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IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÂMBITO
OBJECTO DO PROCESSO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ELEMENTOS
TIPO
REITERAÇÃO
MAUS TRATOS
NORMA
Sumário
I. Factos essenciais são apenas os relevantes para o preenchimento dos elementos do tipo de crime, da participação do agente e da sua culpa, da verificação de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, das condições de punibilidade, dos pressupostos para a aplicação de medida de segurança e dos pressupostos da responsabilidade civil (artº 358º, nº n.º 2 do CPP). II. Também com igual âmbito, estão delimitados os factos objeto de prova em processo penal, aos “factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis”, a que acrescem “os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil” (artº 124º, nºs 1 e 2 do CPP). III. De fora - do dever de serem elencados nos factos provados ou não provados e, como tal, de fora do objeto da impugnação da decisão da matéria de factos - ficam todos os outros factos, designadamente os irrelevantes, supérfluos e acessórios, mas também os próprios meios de prova e os factos instrumentais para a valoração das provas (nomeadamente as razões que possam levar a atribuir maior ou menor credibilidade aos depoimentos, como por exemplo a razão de ciência de determinada testemunha). Estes dois últimos elementos serão considerados na motivação da decisão sobre a matéria de facto, mas não têm - nem devem - ser levados aos factos provados ou não provados e, como tal, estão fora do objeto da impugnação da decisão da matéria de facto. IV. Por outro lado, a reapreciação da matéria de facto, com a audição da prova gravada, não consistindo num novo julgamento, não se destina a formar uma nova convicção pelo Tribunal de recurso, mas apenas a sindicar erros de julgamento do Tribunal de primeira instância, pelo que, havendo depoimentos a relatar os factos provados e sendo neles que o Tribunal recorrido se baseou para dar como provados os factos que deu, afastado está qualquer erro de julgamento a corrigir, com a consequente improcedência da impugnação da decisão da matéria de facto. V. No crime de violência doméstica, da expressão legal “de modo reiterado ou não” retira-se que não é elemento do tipo a reiteração das condutas previstas na norma incriminadora, mas para o preenchimento do tipo torna-se necessário que o comportamento se possa configurar como maus tratos (físicos ou psíquicos) e praticados no seio e ou por causa de uma das relações (pretéritas ou atuais) compreendidas na norma, que esta visa também tutelar. VI. Devem, assim, os atos (ou ato) praticados se revestir uma certa gravidade, nomeadamente revelando crueldade, vingança por parte do agente, desejo de infligir sofrimento ou humilhação na vítima ou de assumir uma posição de domínio na relação, impondo a sua vontade pela força para assim “vergar” a vontade da vítima. VII. No caso em apreciação, os factos praticados pelo arguido contra AA, quer pela sua gravidade, quer no contexto de relação de namoro, quer ainda no contexto de agressividade e desejo confesso de domínio por parte do arguido (“hoje vais ver quem manda”), em que foram praticados, encontram-se completamente dentro do âmbito de proteção da norma incriminadora do crime de violência doméstica previsto no artº 152º, nº 1, alíneas b) do Código Penal.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
No processo comum singular nº 195/24.8PCSNT, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Sintra – Juiz 4, por sentença proferida a 07/11/2024, o arguido BB foi condenado (como reincidente), pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artº 152º, nºs 1, al. b), e 4 do Código Penal, na pena principal de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão e na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida (AA) por igual período de tempo.
O arguido foi ainda condenado a pagar à referida ofendida a quantia de €2.000,00 (dois mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros legais, à taxa de 4%, devidos desde o trânsito em julgado da sentença até integral pagamento.
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Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, concluindo:
«I. Foram incorretamente julgados os pontos 10, 11, 16 a 20 e 24 a 27, dos factos provados.
II. Impõem decisão diversa da recorrida as declarações para memória futura, prestadas pela Ofendida, em .../.../2024 e gravadas no sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, conforme ata com a referência 151401016 e cuja transcrição se junta.
III. Quantos aos factos 10 e 11, a Ofendida, em momento algum, refere ter ficado amedrontada ou começado a gritar e não foi feita prova de que os amigos do Recorrente tenham ouvido a Ofendida gritar e que tenha sido por isso que bateram à porta.
IV. Impõem decisão diversa da recorrida, as declarações da Ofendida, entre o minuto 5.54 e o minuto 6.28.
V. O facto 11, deve passar a ter a seguinte redação:
“11. Dois amigos do Arguido, que ainda se encontravam no exterior do estabelecimento indicado em 2., bateram à porta.”
VI. Entre os factos 14 e 15, há um hiato temporal, com a correspondente omissão dos factos descritos pela Ofendida, que inquinou a decisão da matéria de facto dos pontos 16 a 20.
