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CRIME DE DIFAMAÇÃO
EXERCÍCIO DO MANDATO FORENSE
PEÇA PROCESSUAL SUBSCRITA POR ADVOGADO
Sumário
I - Para que uma conduta seja consubstanciadora de um crime de difamação, lesiva da honra e consideração a qualquer pessoa, deve traduzir-se num comportamento com objeto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal. II – A livre atuação do advogado no exercício do patrocínio forense é uma exigência fundamental do Estado de Direito. III – Não incorre na prática de um crime de difamação, a conduta do advogado que, no exercício do seu mandato forense no âmbito de um processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, subscreve requerimentos a dar nota que o menor, aquando da entrega por parte do progenitor, vinha com fome, sujo, cheio de sono e a cheirar a tabaco, fazendo-o com base nas informações que a sua constituinte, mãe do menor lhe transmitiu, não lhe cabendo o ónus de previamente investigar da veracidade de tais afirmações.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.
I - Relatório
Decisão recorrida
No âmbito do Processo de Instrução nº 3389/22...., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Instrução Criminal de Guimarães, foi proferida no dia 17 de abril de 2024, a seguinte decisão instrutória, cujo dispositivo se transcreve, na parte que ora releva:
“Pelas razões de facto e de direito supra expostas, e nos termos do disposto no artigo 308º-1 do Código de Processo Penal, considero não haver indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos que permitem submeter a julgamento AA, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180.º do Código Penal, ou qualquer outro, razão pela qual o não pronuncio”.
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Recurso apresentado
Inconformada com tal decisão de não pronúncia do arguido AA, veio o assistente BB interpor o presente recurso e após o motivar, apresentou as seguintes conclusões e petitório, que se reproduzem:
“1ª Não pode o Recorrente conformar-se com a Decisão Instrutória de não pronúncia do Arguido AA, vertida no Despacho proferido em 17/04/2024, ora recorrido.
2ª Os autos de Inquérito e de Instrução encontram-se instruídos com abundante prova documental, designadamente doutos Acórdãos de 04/11/2021, 17/11/2022 e 18/05/2023; Decisões proferidas em 1ª Instância autos do Processo nº 4094/20.... de Regulação das Responsabilidades Parentais e seus apensos; Ofícios do CAFAP e da EMAT; Atas das Conferências de Pais, e Relatório Social de 07/12/2022 elaborado nos autos de Promoção e Proteção (apenso “E” dos autos de Regulação das Responsabilidades Parentais), sendo do conhecimento direto e pessoal do coarguido Dr. AA todo nos citados autos até ../../2023.
3ª Avulta à saciedade da supracitada prova, além do mais, o comportamento obstrutivo da Requerida progenitora do menor CC à ampliação dos períodos de tempo de convívio do mesmo com o seu progenitor, e o reiterado incumprimento pela mesma das Decisões judiciais nesses autos proferidas que, aliás, determinaram a sua condenação em multas de pelo menos 180 Unidades de Conta, a extração Certidão, por ordem do Mmº Juiz titular, pela prática de 18 crimes de desobediência e a emissão de Mandados de Recolha e entrega da referida criança ao seu progenitor.
4ª O douto Despacho proferido em 03/03/2023 nos preditos autos de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais, junto aos presentes autos em 19/12/2023, aprecia de forma exaustiva todo o comportamento obstrutivo da progenitora da criança desde a instauração da Ação em setembro de 2020 pelo mui Digno Representante do Ministério Público até essa data.
5ª A Ata da Conferência de Pais realizada em 18/10/2023, igualmente junta aos presentes autos em 19/12/2023, contém uma extensa “súmula” de todo o processado deste a instauração da referida Ação até essa data, sendo que as primeiras 14 páginas referem-se aos factos ocorridos até setembro de 2022, dela constando o Douto Despacho proferido nos autos do Apenso “N” que condenou a progenitora da criança a indemnizar esta e o progenitor na quantia de € 2.500,00 para cada um (montante reduzido para € 4.000,00 em sede de Recurso de Apelação por aquela interposto).
6ª A progenitora da criança, coarguida nos presentes autos, interpôs Recurso de Apelação do citado douto Despacho de 03/03/2023 e, bem assim, do Despacho exarado na predita Ata da Conferência de Pais de 18/10/2023, ambos julgados improcedentes no concernente à matéria de facto, e este último parcialmente procedente no concernente ao valor da indemnização referida na Conclusão que antecede.
7ª Avulta do douto Acórdão proferido em 04/11/2021 nos supracitados autos de Regulação das Responsabilidades Parentais, no qual exaustivamente se encontra transcrito (fls. 17 a 21 do Acórdão) o Relatório da perícia psicológica a que foi submetido o progenitor da criança, ora Recorrente, e o Relatório do CAFAP de 13/05/2021 (fls. 21 a 24 do Acórdão) as elevadas competências parentais do progenitor da criança com base nas quais este Venerando Tribunal da Relação de Guimarães considerou que “Por outro lado, como resulta da perícia efectuada, o progenitor evidenciou reunir condições favoráveis à condução da educação do filho, pois que, quanto à paternidade, foi possível constatar que BB se encontra motivado, revelando interesse e preocupação para com o bem-estar e segurança do filho” (fls. 24 do douto Acórdão).
8ª Da Ata da Conferência de Pais realizada em ../../2022 nos referidos autos de Regulação das Responsabilidades Parentais (junta a fls. 62 dos presentes autos) em que participou o coarguido ora Recorrido, na qualidade de mandatário da progenitora, constam as declarações aí prestadas pela Psicóloga Dra. DD, funcionária do CAFAP e responsável pelo acompanhamento do menino CC nessa Instituição, consistentes, além do mais, em i) “A equipa verifica sempre se as crianças são transportadas em segurança e, como já informado aos autos, no caso do CC nunca se aperceberam de qualquer fala de segurança “, ii) “Nunca sentiu que a criança chegasse a cheirar a fumo/tabaco ou qualquer tipo de cheiro quando vem de casa do progenitor” e as declarações do progenitor da criança consistentes, além do mais, em “ ninguém fuma junto da criança” e “reitera que a criança nunca cheirou a tabaco”.
9ª Toda a factualidade vertida nos citados douto Acórdãos de 04/11/2021 e de 17/11/2022, na Ata da Conferência de Pais de ../../2022 e no douto Despacho proferido em 03/03/2023, é do sobejo conhecimento do mandatário (que foi até ../../2023) da progenitora da criança, ora Recorrido.
10ª Da citada prova documental junta aos presentes autos em sede de Inquérito e de Instrução resulta provado, com trânsito em julgado, tudo quanto no citado douto Despacho proferido em 03/03/2023 e nos exarados nas Atas das Conferências de Pais de ../../2022 e 18/10/2023[1] foi apreciado e decidido nos preditos autos de Regulação das Responsabilidades parentais e nos seus Apensos “M” e “N”. (Cfr. itens 13-b)-iv) a 13-b)-xv) - fls. 10 a 23 da Motivação que antecede).
11ª Quando em 11/11/2022 e 07/09/2022 o coarguido Dr. AA verteu em cada um dos Requerimentos nessas datas enviados aos citados autos de Regulação das Responsabilidades Parentais, tinha profundo conhecimento de tudo quanto constava desses autos, designadamente as elevadas competências parentais do progenitor do menor, o afeto e profundo amor que o progenitor nutria (e nutre) pelo filho e o seu total empenho e dedicação em prol do bem-estar da criança, a quem sempre dispensou o mais extremoso carinho e esmerados cuidados.
