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COMPRA E VENDA
COISA DEFEITUOSA
ANTERIORIDADE DO DEFEITO
ÓNUS DA PROVA
Sumário
I. No regime da venda de coisa defeituosa, previsto no n.º 1 do art. 913.º do CC, impende sobre comprador o ónus da prova de que o vício já existia aquando da venda, ou seja, a entrega da coisa com defeito (art° 342° nº 1 do Código Civil), presumindo-se, quanto à culpa, a culpa do vendedor (artº 799 nº1 do Código Civil). II. Não sendo aplicável o regime jurídico da venda de bens de consumo previsto no DL 67/2003, de 8/4, nem o disposto no artº 921º do C. Civil, a procedência do peticionado pela Autora dependia da prova - que a onerava, enquanto factualidade constitutiva do direito que suportava o pedido (artº 342º, nº 1, do CC) -, da anterioridade do defeito de fabrico do veículo em relação à concretização do contrato e à entrega do veículo.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
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I- Relatório ( que se transcreve): “ EMP01..., UNIPESSOAL, LDA., com NIPC ...72, com sede na Avenida ..., ..., ..., ...,
Veio intentar AÇÃO DECLARATIVA DE CONDENAÇÃO sob a forma de Processo COMUM, contra EMP02... – SOCIEDADE FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A., com sede em ... – apartado ..., ... ...
E EMP03..., S.A., com sede em Estrada Nacional, nº ..., Apartado ...27, ... ....
Na pendência da ação, foi admitida a intervenção principal provocada, como associada das Rés, de EMP04..., S.A., NIPC ...24, com sede na Rua ..., Zona Industrial ..., ... ....
A Autora alegou nomeadamente que, não obstante estarem conscientes dos problemas/defeitos denunciados, as Rés ainda não procederam em tempo razoável à sua eliminação em definitivo, sendo as Rés, ainda, responsáveis por todos os danos eventuais e futuros que forem decorrentes dos defeitos apontados, bem sabendo as Rés que tais problemas/defeitos são de origem e aos quais a Autora é totalmente alheia.
Pugna a final que a presente ação seja julgada procedente e, em consequência, sejam as Rés solidariamente condenadas a:
A) pagar à Autora desde já a quantia de 1.500,00€ a título de desvalorização pela utilização do veículo até à data de instauração da ação com defeitos, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento;
B) realizar as diligências/intervenções/reparações necessárias à eliminação dos defeitos citados, no veículo automóvel ..-..-XM, objeto da presente ação, reputando-se como prazo razoável, um prazo nunca superior a 120 dias para a realização das mesmas, com eliminação em definitivo dos defeitos, mais devendo ser dado um prazo nunca inferior a 60 dias à Autora para verificação da eliminação em definitivo dos defeitos;
C) Em alternativa ao pedido em B), ou seja, no caso de as Rés não cumprirem o prazo da eliminação dos defeitos ou cumprindo-o e os defeitos não ficarem definitivamente eliminados, na situação em que a Autora opte pela aquisição do veículo no final do contrato de ..., pagar à Autora a quantia de 8.500,00 € acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento, valor que corresponde à desvalorização do veículo, em estado novo, deduzido do valor reclamado na alínea A);
D) pagar à Autora a quantia de 1.000,00 € a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento;
E) pagar à Autora a quantia de 500,00 € a título de indemnização pelos danos patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento;
F) pagar à Autora indemnização a liquidar em sede de execução de sentença por todos os eventuais e futuros danos decorrentes da atual situação que é causa de pedir nesta ação.
Regularmente citadas as Rés, incluindo a ora Interveniente Principal associada às Rés, vieram as mesmas apresentar contestações, deduzindo exceções e pugnando pela improcedência da ação.
A Autora deduziu as respetivas respostas.
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Foi proferido Despacho Saneador (cfr. Refª ...74) a fixar o Valor da Ação em € 11.500,00 €, e a julgar improcedentes as exceções dilatórias de ilegitimidade passiva da 1ª Ré e de ineptidão da petição inicial.”
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo, conforme se alcança da respetiva ata.
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Após a competente audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Nos termos e pelos fundamentos supra-expostos, decide-se julgar a presente Ação Improcedente, por Não provada, e, em consequência:
A) Absolver as Rés EMP02... – SOCIEDADE FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A., e EMP03..., S.A., e a Interveniente Principal, como associada das Rés, EMP04..., S.A., dos pedidos formulados pela Autora EMP01..., UNIPESSOAL, LDA.;
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B) Fixar Custas a cargo da Autora EMP01..., UNIPESSOAL, LDA., e fixar a taxa de justiça nos termos tabelares do Regulamento das Custas Processuais (cfr. artigos 527º/1,1ªparte,2, 529º/2 e 607º/6 todos do Código de Processo Civil – CPC) ”.
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É desta decisão que vem interposto recurso pela A, a qual termina o seu recurso formulando as seguintes conclusões, já aperfeiçoadas ( que se transcrevem):
[…]
33º Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação, entre outras, das normas constantes dos artigos, 874º, 913º, 914º, 916º e 921º todos do Código Civil.
34º Como claramente vai exposto neste recurso, o veículo em causa, ..-..-XM, padece de defeitos de origem, ruídos das portas e trepidação metálica, desde do início, ou seja, com poucos quilómetros de rodagem.
35º Por via desse ruído (de origem) – ANORMAL - estamos perante uma compra venda de coisa defeituosa, logo aplicável ao caso em concreto as normas supracitadas, tendo no caso, o comprador, aqui Recorrente e Autora, o direito de exigir ao vendedor, aqui Recorrida e 2ª Ré, a reparação da coisa, ou seja, do veículo ..-..-XM.
36º Bem como está consagrado o direito ao comprador, aqui Recorrente e Autora, de poder exigir do vendedor, aqui Recorrida e 2ª Ré, a garantia de bom funcionamento da coisa vendida, desta feita o veículo ...XM, conforme o previsto no artigo 921º do Código civil.
37º Concluindo, em conformidade com o que se expôs a sentença recorrida padece de nulidade, nos termos do disposto pelo artigo 615º, nº 1, al. c) do CPC, por ser evidente a oposição real entre os fundamentos de facto e de direito da decisão e a própria decisão.
38º Pelo exposto, entende a Recorrente, que deve ser julgado procedente o presente recurso e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida.
39º Devendo ser substituída por outra que declare a presente ação totalmente procedente e em consequência serem as Recorridas, condenadas como o peticionado.”
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Contra-alegaram a R “EMP02...,SA” e a interveniente “ EMP02... (EMP02...), pugnando pela improcedência do recurso.
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O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido após os vistos.
II- FUNDAMENTAÇÃO
As questões a decidir no presente recurso, em função das conclusões recursivas e segundo a sua sequência lógica, são as seguintes: A) - saber se existe nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos de facto e de direito, nos termos da al. c) do nº1 do art. 615º do CPC; B) – saber se a matéria de facto deve ser alterada e, caso o seja, se contende com o mérito da causa e em que medida.
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III-
Para a apreciação das questões elencadas, é importante atentar na matéria que resultou provada e não provada, que o tribunal recorrido descreveu nos termos seguintes:
“ A) Da PETIÇÃO INICIAL sob a Refª ...54
1º A Autora é Locatária do veículo automóvel ..-..-XM, marca ..., modelo ..., com chassi nº ..., ao abrigo do contrato de Aluguer de Longa Duração nº ...51 e conforme certificado de matrícula junto à PI como Doc. 1.
2º A 1ª Ré é Locadora ao abrigo do mesmo contrato de ... nº ...51.
3º e 4º Ao abrigo deste referido contrato de ... nº ...51, a 2ª Ré é Fornecedora, conforme teor das condições particulares e gerais do contrato de Aluguer de Longa Duração junto à PI como Doc. 2.
5º Em 25/09/2020, a 1ª Ré comprou o veículo automóvel ..-..-XM, no estado de novo, à 2ª Ré, para simultaneamente efetuar o referido contrato de ... com a Autora.
6º O referido contrato de ... tem por objeto o veículo ..-..-XM, sendo que foi da responsabilidade da Locatária, aqui Autora, a escolha do veículo em causa, bem como foi a Locatária (Autora) que escolheu o Fornecedor, aqui 2ª Ré, e com esta acordou o preço, características, condições de pagamento, data e local de entrega do veículo, bem como tudo o mais que ao veículo em causa dissesse respeito, tudo conforme teor da cláusula 1ª das condições gerais do Contrato de ... nº ...51 de 25/09/2020.
