DECISÃO SINGULAR
Sumário


Por não conhecer a final do objeto do processo (art. 432.º n.º 1 al.ª b) e 400.º n.º 1 al.ª c), do CPP), não admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, acórdão da Relação que, em recurso, revogando despacho da 1.ª instância, decide julgar culposamente incumpridos deveres ou regras de conduta que a condicionavam e revoga a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido.

Texto Integral

Reclamação – artigo 405.º do CPP (n.º 58/2025)

I - Relatório:

Por decisão da 1.ª instância de 24 de setembro de 2024, foi declarada extinta, pelo cumprimento, a pena de 5 anos de prisão suspensa na sua execução, em que a arguida AA fora condenada, por decisão transitada em julgado.

A referida suspensão da pena, tinha ficado sujeita a regime de prova, bem como à condição de a arguida pagar à ofendida BB a quantia total de € 41.179,75, devendo documentar nos autos, ao fim do primeiro ano após o trânsito, o pagamento de € 8.235,95 e, no final dos anos seguintes, a mesma quantia.

Não se conformando, com a decisão dela interpuseram recurso o Ministério Público e o assistente para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 5 de fevereiro de 2025, julgou procedentes os recursos, revogando a suspensão da execução da pena de prisão aplicada e determinando ao abrigo do disposto no artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal o cumprimento pela arguida AA, da pena de cinco anos de prisão em que foi condenada.

Inconformada, interpôs a arguida AA recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Recurso que não foi admitido por despacho de 18 de março de 2025, com fundamento nos artigos 399.º e 400.º n.º 1 alíneas e) e f), do CPP, invocando o acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 14/2013.

A recorrente apresentou reclamação do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 405.º do CPP, concluindo (em síntese):

“B) O tribunal de 1.ª instância decidiu declarar extinta, pelo cumprimento, a pena de prisão suspensa na sua execução– vide despacho de 24.09.2024, ref. ª citius .......01;

C) O Tribunal da Relação de Coimbra, por sua vez, decidiu revogar a suspensão da pena de prisão, determinando o cumprimento de pena de prisão– vide acórdão de 05.02.2025, apenso C.2., ref. ª citius ......54;

D) A arguida apresentou recurso do sobredito acórdão, que não foi admitido.

E) Entende a arguida/reclamante que o recurso deve ser admitido por não se enquadrar nas disposições legais invocadas quer no invocado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 14/2013, in Diário da República, 1.ª série — N.º 219 — 12 de novembro de 2013.

F) O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 14/2013 tem na sua génese um caso que, em nada, se relaciona com a presente caso, tratando-se de situações materialmente diversas.

G) No acórdão citado, estava em discussão qual o tipo de pena que deveria ser aplicado ao arguido: pena de prisão efetiva, enquanto pena principal, se pena de prisão suspensa na sua execução, enquanto pena de substituição.

H) No caso sub judice essa discussão já foi ultrapassada, e encontramo-nos num momento processual diferente: a revogação, ou não, da suspensão da pena de prisão por (in) cumprimento das injunções aplicadas.

I) A Reclamante não ignora a restante jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tal como não ignora que se tem vindo a acolitar nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 690/2020 e n.º 57/2022 para concluir que “Não é admissível recurso para o STJ da decisão do Tribunal da Relação que, em recurso, revogou a suspensão de execução da pena de prisão”.

J) Os acórdãos do Tribunal constitucional também tiveram, na sua génese, casos onde se discute a pena concretamente aplicada ao arguido e não a revogação da suspensão da pena de prisão por incumprimento das injunções que lhe foram impostas, como acontece no presente caso.

K) Não se está já aqui a discutir a pena concreta que foi aplicada à arguida – por exemplo, se lhe deverá ser aplicada pena de prisão suspensa na sua execução ou pena de prisão efetiva – mas sim a extinção (ou não) da suspensão da pena de prisão concretamente aplicada.

L) Não se está perante uma condenação do Tribunal da Relação no cumprimento de uma pena de prisão, mas sim perante a revogação da suspensão da pena de prisão, pelo que não se subsume à alínea e) do n.º 1 do art. 400.º do C.P.P.

M) A letra da lei da al. e) do art. 400.º do C.P.P. também é clara quando refere que são irrecorríveis os acórdãos que apliquem uma pena de prisão não superior a 5 anos.

N) O Tribunal da Relação, no presente caso, não está a aplicar uma pena de prisão, mas sim a revogar a suspensão da pena de prisão que tem, como consequência, o cumprimento efetivo de pena de prisão, pelo que se tratam de duas realidades distintas.