12ª Era do inteiro, direto e pessoal conhecimento do coarguido Dr. AA tudo quanto o progenitor da criança alegou e as mais das vezes demonstrou através da junção de prova documental, designadamente em sede do exercício do direito ao contraditório, contradizendo veementemente as falsas alegações nesses autos vertidas pela progenitora da criança em prol, além do mais, como avulta do douto Despacho de 03/03/2023 e da Ata da Conferência de Pais de 18/10/2023 das “várias estratégias da progenitora para insistir na privação de convívios entre o menor e o progenitor e para procurar obter chancela do tribunal nos seus atos de alienação parental “ (Cfr. item 13-b)-xv) da Motivação que antecede).
13ª Sendo do inteiro conhecimento do coarguido ora Recorrido, toda a factualidade constante dos preditos autos de Regulação da Responsabilidades Parentais até ../../2023, manifesto que não pode colher o seu argumentário de que desconhecia que os factos pelo mesmo vertidos nos Requerimentos de 11/11/2022 e 07/09/2022 enviados aos autos do processo nº 4094/20.... não correspondesse à verdade e que sequer tal hipotisou.
14ª Tal factualidade constante dos citados autos de Regulação das Responsabilidades Parentais, conforme doutos Despachos e Acórdãos proferidos, atesta de forma inequívoca as elevadas competências parentais do progenitor da criança, ora Recorrente, o seu profundo amor pela mesma, empenho e dedicação em prol do seu bem-estar, não se compaginando, antes conflituando abertamente com aquela que o coarguido ora Recorrido verteu nos Requerimentos por si subscritos e enviados àqueles autos em 07/09/2022 e 11/11/2022.
15ª Aliás, como consta dos presentes autos, o referido causídico já havia sido exortado através de peças processuais do progenitor da criança a que sua constituinte deveria abster-se de, nas peças processuais pelo mesmo subscritas, apoucar, achincalhar, vexar e ofender a honra e a dignidade daquele.
16ª Salvo melhor entendimento, não é, pois, de acolher a versão trazida pelo coarguido Dr. AA aos presentes autos de que se limitou a transpor para os citados Requerimentos aquilo que lhe foi relatado pela sua constituinte e que jamais desconfiou de que tal factualidade não correspondesse à verdade.
17ª Ao invés, tal como tem sido Entendimento da Jurisprudência dominante, designadamente a supracitada na Motivação que antecede, o coarguido Dr. AA, profissional do Direito com prática de mais de 20 anos de exercício da Advocacia, não podia ignorar que, ainda que hipoteticamente, o que não se concede, não desconfiasse da veracidade de tais alegados relatos, a forma e as expressões que utilizou em qualquer dos dois sobreditos Requerimentos era ofensiva da honra e dignidade do progenitor da criança.
18ª Ante tal cenarização – alegados relatos feitos pela constituinte do aqui Recorrido – impunha-se que o mesmo, profundo conhecedor como era da abundante factualidade constante das decisões à data transitadas em julgado, se inteirasse sobre a veracidade de tais factos antes de a verter nos seus Requerimentos e levar ao conhecimento, designadamente de funcionários judiciais, do Exmo. Senhor Procurador da República e do Mmº Juiz.
19ª Como declarado pelo coarguido Dr. AA em sede de Inquérito e de Debate Instrutório, fazendo tábua rasa do seu dever, aliás acrescido atenta a natureza, significado e alcance das expressões usadas nas imputações feitas ao progenitor da criança, limitou-se a, alegadamente, sem qualquer outra diligência ou filtragem, verter as mesmas nos preditos Requerimentos.
20ª Aquando das declarações prestadas em sede de Debate Instrutório, o Arguido afirmou, por um lado, que nunca esteve presente em qualquer “transição” da criança de um para o outro progenitor e, por outro, declarou que já não se recordava se nos dias 25/03/2022 e 08/04/2022 tinha estado nas instalações do CAFAP a assistir a sua constituinte na realização transições nesses dias e local operadas. (Cfr. itens 13.-a)-iii), iv) e v) da Motivação que antecede – pag. 9).
21ª Salvo o devido respeito por diverso entendimento, é omisso o douto Despacho recorrido no concernente à fundamentação da matéria aí considerada como Factos não indiciados,
22ª O que, no modesto entendimento do Recorrente consubstancia irregularidade, aliás de conhecimento oficioso, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 97º, nº 5 e 123º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal.
23ª De acordo com a Jurisprudência dominante, nomeadamente a que se encontra citada na Motivação que antecede, não tendo o aqui Recorrido demonstrado que as alegações que verteu nos sobreditos Requerimentos não são da sua lavra nem alterou os alegados relatos feitos pela sua constituinte, e não tendo demonstrado haver realizado qualquer diligência no sentido de aferir da sua veracidade, impunha-se que o Ofendido, ora Recorrente, apresentasse queixa contra aquele e a sua constituinte, sob pena, além do mais, de arquivamento dos autos de Inquérito.
24ª Salvo melhor entendimento, tendo-se o ora Recorrido limitado a alegar que verteu nos preditos Requerimentos o que lhe foi transmitido pela sua constituinte (apesar de saber que tal factualidade era totalmente oposta e incompatível/inconciliável com a que se encontrava dada como provada nos autos de Regulação das Responsabilidades Parentais) e tendo-se a coarguida EE remetido ao silêncio, mais não restaria à Exma. Juiz de Instrução do que pronunciar o mesmo pela prática do crime de difamação, em coautoria material e na forma consumada, identificado na Acusação Particular, atenta toda a prova documental com que se encontram instruídos os presentes autos e os (fortes) indícios da prática do crime que os mesmos sustentam.
25ª No proferimento do Despacho recorrido o douto Tribunal a quo fez uma incorreta apreciação e valoração da matéria de facto indiciária da prática pelo coarguido Dr. AA do crime que na Acusação Particular lhe é imputado.
26ª Outrossim, no proferimento do Despacho recorrido o douto Tribunal a quo interpretou e aplicou incorretamente o Direito, maxime a causa de justificação a que alude o nº 2, alíneas a) e b) do art. 180º do Código Penal, fazendo, também, uma incorreta interpretação da norma do nº 4 desse artigo.
27ª A devida apreciação da prova constante dos autos e subsunção dos factos ao Direito, e a correta interpretação das normas legais aplicáveis, impunham o proferimento de Decisão diametralmente oposta à que se acha vertida no douto Despacho recorrido, devendo, consequentemente, ser proferido Despacho de pronúncia do coarguido Dr. AA pela prática do crime que o Assistente na Acusação particular lhe imputa.
28ª No proferimento da Decisão Instrutória consistente no Despacho de não Pronúncia ora sindicado, o Tribunal a quo interpretou e aplicou incorretamente, inter alia, as seguintes normas legais e constitucionais:
a) Arts. 180º, nº 1, 2, alíneas a) e b), 3 e 4, do Código Penal;
b) 97º, nº 5, 123º, nº 1, 127º, 326º, alínea c), e 308º, nº 1, do Código de Processo Penal;
c) Arts. 70º, nº 1, e 150º, nº 2, do Código Civil;
d) Art. 9º, nº 2, do Código de Processo Civil;
e) Arts. 20º, nº 4, 25º, nº 1, 26º, nº 1, e 208º, da Constituição da República.
f) Art. 95º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de setembro.
TERMOS EM QUE, e nos mais de Direito com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser concedido total provimento ao presente Recurso e, em consequência:
Ser julgada procedente, por provada a arguida irregularidade do douto Despacho de não pronúncia na parte em que é omisso quanto à fundamentação da matéria que constitui os factos não indiciários;
Ser julgado procedente o presente Recurso da Decisão Instrutória consistente no Despacho de não pronúncia do Arguido Dr. AA, revogando-se a mesma e substituindo-a por douto Acórdão que pronuncie o referido Arguido pela prática do crime p. e p. pelos arts. 180º, nº 1 e 183º, nº 1, alíneas a) e b), do Código Penal.