7º O contrato foi celebrado por 48 meses, sendo que findo este prazo tem a Autora o Direito de Aquisição do veículo ..-..-XM, de acordo com o teor da cláusula 11º das condições gerais, e das condições particulares.
8º Existe da parte da Autora uma séria expetativa de vir a adquirir definitivamente o veículo em causa, tendo inclusive o direito de opção.
10º É a Autora que primeiramente tem interesse/obrigação em zelar pelo veículo em causa.
11º Por via daquele negócio celebrado no referido dia 25/09/2020, o legal representante da Autora, AA, levantou o veículo em referência nas instalações da 2ª Ré, mais concretamente no concessionário sediado em ....
12º Logo nos primeiros dias de utilização do veículo, o “Utilizador Habitual” do mesmo, AA, notou um barulho nas portas.
13º AA, poucos dias após ter rececionado o veículo, deslocou-se às instalações da 2ª Ré, em ..., e denunciou o alegado problema.
14º Tendo em conta o seu dever de zelo, o “Utilizador Habitual” foi desde o início informando a 2ª Ré relativamente a problemas com o veículo, sempre na expetativa desta os resolver.
15º Nessa altura, reportou o barulho aludido em 12º ao comercial BB e, seguidamente desde então, a situação foi sempre acompanhada pelo engenheiro CC e, mais tarde, também pelo Chefe de Oficina DD, todos funcionários da 2ª Ré.
16º Nessa altura foram reportados alegados defeitos existentes nas portas do veículo, sendo que essa denúncia ficou registada.
17º Perante tal denúncia ou reclamação, o Sr. engenheiro CC informou o “Utilizador Habitual” AA de que este teria de deixar o referido veículo ..-..-XM nas instalações da 2ª Ré, a fim de esta resolver a situação, sendo que nessa altura o veículo foi deixado nas instalações da 2ª Ré.
18º Tal veio a acontecer várias vezes, ou seja, foram várias as vezes em que o veículo ficou depositado nas instalações da 2ª Ré, em ..., porque o “Utilizador Habitual” AA continuou a alegar defeitos de origem existentes no veículo ..-..-XM.
21º O veículo ..-..-XM foi deixado várias as vezes nas referidas instalações da 2ª Ré.
23º AA foi denunciando alegados, mas inexistentes, defeitos, quer junto da Locadora, 1ª Ré, quer junto do Fornecedor, 2ª Ré.
25º AA foi deixando o veículo nas referidas instalações da 2ª Ré, conforme instruções desta.
26º O concessionário, 2ª Ré, sempre se mostrou disponível para resolver o alegado problema.
27º AA foi enviando emails quer para a 1ª Ré, quer para a 2ª Ré, quer para a EMP02..., dando nota de todo o sucedido.
28º Esses Emails foram enviados a: ..........@..... – email oficial da 2ª Ré, ..........@..... – email oficial da 1ª Ré, ..........@..... – email oficial da EMP02..., e ..........@..... - email do comercial da 2ª Ré, BB.
29º Em 30 de Maio de 2022, a 1ª Ré informa a Autora de que tem conhecimento de que a 2ª Ré se encontra a acompanhar toda a situação desde o início, Setembro de 2020.
31º Numa das intervenções que a 2ª Ré fez ao veículo ..-..-XM, a mesma 2ª Ré tomou a decisão de colocar uma fita para tentar eliminar o alegado, por AA, ruído de atrito das borrachas entre as portas e a carroçaria.
32º A 2ª Ré informou AA que esta solução, colocação das fitas, seria uma solução provisória até haver uma solução definitiva para o alegado, mas inexistente na ótica da 2ª Ré, problema.
33º Recentemente, por referência à data de instauração da presente ação, AA entrou novamente em contato com a 2ª Ré, no sentido de tentar a resolução definitiva dos alegados, mas inexistentes na ótica da 2ª Ré, problemas/defeitos.
34º A 2ª Ré respondeu a AA que o caso não estava esquecido e que estavam a tentar encontrar uma eventual solução junto da EMP02....
35º A 2ª Ré informou a Autora de que estava em aberto um “Case Module” (pedido de ajuda à EMP02...) e informou-a de que o processo continuava pendente.
38º A Autora adquiriu um veículo automóvel, novo, topo de gama e duma conceituada marca de mercado.
43º A Autora cumpriu pontualmente todos os seus pagamentos e obrigações estabelecidas com a 1ª Ré.
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B) Da RESPOSTA da Autora, sob a Refª ...55
8. Entre Autora e 1ª Ré vigora um contrato (... nº ...51) que acarreta direitos e obrigações para ambas as partes.
9. A Autora está obrigada a pagar pontualmente as respetivas prestações, e a 1ª Ré está obrigada a assegurar que o veículo cumpra com a qualidade e as características contratadas.
10. A 1ª Ré, como Locadora, cede o uso e a fruição do veículo à Locatária e ora Autora. *
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Da discussão resultaram NÃO provados os seguintes Factos:
A) Da PETIÇÃO INICIAL sob a Refª ...54
12º Logo nos primeiros dias de utilização do veículo, o “Utilizador Habitual” do mesmo, AA, notou um barulho anormal nas portas.
13º Tal situação era anormal para um carro novo, de alta gama e de uma conceituada marca.
18º O Veículo ficou depositado nas instalações da 2ª Ré, em ..., para resolver os defeitos de origem existentes no veículo ..-..-XM.
19º Os problemas/defeitos não ficaram resolvidos, nem nessa altura (dias após a entrega do veículo – 25/09/2020) nem noutras datas em que se sucederam intervenções.
20º Manteve-se os barulhos anormais das portas.
21º O veículo ..-..-XM foi deixado várias vezes nas referidas instalações da 2ª Ré para resolver os problemas/defeitos existentes nas portas.
22º Até ao dia de hoje, os problemas/defeitos de origem persistem, i.e., as portas continuam a fazer vários barulhos anormais quer ao nível das borrachas quer ainda fazendo uma trepidação metálica.
24º Quando AA levantava o veículo das instalações da 2ª Ré, logo voltava a sentir o barulho anormal das portas e a trepidação.
29º Em 30 de Maio de 2022, a 1ª Ré informa a Autora de que tem conhecimento dos problemas/defeitos de que o veículo AC-..-XM padece.
35º A 2ª Ré informou a Autora de que os defeitos ainda não foram reparados.
37º O veículo ..-..-XM, desde a data da sua entrega à Locatário, ora Autora, não corresponde na íntegra às características contratadas conforme nota de encomenda junta à PI como Doc. 10, pela razão de padecer de defeitos de origem a nível das portas, não se coadunando tais defeitos com as características de conforto contratadas.
38º A Autora, ao adquirir um veículo automóvel, novo, topo de gama e duma conceituada marca de mercado, não imaginava que este pudesse padecer de um defeito de origem de tal monta que, mesmo após várias intervenções levadas a cabo pelo concessionário da EMP02..., aqui 2ª Ré, os defeitos persistissem.
39º A Autora utiliza o veículo ..-..-XM desde do início com defeitos.
40º Tais defeitos, desde início e na sua continuação, acarretaram e acarretarão prejuízos e desvalorização do mesmo.
41º O veículo ..-..-XM, só pelo simples facto de padecer de tais defeitos de origem, encontra-se já desvalorizado desde a data da sua entrega à locatária e ora Autora.
42º Essa desvalorização, no início do contrato de ..., ascende a um valor nunca inferior a 10.000,00 € (em estado novo).
43º O nível de qualidade e conformidade do veículo em causa não corresponde ao normalmente exigível e contratado.
44º A Autora utiliza o veículo em apreço desde o início com defeitos, sendo que nesta data a sua desvalorização por tal utilização é de, pelo menos, 1.500,00 €, correspondente a 2 anos de uso em estado defeituoso.
45º Os defeitos do veículo causaram à Autora despesas que esta teve de suportar, nomeadamente despesas com deslocações, privação de uso do veículo, e tempo perdido com telefonemas, emails, etc., num valor global de 500,00 €.