VII. Impõem decisão diversa da recorrida, as declarações da Ofendida, entre o minuto 6.45 e o minuto 7.46.
VIII. Face às declarações da Ofendida, devem ser aditados os seguintes factos provados:
Facto 14-A
AA, não conseguindo soltar-se, saiu da cozinha e voltou para a sala, onde os amigos do arguido tentaram agarrar na mão dele, ao mesmo tempo que diziam “para com isso, ela é uma mulher.
Facto 14-B
De seguida, AA deitou-se no chão da sala, com o propósito de soltar a mão do arguido, o que não logrou conseguir, pelo que se levantou e foi para a cozinha de novo, mantendo o arguido a mão no seu cabelo.
IX. Respeitando a cronologia dos factos e de acordo com a descrição da Ofendida, conforme declarações entre o minuto 7.47 a 8.34 e 9.36 e 10.50, os factos 16 a 20, devem passar a ter a seguinte redação:
16. Nessa altura, os amigos do Arguido, disseram-lhe, “tenham cuidado, isso não é coisa que se faça.
17. Nesse momento, o arguido retirou a faca da mão de AA e, munido com a referida faca, dirigiu-se à mesma e disse-lhe “Vais-me dar com a faca? Eu agora vou-te mostrar como é que se dá com a faca!”
18. De seguida, os amigos do arguido conseguiram retirar-lhe a faca da mão.
19. Quando AA se encontrava deitada no chão (facto 14-B), arranhou o arguido na cara e, ato contínuo, este desferiu-lhe uma mordidela na mão direita.
20. AA não necessitou de tratamento hospitalar, não teve dores, ficando apenas com um sinal do dente.
X. De acordo com a dinâmica dos factos descrita pela Ofendida e os sentimentos que revelou face à ocorrência desses factos, que impõem a alteração da matéria de facto relativa aos pontos 10, 11, 16 a 20, forçoso é concluir que a conduta do Recorrente, apesar de configurar a prática de um crime de ofensa à integridade física, p.p. pelo art.º 143.º, do CP, não representou um aviltamento da dignidade humana da Ofendida, nem lhe provocou danos na sua saúde psíquica.
XI. Quanto a um eventual crime de ameaça, p.p. pelo art.º 153.º, do CP, apesar da expressão proferida pelo Recorrente “Vais-me dar com a faca? Eu agora vou-te mostrar como é que se dá com a faca!”, avulta das declarações da Ofendida que essa expressão não foi adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, uma vez que não foi percecionada como tal.
XII. A conduta do agente, não assumiu um carácter violento, nem a sua configuração global revelou desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, que seja suscetível de ser classificada como “maus tratos”.
XIII. Devem ser dados como não provados, os factos 24, 26 e 27.
XIV. O ponto 25, dos factos provados, deve passar a ter a seguinte redação:
25. O Arguido atuou com o propósito alcançado de ofender o corpo e saúde de AA.
XV. Face à alteração da matéria de facto, subsistem factos subsumíveis à prática de um crime p.p pelo art.º 143.º, n.º 1, do CP.
XVI. Nos termos do art.º 143.º, n.º 2, do CP, o procedimento criminal depende de queixa, porquanto tem natureza semipública.
XVII. Resulta dos autos que, quando a Ofendida foi ouvida pela PSP, em sede de inquérito, declarou logo não desejar procedimento criminal, o que confirmou em declarações para memória futura (minuto 13.49 a minuto 14.20).
XVIII. Atenta a natureza do crime, o Ministério Público carece de legitimidade para a prossecução do procedimento criminal, pelo que, operada alteração da qualificação jurídica, deve ser determinado o arquivamento dos autos.
XIX. Mesmo que se entendesse que os factos provados seriam, também, subsumíveis à prática, pelo Recorrente, de um crime de ameaça, p.p. pelo art.º 153.º, n.º 1, do CP, atento o disposto no seu n.º 2, da mesma forma, careceria o Ministério Público de legitimidade para a prossecução do procedimento criminal, devendo assim, ser determinado p arquivamento dos autos arquivados.
XX. O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 152.º, n.º 1, 143.º, n.º 1 e n.º 2, e 153.º, todos do CP.»
Termina pedindo “o arquivamento dos autos”.
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O recurso foi admitido, por despacho de 03/02/2025, com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo.
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Respondeu o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso, com a manutenção da decisão recorrida, formulando para tanto as seguintes conclusões:
«A. O arguido BB foi condenado na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal;
B. Foi, igualmente, o arguido BB na pena acessória de proibição de contactos com a Ofendida AA, por qualquer meio, pelo período de 2 anos e 10 meses, nos termos do artigo 152.º, n.º 4, do Código Penal;
C. Para que se conclua pela existência de um erro notório na apreciação da prova é necessário que se demonstre que o julgador errou de forma evidente, flagrante, ostensiva e detetável pelo homem comum;
D. Sucede que, do texto da sentença recorrida, não resulta, nem esse, nem qualquer dos demais vícios previstos no art. 410º, n.º 2, do C.P.P.;
E. O Tribunal a quo mais não fez do que extrair, a partir da prova produzida, conclusão perfeitamente lógica, não atentatória das regras da experiência comum, decorrente do exercício (tão legítimo quanto devido) da livre apreciação da prova.
