JUNÇÃO DE DOCUMENTOS EM PROCESSO LABORAL
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO REGIME ESTABELECIDO NO CPC
Sumário

I - O dever de cooperação das partes na instrução do processo encontra como limite o princípio do dispositivo, impondo-se ao requerente que pretenda a junção de documento em poder da parte contrária que identifique tanto quanto possível esse documento e que especifique os factos cujo ónus de prova lhe cumpra ou que pretenda infirmar no caso do ónus impender sobre a outra parte / detentor do documento, evidenciando ainda as razões em que assenta a idoneidade da junção que se pretende para a prova ou contraprova que se pretende alcançar, por forma a possibilitar o efetivo controlo judicial sobre a idoneidade do documento.
II - O que se encontra estabelecido no n.º 1 do artigo 63.º do CPT, a propósito da junção de documentos, não afasta a aplicação do regime que se estabelece no CPC, de aplicação subsidiária, sendo que, não resultando do seu artigo 429.º qualquer menção a prazo para se requerer o meio de prova a que esse alude, deve valer o regime que se estabelece no artigo 423.º, do mesmo Código.

Texto Integral

Apelação / processo n.º 2435/24.4T8PNF-A.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo do Trabalho de Penafiel - Juiz 3

Autora: AA

Ré: A..., EPE

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Nélson Fernandes (relator)

Sílvia Gil Saraiva

Rui Manuel Barata Penha

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório

1. AA interpôs a presente ação, sob a forma comum, contra A..., EPE, peticionando, a final, que o seu contrato de trabalho seja considerado como contrato sem termo e como trabalhadora por tempo indeterminado e o Réu condenado a reconhecê-lo e que o seu despedimento foi ilícito e a reintegrá-la e a pagar-lhe as remunerações vencidas desde os 30 dias anteriores à data da entrada da ação até ao trânsito em julgado da decisão final do processo, com juros desde a data do vencimento das respetivas quantias.

No que possa importar ao presente recurso, alegou no artigo 14.º da petição inicial, o seguinte: “14º Mas também resulta que afinal as necessidades do R. são permanentes, de tal forma que o R. contrata profissionais para o exercício das funções de técnico superior de serviço social, continuamente, nomeadamente recorrendo a contratos de emprego-inserção e salários de 600€.”

Seguindo os autos os seus termos, a Ré apresentou contestação, juntando com essa um documento.

No seguimento, apresentou a Autora requerimento com o teor seguinte:

“Tendo sido notificada da contestação, com a junção de um documento, vem exercer o contraditório.

A A. não pode responder à matéria da contestação, por ser de mera impugnação. No entanto, reafirma integralmente a alegação da p.i. e não deixa de observar a contradição e total incompatibilidade dos artºs 15º e 16º da contestação.

Segundo resulta do documento junto com a contestação (ponto 8 da informação), por deliberação do Conselho de Administração de 28.6.2023 foi autorizada a abertura de nova bolsa de recrutamento para Técnicos Superiores de Serviço Social. Este ponto confirma o artº 14º da p.i. e portanto é de extrema relevância, pelo que importa que o R. seja notificado para juntar aos autos i) a deliberação referida, bem como ii) cópia completa do procedimento de abertura da nova bolsa de recrutamento por ela autorizada e de iii) todos os contratos celebrados ao abrigo dessa bolsa de recrutamento.

É o que se requer, como complemento dos meios de prova já requeridos na p.i., que reitera.”

Saneados os autos, fixando-se então o valor da ação em €1.333,35, pronunciando-se sobre o aludido requerimento, o Tribunal a quo proferiu despacho com o teor seguinte:

“(…) Por intempestiva, não admito, ao abrigo dos artºs 1º, nºs 1 e 2, alínea a), e 63º, nº 1, ambos do C.P.T., e 429º, do C.P.C., a requerida, pela A., a fls. 75 verso, notificação da R. para juntar aos autos “i) a deliberação referida (…) bolsa de recrutamento.”

2. Não se conformando com o assim decidido, apresentou a Autora requerimento de interposição de recurso, finalizando as suas alegações com a conclusão que se segue:

“Única: A decisão recorrida violou o direito da A. à prova, exercido no âmbito do contraditório relativo à contestação e respetivos documentos, de forma tempestiva, pelo que fez errada aplicação dos artºs 3º e 415º do CPC e das normas em que se estribou, os artºs 63º, nº 1, do CPT e 429º, do CPC, salvo o devido respeito.”

Conclui, na procedência do recurso, pela revogação do despacho recorrido, admitindo-se o requerimento de prova.

2.1. Não constam dos autos contra-alegações.

2.2. O recurso foi admitido por despacho de 6 de setembro de 2023, com o seguinte teor:

“Ref.ª 10094938: Por a decisão ser recorrível, por o recurso ter sido interposto tempestivamente, por a recorrente ter legitimidade e por o requerimento de interposição de recurso conter a alegação da recorrente, incluindo as conclusões, admito o recurso interposto pela A. - o qual é de apelação, com subida imediata, em separado, e com efeito meramente devolutivo - cfr. artºs 79º, alínea a); 79º-A, nº 2, alínea d); 80º, nº 2; 81º, nº 1; 82º, nº 1; 83º, nº 1; e 83º-A, nº 2, todos do C.P.T., e 5º, nº 3, da Lei nº 107/2019, de 09.09.”