46º O legal representante da Autora e “Utilizador Habitual” do veículo em causa, AA, sofreu, por via dos defeitos do mesmo veículo, frustração, transtornos, arrelias e tristeza, tudo acrescido do inerente desgaste emocional.
48º Não obstante estarem conscientes dos problemas/defeitos denunciados, as Rés ainda não procederam em tempo razoável à sua eliminação em definitivo.
50º As Rés bem sabem que tais problemas/defeitos são de origem. *
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B) Da RESPOSTA da Autora, sob a Refª ...55
11. O veículo em causa padece de defeitos de origem, pelo que a 1ª Ré está a ceder esse uso e fruição à Autora de forma defeituosa.”
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A- saber se existe nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos de facto e de direito, nos termos da al. c) do nº1 do art. 615º do CPC: ( conclusão 31º a 37º).
A 1ªR e interveniente, nas contra-alegações, pronunciaram-se negativamente.
Foi proferido despacho nos termos do art. 617º do CPC apenas se referindo genericamente que não ocorre qualquer nulidade.
Vejamos.
A fundamentação da sentença tem regulamentação específica na norma do artigo 607º do CPC, que dispõe: (…)
“2. A sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, fixando as questões que ao tribunal cumpre solucionar. 3. Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. 4. Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
Dispõe o Artigo 615º, nº1, alínea c), que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica pelo que se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição – cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 11.1.94, Cardoso Albuquerque, BMJ nº 433, p. 633, do STJ de 13.2.97, Nascimento Costa, BMJ nº 464, p. 524 e de 22.6.99, Ferreira Ramos, CJ 1999 – II, p. 160.
Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando – embora mal – o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos – cfr. Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, 2000, pg. 298.
Na conceção de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio da Nóvoa «não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro de construção do silogismo judiciário (…)
(…) a lei refere-se, na al. c) do art. 668 ( atual 615º), à contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão. Neste caso, efetuada por despacho a correção adequada, a contradição fica eliminada. Nos casos abrangidos pelo art. 668º,nº1, c) ( atual 615º, c)) há um vício real no raciocínio do julgador ( e não um simples lapsos calami do autor da sentença): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos direção diferente”
Por outras palavras, se a decisão está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.3.2001, acessível em www.dgsi.jstj/pt.
Em suma, está sedimentada na doutrina e na jurisprudência a ideia de que esta nulidade se verifica quando existe um vício real no raciocínio do julgador, na medida em que a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue direção distinta.
Analisada a estrutura da decisão e as conexões existentes entre os motivos de facto e de direito a que faz apelo e o veredicto final verifica-se que existe uma lógica na arquitetura da decisão e, dessa forma, a invocada nulidade não se verifica.
Aliás, no conjunto de factos, considerações e conclusões tiradas pela recorrente parece incontroverso que a mesma não coloca em causa o erro de construção do silogismo judiciário mas antes se dirige claramente à injustiça do decidido e aponta para determinada solução jurídica em face dos factos provados ainda que não alterados.
Sem embargo, nesse caso, e como já referimos, se a decisão está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma.
Assim sendo, não se verifica qualquer nulidade da decisão nos termos do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
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B – Da alteração da matéria de facto
Nos termos do artigo 662º do NCPC, a decisão proferida sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Para que o tribunal se encontre habilitado para proceder à reapreciação da prova, o artigo 640º, do CPC, impõe as condições de exercício da impugnação da matéria de facto.
Como se vê das alegações e conclusões de recurso, desde logo, e além do mais, a recorrente questiona basicamente a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido a respeito da matéria de facto dada como não provada e pretendendo a Apelante seja dada como provada: todos os factos dados como não provados e com referência à enumeração da petição inicial ( com exceção dos nº45 e 46 ali elencados).
Para o efeito, invocou os mesmos meios de prova ponderados na sentença, mas negando o alcance e sentido que lhe foram dados pelo tribunal recorrido.
Mais concretamente, entende que quer da prova documental, quer da prova testemunhal ( depoimentos das testemunhas DD, CC e EE), quer dos factos vertidos na contestação da 2ª Ré ( arts. 32º e 33) e que considera serem declarações confessórias, retira-se a prova daquela matéria de facto alegada, nomeadamente: os barulhos no veículo são anormais ( as testemunhas falam em “ barulho esquisito”, “ estranho”), e logo concluiu são defeitos de origem e encontram-se por resolver.
Aduz ainda que a colocação das fitas pela 2ª ré, feita de modo provisório, por si, desvalorizam o veículo, com diminuição do seu valor e frustram as expectativas de conforto que tinha quando comprou um carro novo.
O tribunal fundamentou as respostas positivas e negativas, em simultâneo e do seguinte modo:
“ Factos PROVADOS e NÃO provados 1) Este Tribunal baseou-se, desde logo, no teor das declarações de parte prestadas pelo legal representante e sócio-gerente da Autora, AA, empresário do ramo comercial, o qual confirmou genericamente a versão da Autora, quer na parte supradada como provada quer na parte supradada como não provada. No que concerne aos factos dados como não provados, o declarante depôs sem credibilidade, sem verosimilhança, sem convicção e sem segurança, prestando declarações “desapegadas” das regras da experiência e do normal acontecer do funcionamento de veículos automóveis. O legal representante e sócio-gerente da Autora insistiu na alegada existência de problemas/defeitos do veículo no que concerne a barulhos alegadamente “anormais” nas portas e concretamente na zona de atrito entre as respetivas borrachas e a carroçaria, os quais não obtiveram qualquer adesão de prova seja por via testemunhal seja por via documental/pericial. 2) Por sua vez, as testemunhas arroladas pela Autora (também arrolada pelas 1ª e 2ª Rés), BB, coordenador de vendas, o qual disse exercer funções na EMP03..., S.A., na Delegação ... desde ../../2020 e, anteriormente, ter exercido funções como vendedor de ligeiros de passageiros na Delegação ..., CC, engenheiro mecânico, o qual disse ser o responsável pela Delegação de ... da EMP03... - Comércio de Automóveis, S.A., desde o ano de 2011 e ser o chefe de oficina, bem como conhecer o legal representante da Autora por ser cliente na EMP03..., S.A. de ..., e DD, mecânico, o qual disse exercer funções na sociedade Ré EMP03..., S.A., desde o ano de 1998, foram unânimes em confirmar as reclamações do legal representante da Autora, mas também unânimes em considerar que o veículo em causa não padecia de quaisquer defeitos de origem nos termos descritos pela Autora na sua petição inicial; admitiram a existência de barulhos normais no funcionamento das portas, mas que desapareciam poucos segundos após ligar a ignição do veículo e o mesmo iniciar a sua marcha, o que até foi confessado pelo legal representante da Autora. Estas testemunhas depuseram com credibilidade, verosimilhança, convicção e/ou segurança, e com conhecimento direto dos factos objeto da presente ação. Por seu turno, a testemunha arrolada só pela Autora, FF, escriturário ao serviço da sociedade Autora desde Janeiro de 2020, não mereceu credibilidade por parte deste Tribunal por nunca ter conseguido manter um discurso isento, imparcial e distante da sua relação laboral de dependência para com a sua entidade patronal e ora Autora nos presentes autos. Por sua vez, a testemunha arrolada pela 1ª Ré, GG, disse exercer funções na sociedade Ré EMP02... -Instituição Financeira de Crédito, S.A., desde o ano de 2009 na área do comércio e contencioso, e prestou declarações que se limitaram a descrever o seu conhecimento administrativo ou interno acerca da celebração e da vigência do contrato de ... entre Autora e ora 1ª Ré. Finalmente, quanto às testemunhas arroladas pela Interveniente Principal, EMP04..., S.A., HH, engenheiro mecânico e gestor, disse exercer funções de gestor do Gabinete de Apoio ao Cliente na EMP04..., S.A., II, engenheiro mecânico, disse ser o responsável pelo Departamento Técnico na EMP02... - Instituição Financeira de Crédito, S.A., e EE, consultor técnico, disse exercer funções na sociedade EMP02... - Instituição Financeira de Crédito, S.A., desde o ano de 2014; todas prestaram declarações sobre o seu conhecimento administrativo ou interno acerca da situação objeto dos presentes autos, mas, de acordo com as suas áreas de formação académica e profissional, acabaram por declarar e concluir que, face aos “sintomas” do veículo alegados pelo legal representante da Autora, o veículo em causa não padecia de quaisquer defeitos de origem nos termos descritos pela Autora na sua petição inicial. Estas testemunhas depuseram com credibilidade, verosimilhança, convicção e/ou segurança.