Decidindo nesta conformidade, farão Vossas Excelências a costumada e sã JUSTIÇA!”.
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Resposta ao recurso por parte do Ministério Público.
Na primeira instância, o Ministério Público respondeu ao recurso, considerando que deve negar-se provimento ao mesmo e consequentemente, confirmar-se a decisão recorrida.
Considera em síntese que não é possível, com os indícios recolhidos, concluir que o arguido, advogado de profissão, soubesse que os factos que fez constar do articulado não correspondiam à verdade, referindo também que o tribunal tomou posição sobre os factos que considerou indiciados/não indicados, estando a decisão recorrida fundamentada, nos termos legais.
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Resposta ao recurso por parte do arguido.
Também o arguido respondeu ao recurso interposto pelo assistente pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1) Salvo melhor opinião e o devido respeito, o recurso apresentado por BB não deverá colher, por falta de qualquer fundamento sério de facto e de direito, pelo que se impugna o alegado nas conclusões da motivação do recurso apresentado, nomeadamente, nos artigos 1º), 2º), 3º), 4º), 5º), 6º), 7º), 8º), 9º), 10º), 11º), 12º), 13º), 14º), 15º), 16º), 17º), 18º), 19º), 20º), 21º), 22º), 23º), 24º, 25º), 26º), 27º) e 28º) todos da motivação de recurso, um por um, especificadamente e todos no seu conjunto.
2) O presente processo com a alegada acusação particular por alegada difamação em articulados, para além de carecer de qualquer fundamento sério, visa apenas e só, atingir o ora arguido na sua honra e consideração pessoal e sobretudo profissional, como Advogado.
3) O Digno Magistrado do Ministério Publico no inquérito de despacho de não acompanhamento da acusação particular e consignou que não existem quaisquer indícios da prática de qualquer crime de difamação por parte do ora arguido.
4) Tal facto é do conhecimento do alegado ofendido e do seu Ilustre Mandatário que tendo opcionado conscientemente e com o intuito de prejudicar o ora arguido, a apresentação da alegada acusação particular, cujo fundamento bem sabem que não existe, que não foi acompanhada pelo Digno Magistrado do Ministério Publico e que o Mmo. Juiz de instrução despronunciou por não existir qualquer ilegalidade na conduta do ora arguido.
5) O patrocinio forense do arguido para com a sua Constituinte decorreu até 09 de Março de 2023, data em efectuou substabelecimento sem reserva noutra Ilustre Advogada desta cidade, não sendo desde essa data mais mandatário da Senhora Arquiteta EE.
6) O ora arguido nunca conheceu anteriormente o alegado ofendidos nem teve o imenso prazer de privar com seu Ilustre Mandatário, nada tendo até esta data contra o mesmo, ou contra qualquer um deles, e em circunstancia alguma pretendeu ofender quem quer que fosse, nem faltar ao respeito a ninguém.
7) Conforme se constata daquilo que vem alegado nos requerimentos por si apresentados e que no pontos 22º, 23º , 24º e 25º da alegada acusação particular se faz referencia, o ora arguido, limitou-se no exercício do seu patrocínio forense a relatar para os autos os factos que lhe foram transmitidos pela sua Constituinte Senhora Arquiteta EE.
8) Obviamente, que o ora arguido não tinha como saber os factos ai reportados e que lhe foram transmitidos pela sua Constituinte Senhora Arquiteta EE. Para além disso, ainda teve sempre o cuidado de colocar a palavra “alegadamente” em tudo o que lhe parecia poder ferir qualquer susceptibilidade, conforme se constata dos mesmos.
9) O ora arguido cumpriu com os seus deveres para com a sua Constituinte acreditando sempre que a mesma lhe prestava informações correctas e sentia a sua real preocupação com o seu filho menor.
10) Aliás, veja-se que o Ilustre Mandatário do alegado ofendido refere conforme consta no alegado no artigo 16º da alegada acusação particular desses autos “(…) requerimento (…) objecto da queixa crime de 21/11/2022 ainda que, porventura, e hipoteticamente se admita não serem tais falsas imputações da lavra do Ilustre mandatário da Progenitora ora co arguida (…)”, e é bem demonstrativo de que o alegado ofendido e o seu Ilustre Mandatário bem sabem que estão a atingir ilicitamente o ora arguido. Ou seja, o Ilustre Mandatário do alegado ofendido e o mesmo admitem que o ora arguido não teve qualquer intervenção nas imputações (leia-se factos) constantes do requerimento de que apresentaram queixa, mas ainda assim não se coibiram de o fazer, constituindo a alegada acusação particular um crime de simulação de crime, que deverá ser devidamente sancionado, entre outros, a final,
11) Para tentar fundamentar a boa prática que alegam serem os únicos titulares, o alegado ofendido e o seu Ilustre Mandatário invocam o conhecimento do ora arguido dos inúmeros relatórios do Cafap e Segurança Social, com que a sua Constituinte nunca aceitou e que teve em nome do patrocínio por em causa, tal como as demais perícias.
12) Veja-se igualmente o constante do artigo 22º da alegada acusação particular que refere que “(…) à data dos factos, a 1ª arguida (Arquiteta EE), sabia que os mesmos por si alegadamente relatados ao seu Ilustre Mandatário, eram rotundamente, falsos (…)” - ou seja uma vez mais quer o alegado ofendido, quer o seu Ilustre mandatário bem sabem que o ora arguido se limitou a reproduzir os factos que lhe eram comunicados pela sua Constituinte, conforme não poderia deixar de ser e ainda assim não se coibiram de deduzir a alegada acusação particular, de estar presentes na sua inquirição, no debate instrutório e agora de apresentar o presente recurso que bem sabem não ter fundamento.
13) O ora arguido agiu sempre de acordo com as legis artis, exercendo sempre o seu mandato com o vigor e tenacidade que o caracterizam e pelo qual é conhecido, sendo que o aí alegado traduz, uma vez mais, um alegado juizo de valor por parte do alegado ofendido e do seu Ilustre mandatário e a pratica de actos que não ocorreram.
14) O Advogado, como mandatário judicial, pratica actos jurídicos, não em nome próprio, mas por conta do mandante e, obviamente, com base em informações que lhe foram prestadas para o efeito pelo seu Constituinte. Entre o Advogado e o cliente existe uma relação de confiança que não exige a comprovação de tudo o que lhe é afirmado pelo constituinte e a Constituição assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz do patrocínio e se é certo que essa imunidade não é total, ela tem forçosamente grande abrangência. Os princípios da boa-fé e da colaboração entre os intervenientes processuais impõem tal premissa - sob pena de se tornar perverso, à partida, o acesso aos tribunais -, sem prejuízo da necessidade de controle de eventuais desvios que, justamente devido à sua natureza, devem ser alegados e provados e não considerados aprioristicamente.
15) Nestes termos, para que haja comparticipação num crime de difamação, cometido através de peça processual, é necessário que exista um acordo prévio, mesmo tácito, entre mandatário e mandante, para afirmação ou propalação de factos inverídicos, que não é manifestamente o caso, nem nunca ocorreu. O justo limite da liberdade de expressão do Advogado é ditado, como se assinalou, pelas necessidades da defesa da causa. Se as expressões ou imputações ofensivas utilizadas - depois de ponderadas, em concreto, segundo as leges artis, as circunstâncias processuais em que foram produzidas e os fins a que obedeceram - forem ostensivamente inadequadas à defesa da causa, deve entender-se que elas foram feitas ad hominem, o que não é manifestamente o caso.