3. Nesta Relação, O Exmo. Procurador-Geral Adjunto tomou posição nos termos que se seguem:

“No recurso interposto nestes autos em 20.11.2024 pela A. AA, está em causa uma questão exclusivamente de natureza processual, de direito adjetivo (indeferimento, por intempestivo, do requerimento para que a Ré fosse notificada para apresentar documentos que estavam na sua posse).

Assim sendo, no nosso entendimento, não compete ao Ministério Público nesta Instância emitir parecer, nos termos do n.º 3, do art.º 87.º, a contrario, do C.P.T..”


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Cumpre decidir:

II– Questões a resolver

Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635., n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC) – aplicável “ex vi” do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, é a seguinte a única questão a decidir: saber se, face ao regime legal, é fundada a decisão proferida que indeferiu o requerido pela Autora no sentido da notificação da Ré para proceder à junção de documentos.


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III- Fundamentação

A) Fundamentação de facto

Os factos relevantes para a decisão do recurso resultam do relatório a que se procedeu.


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B) Discussão

Como resulta da decisão recorrida, nessa referiu-se apenas que, “por intempestiva, não admito, ao abrigo dos artºs 1º, nºs 1 e 2, alínea a), e 63º, nº 1, ambos do C.P.T., e 429º, do C.P.C., a requerida, pela A., a fls. 75 verso, notificação da R. para juntar aos autos “i) a deliberação referida (…) bolsa de recrutamento.”

No presente recurso, limita-se a Recorrente a invocar que a decisão recorrida violou o seu direito “à prova, exercido no âmbito do contraditório relativo à contestação e respetivos documentos, de forma tempestiva, pelo que fez errada aplicação dos artºs 3º e 415º do CPC e das normas em que se estribou, os artºs 63º, nº 1, do CPT e 429º, do CPC.”

Como resulta do requerimento que a Autora apresentou, se bem o entendemos, a justificação que a Autora apresentou assentará no seguinte: “segundo resulta do documento junto com a contestação (ponto 8 da informação), por deliberação do Conselho de Administração de 28.6.2023 foi autorizada a abertura de nova bolsa de recrutamento para Técnicos Superiores de Serviço Social. Este ponto confirma o artº 14º da p.i. e portanto é de extrema relevância, pelo que importa que o R. seja notificado para juntar aos autos i) a deliberação referida, bem como ii) cópia completa do procedimento de abertura da nova bolsa de recrutamento por ela autorizada e de iii) todos os contratos celebrados ao abrigo dessa bolsa de recrutamento”.

Como o diz, os documentos em causa visariam a prova do que alegou no artigo 14.º da petição inicial, cujo teor é o seguinte: “Mas também resulta que afinal as necessidades do R. são permanentes, de tal forma que o R. contrata profissionais para o exercício das funções de técnico superior de serviço social, continuamente, nomeadamente recorrendo a contratos de emprego-inserção e salários de 600€.”

Não constando dos autos contra-alegações, avançando-se então para o conhecimento da questão que nos é colocada, importa desde logo relembrar que, não obstante como princípio geral o impulso processual e a iniciativa incumbirem às partes[1], se estabelece porém, em particular na fase da instrução do processo e de produção de prova, um dever de cooperação, que impende sobre todas as pessoas, sejam elas partes ou não na causa, no sentido da descoberta da verdade, assim concretizado, desde logo, na obrigação de resposta ao que for solicitado pelo Tribunal, de facultar o que for requisitado ou de praticar os atos que forem ordenados[2].

Dentro do aludido âmbito, no caso particular de se pretender a junção de documentos em poder da parte contrária, estabelece-se no artigo 429.º do CPC: 1 – Quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar. 2 - Se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a notificação.[3]

Então a propósito do artigo 552.º do CPC de 1939, mas que no essencial contém um regime idêntico ao prescrito no atual artigo 429.º, ensinava o Professor Alberto dos Reis[4] que “(…) A parte tem de especificar no seu requerimento: a) Em que consiste o documento; b) Quais os factos que por meio dele intenta provar. A 1ª exigência tem por fim dar a conhecer ao notificado qual o documento que dele se requisita. Portanto a frase “em que consiste o documento” deve entender-se neste sentido: Cumpre ao requerente identificar, quanto possível o documento. (…) A 2ª exigência destina-se, em primeiro lugar, a habilitar o juiz a deferir ou indeferir o requerimento e, em segundo lugar, a fazer funcionar a sanção”.

