto ocorridas nos inquéritos não são idênticas, em particular, o teor do despacho do Ministério Público que autoriza/ordena a pesquisa informática” (sic) (cfr. página 10 do visto).
2. Sucede que, no visto aposto pelo Ministério Público, o enquadramento da situação de facto subjacente ao Acórdão Recorrido foi distorcido.
3. Na verdade, o que se afigura relevante para o presente Recurso de Fixação de Jurisprudência, é que, nem no caso dos presentes autos, nem no caso do Acórdão Fundamento, houve um Despacho do Ministério Público a determinar a apreensão de correios electrónicos, estando antes em causa Despachos que, formalmente, ordenaram realização de pesquisas informáticas, as quais envolveram correios electrónicos.
4. Em ambos os casos, estes correios electrónicos foram efectivamente extraídos e copiados do sistema informáticos das entidades buscadas para serem apresentados, de forma selada, ao Juiz de Instrução Criminal, para que este fosse o primeiro a tomar conhecimento do seu conteúdo.
5. É este o enquadramento do Acórdão Recorrido dos presentes autos e do Acórdão Fundamento que marcam a identidade da situação de facto, que se afigura necessária para que se entenda que o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento assentaram em soluções opostas quanto à “mesma questão de direito”.
6. Vejamos.
7. POR UM LADO, no caso dos presentes auto, na página 13 do Despacho do Ministério Público de 14 de Fevereiro de 2024 (Ref. ...70), se referiu a possibilidade de as pesquisas informáticas incluírem “registos de conversações ou mensagens de correio electrónico” (sic), que deveriam ser “recolhidos” e “extraídos” (sic) para suporte informático autónomo:
8. Com efeito, foi o próprio Despacho do Ministério Público ora citado que se referiu, antecipadamente, à possibilidade de as pesquisas informáticas aí ordenadas “recolherem” correios electrónicos, que deveriam ser “extraídos” (sic).
9. As palavras (referentes a “correios electrónicos” e sua “recolha” e “extração”) não são nossas.
10. Estas palavras constam do próprio Despacho do Ministério Público, que determinou a realização das pesquisas informáticas.
11. Estamos, portanto, a citar o Ministério Público quando, no caso concreto, este se referiu às pesquisas de “correios electrónicos”.
12. E foi por isto que, neste enquadramento, no “auto de pesquisa informática” da diligência realizada no Escritório do Grupo Prio no dia 10 de Abril de 2024, ficou a constar o seguinte: “Devido à morosidade na exportação das caixas de correio eletrónico e das contas OneDrive da plataforma Cloud AZURE, cuja conclusão não se consegue tecnicamente determinar, fica consignado que esta informação será entregue, (...) dos seguintes utilizadores: (...)”.
13. E foi também por isto que, no “auto de pesquisa informática” da diligência realizada no Escritório do Grupo Prio no dia 18 de Abril de 2024, ficou a constar o seguinte: “Aos dezoito dias do mês de abril de 2024, pelas 9h00, deu-se por concluído a exportação das (…) de correio eletrónico e das contas OneDrive da plataforma Cloud AZURE, das (…) infra referenciadas, iniciada a 10 de abril de 2024 (acedido a partir Dos escritórios (…) Prio”, sitos na rua Cristóvão Pinho Queimado, n.º 35, 2.º Piso, Aveiro) (...), resultando daí a criação de Evidências Digitais. (…) das caixas de correio eletrónico e das contas OneDrive da plataforma Cloud Azure, de: (...) Porque foram selecionados ficheiros que correspondem a caixas de correio eletrónico, o dispositivo, acima identificado, foi devidamente selado em saco de prova identificado com o número ...83 para posterior apreciação da relevância do seu conteúdo pelo senhor Juiz de Instrução Criminal”.
14. E, bem assim, foi por um tudo isto que, na página 48 do Acórdão Recorrido, foi afirmado o seguinte: “Como resulta do auto de pesquisa informática acima transcrito, “Porque foram selecionados ficheiros que correspondem a caixas de correio eletrónico, o dispositivo, acima identificado, foi devidamente selado em saco de prova identificado com o número ...83 para posterior apreciação da relevância do seu conteúdo pelo senhor Juiz de Instrução Criminal.”.