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3) Este Tribunal, para dar como provados e não provados os factos acima vertidos, apoiou-se ainda no teor dos meios de prova documentais/periciais juntos aos autos. Tais documentos não foram impugnados na sua genuinidade e/ou autenticidade, foram apreciados pelas partes na estrita observância do princípio do contraditório (artigo 3º/3 do Código de Processo Civil - CPC), apresentando as mesmas diferentes interpretações no que concerne aos respetivos conteúdos e às consequências jurídicas que dos mesmos podem ser retiradas, as quais este Tribunal terá de apreciar em sede de decisão e desde logo já apreciou para elencar a matéria fáctica provada e não provada.
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Face ao supra-exposto e atendendo às declarações de parte do legal representante da Autora, e das testemunhas comuns à Autora e às 1ª e 2ª Rés, e das testemunhas da Interveniente Principal, uma vez conjugadas com os meios de prova documentais/periciais nos termos supradescritos, cabendo o ónus da prova à ora Autora (artigo 342º/1 do Código Civil), restou a este Tribunal a solução de considerar NÃO provados os factos constitutivos do direito alegado pela mesma Autora.
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4) Em redundância ao acima exposto em 1), 2) e 3), quanto aos factos considerados como não provados e acima elencados, e quanto a quaisquer outros factos que estejam em oposição com os que foram supradados como provados e/ou a quaisquer outros factos que não tenham ficado, desde logo, prejudicados pelos que acima foram dados como provados, tal asserção resultou de todos os argumentos/fundamentos acima expendidos e cujo teor aqui se dá por reproduzido, bem como da ausência e/ou da insuficiência de mobilização probatória, não tendo esta sido suscetível de convencer este Tribunal da sua efetiva verificação e/ou veracidade fora de qualquer dúvida razoável.
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5) Por último, há que trazer também à colação as regras do ónus da prova descritas no artigo 342º do Código Civil: - no que concerne ao nº 1 da ora citada norma legal, cabe salientar que a Autora NÃO fez prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
Vejamos. Prima facie, importa ter presente que a matéria impugnada em apreço diz diretamente respeito ao apuramento das características, natureza e causas dos ruídos reportados no veículo fornecido à autora pela 2ª ré, no âmbito do contrato de “...” realizado entre autora e 1ª R e que motivaram o recurso daquela à oficina e serviços da 2ª Ré, a fim de se proceder à respetiva reparação e eliminação de tais ruídos.
A resposta a tais questões fácticas referentes à determinação da(s) causa(s) dos ruídos e sua caracterização apresentadas pelo veículo da A. demanda conhecimentos técnicos especializados, nomeadamente formação mecânica no âmbito automóvel, que, regra geral, não são do domínio de um leigo, desconhecedor dessa matéria específica.
Para o efeito, a recorrente invoca como suporte da sua pretensão impugnatória os depoimentos testemunhais- duas testemunhas, funcionários da 2ª Ré- mecânico e engenheiro mecânico; e EE, consultor técnico na EMP02..., e todos também ponderados pelo tribunal a quo, dando-lhe outra leitura, como veremos.
Cumpre, pois, analisar das razões de discordância invocadas pela apelante e se as mesmas se apresentam de molde a alterar a facticidade impugnada, nos termos por si invocados.
Antes, porém, de iniciarmos essa análise importa deixar assinalado que, após análise dos depoimentos prestados em audiência de julgamento e indicados pelas partes e análise de toda a prova documental produzida, desde já podemos adiantar ser de sufragar na íntegra a valoração/apreciação explicitada pelo Tribunal recorrido, o qual – contrariamente ao propugnado pelo recorrente –, em obediência ao estatuído no art. 607º, n.º 4 do CPC, fez uma análise crítica objetiva, articulada e racional da globalidade da prova produzida, que se mostra condizente com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, logrando alcançar nos termos do n.º 5 do citado normativo uma convicção quanto aos factos em discussão que se nos afigura adequada, lógica e plausível, em termos que nos merece total adesão.
Vejamos, então, em concreto, os argumentos da recorrente.
Em relação aos depoimentos das testemunhas DD, mecânico desde 1998, e CC, engenheiro mecânico, ambos a prestar funções na 2º ré e EE, funcionário da interveniente “EMP02...”, e apesar de se referirem a “ barulhos esquisitos e estranhos”, na verdade os depoimentos não poderão ser valorados de forma estanque e deverão ser apreciados como um todo, não se podendo valorar menções das testemunhas de forma desgarrada e descontextualizada.
E na verdade, a recorrente olvida o demais depoimento de cada uma dessas testemunhas, atendo-se apenas a partes dos mesmos.
Vejamos cada um dos depoimentos dessas testemunhas:
- depoimento da testemunha DD, o qual, no decurso do seu depoimento, terá referido “ barulho esquisito” e que “ barulho da carroçaria das portas está por resolver” e que “ está aberto case module”. Daqui a recorrente extrai a conclusão de se tratar de um problema anormal, logo “é defeito de origem”, aludindo às fitas colocadas de forma provisória “até solução definitiva para o problema/defeito”, quando a testemunha não utilizou sequer tal expressão “ defeito de origem” ou “ anormal”.
Sem embargo, a apelante olvida a parte do depoimento da mesma testemunha em que refere que, na sua ótica, o ruído que faz o veículo em causa é comum a outros veículos, “ …uns mais do que outros”, destacando inclusive que as queixas de ruídos em carros híbridos são escassas. Mas explica que “ É assim, na verdade é um barulho que nota-se mais nuns do que noutros. Nota-se mais em carros ... como é que eu vou explicar, carros mais compridos, maiores. Pronto, é uma classe, é um carro com alguma dimensão. Nota-se mais um bocadinho. Há outros que, mesmo sendo grandes, nota-se menos ou mais, mas mais talvez nos que são … híbridos. Porquê? Porque têm uma bateria e … talvez seja por isso, eu não, não posso afirmar que…”.
Ainda refere a mesma testemunha que o incómodo dos ruídos não é igual para todas as pessoas, dependendo da sensibilidade de cada um ( e referindo-se a um dos modelos que mais ruído faz, atentas as suas dimensões, o ... afirmou “ quem for mais sensível nota”).
Em suma: na ótica desta testemunha, o ruído no veículo em causa explica-se por se tratar de um modelo de grandes dimensões e híbrido, ruído esse que ocorre em todos os veículos de modelos maiores e híbridos, uns mais do que outros, sendo certo que o incómodo será mais para umas pessoas do que para outras, dependendo da sensibilidade de cada um. Ou seja, cremos que, apenas uma hipótese se perfila, atento o teor de todo o depoimento da testemunha e dentro das regras da normalidade dos comportamentos: para esta testemunha trata-se de um ruído normal para aquele tipo de veículo, não sendo defeito de origem ou de fabrico, conclusão diversa da apelante.
- quanto ao depoimento da testemunha CC- o qual, no decurso do seu depoimento, terá referido “ barulho estranho” e que “fita colocada é provisória até solução definitiva” e caso continua em aberto até resposta da “EMP02...”. Daqui a recorrente extrai a conclusão de se tratar de um problema anormal, logo é defeito origem.
Sem embargo, a apelante olvida a parte do depoimento da mesma testemunha que se realça quando afirma o seguinte, a propósito da colocação das fitas: “ Deve ter sido. Eu não tenho, eu não tenho outra maneira de terminar o ruído. Não há outra maneira. É um ruído... ouve-se mais nos carros elétricos. Híbridos, se calhar sim. Porque aquilo assim qualquer carro faz mais ou menos faz. Todos os carros torcem e aquela fricção entre as borrachas vai fazer sempre.” ( sublinhado nosso).
Mais: “ “como um carro elétrico ouve-se tudo….Consegue-se ouvir, em baixa rotação, sempre que vai devagarinho. A força é impercetível”.