Aplicando o mesmo critério, fazendo de resto apelo aos ensinamentos do mesmo Ilustre Professor, refere-se no Acórdão desta Relação de 5 de Outubro de 2015[5], evidenciando ainda que o artigo 429.º constitui agora manifestação do denominado princípio da cooperação intersubjetiva plasmado no artigo 7.º do CPC no campo da instrução do processo, que esse “pressupõe que o requerente não pode, por ele, obter o documento, tendo em vista a prova de factos desfavoráveis ao detentor do documento”, cabendo ao juiz “controlar a pretensa idoneidade do documento para a prova de factos de que o requerente tem o ónus da prova, ou que possam infirmar a prova de factos de que o detentor do documento tem o ónus, razão por que, para viabilizar o efectivo controlo judicial, exige o normativo que o requerente identifique tanto quanto possível o documento e especifique os factos que com ele quer provar”.

Do exposto resulta, como mais uma vez assinalado no mesmo Aresto – que nesta parte se segue de perto –, evidenciando que a pertinência da apresentação do documento em poder da parte contrária depende da circunstância de os factos que se visam provar com esse interessarem à decisão da causa, sendo estes os factos essenciais da causa – constitutivos da causa de pedir ou em que se baseiem as exceções invocadas, factos esses que deverão ser alegados pelas partes[6] – e os factos instrumentais – situados “na cadeia dos factos probatórios” e que “permitem chegar aos factos principais que as partes tenham alegado, relativamente aos quais inexiste qualquer vinculação temática [artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do CPC]” –, sem prejuízo, como aí também se refere[7], dos casos excecionais em que o juiz pode oficiosamente introduzir factos principais na causa.

Face ao regime enunciado, voltando então ao caso, constatamos que o Tribunal de 1.ª instância não fez uma qualquer apreciação do regime que antes se mencionou, não apreciando assim se estariam ou não justificados os pressupostos que também enunciámos, limitando-se a avançar, como único fundamento para a decisão, que não admitia, “ao abrigo dos artºs 1º, nºs 1 e 2, alínea a), e 63º, nº 1, ambos do C.P.T., e 429º, do C.P.C.”, o requerido, por ser intempestivo.

Sendo então esse o único fundamento invocado na decisão, desde já diremos que não acompanhamos essa decisão.

Na verdade, resultando, é certo, do n.º 1 do artigo 63.º do CPT que é mencionado que com os articulados “devem as partes juntar os documentos, apresentar o rol de testemunhas e requerer quaisquer outras provas”, daí não resulta que não seja aplicado o regime que se estabelece no CPC, de aplicação subsidiária, sendo que, não resultando do seu artigo 429.º qualquer menção a prazo para se requerer o meio de prova a que esse alude, valerá, porém, o regime que se estabelece no artigo 423.º, em particular, no que ao caso importa, o seu n.º 2, assim quado desse consta que, “Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado”. Ou seja, lembrando-se, aliás, que a própria necessidade de uma parte poder fazer uso de documento na posse da parte contrária pode apenas ocorrer já depois de ter oferecido o seu articulado, no que ao caso importa, em face do regime que se mencionou, não se poderá indeferir essa pretensão, por intempestividade, se a coberto desse mesmo regime.

Coisa diversa, mas que extravasa o âmbito deste recurso (pois que incide sobre os fundamentos invocados na decisão recorrida), é a questão, sobre a qual o Tribunal recorrido não se pronunciou (o que aliás se compreende pois que a afirmação de que seria intempestivo tornou prejudicial a sua apreciação), de saber se, em face do regime aplicável, esse que antes mencionámos, deve ou não ser deferida a pretensão da Autora.

Por decorrência do exposto, na procedência do recurso, impõe-se revogar a decisão recorrida, devendo o Tribunal de 1.ª instância apreciar, em face do regime legal antes mencionado, se deve ou não ser deferida a pretensão da Autora / aqui recorrente.


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Sumário – a que alude o artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

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IV - DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes da Secção Social da Relação do Porto, na procedência do recurso, em revogar a decisão recorrida, devendo o Tribunal de 1.ª instância apreciar, em face do regime legal aplicável, se deve ou não ser deferida a pretensão da Autora / aqui recorrente.

Custas nos termos e proporção que vier a ser definida a final.

Porto, 17 de março de 2025

(assinado digitalmente)

Nélson Fernandes

Sílvia Gil Saraiva

Rui Penha

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[1] Artigo 5.º do CPC

[2] Artigo 417.º n.º 1 do CPC, antes artigo 519.º n.º 1.

[3] Veja-se, com particular interesse, o Acórdão desta Relação de 28 de Abril de 2014, disponível em www.dgsi.pt.

[4] In Código de Processo Civil Anotado, Volume IV, Coimbra, 1987, págs. 38/9.

[5] Disponível em www.dgsi.pt, que se cita com exclusão de notas de rodapé.

[6] Artigo 5.º, n.º 1, do CPC.

[7] Por apelo a Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa à luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª ed., pág. 205. Quanto aos factos complementares e concretizadores de outros que as partes tenham alegado [artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do CPC] não são eles, em si, objeto da instrução a efetuar, pois que resultam da instrução efetuada.