16) Existe um justo equilíbrio entre a necessidade de proteger o direito à honra do alegado ofendido em causa, por um lado, e a liberdade de expressão do ora no exercício do respetivo mandato forense, por outro mas no presente caso, atento que os factos foram- lhe comunicados sempre pela sua Constituinte, está verificada a causa de exclusão da ilicitude prevista no art.º 31.º, n.º 2, al. b) do Cód. Penal, o que conduz à respetiva absolvição, o que veio a acontecer com o despacho de não pronuncia do Mmo. Juiz de Instrução, sendo que o recurso apresentado em nada aporta ao que já foi decidido.
17) Em suma: a sentença recorrida não merece qualquer censura, quer quanto á decisão, quer quanto aos respectivos fundamentos de facto e de Direito, pois bem ajuizou de toda a prova, incluindo a produzida em audiência, fazendo uma correcta qualificação dos factos e não padecendo de qualquer vicio.
18) Todos os artigos das conclusões, salvo o devido respeito, traduzem apenas juizos de valor, pelo que contrariamente ao alegado muito bem andou o Mmo. Juiz de Instrução, que valorou devidamente a matéria de facto e de direito, e proferiu em despacho de não pronuncia do ora arguido, conforme se lhe impunha, pelo que deverá o recurso apresentado pelo Recorrente ser julgado improcedente.
Termos em que, pelo que vem de expor-se e pelo muito que Vossas Excelências doutamente suprirão, não deverá colher o recurso apresentado por BB, por falta de fundamento sério, uma vez que muito bem andou o Mmo. Juiz de Instrução no seu despacho de não pronuncia, assim se fazendo JUSTIÇA !”.
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Tramitação subsequente
Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o processo foi com vista ao Exmº Sr. Procurador-geral Adjunto que emitiu parecer no sentido que o recurso não merece provimento.
*
Cumprido que foi o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (em diante também identificado por CPP), foi apresentada resposta ao Parecer, quer pelo assistente, quer pelo arguido.
O assistente continua a pugnar pela procedência do recurso, reiterando em síntese o alegado nos fundamentos já exarados no seu recurso.
Ao invés, o arguido entende que o recurso deve improceder, mantendo o que já se encontra plasmado na sua resposta ao recurso, quer na pronúncia do Ministério Público, na primeira instância, quer no Parecer elaborado.
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II – Fundamentação.
Cumpre apreciar o objeto do recurso.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas essas questões as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.
As questões que se colocam são as de saber se:
- a decisão instrutória enferma de irregularidade por falta de fundamentação.
- existem fortes indícios da prática pelo arguido AA, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. pelos artigos nº 1 e 183º nº 1, al. b), ambos do Código Penal.
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São os seguintes os factos considerados indiciados e não indiciados pela Mmª Juiz de Instrução:
“Secção I Factos indiciados
1. Em 07/09/2020 foi requerida a Regulação do Exercício das Responsabilidades
Parentais de CC, com o nº
4094/20...., a correr termos no Juízo de Família e Menores de Guimarães
Juiz ....
2. EE, mãe da CC, constituiu, em 01/11/2020, como seu
mandatário AA.
3. AA exerceu o mandato forense até ../../2023, data em que substabeleceu, sem reserva, os poderes que na citada procuração lhe
foram conferidos.
4. AA praticou, na qualidade de mandatário de EE
EE, todos os actos processuais compreendidos entre 09/12/2020 e
../../2023, em representação desta.
5. Nessa qualidade remeteu aos autos do processo citado, peças processuais que
continham as seguintes expressões:
a. O menor continua a ser entregue á mãe, extremamente cansado, com fome, sem dormir a sesta e sempre a cheirar, nas roupas, no cabelo e no corpo a tabaco, sendo que o cabelo tem vindo todo bezuntado;
b. O Progenitor não revela capacidades para tomar conta do menor mais do que duas horas, sendo que quando tal sucede o mesmo é entregue com nítidos sinais de negligência e muitas vezes sem o próprio casaco, apanhando frio numa altura do ano em que pode por em perigo a saúde do menor;
c. Para além disso, vem sempre com fome, tendo a mãe de o amamentar e o
mesmo adormecendo durante a mesma atividade;
d. O Progenitor já não é a primeira vez que se apresenta a tresandar a tabaco e a álcool, sendo que no dia 27 de Outubro de 2022, a quando da entrega do menor á mãe em sua casa, apresentava-se alegadamente alcoolizado, com um comportamento infantil e imaturo.
e. Para além disso, quando o menor foi entregue na passada sexta feira 25 de Março de 2022, a criança vinha suja, nomeadamente o seu nariz, a cheirar a
tabaco, o mesmo ocorrendo com o progenitor que ainda teve o desplante de
invadir o carro da Requerida para deixar a criança, deixando atrás dele um cheiro nauseabundo de mistura de tabaco e suor.
f. O menino vinha cheio de sono, pois não dormiu a sua sesta e com fome tendo
devorado o jantar quando chegou a casa;
g. Nomeadamente o facto de terem vestido roupa interior à criança sem a lavar,
sem darem o lanche à criança, entregando o menino todo molhado, quando se
permite sem que tal conste da ata da conferência de Pais que o menor seja
entregue pelos Avós paternos, quando se entrega o menor cheio de fome e a
cheirar intensamente a tabaco e sem dormir a sesta e quando se consegue a
proeza de o entregar com uma meia dentro das calças tudo conforme flui das
cópias dos emails atempadamente enviados ao CAFAP, que se juntam e se dão
por reproduzidos para todos os efeitos legais;
h. Para além disso o menor alegadamente encontra-se a ser transportado dentro
do carro do progenitor sem a competente cadeirinha de segurança, conforme
aliás ocorre com uma prima de cinco anos que é igualmente transportada no
veículo sem quaisquer condições de segurança;
i. Não se concebe que o que se encontra a ser relatado supra seja da responsabilidade única do Cafap, mas sim do progenitor que não sabe cuidar do menor;
j. Continua a fumar desalmadamente junto dele, na sua habitação, tal como os
restantes familiares, tendo aliás na visita da Segurança Social isso mesmo sido
constatado e referido isso mesmo;
k. Não tem alegadamente capacidade para mais, o que se lamenta;
l. Se mesmo com a supervisão do Cafap o progenitor é negligente com o menor
imagine-se sem qualquer supervisão;
m. A Requerida lamenta ainda hoje apenas se ter envolvido com o Progenitor,
que nunca a mereceu, que alegadamente não sabe o que é a fase adulta de um
homem, que alegadamente não tem princípios, nem alegadamente tem nada
que se aproveite;
n. Aliás quanto mais longe o Progenitor estiver e rapidamente conseguir refazer
a sua vida isto, como alguém já disse, se encontrar alguém que o queira melhor seria mesmo para o menor, porque lhe daria uma maior base de conforto, carinho, atenção e amor ;
o. sendo que não existe qualquer fundamento sério para que o Progenitor ficar com a guarda do menor, que ainda mama, que nem sequer sabe cuidar, que não lhe presta os cuidados necessários e o sujeita a perigos, bem como a família dele, e muito menos permitir que a família paterna possa ir buscar o menor á creche, porque o menino nem sequer se encontra habituado a isso, sendo sempre a Requerida e o Progenitor que o fazem, desconfiando da intenção e capacidade destes para o efeito.
Secção II Factos não indiciados
Com relevância para a imputação dos factos aos arguidos resultaram como não
indiciados os seguintes factos do requerimento de abertura de instrução:
1. Tendo, inclusivamente, estado algumas vezes presente nas instalações do CAFAP, designadamente em 25/03/2022 e 08/04/2022, a assistir a sua constituinte nas denominadas “transições” do menor.