15. POR OUTRO LADO, no caso do Acórdão Fundamento: conforme resulta do ponto 13. Das conclusões do recurso do próprio Ministério Público transcritas no Acórdão Fundamento, o próprio Ministério Público referiu o seguinte: “(...) Assim, e por se indiciar que as suspeitas indicadas pudessem ocultar nas respectivas sedes documentação essencial à descoberta da verdade, determinou-se a realização das buscas e das pesquisas informáticas descritas supra” (cfr. artigo 53. do recurso de fixação de jurisprudência e certidão aí junta).
16. Este ponto 13. das conclusões do recurso do Ministério Público no caso do Acórdão Fundamento segue-se ao respectivo ponto 12., no qual foi referido o seguinte: “Foram efectuadas diligências de investigação no sentido de apurar a conduta das denunciadas, constituindo meio de prova essencial a realização de buscas quer na sede das pessoas colectivas envolvidas, quer no gabinete de contabilidade de forma a confirmar ou infirmar a queixa apresentada” (cfr. Certidão junta com o recurso de fixação de jurisprudência).
17. O que, aliás, corresponde à realidade das pesquisas informáticas realizadas no caso dos presentes autos, o que, desde logo, foi antecipado pelo Despacho proferido pelo Ministério Público em 14 de Fevereiro de 2024 (Ref. ...70), nos presentes autos, nos termos acima citados.
18. Mais: tal como sucedeu no caso dos presentes autos, também na situação no caso do Acórdão Fundamento, aquando da realização das diligências de pesquisas informáticas durante as diligências das buscas, procedeu-se à “extracção” (sic) (por outras palavras, “exportação”) dos ficheiros do “tipo correio electrónico” para um dispositivo externo “selado” (sic) para serem presentes ao Juiz de Instrução Criminal para “deles tomar conhecimento em primeira mão”.
19. Tudo conforme resulta dos pontos 16. e 17. das conclusões do recurso do próprio Ministério Público (cfr. artigo 53. do recurso de fixação de jurisprudência e certidão aí junta):
16. Conforme resulta do auto de busca e apreensão a fls. 431, consignou este OPC:
"2.- No que concerne à componente informática, foi realizada triagem com recurso a ferramentas forenses devidamente certificadas e em uso nesta polícia, no servidor existente no local buscado e nos postos de trabalho de AA e BB, tendo resultado a cópia e extracção de diversos ficheiros do tipo «documentos» e «correio electrónico».
3.- Quanto aos ficheiros do tipo «correio electrónico», foram extraídos e certificados na sua forma original, sem qualquer visualização do seu conteúdo para dispositivo externo de armazenamento de dados (PEN), e devidamente acondicionado e selado em saco de prova em uso nesta Polícia, com a ref. SÉRIE ...45'.
(...)
17. Nessa sequência, fazendo consignar esse mesmo facto foram os autos remetidos a este DIAP, em 02.11.2021, com a seguinte informação: "No entanto, torna-se necessário remeter os presentes autos ao Ministério Público juntamente com os suportes digitais, produzidos pelas equipas forenses para preservação dos ficheiros de correio electrónico, acondicionados e selados em saco de prova em uso desta Polícia, para serem presentes ao Meritíssimo JIC e deles tomar conhecimento em primeira mão, concretamente (....)”:
20. O que, aliás, corresponde à situação de facto referida nos autos das pesquisas informáticas dos presentes autos, tal como especificado nos artigos 12. a 14. acima, em que também há referência à “exportação” (que equivale a “extracção”), ao dispositivo “selado” e, ainda, ao facto de o Juiz de Instrução ser o primeiro a tomar conhecimento dos e-mails.
21. Acresce que, tal como no caso do Acórdão Fundamento, também no caso dos presentes autos, foram copiadas todo o conteúdo das caixas de correio de todas as pessoas (23!) referenciadas no auto de pesquisas informáticas aos Escritórios do Grupo Prio de 18 de Abril de 2025, nos termos já referidos “deu-se por concluído a exportação das (…) de correio eletrónico e das contas OneDrive da plataforma Cloud AZURE, das (…) infra referenciadas” (conforme transcrição que consta do artigo 51. do recurso de fixação de Jurisprudência).