F. O que o recorrente pretende fundamentalmente pôr em crise é o princípio da livre apreciação da prova; na verdade, do que se trata é da discordância do mesmo relativamente ao modo como a prova produzida foi apreciada pelo Tribunal a quo, designadamente, as declarações para memória futura da ofendida AA.
G. Sucede que, mesmo nos casos em que haja gravação da prova (como sucede(u) no caso concreto), o Tribunal da Relação não pode sindicar a valoração das provas, em termos de criticar o tribunal a quo por ter dado prevalência a uma(s) em detrimento de outra(s);
H. A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto jamais poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a deteção e correção de pontuais, concretos e seguramente excecionais e flagrantes erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto;
I. Como tal, necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o Tribunal indique os fundamentos suficientes para que se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado, o que foi feito - e bem feito - na sentença recorrida.
J. Tendo em conta a prova produzida e a fundamentação do enquadramento fáctico, é manifesto que a sentença recorrida fez uma acertada e ponderada apreciação da prova produzida em audiência de julgamento.
K. Os factos dados como provados na sentença recorrida integram a prática pelo arguido de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, mostrando-se preenchidos os elementos objetivos e subjetivos daquele ilícito.
L. As penas aplicadas ao arguido (principal e acessória) são justas, equilibradas e mostram-se devidamente sustentadas com os argumentos aduzidos em tal decisão e nos critérios estabelecidos do 71.º do Código Penal, para determinação da medida da pena.
M. Face ao exposto, a sentença recorrida não merece qualquer censura, não padece de qualquer vício (mormente, aqueles que vêm invocados na peça processual a que se responde), achando-se em absoluta conformidade com a lei.»
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A Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, pugnando pela improcedência do recurso, pelos fundamentos da resposta apresentada em primeira instância, mas acrescentando o seguinte:
«Em seu reforço, e focados na argumentação concretamente expendida pelo recorrente quanto à invocada incorreta valoração do depoimento da vítima, cumpre sublinhar que se extrai cristalino da sentença, mormente da motivação sobre a matéria de facto, que o tribunal refere e demonstra basear-se no depoimento da vítima, mas sempre cotejado com as declarações do arguido e demais prova produzida, não deixando também de percecionar e referir em sede de motivação, que “O nervosismo vivenciado pela Ofendida foi pela mesma relatado, embora tenha tentado, no seu discurso, atenuar as consequências da atuação do Arguido, referindo não ter sentido dores na sequência da mordida, apenas ficando “com o sinal do dente.
No que tange ao crime de violência doméstica e à argumentação expedida pelo recorrente no sentido de subsumir a sua conduta à prática de um crime de ofensas à integridade física com as consequências por si pugnadas, acresce sublinhar afigurar-se-nos ser já pacífica a interpretação de que o crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana (patentemente verificada no caso sub judice) seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, dano e/ou eventualmente perseguição.
Cremos assim dever concluir-se que a sentença sob recurso não padece de qualquer vício e que os factos corretamente dados como provados se subsumem ao tipo legal do crime de violência doméstica pelo qual o recorrente foi fundadamente condenado.»
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Notificado de tal parecer, o arguido respondeu, reafirmando (para além do mais) ter impugnado a decisão da matéria de facto, por erro de julgamento, e não pela invocação de qualquer dos vícios das sentenças.
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Foi proferido despacho a efetuar o exame preliminar, mantendo o efeito e regime de subida do recurso.
Após os vistos, foram os autos à conferência.
Nada obsta à prolação de acórdão.
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II. OBJETO DO RECURSO
Em conformidade com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J. de 19/10/1995 (in D.R., série I-A, de 28/12/1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Atendendo às conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a apreciar:
1. Impugnação da matéria de facto; e
2. Qualificação jurídico penal.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
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A) DECISÃO RECORRIDA
A sentença recorrida estabeleceu os seguintes factos provados:
«Do crime
1. O Arguido e AA iniciaram uma relação de namoro no final do Verão de ....
2. No dia ........2024, da parte da manhã, AA e o Arguido procederam à abertura do estabelecimento comercial denominado “...”, sito na ..., e CC, propriedade de AA.
3. Algum tempo depois de terem procedido à abertura do estabelecimento comercial indicado em 2., e pouco antes da hora de almoço, o Arguido ausentou-se do local durante um pequeno período de tempo, regressando para almoçar, tendo saído novamente após a refeição, e regressado mais tarde, cerca das 20h45m, alcoolizado.