Em suma: a explicação desta testemunha é a de que os referidos ruídos resultam da torção natural da carroçaria do veículo, e que esse tipo de comportamento é frequente em qualquer automóvel, especialmente em modelos de grandes dimensões e híbridos, especialmente em condições de baixa rotação ou em trajetos curtos, onde o motor elétrico ou híbrido é mais silencioso e amplifica outros sons naturais do veículo. Afirmou de modo impressivo e com referência ao ruído do veículo sub judicio “ é característico” daquele tipo de veículo.
Ou seja, para esta testemunha não se trata de um qualquer defeito de fabrico e de origem, mas um ruído normal de utilização do veículo e característico deste género e tipo de veículo em causa.
Esta testemunha explicou a razão de ter colocado fitas: “para minimizar o ruído”, “… não tinha outra forma”.
A apelante refere que a testemunha afirmou que quando o dono vender terá de alertar o comprador que o veículo tem fitas nas portas e que não são de origem e são para minimizar os ruídos.
Contudo, esta referência está descontextualizada, porquanto aquela afirmação tem lugar enquanto confirmação à sugestão feita pela mandatária da autora, o que se comprova com o seguinte excerto: “ Quando vai comprar um ...… CC: Não vem. Advogada: Não tem essa característica. Se se quiser vender este carro a um terceiro tem que se alertar desta situação? CC: Alertar. Dizer que aquele carro faz um ruído da borracha e tem aquilo para minimizar.”.
Acresce dizer que esta testemunha ainda refere no seu depoimento que a solução correspondente à colocação das fitas existe em outras marcas, e em alguns casos, inclusivamente, oriunda de fábrica, sendo certo que a 2ª Ré também já adotou tal solução em mais três casos do seu conhecimento, da marca ....
- quanto ao depoimento da testemunha EE, consultor técnico na EMP02..., com efeito, no decurso do seu depoimento, afirmou que perante o pedido de ajuda a EMP02... pediu à ... recomendações para a 2ª ré levar a cabo procedimentos que indicaram, mas após houve novo contacto da ré afirmando que continuavam os ruídos. Propôs-se uma deslocação presencial de um técnico da EMP02... e nada foi dito pela 2ª ré, pelo que assumiram como resolvido o problema reportado. Referiu ainda que a colocação das fitas não foi recomendada pela EMP02... e que não resolvem qualquer problema de ruídos, logo retirando-as os ruídos vão reaparecer. Afirmou ainda que “ os barulhos aparecem logo de início” e denúncia foi feita nos dias seguintes a ter sido entregue o veículo. Daqui a recorrente extrai a conclusão de se tratar de um barulho anormal, logo é defeito origem e está por resolver.
Sem embargo, a apelante olvida a parte do depoimento da mesma testemunha que se realça quando afirma que o ruído enumerado no “case module” é diferente do ruído reclamado no início- “ O ruído, o ruído dos tais 300 quilómetros é um ruido dum friso exterior da porta. Não é um ruído da borracha interior da porta, são coisas diferentes.”; “ O ruído que nos traz aqui, surgiu aos 9 mil quilómetros, quando nos foi reportado o case module da oficina, da oficina para nós. Estamos a falar de quase passado 1 ano, o veículo ter circulado 9 mil quilómetros” , ou seja, afirmou que o ruído que consta do “case module” se trata de um ruído que surge após utilização dos veículos e nada tem que ver com o ruído de que reclamou nos primeiros 300 kms, pelo que, logo por aí, não se trata de um qualquer defeito de fabrico e de origem, mas um ruído normal de utilização do veículo ( sublinhado nosso).
Aliás, foi a única testemunha que destrinçou e diferenciou o ruído inicial constante da primeira queixa registada, do ruído constante das queixas seguintes e passados meses de utilização.
Acrescentou que as intervenções que tiveram lugar foram, nas suas palavras “ no âmbito da otimização dos ruídos reclamados pelo cliente. Porque no âmbito do histórico do veículo, há um … há intervenções feitas imperceptível ... não ao ruído específico que estamos a falar, mas a outro. Ou seja, o carro vem, como eu lhe estava a dizer, o carro vai criando ruídos, o carro tem o histórico de … não tanto todo o período, principalmente novo, mas quando o carro já tem sensivelmente a partir de 1 ano, aí fazerem algumas indicações e algumas … e algumas reclamações em que … do ruído que há dentro do carro. Agora aqui em cima, agora aqui em baixo. O que é certo é que a EMP03... sempre interveio e de acordo com o que foi mencionado, sempre foi, sempre foi o regime desses pequenos ruídos que o carro criou ou que estava a reproduzir, talvez com excepção deste que estamos aqui a mencionar…” ( sublinhado nosso).
Ou seja, desta prova testemunhal não se antolha, de todo em todo, a convicção pretendida pela apelante de que se trata de “barulhos anormais”, quando as testemunhas convocadas pela apelante afirmam, de forma unânime, que são ruídos “característicos” daquele tipo de veículo de maiores dimensões e híbridos, atenta a bateria que carregam e a torção da carroçaria, sendo certo que todas afirmaram que ocorrem tais ruídos especialmente em baixa rotação e que tal acontece em qualquer veículo ( elétrico ou combustível), especialmente de grandes dimensões, como é o caso, pelo que apenas uma hipótese se perfila se atendermos a estes depoimentos: são ruídos normais de qualquer veículo, pois resultam da torção da carroçaria e fruto da normal utilização do veículo. Por outro lado, estes depoimentos não foram infirmados por qualquer outro meio de prova, nomeadamente pericial, a qual nem sequer teve lugar, quando cremos, como já dissemos, que só através da perícia poderia o autor fazer prova do alegado defeito de fabrico que afetaria a sua viatura automóvel e daí a importância da diligência probatória em casos como o do caso vertente e, muito se estranha, tal não ter ocorrido. De qualquer forma, a prova testemunhal convocada pela apelante para prova da sua alegação não colhe.
Acresce dizer tal como ressuma da sentença, e com o que concordamos “ admitiram a existência de barulhos normais no funcionamento das portas, mas que desapareciam poucos segundos após ligar a ignição do veículo e o mesmo iniciar a sua marcha, o que até foi confessado pelo legal representante da Autora. Estas testemunhas depuseram com credibilidade, verosimilhança, convicção e/ou segurança, e com conhecimento direto dos factos objeto da presente ação.”.
Também da prova documental junta aos autos, de per si, não se retira qualquer prova da alegação aduzida pela apelante.
E o que dizer do procedimento interno junto da EMP02... na tentativa de resolver a situação? Da sua existência poder-se-á retirar conclusão de que não pode ser considerado problema ou barulho normal?
Salvo o devido respeito, não cremos que assim seja.
Repare-se que, neste particular, as testemunhas CC e EE foram unânimes em afirmar que as intervenções da 2ª ré terão de ser lidas de acordo com “a otimização dos ruídos reclamados pelo cliente”, e para atender à sensibilidade do cliente.
Portanto, não se tratou nunca de reparação de defeito de fabrico.
Portanto, da prova convocada pela apelante não se poderia concluir pela prova dos pontos dados como não provados com referência à pi. quanto a tratar-se de “ruídos anormais”: 12º, 13º e 18º.
Também da prova convocada pela apelante não se poderia concluir pela prova dos pontos dados como não provados com referência à pi. quanto a tratar-se de “ruído persistente e que não foi resolvido”: 19º, 20º, 21º, 22º, 24º, 35º, 37º, 38º e 39, nomeadamente quando se ficou na dúvida sobre se se trata do mesmo barulho desde a primeira reclamação, pelo que nunca poderia falar-se de persistência de barulho quando já nem sequer é o mesmo barulho de que se queixou e alegadamente defeito de origem e de fabrico; outrossim poderá ocorrer persistência de outro barulho, ruído de utilização do veículo e considerado normal, mas que não é defeito de origem.
O que nos resta é mais um barulho de que a autora se queixa atualmente e desde Março/Abril de 2021 e que nada tem que ver com a primeira reclamação, sendo que àquele último barulho respeita o case module aberto junto da EMP02... e de que se queixou muitos meses após a utilização do veículo, nomeadamente no email enviado à 2ª ré em 19-04-2021 e de que dá conhecimento à EMP02... em 10-08-2021( cfr. doc.s nº5 e 6). E com efeito, consultadas as queixas registadas a primeira reporta-se a “ barulho na porta esquerda” e a partir de Março/Abril, já se reporta a barulho entre a borracha e a carroçaria, o que a autora falava de “ trepidação metálica nos ângulos superiores das portas”( cfr. doc.7 de fls. 20).