22. DE RESTO, no caso do Acórdão Fundamento, conforme resulta do ponto 22. das conclusões do recurso do próprio Ministério Público transcritas no Acórdão Fundamento (cfr. artigo 10. Do requerimento de interposição do recurso de fixação de jurisprudência), o próprio Ministério Público realçou que, nesse caso, “Como decorre do despacho proferido pelo MP e ao qual a PJ deu cumprimento integral, não foi apreendida qualquer correspondência (...)”.
23. Isto corresponde ao que está vertido na página 48 do Acórdão Recorrido, nos seguintes termos:
Como resulta do auto de pesquisa informática acima transcrito, “Porque foram
selecionados ficheiros que correspondem a caixas de correio eletrónico, o dispositivo, acima identificado, foi devidamente selado em saco de prova identificado com o número 30332183 para posterior apreciação da relevância do seu conteúdo pelo senhor Juiz de Instrução Criminal.”
Ora, não foi determinada a apreensão daqueles ficheiros, para que fiquem à ordem
ou à disposição em termos probatórios do processo, mas foram simplesmente tomadas medidas cautelares de preservação desses ficheiros, os quais foram selados”.
24. É, portanto, manifesto que há identidade de situações de facto entre o caso do Acórdão Recorrido e o caso do Acórdão Fundamento.
25. Sucede que, à luz desta mesma situação de facto, no Acórdão Recorrido, foi decidido que a realização de pesquisas informáticas, que envolvem a “extracção” de correio electrónicos, não carece de autorização prévia do Juiz de Instrução Criminal (cfr. páginas 48 e 49 do Acórdão Recorrido).
26. Mas, em sentido contrário, no Acórdão Fundamento, foi entendido o seguinte: “a pesquisa de mensagens de correio electrónico tem que ser autorizada a priori pelo Juiz, nos termos dos arts. 179º e 269º nº 1 d) do Cód. Proc. Penal e art. 17º da Lei 109/2009 de 15.09 – no mesmo sentido cfr. o Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 30.09.2021 (proc. 3546/20.0JFLSB-A.L1-9, pesquisado em www.dgsi.pt).” (cfr. última página do Acórdão Fundamento, cuja certidão foi junta com o recurso, e que está citada na página 9 do recurso de fixação de Jurisprudência).
27. Em face do exposto, reitera-se que o presente recurso de Fixação de Jurisprudência deve ser admitido.
Após exame preliminar, os autos foram aos vistos, nos termos do art. 440º, nº 4, do Código de Processo Penal (diploma a que se reportam todas as demais normas citadas sem menção de origem).
II – Fundamentação:
O fundamento do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência encontra regulamentação no art. 437º nos seguintes termos:
1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.
2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.
5 - O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.
As regras respeitantes à interposição deste recurso extraordinário estão previstas no art. 438º, que dispõe nos termos seguintes:
1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.
3 - O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.
Como refere Pereira Madeira, o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência insere-se numa preocupação específica do legislador assegurar alguma certeza às orientações jurisprudenciais, evitando ou anulando decisões contraditórias 1. Por essa via, pretende-se fixar um sentido interpretativo geral e abstracto, replicável em casos similares definido pela cúpula das secções criminais – o seu Pleno – através da qual se logrará uma estabilização jurisprudencial, por força do efeito tendencialmente vinculativo dessa jurisprudência para todos os tribunais que, por regra seguirão essa orientação (…) 2.
À luz deste regime legal o Supremo Tribunal de Justiça vem apontando em jurisprudência uniforme como condição de admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência a verificação de um conjunto de pressupostos, uns de forma e outros de fundo.
São pressupostos formais:
- A interposição do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (acórdão recorrido);
- A identificação pelo recorrente do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão fundamento) e, estando este publicado, o lugar da publicação;
- O trânsito em julgado tanto do acórdão recorrido como do acórdão fundamento, não sendo assim qualquer deles susceptível de recurso ordinário;
- A justificação pelo recorrente da oposição que determina o conflito de jurisprudência.
Por seu turno, constituem pressupostos de natureza substancial:
- A prolação de dois acórdãos consagrando soluções divergentes para a mesma questão de direito, a implicar que em ambos tenha sido discutida a mesma questão de direito, com aplicação das mesmas normas jurídicas;
- Que os acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação, considerando-se verificada esta condição quando no lapso de tempo que intercorreu entre a prolação de um e do outro não se tiver verificado modificação legislativa que interfira, directa ou reflexamente, na solução da questão de direito controvertida;
- Que ocorra identidade das situações de facto subjacentes aos acórdãos em conflito;
- Que ambas as decisões sejam decisões expressas, não decisões meramente implícitas (e, como está implícito nos parâmetros anteriormente referidos, que se trate de acórdãos, excluindo-se as decisões singulares).