4. Cerca das 00h20m, já do dia seguinte, agentes da PSP efetuaram uma passagem no estabelecimento indicado em 2., na sequência da qual alertaram para o horário máximo de funcionamento, solicitando que procedessem ao encerramento do estabelecimento comercial.
5. Então, e em obediência ao solicitado, AA e o Arguido pediram aos clientes que ainda se encontravam dentro do estabelecimento comercial que saíssem do local para procederem ao encerramento do mesmo.
6. Depois de encerrar o referido estabelecimento comercial, numa ocasião em que estavam os dois sozinhos no interior do mesmo, e motivado por discussões que os dois já vinham a manter há uns dias, o Arguido dirigiu-se a AA e, em tom de voz sério e grave, disse-lhe: “Não vais a lado nenhum! Temos que conversar! Hoje vais ver quem manda aqui! Não vais sair daqui sem falares comigo!”
7. Nessa altura, AA, em resposta, dirigiu-se ao Arguido e disse-lhe: “Tu não mandas em mim! Eu vou-me embora!”
8. Depois, e após uma troca de palavras entre os dois, numa altura em que AA se deslocava para a zona da cozinha, o Arguido foi atrás dela.
9. E, quando a alcançou, o Arguido agarrou-a, com força, pelo cabelo, que puxou.
10. Amedrontada com aqueles comportamentos do Arguido, AA começou a gritar.
11. Ao ouvirem AA a gritar, dois amigos do Arguido, que ainda se encontravam no exterior do estabelecimento indicado em 2., bateram à porta.
12. Nesse momento, o Arguido largou os cabelos de AA e abriu a porta do estabelecimento comercial.
13. Já com os amigos do Arguido dentro do estabelecimento comercial, o Arguido deslocou-se novamente para a zona da cozinha, onde se encontrava AA.
14. Ali chegado, o Arguido dirigiu-se novamente a AA e agarrou- a novamente com força pelo cabelo, que puxava consecutivamente.
15. Desesperada, e de forma a cessar com os comportamentos do Arguido, AA agarrou numa faca, com características não concretamente apuradas, que se encontrava na bancada da cozinha.
16. Nessa altura, os amigos do Arguido agarraram-no, disseram-lhe, “não podes fazer isso, ela é mulher!”, ao mesmo tempo que tentavam separar o Arguido de AA.
17. Nesse momento, o Arguido retirou a faca da mão de AA e, munido com a referida faca, dirigiu-se a AA e, em tom de voz sério e grave, disse-lhe: “Vais-me dar com a faca? Eu agora vou-te mostrar como é que se dá com a faca!”.
18. E, de seguida, munido com a referida faca, o Arguido agarrou novamente em AA arrastou-a pelo cabelo, que puxava continuadamente, até à sala de refeições, momento esse em que os amigos dele conseguiram retirar-lhe a faca da mão.
19. O Arguido continuava a puxar os cabelos de AA, que, com dores e sem força, começou a baixar-se para que ele largasse os cabelos dela, deitando-se no chão.
20. Ainda na mesma ocasião, exaltado, o Arguido desferiu uma mordidela na mão direita de AA, causando-lhe um hematoma e uma marca dos dentes dele na mão direita dela.
21. Entretanto, AA conseguiu soltar-se do Arguido e fugiu do estabelecimento comercial, a correr.
22. Ao ver que AA fugia para o exterior, o Arguido tentou sair no encalço dela, mas os dois amigos que se encontravam no local agarraram-no, impedindo-o de o fazer.
23. Quando os Agentes da PSP chegaram ao local, AA regressou para efetuar o fecho do estabelecimento comercial.
24. Com as condutas acima descritas o Arguido quis e conseguiu ofender AA na sua honra e dignidade, na sua integridade física, e na sua liberdade pessoal, por forma a que esta se sentisse lesada na sua dignidade enquanto ser humano, e pessoa com quem mantinha uma relação de namoro.
25. O Arguido atuou com o propósito alcançado de atingir e lesar o corpo e saúde de AA, sabendo que dessa forma lhe causaria dores e lesões.
26. As expressões ameaçadoras que dirigiu a AA, considerando todas as circunstâncias que as rodearam, nomeadamente o facto de o denunciado se encontrar num estado de extrema exaltação quando as anunciava, e enquanto segurava numa faca, foram proferidas de forma a provocar-lhe receio e inquietação, o que logrou conseguir.
27. O Arguido atuou sempre com intenção de maltratar física e psiquicamente AA, o que de facto veio a conseguir.
28. O Arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal. Das condições sócio-económicas do Arguido
29. O Arguido vivia à data dos (…) factos constantes nos presentes autos e, previamente à atual prisão preventiva, na casa de morada de família no ... junto do agregado de origem constituído pelos pais e por um irmão mais novo, presentemente em reclusão.