2. Toda a factualidade supra transcrita é rotundamente falsa, bem sabendo a Arguida que ao alegar da forma como alegou, apoucando as competências parentais do progenitor da criança, ora Assistente, e tentando convencer o douto Tribunal da veracidade de tais falsos fatos, visava não só achincalhá-lo, vexá-lo e humilhá-lo como, também, lograr obter decisão judicial que, porventura, condicionasse, restringisse ou inibisse o progenitor do exercício das responsabilidades parentais ou, pelo menos, a cessação dos convívios paterno-filiais em ambiente livre, ou seja, fora do âmbito da supervisão e monitorização do CAFAP, doutamente decretados no regime provisório então vigente.
3. AA bem sabia que as referidas imputações feitas ao progenitor da criança, ora Assistente ofendiam a honra, consideração e dignidade deste, e
4. Acaso lograsse convencer o Mmº Juiz do Juízo de Família e Menores Juiz ..., da veracidade de tais imputações, poderia o progenitor da criança ver-se coartado do direito a, nomeadamente, conviver com o seu filho, designadamente na sua
residência, em contexto de ambiente livre sem a supervisão ou monitorização do CAFAP, nos termos doutamente estipulados.
5. Daqui decorre que o Ilustre mandatário da progenitora da criança, ora 2º Arguido, apesar de conhecer a firme reação do progenitor daquela, que insistentemente, nos seus articulados, impugnou veementemente as imputações de que, recorrentemente, estava a ser alvo, exortando a progenitora da criança (e o seu mandatário) a absterem-se de apoucar as suas competências parentais e, fazendo uso reprovável do processo com vista a alcançar um objetivo ilegítimo (coartação do direito do progenitor e do menor a conviverem um com o outro), de o humilhar, vexar e achincalhar, ainda assim, tal como a corguida, não se absteve de, na senda da difamação, prosseguir a sua conduta consistente na narração de factos absolutamente falsos e atentatórios da honra e consideração do Assistente, bem sabendo, desde logo atenta a sua vasta experiência no exercício da profissão de Advogado, que tal conduta é proibida e punível por Lei.
6. Bem sabia o referido coarguido que a falsa factualidade que alegadamente lhe foi transmitida pela sua constituinte era suscetível de ofender a honra, a consideração e a dignidade do aqui Assistente, e de lhe causar não só danos patrimoniais como severos danos não patrimoniais.
7. Mais sabia e não podia ignorar, que as sobreditas falsas imputações feitas ao
Assistente e vertidas, inter alia, no Requerimento de 11/11/2022 por si subscrito, visavam, para além do achincalhamento e vexame do progenitor, ora Assistente, subtrair a este o direito a conviver com o seu filho então com 3 anos de idade, em
ambiente livre, nomeadamente na sua residência, liberto da supervisão ou monitorização do CAFAP, como até ../../2022 sucedeu.
8. Ao verterem os citados factos constantes de fls. 6 dos presentes autos no articulado a que corresponde o citado Requerimento com a ref. citius 43853735, subscrito pelo coarguido Dr. AA, bem sabia o mesmo e a coarguida EE, que tal Requerimento haveria de ser lido, nomeadamente por algum ou alguns funcionários judiciais da respetiva Secção, pelo Exmo. Senhor Procurador da República e, necessariamente pelo Mmº Juiz, e
9. Tinham os coarguidos conhecimento e a consciência de que as imputações feitas ao Assistente lesavam a sua honra e consideração e eram proibidas e punidas por Lei, tendo ambos capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento, mas, ainda assim, não se abstiveram de verter as mesmas no citado articulado.
*
Da falta de fundamentação da decisão recorrida.
Face ao disposto no artigo 97º, nºs 1, alínea b), e nº 5, do CPP, os despachos judiciais decisórios que, não sendo despachos de mero expediente, devem ser sempre fundamentados, devendo para tanto ser especificado os motivos de facto e de direito da decisão.
Trata-se do corolário do disposto no artigo 205º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, que consagra expressamente o dever de fundamentação dos atos decisórios dos tribunais.
Esse dever de fundamentação impõe que se explicite, ainda que não de uma forma exaustiva, os motivos factuais e jurídicos que levaram à tomada dessa decisão.
No caso em apreço, a Mmª JIC na “apreciação dos indícios” considerou que “do acervo da prova produzida não consideramos que existam indícios da prática do crime de difamação, por parte de AA. De facto, resulta dos autos que o arguido apenas se limitou a verter em articulado o que lhe foi transmitido pela sua constituinte, confiando no que lhe foi transmitido”.
Considerou ainda a Mmª Srª Juiz a quo:
“O artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal dispõe que: «Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob forma de suspeita, um facto ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.»
A norma supra mencionada tutela o bem jurídico honra bem jurídico complexo, que abrange o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, e a própria reputação ou consideração exterior (assim, José Faria Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, página 629).
Distingue-se a difamação da injúria com base na imputação direta ou indireta de um facto mesmo sob a forma de suspeita, ou na formulação direta ou indireta de um juízo, este e aquela ofensivos da honra e consideração, ou ainda na mera reprodução direta ou indireta de tal imputação ou juízo.
Em nenhum destes casos a lei exige aquilo que se costuma designar por dolo específico, ou seja, o animus diffamandi.
A situação em análise nos autos envolve, desde logo, a especificidade decorrente de os alegados factos ofensivos da honra e consideração do Assistente ter sido vertido em peças processuais subscritas por mandatário, no exercício de mandato forense.
Não está em causa que o arguido tenha subscrito a peça onde se inserem as expressões e afirmações em causa e supra transcritas.
O que sucede é que o arguido é advogado e elaborou a peça no exercício da sua profissão.
Assim, o que está em questão é saber se se pode concluir que o arguido, em face dos factos indiciados, teve intenção de difamar o assistente ou se agiu na prossecução de um interesse legítimo recordamos que o que está em causa é uma peça junta em Processo de regulação das responsabilidades parentais.
Diga-se, desde já, que a intenção de ofender a honra e consideração do outro (tutelada pelo artigo que pune a difamação como crime) tem que resultar, não só das expressões utilizadas, como também da análise do contexto em que foram proferidas, de modo a aferir a sua gravidade e a aptidão para lesar a honra e consideração.
Ora, no exercício das suas funções e em representação dos seus constituintes, os Advogados gozam do princípio de imunidade, garantido pelo art. 208º da Constituição da República Portuguesa.
Preceitua o citado normativo que “a lei assegura aos advogados as imunidades
necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça”.
Quanto ao que se deve entender por “imunidades necessárias ao exercício do mandato”, defende António José Barreiros (Em Patologia Social por José António Barreiros http://patologiasocial.blogspot.pt/2014/07/imunidade-dos-advogados.html) que são três os direitos que asseguram aos advogados a «imunidade necessária» e que são o «direito à protecção do segredo profissional», o «direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão» e, enfim, o «direito à especial protecção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa», a que acresce um quarto: o direito a regimes específicos de imposição de selos, arrolamentos e buscas em escritórios de advogados, bem como de apreensão de documentos. E concretamente, no que se refere ao «direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão» em sede de litigância, diz o referido Autor: A imputação de factos ou a formulação de juízos valorativos é conatural à prática de actos próprios de Advogado, sucedendo que o primeiro limite é que tal não signifique a supressão ou a desproporcionada compressão de direitos pessoais alheios; para além disso, não é admissível que, por efeito do acto, alguém fique, sob pressão decorrente de intimidação ou inferiorização psicológica devida a perturbação emocional ou rebaixamento, privado ou substancialmente limitado no exercício prático de um direito ou do cumprimento de um dever, lesionado, em suma, na sua capacidade de autodeterminação. Fica, em suma, como resíduo do problema, a gratuitidade por desnecessidade absoluta do acto, mormente a jocosidade insultuosa, através do argumento ad hominem ou do apoucamento pessoal que não crítica do contrário ou ironia argumentativa”.