No caso vertente não oferece dúvida que o recurso foi tempestivamente interposto porquanto o acórdão fundamento transitou em julgado em 24.03.2022, o acórdão recorrido transitou em 08.01.2025 e o recurso para fixação de jurisprudência foi interposto em 07.02.2025. O recorrente deu cumprimento à exigência de identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão fundamento), identificando como tal o Acórdão de 22.02.2022, proferido nos autos de recurso independente em separado nº 8811/17.1T9SNT-A.L1, do Tribunal da Relação de Lisboa (5ª Secção), transitado em julgado em 24.03.2022, publicado na base de dados da DGSI e do qual juntou certidão.
Teremos assim por verificados os pressupostos de forma que condicionam o recurso de fixação de jurisprudência.
Já o mesmo se não poderá afirmar quanto aos pressupostos de natureza substancial. Desde logo, como pertinentemente notou o Exmº Procurador-Geral Adjunto no STJ, os autos não comprovam a consagração de soluções de direito diferentes para idênticas situações de facto.
Vejamos:
Na parte que releva para o presente recurso, o acórdão fundamento decidiu nos seguintes termos:
« (…)
A Lei 109/2009 de 15.09 (Lei do Cibercrime) prevê um regime para a apreensão de dados informáticos (art. 16º) e um regime para a apreensão de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante (art. 17º).
(…)
Como resulta evidente da leitura destes preceitos o regime para a apreensão de dados informáticos (art. 16º) é diverso do regime para a apreensão de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante (art. 17º), sendo que neste último caso a norma remete para o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.
(…)
Com o presente recurso pretende o Ministério Público que se reconheça que tem competência para, sem prévia autorização judicial (nos termos do art. 179º nº 1 do Cód. Proc. Penal), ordenar a apreensão de ficheiros de correspondência electrónica, sem visualização destes pelo OPC ou pelo próprio Ministério Público (após o que os ditos ficheiros de correspondência electrónica seriam apresentados, intactos, ao JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL para tomar conhecimento do seu conteúdo e, caso os entenda relevantes, ordenar a junção).
A questão não é pacífica e tomou novos contornos com a publicação do Acórdão nº 687/2021 do Tribunal Constitucional (que se pronuncia sobre o regime de apreensão do correio electrónico, ainda que em sede de fiscalização preventiva) com contributo evidente para a interpretação da lei vigente.
O citado Acórdão n.º 687/2021 foi proferido pelo Tribunal Constitucional, em plenário, apreciando um requerimento de fiscalização abstracta preventiva da constitucionalidade do Presidente da República que tinha por objecto as normas do artigo5º do Decreto nº 167/XIV, da Assembleia da República, na parte em que alterava o art. 17º da Lei nº 109/2009.
E pronunciou-se pela “inconstitucionalidade das normas constantes do seu artigo 5.º, na parte em que altera o artigo 17.º da Lei n.º109/2009, de 15 de setembro, por violação das normas constantes dos artigos 26.º, n.º 1, 34.º, n.º 1, 35.º, n.ºs 1 e 4, 32.º, n.º 4, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa”. Na sequência do Acórdão, o Presidente da República vetou o Decreto e a Assembleia da República retirou a alteração do artigo 17.º.