A apelante entende que a 2ª ré confessou na contestação-art.s 33º e 34º- e dessa confissão resulta que o problema não é normal e não está resolvido.
A 2ª Ré nos art. 33º e 34º alega o seguinte:
“ 33. Por esse motivo, a Ré EMP03... está – como sempre esteve – disposta a, em articulação com a EMP02..., encontrar uma solução técnica alternativa capaz de minimizar os ruídos provocados pelo atrito entre as borrachas das portas e a carroçaria. 34. E, dessa forma, remover a fita que a A. não aceita.”
Desde já se diga que, a respeito, temos a factualidade não impugnada e provada com referência ao ponto 32º da p.i: “ A 2ª Ré informou AA que esta solução, colocação das fitas, seria uma solução provisória até haver uma solução definitiva para o alegado, mas inexistente na ótica da 2ª Ré, problema.”.
Sem embargo, não se vislumbra como é que a apelante conclui que daquela alegação da 2ª ré decorre uma confissão de que o barulho não é normal, é defeito de fabrico e não está resolvido.
Daquela afirmação apenas resulta que a colocação das fitas pela 2ª Ré é uma solução técnica por si encontrada e capaz de minimizar os ruídos provocados pelo atrito entre as borrachas das portas e a carroçaria, aliás conforme atestado pelas testemunhas ouvidas, mas como a autora não aceita, a 2ª ré disponibilizou-se para encontrar outra solução alternativa junto da EMP02... e, caso assim fosse, seria uma solução provisória até decisão definitiva.
Ora, não cremos que estejamos perante uma confissão simples como meio de prova plena, conforme sustentado pela apelante.
Contudo, a declaração de reconhecimento de factos desfavoráveis pode constituir meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, quando é feita sem os requisitos exigidos para que tenha eficácia probatória plena ( cfr. art. 361º do CC).
Além de outras situações, Lebre de Freitas fala do caso em que “ a confissão consta duma declaração complexa, nos termos do art. 360º, e parte contrária não se queira dela prevalecer como meio de prova plena”[1].
“ A sua eficácia probatória exige que o juiz a confronte com todos os outros elementos de prova produzidos sobre o facto confessado para que tire a sua conclusão sobre se este se verificou ou não”[2]
Ora, desde logo, repare-se que, atenta a conjugação de toda a prova produzida, retira-se que os ruídos atuais e desde Março/abril de 2021 ( Ruído interior, ao curvar, tipo torção de carroçaria”) aparentemente não são os mesmos de que a autora reclamou na primeira queixa ( “ Ruído em andamento, lado esquerdo porta), pelo que se conclui, desde logo, que a 2ª ré, na contestação, se refere aos ruídos reclamados após meses de utilização e não têm que ver nem com ruídos anormais, nem defeitos de fabrico persistentes, alegados pela autora. Apenas e tão somente ruídos de utilização do veículo e que minimizaram com a colocação das fitas. Ou seja, da prova produzida não se retira estarmos perante um qualquer defeito de fabrico, conforme pretendido pela apelante.
Também da prova produzida não se retira que a colocação das fitas como solução preconizada pela 2ª ré para minimizar ruídos característicos daquele tipo de veículo de grandes dimensões e hibrido, significa que por si só desvaloriza o veículo novo, quando no mercado existem outras marcas que já de fabrico e origem vendem veículos com tal solução de fitas, aliás conforme afirmado pelas testemunhas ouvidas, pelo que não é uma conclusão que se retire sem mais e apenas porque ali foram colocadas tais fitas.
Assim sendo, também da prova convocada pela apelante não se poderia concluir pela prova dos pontos dados como não provados com referência à pi.- quanto a concluir-se que a colocação de fitas num veículo novo, por si só, desvaloriza o mesmo: 41º, 42º, 43º, 44º, 45º, 46º, 48º e 50º.
É, por conseguinte, de manter inalterada a resposta (de não provado) conferida pela 1ª instância aos pontos fácticos em causa.
Nesta conformidade, coincidindo integralmente a convicção deste Tribunal quanto aos factos impugnados com a convicção formada pelo Mm.º juíz a quo, impõe-se-nos confirmar na íntegra a decisão da 1ª instância e, consequentemente, concluir pela total improcedência da impugnação da matéria de facto, mantendo-se inalterada a decisão sobre a matéria de facto fixada na sentença recorrida.
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IV
Considerando que não houve nenhuma alteração introduzida na decisão relativa à matéria de facto, a factualidade (provada) a atender para efeito da decisão a proferir é a já constante de III.
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V. Reapreciação de direito.
Como resulta das conclusões do recurso da autora/apelante, a alteração da decisão, na parte da matéria de direito, dependia da modificação/alteração da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo.
Contudo, como já se viu, considerou este tribunal da Relação ser de improceder o recurso na parte referente à reapreciação da decisão da matéria de facto, razão pela qual não se introduziram modificações nas respostas que foram dadas pela primeira instância aos concretos pontos de facto impugnados pela autora/apelante.
De qualquer modo, entende a apelante que ainda assim o recurso deve proceder, pois que entende verificarem-se todos os pressupostos de que depende a procedência do pedido apenas tendo em consideração a matéria de facto dada como provada e sem qualquer alteração.
Para o efeito alega e sustenta que “ muito mal andou o Tribunal a quo ao decidir em julgar a ação totalmente improcedente pois, nomeadamente, foi dado como provado que “o Sr. Engenheiro CC, informou o “Utilizador Habitual” AA, que este teria que deixar o referido veículo ..-..-XM nas instalações da 2ª Ré" a fim de esta resolver a situação. Sendo que desde então o veículo foi deixado nas instalações da 2ª Ré por diversas vezes e a pedido desta para realizar trabalhos para tentar resolver o problema, conforme relatórios da oficina, documentos nº 2, 4, 6, 8 e 14, junto aos autos com a contestação da 2ª Ré. A 2ª Ré não conseguiu resolver o problema tendo deixado o problema em aberto e à espera de uma solução da EMP02..., conforme resulta do quanto vem dito nos artigos 17., 18. e 19. da sua contestação. E ainda, como expressamente confessa a 2ª Ré nos artigos 33. e 34. da sua contestação, continua a mostrar disponibilidade, veja-se, para encontrar uma solução em articulação com a EMP02... e, dessa forma remover as fitas provisórias”. Daqui conclui que “facilmente se deduz que existe de facto um PROBLEMA assumido pela 2ª Ré para resolver; não podendo o PROBLEMA ser considerado como normal”.
Conclui, assim, conforme ponto 35º das conclusões de recurso, “Por via desse ruído de origem-anormal- estamos perante uma venda de coisa defeituosa, logo aplicável as normas supra citadas”- “ art.s 874º, 913º. 914º, 916º e 921º do CC”.
Ora, primo conspecto, como vimos não resultou provada tal factualidade, aliás cuja impugnação dos factos não provados este Tribunal rejeitou, conforme supra.
Por outro lado, apenas em recurso alega a garantia de bom funcionamento nos termos do art. 921º do CC ( conclusão 36º), quando na petição inicial nada é alegado a respeito.
Vejamos.
Desde já, saliente-se que as partes não discutem a qualificação jurídica do contrato celebrado entre as mesmas, tal como aliás ressuma expressamente do que intitularam por escrito “ contrato de longa duração”.
Recentemente, alguns arestos vêm considerando que esta figura contratual configura uma coligação funcional de três tipos contratuais distintos: um contrato de aluguer de longa duração, um contrato de compra e venda a prestações e um contrato promessa de compra e venda do bem alugado – vd. acs:
- RL 08-05-2014 (Maria Manuela Gomes), p. 196/11.6TVLSB.L1-6,
- STJ 27-04-2017 (Alexandre Reis), p. 300/14.2TBOER.L2.S1
Temos então que o regime do contrato dos autos há de resultar da conjugação das cláusulas convencionadas pelas partes, (cfr. art.º 405º n.º 1 do CC), em tudo o que não seja contrário a disposições legais imperativas respeitantes aos contratos típicos de referência, ou seja:
- o contrato de aluguer de viatura sem condução (D.L. 359/86 de 23-10, alterado pelo DL 373/90, de 27-11, e 44/92, de 31-03) e subsidiariamente as normas relativas ao contrato de locação (art.ºs 1022º e segs. do CC);
- o contrato de compra-e-venda (art.ºs 874º e segs. do CC);
- o contrato-promessa (art.ºs 410º e segs. e 830º, do CC).