O) Sem conceder, ainda que assim se entenda, nem assim podemos concluir pela irrecorribilidade do presente acórdão da Relação pois o supracitado normativo legal refere que apenas é irrecorrível o acórdão da Relação que aplique pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória de 1.ª instância.

P) Se partirmos do pressuposto de que a decisão Tribunal da Relação de Coimbra, de revogar a suspensão da pena de prisão, determinando o cumprimento da pena de prisão, é uma decisão condenatória, por maioria de razão, não podemos olvidar que o Tribunal de 1.ª instância determinou a extinção da suspensão da pena de prisão, o que se assemelha, analogicamente, a uma decisão absolutória de 1.ª instância.

Q) Assim, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra corresponde a uma decisão recorrível, na medida em que temos uma decisão de 1.ª instância que “absolveu” a arguida da revogação da suspensão da pena de prisão, pelo que se aplicará sempre a exceção da parte final da alínea e) sendo, por isso, o presente Acórdão recorrível.”


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Cumpre decidir:

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II - Fundamentação:

1. A reclamante defende que o recurso deve ser admitido por o acórdão em causa não se enquadrar nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP em que se fundamentou o despacho reclamado, nem no invocado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 14/2013.

Embora essa argumentação seja fundamentada e, consequentemente, correta, contudo, adianta-se, o acórdão visado é irrecorrível.

Vejamos: ----

2. O tribunal de 1.ã instância julgando “(…) não culposo o incumprimento, pela arguida, do regime da suspensão da execução da pena aplicada e da condição imposta - o pagamento à ofendida do montante de € 41.179,75, não resultando suficientemente demonstrado nos autos o incumprimento culposo por parte da arguida, da condição imposta para a suspensão da execução da pena de prisão aplicada nos autos, nem o incumprimento culposo do regime de prova delineado nos mesmos”, declarou extinta, pelo cumprimento, a pena de prisão aplicada à arguida.

O acórdão de que a reclamante pretende recorrer, proferido em recurso, no que releva, entendeu, diversamente do decidido em 1.ª instância, “(…) que houve claramente da parte da condenada, ao longo de vários anos, uma vontade consciente e intencional de não cumprir o dever que lhe foi imposto, demonstrando não estar minimamente empenhada em proceder ao pagamento a que estava obrigada e, dessa forma, promover a sua ressocialização” e, em conformidade, revogando o despacho recorrido, decidiu revogar a suspensão da execução da pena, determinando o cumprimento da pena de prisão aplicada na sentença condenatória.

3. Nos termos dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos “acórdãos proferidos, em recurso pelas Relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º”.

Não se verifica a exceção prevista na parte final do preceito transcrito.

O objeto do processo penal é delimitado pela acusação ou pela pronúncia e constitui a definição dos termos em que vai ser julgado e decidido o mérito da causa - ou seja, os termos em que, para garantia de defesa, possa ser discutida a questão da culpa e, eventualmente, da pena.

O acórdão em causa, proferido em recurso, no que aqui releva, revogando a suspensão da execução da pena por incumprimento culposo do dever a que a estava condicionada, não conheceu do objeto do processo nem julgou do mérito da causa, sendo antes proferido em procedimento específico da execução da pena suspensa, previsto nos artigos 492.º e seguintes do CPP, isto é, já depois da decisão que conheceu a final do objeto da ação penal.

Não é, pois, uma decisão que tenha aplicado pena de prisão efetiva. A pena de prisão foi aplicada na sentença condenatória.

Com efeito, a decisão que conheceu a final do objeto do processo, para efeitos do citado artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, foi a decisão transitada em julgado em 25 de março de 2019, que condenou a arguida pela prática de um crime de burla informática, p. e p. pelo artigo 221.º, n.ºs 1 e 5, alínea b) do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, bem como à condição de a arguida pagar à ofendida BB a quantia total de € 41.179,75, devendo documentar nos autos, ao fim do primeiro ano após o trânsito, o pagamento de € 8.235,95 e, no final dos anos seguintes, a mesma quantia.

4. O acórdão de que agora se pretende recorrer, de harmonia com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 56.º do CP, revogou a suspensão da execução da pena de prisão, respeitando assim à execução da pena de substituição e suas consequências.

A causa, com o sentido da determinação do direito do caso - culpa e pena - terminou com a decisão condenatória, sendo as fases posteriores procedimentos consequentes de execução.

O recurso não é, assim, admissível (artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP).


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III - Decisão:

5. Pelo exposto, ainda que com fundamento diferente, indefere-se a reclamação deduzida pela arguida AA.

Custas pela reclamante fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.

Notifique-se.


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Lisboa, 3 de abril de 2025

O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Nuno Gonçalves