A pretendida alteração do art. 17º tinha a seguinte redacção:“Artigo 17.º Apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante 1- Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontradas, armazenadas nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante que sejam necessárias à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a sua apreensão. 2- O órgão de polícia criminal pode efetuar as apreensões referidas no número anterior, sem prévia autorização da autoridade judiciária, no decurso de pesquisa informática legitimamente ordenada e executada nos termos do artigo15.º, bem como quando haja urgência ou perigo na demora, devendo tal apreensão ser validada pela autoridade judiciária no prazo máximo de 72 horas. 3- À apreensão de mensagens de correio eletrónico e de natureza semelhante aplica-se o disposto nos n.ºs 5 a 8do artigo anterior. 4- O Ministério Público apresenta ao juiz, sob pena de nulidade, as mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante cuja apreensão tiver ordenado ou validado e que considere serem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, ponderando o juiz a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto. 5- Os suportes técnicos que contenham as mensagens apreendidas cuja junção não tenha sido determinada pelo juiz são guardados em envelope lacrado, à ordem do tribunal, e destruídos após o trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo. 6- No que não se encontrar previsto nos números anteriores, é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal”
Ora, sobre a requerida apreciação da constitucionalidade o Acórdão nº 687/2021 respondeu às seguintes questões:“- É admissível uma restrição aos direitos fundamentais ao sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada(consagrado no artigo 34.º, n.ºs 1 e 4, da CRP), à proteção dos dados pessoais, no domínio da utilização da informática (que decorre da norma do artigo 35.º, n.ºs 1 e4, da CRP), núcleos de reserva de intimidade da vida privada especifica e intensamente tutelados pela Lei Fundamental, como a que se configura no regime jurídico instituído pelos preceitos questionados?- Admitindo-se a possibilidade de restrição, abstratamente considerada, e situando-se a mesma, como é o caso, no âmbito do processo penal, a divisão de competências entre o Ministério Público e o Juiz de Instrução Criminal, em fase de inquérito, que resulta do regime analisado, cumpre as imposições jurídico-constitucionais relevantes, designadamente, o disposto no artigo 32.º, n.º 4, da CRP, quanto à competência exclusiva do Juiz de Instrução Criminal para aprática de atos que diretamente contendem com direitos fundamentais, e os princípios da necessidade e proporcionalidade(nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP)?”
E deu a estas questões uma resposta negativa.
Em consequência, concluiu que: “a norma que constitui o objeto do presente recurso é inconstitucional por violação dos direitos fundamentais à inviolabilidade da correspondência e das comunicações (consagrado no artigo 34.º, n.º 1, da CRP), à proteção dos dados pessoais no âmbito da utilização da informática (nos termos do artigo 35.º,n.ºs 1 e 4, da CRP), enquanto refrações específicas do direito à reserva de intimidade da vida privada, (consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição), em conjugação com o princípio da proporcionalidade(nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP) e com as garantias constitucionais de defesa em processo penal (previstas no artigo 32.º, n.º 4, da Lei Fundamental)”.
Ora é precisamente a posição que este Acórdão julgou inconstitucional que o Recorrente defende neste recurso. Pelo que – e embora a posição inicial da Relatora não tenha sido esta – defendemos que a pesquisa de mensagens de correio electrónico tem que ser autorizada a priori pelo Juiz, nos termos dos arts. 179º e 269º nº 1 d) do Cód. Proc. Penal e art. 17º da Lei109/2009 de 15.09 – no mesmo sentido cfr. o Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 30.09.2021 (proc. 3546/20.0JFLSB-A.L1-9, pesquisado em www.dgsi.pt).
Assim, nenhum reparo oferece o despacho recorrido.»
Por seu turno, no acórdão recorrido foi decidido, na parte agora relevante, o seguinte:
«Outra questão colocada pelas recorrentes respeita ao facto de estas entenderem que “os dados informáticos pesquisados, extraídos e copiados pelo OPC do aludido sistema informático em Cloud Microsoft Azurea localizado no estrangeiro (aquando das diligências no Escritório do Grupo Prio, em 10 e 18 de abril de 2024) violaram o artº 17º da Lei do Cibercrime (Lei nº 109/2009), conjugado com os artigos 118º nº 1, 122º, 126º, nº 3, e 179º nº 1 do CPP, por falta de Despacho e Mandados Prévios do JIC».
Também aqui não cremos que tenham razão.
O art.º 15º, nº 1, da Lei do Cibercrime atribui à autoridade judiciária competência para autorizar ou ordenar por despacho que se proceda a uma pesquisa em sistema informático, tendo em vista a descoberta da verdade, a fim de obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático. Acrescentando-se no art.º 16º, nº 1, do mesmo diploma que “Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a apreensão dos mesmos”. E no nº 3 do mesmo artigo que “Caso sejam apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respetivo titular ou de terceiro, sob pena de nulidade esses dados ou documentos são apresentados ao juiz, que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.”