No caso vertente, adiantamos, importará ter presente ainda o regime da venda de coisas defeituosas previsto no art. 913º do CC.
Com efeito, não foi alegada a aplicação do regime de bens de consumo ( DL 67/2003, de 8/4), nem foi alegada na petição inicial que o veículo tivesse garantia contratualizada a que alude o art. 921º do CC.
Em verdade, apenas em recurso é que é suscitada esta última questão, quando é consabido que os recursos não tratam questões novas, nem a matéria de facto dada como provada permite consubstanciar ou ponderar tal enquadramento jurídico.
Deste modo, tal como acima se adiantou, não sendo à compra e venda em causa aplicável o regime jurídico da venda de bens de consumo previsto no DL 67/2003, de 8/4, nem o disposto no artº 921º, a procedência do peticionado pela Autora dependia da prova - que a onerava, enquanto factualidade constitutiva do direito que suportava o pedido (artº 342º, nº 1, do CC) -, da anterioridade do defeito em relação à concretização do contrato e à entrega do veículo.
E isto será assim, atenta a factualidade alegada na p.i. e estruturadora do pedido formulado: ruídos de origem ou de fabrico no veículo em causa.
Ou seja, as partes não discutem a existência de ruídos de que padece o veículo atualmente, para os quais a 2ª ré colocou uma fita provisória por forma a minimizar os mesmos até solução definitiva pela EMP02..., retirando-se tais fitas e de que fala o designado “ case module”.
Contudo, a ação improcedeu porque não logrou a autora provar que os ruídos de que se queixou inicialmente e ruídos que constam do “ case module” são defeitos de fabrico.
Daí que como se evidencia da apelação, o cerne da questão reside em saber se os ruídos dados como provados ( e atualmente constantes de um case module aberto junto da EMP02...) se podem qualificar como “defeitos” da coisa vendida, na aceção prevista na lei e com as consequências daí decorrentes para a vendedora, designadamente, e face ao peticionado, a condenação desta, na sua reparação (cfr. artigo 914º do CC).
Antes de mais, vejamos o regime regra, quando um dos efeitos do contrato de compra e venda consiste na obrigação da entrega da coisa (artºs. 874° e 879º al. b) do Código Civil).
Devendo os contratos ser pontualmente cumpridos, nos termos do artº 406° nº 1 do Código Civil, o cumprimento daquela obrigação só será perfeito se, por um lado, a coisa for entregue e, por outro lado, sem defeitos intrínsecos, estruturais e funcionais (defeitos de conceção ou design e defeitos de fabrico).
Ou seja, verifica-se a venda de coisa defeituosa quando a mesma :
Sofra de vício que a desvalorize ;
Não possua as qualidades asseguradas pelo vendedor ;
Não possua as qualidades necessárias para a realização do fim a que é destinada ou sofra de vício que a impeça da realização desse fim.
Se a coisa vendida padecer daqueles defeitos estamos perante uma venda de coisa defeituosa (artº 913° do Código Civil).
Em suma: na fixação do regime jurídico da compra e venda de coisas defeituosas deve ter-se em conta o regime geral da responsabilidade contratual (artºs. 798º e ss. do Código Civil), o regime especial previsto no artº 913° do Código Civil (ao remeter para o regime da compra e venda de bens onerados) e as particularidades previstas nos artºs. 914° e ss. do Código Civil.
Assim, perante tal, verifica-se que incumbe ao comprador a prova do direito invocado, ou seja, a entrega da coisa com defeito (art° 342° nº 1 do Código Civil), presumindo-se, quanto à culpa, a culpa do vendedor (artº 799 nº1 do Código Civil).
Provada a entrega da coisa com defeito e não tendo sido ilidida a presunção de culpa do vendedor, podem ocorrer as seguintes consequências: reparação do defeito ; substituição da coisa ; redução do preço ; resolução do contrato e indemnização.
Todavia, pode acontecer que, por convenção ou por força dos usos, o vendedor esteja obrigado a garantir o bom funcionamento do bem vendido (cf. artº 921º do Código Civil), caso em que, o comprador tem direito a exigir a reparação da coisa ou, se for necessário e tiver natureza fungível, a sua substituição, independentemente de culpa do vendedor ou de erro seu (do comprador).[3]
Como se sublinha no AC do STJ de 14-12-2016 e que aqui seguiremos de perto, atenta a similitude de situações, ( relatora: Fernanda Isabel Pereira) “ Importa, porém, sublinhar que o vício ou defeito da coisa é determinado à data do cumprimento, isto é, deve existir nesse momento, ainda que não tenha sido, desde logo, detectado. Nas palavras de Pedro Romano Martinez (em Cumprimento Defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada, p. 212 e 213 e em Direito das Obrigações, p. 135) «tem sido aceito que a garantia por defeito se aplica quando o vício já existia em germe, estando, por conseguinte, as suas causas ínsitas na prestação ou, dito de outra forma, a noção de defeito implica a existência de um vício que desvalorize ou impeça a realização do fim a que a coisa se destina, independentemente de esse vício se manifestar posteriormente à celebração do contrato, desde que, nessa altura, já existisse em potência». Também Calvão da Silva (em Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, p. 86 e 158 a 161) diz que o regime previsto no Código Civil evidencia que o legislador reporta a clássica garantia edilícia apenas aos vícios preexistentes ou contemporâneos da conclusão do contrato, isto é, aos vícios genéticos.”
Analisando a matéria fáctica provada, à luz destas breves considerações, resulta ser evidente que no caso provou-se a existência de ruídos de que se queixou a apelante logo nos primeiros dias “de rodagem” e meses após o veículo ser intervencionado queixou-se novamente de ruídos , sendo que atualmente tem um “case module” em aberto junto da EMP04..., para que sejam eliminados os ruídos sem necessidade de uma fita que foi colocada ( provisoriamente) no veículo para minimizar os ruídos.
Ora, não estando em causa que o veículo apresentou um vício que impedia a realização do fim a que o mesmo se destinava, a procedência do peticionado pela Autora dependia da prova - que a onerava, enquanto factualidade constitutiva do direito que suportava o pedido (artº 342º, nº 1, do CC) -, da anterioridade do defeito em relação à concretização do contrato e à entrega do veículo, dependência esta que já não ocorreria, como adiante se explicitará, caso se provasse, como foi alegado apenas em recurso, que entre os contraentes fora acordada uma garantia (de bom funcionamento - artº 921º do CC), ou caso a compra e venda em causa não estivesse excluída do âmbito do regime jurídico da venda de bens de consumo previsto no DL 67/2003, de 8/4, com a alteração do DL 84/2008, de 21/5, porquanto não é de ter a empresa Autora como “consumidor”, na definição do artº 1º-B, a), daquele diploma (crf. Tb. artº 2º, nº 1, da Lei de Defesa do Consumidor - Lei n.º 24/96, de 31/7).
Ora, analisando a matéria fáctica provada, à luz destas breves considerações, resulta não ter a autora logrado provar que o ruído do veículo, seja o da queixa inicial, seja o das queixas posteriores, se trata de defeito de origem, de fabrico.
Sem embargo, e ainda que se entendesse que este ruído referente ao “case module”, ruído atual no veículo em causa e que a 2ª ré aparentemente não o considera resolvido ou eliminado definitivamente, que se enquadrasse na noção de defeito consagrada na lei, porém, considerando, como acima se disse, que os vícios que relevam são apenas os que se verifiquem à data da venda, tem-se por incontornável, face à matéria de facto dada como provada, que, resultando indemonstrada a anterioridade do mesmo, sem que se tenham apurado as suas causas, não pode ser assacada qualquer responsabilidade à vendedora, aqui 2ª ré, por esses mesmos ruídos e muito menos à ré financiadora e locadora do veículo, nem à terceira interveniente, EMP02..., por não se ter provado ser defeito de fabrico, de origem, tal como foi alegado.