E entendemos que devem ser estes os limites em que se inserem o art. 95º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei 145/2015, de 9/09 (“no exercício da profissão o advogado deve proceder com urbanidade, nomeadamente para com os colegas, magistrados, árbitros, peritos, testemunhas e demais intervenientes nos processos, e ainda oficiais de justiça, funcionários notariais, das conservatórias e de outras repartições ou entidades públicas ou privadas”); o artº, nº 150º, nº 2, do Cód. Proc. Civil (“não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”) e o art. 326º, al. c), do Cód. Proc. Penal (os advogados não podem fazer uso de “expressões injuriosas ou difamatórias ou desnecessariamente violentas ou agressivas”).
Ora, analisadas as expressões em causa, tais considerações tecidas sobre o assistente não se apresentam como gratuitos, desproporcionados ou sem correspondência com o interesse legítimo de defesa da respetiva constituinte. E como tal, a conduta do arguido, enquanto autor dos textos publicados nas peças processuais, não ultrapassou a fronteira do penalmente censurável, tendo-se mantido dentro dos limites admissíveis do direito de defesa exercido ao abrigo do patrocínio judiciário conferido para o efeito.
É verdade que alguns juízos de valor se afiguram contundentes, e muito próximos do excesso, mas ainda se encontram dentro dos limites permitidos a um causídico na defesa dos interesses legítimos do seu constituinte, estando a conduta abrangida pela previsão do art. 180º, nº 2, alínea a), do Cód. Penal.
Cumpre lembrar que o advogado, como mandatário judicial, pratica actos jurídicos, não em nome próprio, mas por conta do mandante e, obviamente, com base em informações que lhe foram prestadas para o efeito pelo seu constituinte.
Além de tudo, não existe qualquer indício nos autos de que o arguido soubesse que reproduzia factos que eram falsos, nem tinha obrigação de cumprir o dever de informação sobre a verdade da imputação, solicitando os documentos e provas que confirmassem as alegações que fez.
Entre o advogado e o cliente existe uma relação de confiança que não exige a comprovação de tudo o que lhe é afirmado pelo constituinte.
Como supra dissemos, a Constituição assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz do patrocínio e se é certo que essa imunidade não é total, ela tem forçosamente grande abrangência. Tal como defende o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7.03.2017 (acessível em www.dgsi.pt), a imunidade não está dependente de uma ponderação de valores de compatibilização que tenha em vista evitar a liberdade de expressão do advogado, de forma que se possa afirmar que quando atinge a honra de alguém a imunidade já não opera. Essa sempre seria uma imunidade ridícula, que apenas existiria caso não ferisse ninguém. Ou seja, só existiria nos casos em que seria
inútil a sua existência. Porque, entende-se, a imunidade existe para operar quando ofende, mas a ofensa se justifica pela necessidade de defesa. A não ser assim a imunidade de advogado assemelhar-se-ia a certos seguros de saúde que implicam o pagamento de prémios mas que a seguradora cancela se o segurado ficar doente. No caso a “imunidade” existiria enquanto fosse desnecessária e ficaria cancelada quando fosse necessário”.
Nestes termos, entendemos que não se justifica a submissão do arguido a julgamento, já que será altamente provável a sua não punição, impondo-se despacho de não pronúncia”.
A decisão recorrida está assim devida e profusamente fundamentada, sendo perfeitamente percetível o motivo pelo qual a Mmª JIC entendeu considerar que não existam indícios da prática do crime de difamação, por parte do ora recorrido AA, apesar de ter sido ele, como nunca esteve em causa, a subscrever, enquanto advogado, as peças processuais acima identificadas, alicerçada na atipicidade penal da sua conduta.
Não enferma assim a decisão recorrida de qualquer irregularidade.
*
Da existência de indícios da prática do crime de difamação.
Entende o recorrente que existem indícios suficientes da prática, pelo arguido AA, do crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180º nº 1 e 183º nº 1, al. b), ambos do Código Penal.
Dispõe o artigo 180º do Código Penal com a epígrafe “Difamação”:
“1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2 - A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
3 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do nº 2 do artigo 31ºo disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4 - A boa fé referida na alínea b) do nº 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.
5 - Quando a imputação for de facto que constitua crime, é também admissível a prova da verdade da imputação, mas limitada à resultante de condenação por sentença transitada em julgado”
Dispõe por sua vez o artigo 183º do Código Penal:
1 - Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180º, 181º e 182º:
a) (…)
b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação;
as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
2 – (…)”
Ensina Beleza dos Santos, [2] que a honra consubstancia-se “naquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale” e a consideração é “aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa (…) ao desprezo público. (…). A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social ou ao menos de não o julgar um valor negativo”.
Para efeitos de tutela penal, cujo fundamento se busca na protecção do direito fundamental ao bom nome e reputação constitucionalmente consagrado no artigo 26º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, a honra traduz-se num bem jurídico multiforme, que mistura uma concepção fáctica, subjectiva e objectiva, com uma concepção normativa, pessoal e social, incluindo, desta forma, por um lado, o valor e dignidade pessoal e interior de cada indivíduo, e, por outro lado, a sua integração e consideração na comunidade em que se insere.
A este propósito refere Silva Dias [3] “O art. 26º n.º 1 da lei fundamental consagra, de entre direitos da personalidade, o direito «ao bom nome e reputação». Como explicitação directa do princípio da dignidade humana integra este direito um núcleo essencial representativo da dimensão existencial do homem, pelo que, sem a sua protecção perante certas agressões, não é concebível o desenvolvimento social da pessoa. O seu conteúdo é constituído, basicamente, uma pretensão ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros. Sem a observância social desta condição não é possível à pessoa realizar os seus planos de vida e os seus ideais de excelência na multiplicidade de contextos sociais em que intervém. O bem jurídico constitucional assim delineado apresenta um lado individual (o bom nome) e um lado social (a reputação ou consideração), fundidos numa pretensão de respeito que tem como correlativo uma conduta negativa dos outros é, ao fim ao cabo, uma pretensão a não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade”.
Conforme bem se salienta no ac. do STJ de 9 de dezembro de 2020 [4]: “observa-se o preenchimento do seu tipo objetivo quando o agente imputa diretamente a outrem (ofendido) factos ou juízos desonrosos, lesivos da sua consideração. Importa ainda delimitar os conceitos de «facto» e de «juízo». Assim, traduz-se o primeiro num «juízo de existência ou de realidade», enquanto o segundo se entenderá como uma valoração apreciativa de uma coisa ou de uma ideia. Por fim, terá sempre o julgador de os contextualizar no ambiente sociocultural em que foram proferidos ou imputados”.
A este respeito, refere Lopes Militão [5] “Abstrata e resumidamente, pode dizer-se que os juízos de valor representam convicções subjetivas, ao passo que os factos
constituem realidades objectivas. Ou seja, os primeiros consubstanciam apreciações pessoais, sendo, portanto, indemonstráveis, enquanto os segundos são elementos da realidade, mostrando--se por isso incontestáveis”.
Para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objeto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal desse comportamento.
Quanto ao elemento subjetivo, este crime está previsto na forma dolosa (em qualquer uma das modalidades de dolo: direto, necessário ou eventual) e vem sendo entendido na doutrina e na jurisprudência que o mesmo consiste na vontade livre de praticar o ato com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal ato é proibido por lei.