Como resulta referido no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/05/2023, “A Lei do Cibercrime é uma legislação especial que veio estabelecer disposições penais materiais e processuais relativas ao domínio do cibercrime e da recolha de prova em suporte eletrónico (secundarizando o Código de Processo Penal) para fazer face a novas realidades e inerentes especificidades, tais como dos dados informáticos e do correio eletrónico, justificando-se o sacrifício do interesse individual numa comunicação livre de interferências alheias, em prol do exercício do “ius puniendi” estadual”.
No caso dos autos, o Ministério Público, enquanto autoridade judiciária competente, titular do inquérito, nos termos já supra referidos, determinou a emissão de mandados de pesquisa informática nos quais se fez consignar o seguinte: “Caso venham a ser detetados, no decurso da pesquisa informática dados cujo conteúdo, para além daquele que se revele fundamental para a prova nos autos, possa igualmente incluir, em abstrato, dados suscetíveis de revelar informação de natureza pessoal ou íntima dos visados, nos termos do artigo 16º, nº 3, da referida lei, aqueles deverão ser extraídos nos termos do artigo 16º, nº 7, alínea b) e nº 8, efetuado cópias em duplicado, digitalmente encriptadas, as quais serão seladas, uma para entrega ao secretário judicial e outra para entregar para apreensão e posterior apresentação de tais dados informáticos ao Juiz de Instrução Criminal.”
Como resulta do auto de pesquisa informática acima transcrito, “Porque foram selecionados ficheiros que correspondem a caixas de correio eletrónico, o dispositivo, acima identificado, foi devidamente selado em saco de prova identificado com o número ...83 para posterior apreciação da relevância do seu conteúdo pelo senhor Juiz de Instrução Criminal.”
Ora, não foi determinada a apreensão daqueles ficheiros, para que fiquem à ordem ou à disposição em termos probatórios do processo, mas foram simplesmente tomadas medidas cautelares de preservação desses ficheiros, os quais foram selados, para que depois o Juiz de Instrução, após análise, inteirando-se do respetivo conteúdo, em cumprimento do disposto no art.º 17º do Cibercrime, decida se os mesmos devem ou não ser apreendidos, por se lhe afigurarem serem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
Ou seja, o procedimento adotado harmoniza-se com o regime legalmente previsto na Lei do Cibercrime para as buscas e apreensões de dados informáticos, nomeadamente sobre apreensão de correio eletrónico, e com ele ficou garantido o sigilo da correspondência assim como a garantia de reserva de juiz na tutela dos direitos fundamentais com ela relacionados. Em consonância ademais, portanto, com o disposto no art.º 17º do mesmo diploma.
Como bem foi referido na decisão recorrida, “a pesquisa e apreensão não se confunde com o conhecimento em primeiro lugar pelo Juiz de Instrução, para os fins previstos no disposto nos artigos 16.º, n.º 3 e 17.º da Lei do Cibercrime, o qual foi devidamente observado – cfr. despachos proferidos por este Juízo de Instrução Criminal em 17 de abril de 2024 (fls 753 a 755) e em 26 de abril de 2024 (fls 792 a 793), e auto de leitura de correio eletrónico (a fls 795) – encontrando-se os autos a aguardar a elaboração dos respetivos relatórios de análise com vista à seleção de mensagens e/ou dados/registos de comunicação relevantes para a prova”.
Razão por que não se vislumbra fundamento para se considerar ter havido violação do artigo 17º da Lei do Cibercrime (Lei nº 109/2009), conjugado com os artigos 118º, nº 1, 122º, 126º, nº 3, e 179º, nº 1, do CPP, por falta de Despacho e Mandado prévios do JIC, como pretendem as recorrentes.»
Do confronto destes dois textos resulta o seguinte:
- No acórdão recorrido foi apreciada uma situação em que no decurso do inquérito o Ministério Público passou mandados de busca e apreensão a instalações identificadas para efetiva apreensão de todos os elementos que pudessem esclarecer a investigação e instrução do processo, ao abrigo dos artigos 174º nº 1 a 3, 176º, nº 1 e 178º nº 1, 3 e 4 CPP e passou ainda mandados de pesquisa informática para todo o material informático pertencente/utilizado pelos suspeitos que viesse a ser encontrado aquando das buscas, determinando que, no caso de serem encontrados dados suscetíveis de revelar informação de natureza pessoal ou íntima dos visados, fossem tais dados extraídos e feitas cópias digitalmente encriptadas e seladas para entrega para apreensão e posterior apresentação de tais dados informáticos ao Juiz de Instrução Criminal, conforme previsão dos artigos 11º, nº 1, alíneas b) e c), 15º, nº 1, 16º, nº 3, nº 7, al. b) e nº 8 Lei do Cibercrime.