30. O Arguido é o primeiro de uma fratria de três irmãos germanos, tendo um irmão consanguíneo mais velho, estabelecendo proximidade relacional e adequação nas interações com os familiares, numa dinâmica anterior descrita como estável e coesa, não sendo referidos incidentes protagonizados por BB neste contexto.
31. O Arguido provém de um enquadramento de origem que ficou marcado por disfuncionalidade decorrente de comportamentos aditivos (álcool) do pai e conflitualidade e violência física assumidos por este aos outros elementos do agregado, situação, entretanto, ultrapassada.
32. Fruto de um relacionamento afetivo iniciado em ... (com DD), mas, entretanto, terminado, BB tem três filhos desta relação, de 15 [anos], 11 [anos) e sete meses, tendo também outra filha, de 15 anos, encontrando-se os descendentes aos cuidados das respetivas progenitoras.
33. Apesarem de estarem separados, BB e a primeira ex-companheira continuam a manter contactos, beneficiando do apoio desta que o visita bissemanalmente no atual contexto prisional, tendo esta referido o padrão relacional adequado mantido pelo arguido no contexto da relação conjugal.
34. O Arguido tem procurado manter-se presente na vida dos descendentes com quem estabelece uma relação afetivamente investida, contribuindo financeiramente para as suas necessidades.
35. O Arguido assume consumo aditivo anterior há vários anos, que reconhece como problemático e como estratégia desajustada para lidar com situações de tensão, o que traduz défices ao nível das competências socio emocionais relacionadas com a autorregulação e com a resolução de problemas, disponibilizando-se para se submeter a um acompanhamento médico especializado adequado a esta problemática nos serviços de saúde competentes.
36. Profissionalmente mantinha-se ativo na área das … desde ... na empresa “...”, funções que exercia nas instalações do ..., tendo o vínculo contratual cessado após a sua reclusão atual, estando em diligências para inverter esta situação.
37. O Arguido auferia o ordenado mínimo nacional, contribuindo para a economia do agregado que, igualmente, dependia do vencimento da mãe, enquanto … em contexto hospitalar, e da pensão de reforma do pai, não sendo referidos constrangimentos a este nível.
38. No decurso da sua trajetória vivencial, BB teve outras experiências laborais, nomeadamente na … e como … em ..., habilitando-se com o nono ano de escolaridade enquanto cumpriu anteriormente pena de prisão efetiva.
39. Nos tempos livres, o Arguido dedicava-se à prática desportiva, ao convívio com a família e, maioritariamente, apoiando a anterior namorada/ofendida no processo, no estabelecimento comercial (…) de que esta é proprietária.
40. O Arguido tem asseguradas as condições de acolhimento habitacional na sua restituição à liberdade na mesma morada de família, pretendendo igualmente diligenciar no sentido da sua reintegração profissional.
41. No decurso do cumprimento da pena de prisão anterior, o Arguido frequentou um programa de intervenção técnica denominado “Gerar Percurso Sociais”, entre .../2019 e .../2020.
42. No contexto prisional atual, o Arguido tem apresentado um comportamento adequado às normas e regras institucionais, não sendo conhecidos incidentes disciplinares, mantendo-se inativo em termos formais embora tenha solicitado ocupação formativa, participando em atividades socio ocupacionais, continuando a dispor apoio do exterior, recebendo visitas bissemanais dos familiares, nomeadamente da mãe, da ex-companheira, dos filhos, da enteada, de outros familiares e amigos.
43. No âmbito do processo comum coletivo com o n.º 5076/11.2T3AMD, do Juízo de Grande Instância Criminal de Sintra – Juiz 1, 1.ª secção, por acórdão proferido no dia 21-12-2012, transitado em julgado no dia 09-09-2013, o Arguido foi condenado como coautor de 1 (um) crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º, do Código Penal, por factos ocorridos no dia ...-...-2011, na pena de 12 (doze) anos de prisão efetiva.
44. O Arguido esteve em prisão no âmbito dos autos indicados em 34., desde o dia 25-01-2012 e permaneceu ininterruptamente preso até ao dia 25-01-2018, data em que foi desligado daqueles autos e posteriormente ligado ao processo n.º 2604/06.9TDLSB, da 1.ª Vara Criminal de Lisboa.
45. Desde o dia 26-01-2018 e até ao dia 11-10-2020, no âmbito de cumprimento sucessivo de penas, o Arguido ficou em cumprimento do remanescente das penas de prisão que lhe foram aplicadas no âmbito dos Processos com os n.ºs 2604/06.9TDLSB, da 1.ª Vara Criminal de Lisboa e 132/09.0PALSB, da 3.ª Vara Criminal de Lisboa.