Porém, já não é elemento do tipo, a efetiva lesão do sentimento de honra ou da consideração, bastando, para se verificar a consumação do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se, segundo parâmetros de normalidade, de homem médio, que a ação fosse potencialmente adequada a lesar o sentimento de honra ou consideração.
No caso em apreço, estão em causa os requerimentos enviados pelo arguido, enquanto advogado e mandatário judicial da coarguida EE.
Por ordem cronológica, do mais antigo para o mais recente, consta de tais requerimentos subscritos pelo arguido e juntos ao processo de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais com o nº 4094/20...., do Juízo de Família e Menores de Guimarães:
Ø No requerimento enviado em 29 de março de 2022:
“Para além disso, quando o menor foi entregue na passada sexta feira 25 de Março de 2022, a criança vinha suja, nomeadamente o seu nariz, a cheirar a tabaco, o mesmo ocorrendo com o progenitor que ainda teve o desplante de invadir o carro da Requerida para deixar a criança, deixando atrás dele um cheiro nauseabundo de mistura de tabaco e suor;
O menino vinha cheio de sono, pois não dormiu a sua sesta e com fome tendo devorado o jantar quando chegou a casa;
Nomeadamente o facto de terem vestido roupa interior à criança sem a lavar, sem darem o lanche à criança, entregando o menino todo molhado, quando se permite – sem que tal conste da ata da conferência de Pais – que o menor seja entregue pelos Avós paternos, quando se entrega o menor cheio de fome e a cheirar intensamente a tabaco e sem dormir a sesta e quando se consegue a proeza de o entregar com uma meia dentro das calças – tudo conforme flui das cópias dos emails atempadamente enviados ao CAFAP, que se juntam e se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
Para além disso o menor alegadamente encontra-se a ser transportado dentro do carro do progenitor sem a competente cadeirinha de segurança, conforme aliás ocorre com uma prima de cinco anos que é igualmente transportada no veículo sem quaisquer condições de segurança.
Não se concebe que o que se encontra a ser relatado supra seja da responsabilidade única do Cafap, mas sim do progenitor que não sabe cuidar do menor;
Continua a fumar desalmadamente junto dele, na sua habitação, tal como os restantes familiares, tendo aliás na visita da Segurança Social isso mesmo sido constatado e referido isso mesmo;
Não tem alegadamente capacidade para mais, o que se lamenta;
Se mesmo com a supervisão do Cafap o progenitor é negligente com o menor imagine-se sem qualquer supervisão.
Ø No requerimento enviado em 5 de maio de 2022:
“Nomeadamente o facto de terem vestido roupa interior á criança sem a lavar, sem darem lanche á criança, entregando o menino todo molhado, quando se permite – sem que tal conste da ata da conferência de Pais – que o menor seja entregue pelos Avós paternos, quando se entrega o menor cheio de fome e a cheirar intensamente a tabaco e sem dormir a sesta e quando se consegue a proeza de o entregar com uma meia dentro das calças – tudo conforme flui das cópias dos emails atempadamente enviados ao CAFAP…”
Ø No requerimento enviado em 11 de novembro de 2022:
O menor continua a ser entregue á mãe, extremamente cansado, com fome, sem dormir a sesta e sempre a cheirar, nas roupas, no cabelo e no corpo a tabaco, sendo que o cabelo tem vindo todo bezuntado;
O Progenitor não revela capacidades para tomar conta do menor mais do que duas horas, sendo que quando tal sucede o mesmo é entregue com nítidos sinais de negligência e muitas vezes sem o próprio casaco, apanhando frio numa altura do ano em que pode por em perigo a saúde do menor;
Para além disso, vem sempre com fome, tendo a mãe de o amamentar e o mesmo adormecendo durante a mesma atividade;
O Progenitor já não é a primeira vez que se apresenta a tresandar a tabaco e a álcool, sendo que no dia 27 de Outubro de 2022, a quando da entrega do menor á mãe em sua casa, apresentava-se alegadamente alcoolizado, com um comportamento infantil e imaturo”.
Ø No requerimento enviado em 7 de setembro de 2023:
“A Requerida lamenta ainda hoje apenas se ter envolvido com o Progenitor, que nunca a mereceu, que alegadamente não sabe o que é a fase adulta de um homem, que alegadamente não tem princípios, nem alegadamente tem nada que se aproveite…;
Aliás quanto mais longe o Progenitor estiver e rapidamente conseguir refazer a sua vida – isto, como alguém já disse, se encontrar alguém que o queira – melhor seria mesmo para o menor, porque lhe daria uma maior base de conforto, carinho, atenção e amor;
sendo que não existe qualquer fundamento sério para que o Progenitor ficar com a guarda do menor, que ainda mama, que nem sequer sabe cuidar, que não lhe presta os cuidados necessários e o sujeita a perigos, bem como a família dele, e muito menos permitir que a família paterna possa ir buscar o menor á creche, porque o menino nem sequer se encontra habituado a isso, sendo sempre a Requerida e o Progenitor que o fazem, desconfiando da intenção e capacidade destes para o efeito”.
*
O assistente na acusação particular que moveu aos arguidos EE e AA, alega: “ainda que, porventura, e hipoteticamente se admita não serem tais falsas imputações da lavra do Ilustre mandatário da Progenitora ora coarguida, não estava o mesmo dispensado do dever de “filtrar” e “burilar” tal factualidade, assegurando-se de que, independentemente de “face ao seu estilo próprio…”, o relato que supostamente lhe foi feito pela progenitora da criança correspondia à verdade e, ainda assim, em tal caso, haveria de “limar” ou “filtrar” as expressões usadas de molde a expurgá-las do o caráter lesivo da honra e consideração do aí progenitor, ora Assistente, que encerram”.
Há assim que apreciar se o arguido, enquanto advogado, estava obrigado a “limar” ou “filtrar” essas expressões, sob pena de incorrer na prática de um crime de difamação, sendo certo que nenhuma prova foi proferida de que o arguido AA estivesse presente naquelas ocasiões de entrega do menor por parte do progenitor, ora assistente, à progenitora, a coarguida EE, para poder pessoalmente constatar não corresponder à verdade o teor de tais requerimentos.
E a resposta, diga-se desde, já não pode deixar de ser negativa.
Um dos direitos reconhecidos a todos os seus cidadãos é o de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva. [Artigo 20.º, n.º 2 da CRP: "Todos têm direito, nos termos da lei, á informação e consulta jurídica, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade."]
E, um dos elementos que tende a torná-lo efectivo é o que reconhece o patrocínio judiciário como "elemento essencial á administração da justiça."[Artigo 208.º da CRP: "A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial á administração da justiça."]
Patrocínio que apenas se concebe cabalmente exercitado se, nomeadamente aos Advogados, for reconhecido o princípio da liberdade de expressão. O que, aliás, vem sucedendo abundantemente em arestos do Supremo Tribunal de Justiça e dos Tribunais das Relações que o proclamam. [António Arnaut, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 57, pág. 487; Alfredo Gaspar, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 48, págs. 1.027 e segs.]
A livre actuação do Advogado no exercício do patrocínio forense é, inquestionavelmente, uma exigência do Estado de Direito e uma instituição de interesse público” [6].
Não se pode olvidar que num conflito judicial como é aquele onde tais requerimentos foram produzidos, de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais, muitas vezes sucede que as posições das partes se extremem, utilizando expressões que, num outro contexto, poderiam ter a virtualidade de lesar a honra e consideração dos envolvidos, mas que no contexto em que têm de ser analisados, são compreendidos e tolerados pela comunidade.