- No acórdão fundamento foi apreciada situação em que o Ministério Público, no inquérito, ordenou busca e pesquisa informática ao conteúdo dos sistemas informáticos que viessem a ser encontrados na posse dos buscados, com a advertência de que, caso fosse encontrado correio eletrónico, fosse efetuada uma cópia cega, sem visualização de conteúdo a fim de ser exibida à Mm.ª Juíza de Instrução para da mesma tomar conhecimento em primeiro lugar.
- No acórdão recorrido verifica-se que aquando das buscas e pesquisas informáticas foram encontrados emails e correio eletrónico, que foram extraídos, e efetuadas cópias em duplicado, digitalmente encriptadas, que foram seladas.
- No acórdão fundamento constata-se que na sequência das pesquisas informáticas, foram encontrados e copiados em suporte digital ficheiros de correio eletrónico, que foram gravados, extraídos de forma automática e sem visualização do seu conteúdo, em suportes digitais acondicionados em sacos de prova.
- No acórdão recorrido verifica-se que as arguidas Prio Suply SA e Prio Bio SA invocaram perante o Juiz de Instrução Criminal que não existiu mandado judicial prévio a autorizar a apreensão de emails e correspondência electrónica e que, consequentemente, a extração e/ou apreensão de correios eletrónicos e demais correspondência eletrónica está ferida de nulidade.
- No acórdão fundamento o Ministério Público promoveu ao Juiz de Instrução Criminal que «nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 178º, 179º nº 3 e 268º nº 1 alínea d) do Código de Processo Penal e 34º nº 4 da Constituição da República Portuguesa, conjugados com o disposto no artigo 17º da Lei 109/09 de 15.09, o Mmo. Juiz de Instrução tome deles conhecimento em primeiro lugar e determine a eliminação das mensagens não conexas com o objecto dos autos ou respeitantes à reserva da vida privada. Atento o volume das mensagens gravadas, promovemos que, após eliminação das mensagens não conexas com o objeto dos autos ou da reserva da vida privada, nos seja conferida a possibilidade de acesso aos ficheiros, a fim de selecionarmos e imprimirmos os que considerarmos relevantes para a prova. Após selecção dos ficheiros mais relevantes, será requerida a V. Exa. a respectiva junção aos autos, nos termos do disposto no art. 179º, nº 3, do CPP».
- No acórdão recorrido, a Mmª. Juiz de Instrução Criminal julgou não verificada a nulidade, despacho de que foi interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto.
- No acórdão fundamento o Mmº Juiz de Instrução Criminal indeferiu a promoção do M.P. por despacho que decidiu que «ao abrigo do disposto nos artºs 17º da Lei n.º 109/2009, de15.09, e 179.º do Código de Processo Penal declaro nula a apreensão da correspondência efectuada nestes autos, não podendo, por conseguinte, o tribunal tomar conhecimento da mesma», tendo o Ministério Público interposto recurso deste despacho alegando que não foi determinada a apreensão de correspondência eléctronica, mas, ao invés, a gravação da mesma, sem visualização, para que fosse vista em primeiro lugar pela Mma Juiz de Instrução, a quem se requereu igualmente que expurgasse as mensagens sem relevância para a prova e determinasse a selecção e apreensão das que tivessem valor probatório.
- No acórdão recorrido, foi negado provimento ao recurso interposto pelas recorrentes Prio Supply, S.A. e Prio Bio, S.A.
- No acórdão fundamento, foi julgado improcedente o recurso e mantida a decisão recorrida.
Oferece-se assim como manifesto que não se verifica a identidade de situações fácticas apreciadas em recurso em cada um dos acórdãos em confronto, assim como se não verifica verdadeiramente uma identidade do enquadramento jurídico.