46. Posteriormente, no dia 12-10-2020, o arguido foi re(ligado) ao processo indicado em 44. para cumprimento do remanescente da pena de prisão em que foi condenado, onde permaneceu ininterruptamente privado da liberdade até ao dia 24-03-2022, data em que foi colocado em liberdade condicional.
47. As finalidades de prevenção, que presidiram à aplicação da pena de prisão aplicada ao arguido no processo mencionado em 43. não foram atingidas.
48. E com a prática dos factos ora imputados, manifestou um total desinteresse pela solene sanção contida na anterior condenação de que já havia sido alvo, pela prática de um crime de homicídio, e bem assim pela pena de prisão que por tal condenação já cumpriu parte, não tendo a mesma servido de suficiente advertência contra o crime praticado.
49. O Arguido sofreu os seguintes períodos de detenção:
a) Entre 08.02.2005 e 10.04.2008, à ordem do Proc. n.º 96/05.9PCAMD, da 7ª Vara Criminal – 1ª Secção –Lisboa (3 anos, 2 meses e 2 dias);
b) Entre 10.04.2008 e 21.11.2008, à ordem do Proc. n.º 2604/06.9TDLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa, tendo sido libertado aos 2/3 da pena (7 meses, 1 semana e 4 dias);
c) Entre 25.01.2012 e 25.01.2018, à ordem do Proc. n.º 5076/11.2T3AMD, do Juízo Central Criminal de Sintra (6 anos);
d) Entre 25.01.2018 e 13.04.2019, à ordem do Proc. n.º 2604/06.9TDLSB, supradito (2 ano, 2 meses, 2 semanas e 5 dias);
e) Entre 13.04.2019 e 12.10.2020, à ordem do Proc. n.º 132/09.0PALSB, do Juízo Central Criminal de Lisboa (1 ano, 5 meses, 4 semanas e 1 dia);
f) Entre 12.10.2020 e 24.03.2022, à ordem do Proc. n.º 5076/11.2T3AMD, do Juízo Central Criminal de Sintra, tendo sido libertado aos 2/3 da pena (1 ano, 5 meses, 1 semana e 5 dias);
g) Desde 05.02.2024, à ordem dos presentes autos (9 meses e 2 dias)
50. Do certificado do registo criminal do Arguido consta:
i) Uma condenação no processo n.º 96/05.9PCAMD, tendo sido condenado pela prática de um crime de roubo, um crime de furto qualificado e um crime de furto simples, praticados em ........2005, e por acórdão de 07.02.2006 e transitada em julgado a 29.05.2006, na pena de 3 anos e 9 meses de prisão.
(ii) Uma condenação no processo n.º 2604/06.9TDLSB, tendo sido condenado pela prática de um crime de roubo agravado, praticado em ........2005, e por acórdão de 21.12.2007 e transitada em julgado a 18.02.2008, na pena de 5 anos de prisão.
Foi realizado cúmulo das penas aplicadas nos processos (i) e (ii), sendo aplicada a pena única de 5 anos de prisão.
(iii) Uma condenação no processo n.º 132/09.0PALSB, tendo sido condenado pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, praticado em ........2009, e por acórdão de 14.12.2010 e transitada em julgado a 26.01.2011, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa por igual período e sujeita a regime de prova. A suspensão da pena foi revogada em 09.06.2015, determinando-se o cumprimento da prisão efetiva.
(iv) Uma condenação no processo n.º 5076/11.2T3AMD, tendo sido condenado pela prática de um crime de homicídio simples, praticado a ........2011, por acórdão de ........2012 e transitado em julgado a …….2012, na pena de 12 anos de prisão».
*
E os seguintes factos não provados:
«1. Ao ver AA a aproximar-se, o Arguido exaltou-se e, na presença dos agentes da PSP, deslocou-se na direção dela e, com força, retirou-lhe a chave do estabelecimento comercial que ela segurava na mão, recusando-se a entregá-la, dizendo: “Hoje ninguém vai entrar aí!”.
2. E depois de os agentes da PSP lhe terem pedido para devolver a chave do estabelecimento comercial a AA, proprietária do mesmo, para que ela pudesse proceder ao encerramento e à limpeza do estabelecimento comercial, o Arguido manteve o seu comportamento exaltado, esbracejando irritado e proferindo palavras impercetíveis em crioulo, ao mesmo tempo que apontava o dedo contra AA.
3. Atento o estado de exaltação do Arguido, e de forma a evitar alguma agressão mais física, o agente da PSP EE, aproximou-se dele para o algemar.
4. Nessa altura, o arguido dirigiu-se novamente a AA, esticou os braços na direção dela e agarrou-a novamente com força pelos cabelos.