Com efeito, não se estando no domínio da garantia de bom funcionamento a que alude o artigo 921.º do Código Civil, no qual vigora a presunção de existência do defeito ao tempo da entrega que justifica e caracteriza tal garantia (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/09/2011, proc. n.º 4757/05.4TVLSB, e AC STJ 13-11-2018, proc.71/15.5T8PTL.G1.S2, ambos in www.dgsi.pt/jstj) e também não podendo aplicar-se ao caso o regime da venda de bens de consumo (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/44/CE), em concreto, a presunção de anterioridade do defeito consagrada no seu artigo 3.º, n.º 2, já que a autora, à luz do disposto no artigo 1.º-B, alínea a), não é, claramente, consumidora, é sobre esta, enquanto compradora, que recai o ónus de provar quer o defeito da coisa, quer a sua anterioridade ou contemporaneidade com a celebração do contrato.
Como se menciona no citado AC do STJ de 14-12-2016 “ Desse ónus dá aliás conta Mota Pinto, na sua obra referente ao ante projecto do supra citado diploma legal, intitulada Cumprimento Defeituoso do Contrato de Compra e Venda, Anteprojecto de diploma de transposição da Directiva n.º 1999/44/CE, Instituto do Consumidor, 2002, p. 38 e 39).
Já Pedro Romano Martinez (Cumprimento Defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada, p. 356 a 362), embora conteste a doutrina que considera que é sobre o comprador que impende o ónus de provar a anterioridade do defeito com respeito à data da celebração do contrato, da transferência do risco ou da entrega da coisa e entenda que a posterioridade do defeito constitui um facto extintivo do direito invocado (e não um facto constitutivo do direito do credor), assume que só será relevante o defeito presente no momento em que é realizada a prestação e que a anterioridade, na maioria das situações, resulta de uma presunção de facto.”
Sucede, porém, que a apelante pretende com a alegação de recurso demonstrar que da factualidade dada como provada se extrai que os ruídos que atualmente existem no veículo, se reportam ao início da sua utilização regular e que, como tal, são intrínsecos às mesmas.
Senão vejamos:
A recorrente alicerça essa conclusão, sobretudo, na circunstância de terem ficado demonstradas as comunicações que dirigiu à ré logo após o início da rodagem do veículo e de os mesmos serem coincidentes com os que se apresentam no “ case module” apresentado ao fabricante “ EMP02...” pela 2ª ré, e cuja existência ficou demonstrada, pretendendo, dessa forma, que este Tribunal da Relação extraia da conjugação da mencionada factualidade uma “presunção” de anterioridade dos defeitos.
Sem embargo, a matéria dada como provada não alicerça tal conclusão.
E ainda que se entendesse que os ruídos atuais dados como provados são defeitos relevantes em face da nossa legislação, contudo, não está demonstrado que tais defeitos existiam na data em que ocorreu a transferência de propriedade do veículo (ou anteriormente), ou seja, que se tratasse de defeito de fabrico, tal como foi alegado.
E a prova desses factos, porque constitutivos do direito da Autora, competia a esta nos termos do nº1 do artigo 342º do Código Civil, porquanto no caso presente não existe qualquer prazo de garantia convencional.
Repare-se que a garantia plasmada no doc. 3, garante o quê, para além do art. 913º? Ali apenas se diz que “ beneficia complementarmente condição de garantia constante dos manuais e livros de manutenção da marca”. Então, atenta a alegação aduzida mais parece que a garantia em causa apenas é de defeito de fabrico. Sem embargo, não se percebe que tipo de garantia está em causa, nem na p.i consta tal alegação.
Assim sendo, e não estando em causa qualquer garantia convencional, nem a aplicação do DL 67/2003, a prova de se tratar de defeitos de fabrico, porque constitutivos do direito da Autora, competia a esta nos termos do nº1 do artigo 342º do Código Civil.
E é assim, porquanto a execução defeituosa da prestação contratual, como violação do contrato, é um ato ilícito, elemento integrante da responsabilidade contratual.
No domínio desta responsabilidade, presume-se a culpa, mas, na falta de norma que o permita, o mesmo não acontece relativamente aos restantes requisitos da responsabilidade civil.
Assim, há de ser sobre quem invoca a prestação inexata da outra parte como fonte da responsabilidade que há de recair o ónus de demonstrar os factos que integram esse incumprimento (facto ilícito), bem como os prejuízos dele decorrentes (dano) – artigo 342º, nº1, do Código Civil (Acórdão do STJ, de 19/02/2008, consultável em www.dge.mj.pt).
Em suma: nestes autos, não estamos no âmbito da garantia de bom funcionamento a que se refere o artigo 921º do Código Civil (presunção de existência do defeito ao tempo da entrega que justifica e caracteriza tal garantia, bem como não é aplicável o regime da venda de bens de consumo (Decreto – Lei nº67/2003, de 8 de abril, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva nº1999/44/CE).
Por tudo o exposto, mostrando-se evidenciada a não verificação dos requisitos previstos para a qualificação do ruído dado como provado do veículo em causa no âmbito do regime da venda de coisas defeituosas (artigo 913º do CC), temos que a apelação terá de inevitavelmente improceder, mantendo-se e confirmando-se a sentença recorrida.
Deste modo, o recurso tem de improceder.
*
VI- Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação interposta pela A, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
Custas da apelação pela A
Guimarães, 2 de abril de 2025
Anizabel Sousa Pereira ( relatora)
Elisabete Coelho de Moura Alves
Luís Miguel Martins
[1] Luís Pires de Sousa, Direito Probatório Material, p. 112, 2ª ed. [2] Lebre de Freitas in Ana Prata ( Coord.) CC Anotado, Vol. I, p. 484,485, 2ªed. [3] A garantia de bom funcionamento consagrada no artigo 921º do C.C. é prestada pelo vendedor final do bem ao comprador do mesmo, não sendo diretamente aplicável o regime jurídico desse normativo às garantias prestadas pelo produtor ( as designadas garantias de fábrica) ou por qualquer intermediário da cadeia de distribuição.
Como refere Calvão da Silva (in “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, pgs. 62 e 63) : “Expressão da melhor doutrina quanto ao direito ao cumprimento e a sua independência do requisito da culpa do devedor é a do artº 921º, na chamada garantia de bom funcionamento, a que o vendedor esteja obrigado por convenção ou por força os usos. ( ... ) É que o escopo da garantia de bom funcionamento consiste em fixar um período de provação (temp d épreuve) ou de “rodagem” da coisa, durante o qual o vendedor se responsabiliza por que na sua utilização normal e correcta nenhum defeito de funcionamento aparecerá. Vale isto por dizer que o vendedor assegura por certo período um determinado resultado, a manutenção em bom estado ou o bom funcionamento (idoneidade para o uso) da coisa, sendo responsável por todas as anomalias, avarias, falta ou deficiente funcionamento por causa inerente à coisa e dentro do uso normal da mesma. Este facto, o facto de o vendedor assumir a garantia de um resultado tem importância no domínio do ónus probandi: ao comprador basta fazer a prova do mau funcionamento da coisa no período de duração da garantia, sem necessidade de identificar ou individualizar a causa concreta impeditiva do resultado prometido e assegurado nem de provar a sua existência no momento da entrega ; ao vendedor que queira ilibar-se da responsabilidade é que cabe a prova de que a causa concreta do mau funcionamento é posterior à entrega da coisa – assim ilidindo a presunção da anterioridade ou contemporaneidade do defeito (em relação à entrega) que caracteriza a garantia convencional do bom estado e bom funcionamento – e imputável ao comprador (v.g. má utilização), a terceiro ou devida a caso fortuito”.
Diga-se, ainda que, sendo a garantia de bom funcionamento prestada pelo vendedor final do bem, nos termos do artigo 921º do C.C., compete apurar quais são os defeitos que se encontram subjacentes a tal cláusula.
Cremos que, pelo menos, os defeitos de fabrico estariam assegurados pois são privativos da fase de produção propriamente dita, sendo resultado de falhas mecânicas ou humanas geradas pelo modo de produção em série e com recurso a maquinismos. Só alguns exemplares é que são afetados com essa desconformidade. Estes defeitos são facilmente detetáveis, bastando para tal um exame comparativo entre um bem regular e outro desconforme, sendo considerados intrínsecos, ou seja, relativos a propriedades do bem em si mesmo considerado.