Na verdade, no acórdão recorrido, o Ministério Público tinha ordenado a realização de buscas e de pesquisas informáticas em material informático existente nas instalações das sociedades investigadas sem que tivesse sido determinada a apreensão de correio electrónico e o Tribunal entendeu que, tendo o correio eletrónico sido encontrado na sequência das diligências legitimamente autorizadas pelo Ministério Público (busca e pesquisa informática), nos termos do artº 15º e 16º nº 1 e 3 da Lei do Cibercrime, tais dados podiam ter sido extraídos e selados para que o juiz de instrução, após análise, inteirando-se do respetivo conteúdo, decidisse se os mesmos deveriam ou não ser apreendidos para junção ao processo, considerando que tal extração e selagem dos dados constituía uma medida cautelar de preservação dos dados e não uma apreensão.
Por seu turno, no acórdão fundamento o Ministério Público ordenou a busca e pesquisa informática ao conteúdo dos sistemas informáticos que viessem a ser encontrados na posse dos buscados, com a advertência de que, caso fosse encontrado correio eletrónico, deveria ser efetuada uma cópia cega, sem visualização de conteúdo a fim de ser exibida à Mm.ª Juíza de Instrução. Entendeu o Tribunal que se o Ministério Público, quando ordenou as diligências, pretendia que fosse apreendida ou extraída correspondência de qualquer tipo, nomeadamente eletrónica, teria que requerer a prévia autorização judicial para essa apreensão, por só no caso de inadvertidamente encontrada correspondência eletrónica no decurso de uma busca devidamente autorizada ser possível apresentá-la judicialmente sem autorização prévia; e por essa razão julgou verificada a nulidade, por força do artº 17º da Lei do Cibercrime e do art. 179º, nº 1, do CPP.
Nesta medida, impõe-se concluir que as soluções encontradas em cada um daqueles acórdãos divergem por serem diferentes também as situações fácticas verificadas nos inquéritos, o que foi determinante para que naqueles acórdãos se fizesse uma diferente interpretação do direito aplicável.
Uma última nota, esta, a propósito do vertido pelas recorrentes na conclusão 6ª, em que afirmam que a orientação perfilhada no Acórdão Recorrido não corresponde a jurisprudência anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, tema que, aliás, não desenvolveram na motivação do recurso, limitando-se a repetir nas conclusões a afirmação que tinham feito constar do ponto 25 da motivação. Trata-se, não obstante, e no que para o caso releva, de afirmação inócua, por não estar em causa um recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Esse recurso tem tramitação própria, ainda que coincidente com a do recurso de revisão e não pode ser cumulado com este último, como já tem sido decidido pelo STJ.
Por outro lado, no que tange às afirmações constantes, entre outros, nos pontos 74 a 77 (referência ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30 de Setembro de 2021, proc. 3546/20.0JFLSB-A.L1-9) e 78 (referência ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de Outubro de 2022, proc. 103/21.8TELSB-A.L1-5), em que as recorrentes chamam à colação a posição aí assumida, concordante com o acórdão fundamento, não podem senão ser desconsideradas, na exacta medida em que o Supremo Tribunal de Justiça vem sucessivamente alertando para a circunstância de no recurso para fixação de jurisprudência o recorrente dever invocar um, e apenas um, acórdão fundamento 3.
Regressando a linha de exposição que vínhamos seguindo, resta concluir que decorrendo do exposto a ausência de pressuposto substancial nos termos que antes se expuseram – identidade das situações fácticas que determinaram a decisão jurídica que veio a ser adoptada em cada um dos acórdãos – verifica-se causa de inadmissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência, devendo este ser rejeitado em conferência, ao abrigo do disposto no art. 441º, nº 1, do CPP.
III – Dispositivo:
Pelo exposto, acordam na 5ª Secção do Supremo Tribunal de justiça em rejeitar o recurso por inadmissibilidade decorrente da falta de requisito substancial.
Fixa-se a taxa de justiça devida por cada uma das recorrentes em 3 UC (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. 8.º, n.º 9, e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).
Condena-se ainda cada uma das recorrentes na sanção de 4 UC, ao abrigo do disposto no art. 420º, nº 3, do CPP.
Supremo Tribunal de Justiça, 3 de Abril de 2025
Jorge Jacob (Relator)
José Piedade
Ernesto Nascimento
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1. - Código de Processo Penal Comentado, anot. ao art. 437º.
2. - Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, anot. ao art. 437º
3. - Não estando em causa, no entanto, uma situação de indicção de mais do que um acórdão fundamento, situação que conduziria à rejeição do recurso por esse motivo.