Como bem ensina o Prof. Adriano Moreira [7] "É necessário não esquecer que um processo é uma luta, quase sempre viva e apaixonada, de interesses ou sentimentos e que nem sempre é possível manter nessa luta uma atitude de extrema correcção e de impecável urbanidade».( ...) O Advogado tem uma alta missão a cumprir: fazer valer o direito do seu constituinte. E para cumprir com êxito e com denodo precisa de ter a palavra e a mão inteiramente livres, precisa de desviar os obstáculos que se opõem ao triunfo da sua causa. A faculdade que às partes compete de alegarem com toda a liberdade, por meio dos seus advogados, tudo quanto julgarem aproveitável à defesa os seus direitos é um sagrado e essencial direito indispensável à boa administração da justiça. ( ... ) Dentro do campo da necessidade da alegação nem sequer se levanta o problema de uma possível responsabilidade criminal do advogado: ela só surge para além dessa necessidade, e daí que seja nesse campo que o "animus defendendi" vem a desempenhar uma função penal importante; é realmente o "animus defendendi" que, no campo da desnecessidade da alegação, garante a impunidade e marca o limite da liberdade que a conveniência pública manda que se garanta ao advogado. ( ... )Por um lado, é necessário que se admita tudo quanto é necessário para a defesa; para além disso, é necessário garantir a impunidade dos excessos (entenda-se, para além da necessidade da defesa) que estejam cobertos pelo "animus defendendi", visto que a paixão da defesa que lhes dá causa é de interesse público."
Refere-se no ac. da Relação de Lisboa de 3 de fevereiro de 2009 [8] : “Num contexto de conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, vem defendendo, na esteira da orientação assumida por Costa Andrade, deverem considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica. Segundo aquele insigne Mestre, a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva. Costa Andrade defende mesmo que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto, esclarecendo, no entanto, que se deve excluir a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm nenhuma conexão com a matéria em discussão, consignando expressamente que uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa”.
O mesmo tipo de raciocínio, pelo menos identidade de razão, há-de ser feito quando as expressões forem produzidas pelo advogado no exercício do seu mandato judicial, desde que naturalmente tais expressões não sejam produzidas com o intuito de agredir e confrontar de forma gratuita o visado.
Conforme bem salientam os Professores Figueiredo Dias e Costa Andrade[9] relativamente ao ambiente do processo penal, mas que também é perfeitamente importável para a jurisdição de família e menores, “é dominado por uma atmosfera densificada de emotividade e conflitualidade. O que deve valer como um estímulo ao exercício quotidiano da tolerância e da disponibilidade para aceitar limiares particularmente qualificados de risco permitido e de sacrifício socialmente adequado do bem jurídico mais intensamente coenvolvido, a saber, a honra” (…) “De outra forma, abrir-se-ia a porta a limitações tão drásticas como intoleráveis da liberdade de expressão e actuação dos diferentes sujeitos processuais. Estes não podem viver sob a ameaça constante da invocação das reacções criminais em nome da tutela da honra, uma espada de Democles que só poderia redundar em manifestações perversas de auto-censura”.
No caso em apreço, o arguido limitou-se a transcrever nos requerimentos as informações que a sua constituinte lhe transmitiu, relativamente ao facto de o menor vir com fome, sujo, cheio de sono, a cheirar a tabaco.
Não tinha naturalmente que investigar se tal correspondia à verdade, antes de transmitir tal informação ao tribunal, nem era a ele enquanto advogado da EE, que lhe cabia apurar se tais informações eram justas ou injustas, até porque não presenciava o momento em que o menor era entregue pelo pai.
No que respeita aos juízos de valor relativos ao progenitor da criança, ora assistente, o arguido escreveu nessas peças processuais “apresentava-se alegadamente alcoolizado, com um comportamento infantil e imaturo”, “A Requerida lamenta ainda hoje apenas se ter envolvido com o Progenitor, que nunca a mereceu, que alegadamente não sabe o que é a fase adulta de um homem, que alegadamente não tem princípios, nem alegadamente tem nada que se aproveite”[10].
Não há aqui também por parte do arguido AA, qualquer conduta que possa consubstanciar um crime de difamação, atento o contexto em que tais expressões são produzidas e que não visavam por parte do arguido, atacar a pessoa do visado.
Esses estados de alma, não cabiam naturalmente ao arguido.
Acresce que no que concerne à liberdade de expressão do advogado é de salientar como se refere no ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de janeiro de 2023, “Caminhando no sentido que pressupõe, na realidade, a despenalização de condutas que afetem a honra, o TEDH em arestos que se debruçam sobre as ingerências na liberdade de expressão do advogado (em intervenções processuais ou extra processuais) e em particular considerando a intervenção condenatória com aplicação de uma sanção de natureza penal (ainda que apenas uma multa residual), tem por regra como desnecessária a compressão do direito à liberdade de expressão numa sociedade onde deverá imperar a tolerância e o pluralismo e onde os mandatários forenses não podem sentir-se condicionados no exercício do mandato”.
No mesmo sentido, o ac. do Tribunal da Relação de Évora de 8 de novembro de 2022 [11], de cujo sumário se extrai:
“VI. A jurisprudência do TEDH, a observar pelo Estado Português no cumprimento do art.º 10.° da CEDH, tem entendido que a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um, sendo válida não só para as informações ou ideias acolhidas ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ferem, chocam ou ofendem, já que assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há “sociedade democrática”.
VII. Mais, tem considerado o TEDH que a liberdade de expressão também se aplica aos advogados. Onde, além da substância das ideias e informações expressas, abrange o seu modo de expressão conexa com a independência da profissão de advogado, que é crucial para o funcionamento eficaz da administração de uma justiça que se pretende justa.
VIII. Daí que só excecionalmente possa numa sociedade democrática ser admissível a aplicação de qualquer sanção penal (por mais leve que seja) a um advogado no exercício do respetivo mandato forense, enquanto limite que afete a respetiva liberdade de expressão.
Assim, face à atipicidade penal da conduta do arguido, não se mostram reunidos
os indícios da prática do crime, de que vinha acusado pelo assistente, pelo que bem andou o tribunal “a quo” em proferir o despacho de não pronuncia recorrido.
*
III – Decisão.
Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo assistente, confirmando-se em consequência a decisão recorrida.
Custas pelo assistente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida – artigos 515.º, nº 1 al. b) do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III anexa.
Notifique.
Guimarães, 25 de março de 2025.
(Decisão elaborada pelo relator com recurso a meios informáticos e integralmente revista, sendo assinada digitalmente pelos seus subscritores).
Os Juízes Desembargadores,
Pedro Freitas Pinto (Relator)
Pedro Cunha Lopes (1º Adjunto)
Anabela Varizo Martins (2ª Adjunta).
[1] Ressalvada a redução de € 5.000,00 para € 4.000,00 do valor global das indemnizações. [2] “Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e de Injúria”, RLJ ano 92, nº 3152, [3] Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias”, AAFSL. págs.17/18 [4] Procº 135/18.3T9NIS.E1-A. Relatora: Conceição Gomes. [5] “A Formulação de Juízos de Valor Desonrosos”, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, pág. 169, ano 75, Jan.-Jun.2015, consultável in https.//www.oa.pt. [6] ac. da Relação de Coimbra de 28 de novembro de 2007 proc. 163/01.8TBAND.C1 [7] "Ofensas cometidas por mandatário judicial", publicado na Revista "O Direito", Ano 86, pág. 164, [8] procº 10661/2008-5, Relator: VIEIRA LAMIM. [9] O Direito de Defesa em Processo Penal, Revista da Ordem dos Advogados, ano 52.º, Abril 1992, pág. 277. [10] Sublinhados nossos. [11] Procº nº 26/19.0T9STC.E2. Relator: ANTÓNIO CONDESSO.