5. O arguido apenas cessou tal comportamento, porque o agente da PSP EE o agarrou e o afastou de AA.»
*
A sentença recorrida fundamentou a decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:
«O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade apurada com base na conjugação das declarações do Arguido, com as declarações da Ofendida (…), e das testemunhas FF (...), GG (empregada de supermercado), EE (agente da PSP) e HH (amigo do Arguido) e DD (mãe dos filhos do Arguido), nos termos infra especificados.
Tomou, ainda, em consideração o Tribunal os documentos juntos aos presentes autos, nomeadamente, auto de notícia de fls. 3/8, certidão do acórdão do processo n.º 2604/06.9TDLSB junta a fls. 111/124, certidão do acórdão do processo n.º 132/09.0PALSB, junta aos autos a fls. 192/198, certidão do processo 96/05.9PCAMD junta a fls. 219/256, certidão do acórdão do processo n.º 5076/11.2T3AMD, junta aos autos a fls. 290/307, relatório social elaborado pela DGRSP junto a 15.10.2024 e informação da DGRSP junta a 28.10.2024 e no CRC junto aos autos a 02.10.2024 , nos termos infra especificados.
*
No que respeita aos pontos 1. a 23. da matéria de facto provada, atinentes ao que ocorreu dentro do estabelecimento comercial e da Ofendida, teve o tribunal em consideração as declarações do Arguido, em confronto com as declarações prestadas pelo Arguido e, ainda, pela testemunha HH.
De facto, o Arguido admitiu que, na sequência de uma discussão, e por se encontrar embriagado, puxou os cabelos à Ofendida.
Mais relatou que tendo os seus amigos batido à porta do café, este foi abrir e voltou a puxar os cabelos da Ofendida, continuando com a mão no cabelo da mesma.
Mais admitiu o Arguido que, quando a Ofendida puxou da faca, lhe conseguiu tirar e lhe disse “vou-lhe ensinar a usar”, alegando que não chegou a utilizá-la.
Admitiu, no entanto, que foram os amigos que lhe tiraram a faca da mão.
Ora, as suas declarações, e ainda que alega não se recordar de algumas situações, como a mordidela na mão da ofendida ou a circunstância de esta ter-se deitado no chão, foram em grande parte coincidentes com as da Ofendida.
Esta relatou, de modo honesto e sem tentar exagerar (muito pelo contrário) as atitudes do Arguido, o modo como o Arguido foi entrando e saindo durante o dia do seu estabelecimento, tendo começado a ingerir bebidas alcoólicas logo pela [manhã].
A Ofendida relatou, de modo claro, a foram como o Arguido, quando estavam a discutir, lhe puxou os cabelos e, já com os amigos do Arguido no estabelecimento, ela voltou para a sala onde estes estacam e ele voltou a puxar-lhe [o] cabelo
Relatou a circunstância de ter pegado numa faca e o Arguido lhe ter conseguido tirar a mesma, não chegando a apontar para si e tendo os amigos do Arguido intervindo, por forma a retirar-lhe a faca.
Já a testemunha HH, amigo do Arguido e, segundo as suas declarações, presente no local, não merecer qualquer credibilidade.
Isto porque o seu relato não só é frontalmente oposto ao da Ofendida, como também contrário ao do Arguido.
Vejamos.
Começa por relatar uma “discussão de casal normal”, prosseguindo contando que a II (nome pelo qual chama a Ofendida) “veio com a faca para o BB”, que a conseguiu tirar e “deu ao colega”.
Afirmou que a Ofendida ficou nervosa e veio a gritar.
Assim, do seu relato pareceria que havia sido a Ofendida quem tinha querido, sem que nada o fizesse prever, agredir o Arguido com uma faca, tendo este limitando-se a retirar-lhe a faca da mão.
Ora, após lhe ser perguntado, acabou por admitir que o Arguido puxou os cabelos à Ofendida, tendo esta ido ao chão por forma a tentar que este o largasse, versão completamente diferente do que havia inicialmente contado.
Ademais, e perguntado se o Arguido estaria embriagado (facto confirmado quer pelo Arguido quer pela Ofendida), afirmou a testemunha que havia bebido apenas uns “copinhos”.
Todo o relato desta testemunha foi inverosímil, não só porque contrário ao relatado pelos dois intervenientes (Arguido e Ofendida), como por ter, de forma ostensiva, tentado minimizar o comportamento do Arguido.
No que concerne à factualidade constante dos pontos 24. a 28. atinente à vontade do Arguido em lesar a integridade física da Ofendida, o que conseguiu, provocando-lhe medo pelas expressões que lhe dirigiu, no contexto em que o foram, e sabendo que tais condutas não lhe eram permitidas, teve o tribunal em consideração as declarações da Ofendida, conjugadas com as das testemunhas FF e GG, bem como considerando as regras da experiência comum.
O nervosismo vivenciado pela Ofendida foi pela mesma relatado, embora tenha tentado, no seu discurso, atenuar as consequências da atuação do Arguido, referindo não ter sentido dores na sequência da mordida, apenas ficando “com o sinal do dente”.
A testemunhas FF explicou que a Ofendida lhe pediu o telemóvel para ligar à polícia, sendo que a testemunha GG explicou que a Ofendida se encontrava “um bocadinho aflita”.
No que concerne à factualidade constante dos pontos 29. a 42. da matéria de facto provada, atendeu o Tribunal ao conteúdo do relatório da DGRSP junto aos autos a 15.10.2024.
Já no que respeita aos anteriores processos crime do Arguido, antecedentes criminais do mesmo e períodos em que esteve detido, descritos nos pontos 43. a 50., teve o tribunal em consideração o CRC do Arguido junto aos autos a 02.10.2024, bem como o teor da certidão do processo n.º 5076/11.2T3AMD, junto a fls. 290/307 e a informação da DGRSP junta a 28.10.2024.
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No que respeita à factualidade considerada não provada, constante dos pontos 1. a 5. da matéria de facto provada, entendeu-os dessa forma o Tribunal por entender subsistir a dúvida, razoável, quanto aos mesmos.
De facto, e apesar de a testemunha agente da PSP, EE, ter referido a factualidade em causa, depondo de modo honesto, face à restante prova produzida permanece a dúvida sobre a ocorrência dos mesmos.
Se é verdade que as testemunhas FF e GG explicaram alguma exaltação do arguido, ambos referindo que a testemunha FF o teve de segurar, “para não haver confusões”, a verdade é que nenhum referiu a interação do Arguido com a Ofendida, no exterior, nos moldes descritos na acusação.
Ademais, tendo o Arguido negado a factualidade em causa, também a Ofendida não relatou a factualidade em causa.
Deste modo, e apesar de recatado por uma testemunha, que se considera honesta e credível, constando ainda do auto constante de fls. 7 dos autos, face à restante prova produzida, entende o Tribunal não se verificar a certeza exigida de que o Arguido tenha procedido como lhe era imputado.
Impõe o princípio in dúbio pro reo que numa situação de “non liquet na questão da prova tem que ser valorado sempre a favor do arguido”, sendo que o princípio da “presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus da prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o principio contrário ao da presunção da inocência”.
Entende-se que “a dúvida que há de levar o tribunal a decidir «pro reo», tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária”.
Deste modo, verifica-se que “o princípio “in dubio pro reo” não é mais que uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável”.
Face à prova produzida, nos termos supra expostos, não pode o Tribuna deixar de, pelo menos, duvidar de forma razoável, relativamente à factualidade considerada como não provada, impondo-se que decida de forma favorável ao Arguido.
(…)»
***
B) APRECIAÇÃO DO RECURSO
Conforme acima enunciado, face às conclusões do recorrente, são as seguintes as questões a apreciar:
1. Impugnação da matéria de facto; e
2. Qualificação jurídico penal.
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1. Impugnação da matéria de facto:
O recorrente manifesta a sua discordância quanto à decisão da matéria de facto, defendendo que os factos constantes dos pontos 10, 11, 16 a 20 e 24 a 27 dos factos provados “foram incorretamente julgados”.
Defende que o facto constante do ponto 10 deveria ser dado como não provado. Do facto constante do ponto facto 11 apenas deveria ser dado como provado que os dois amigos do arguido bateram à porta.
Devem ser aditados os dois seguintes factos:
- 14-A. AA, não conseguindo soltar-se, saiu da cozinha e voltou para a sala, onde os amigos do arguido tentaram agarrar na mão dele, ao mesmo tempo que diziam “para com isso, ela é uma mulher”; e
- 14-B. De seguida, AA deitou-se no chão da sala, com o propósito de soltar a mão do arguido, o que não logrou conseguir, pelo que se levantou e foi para a cozinha de novo, mantendo o arguido a mão no seu cabelo.
Os factos constantes dos pontos 16, 17, 18, 19 e 20 devem passar a ter a seguinte redação:
- 16. Nessa altura, os amigos do Arguido, disseram-lhe, “tenham cuidado, isso não é coisa que se faça.
- 17. Nesse momento, o arguido retirou a faca da mão de AA e, munido com a referida faca, dirigiu-se à mesma e disse-lhe “Vais-me dar com a faca? Eu agora vou-te mostrar como é que se dá com a faca!”;
- 18. De seguida, os amigos do arguido conseguiram retirar-lhe a faca da mão.
- 19. Quando AA se encontrava deitada no chão (facto 14-B), arranhou o arguido na cara e, ato contínuo, este desferiu-lhe uma mordidela na mão direita.
- 20. AA não necessitou de tratamento hospitalar, não teve dores, ficando apenas com um sinal do dente.
Os factos constantes dos pontos 24, 26 e 26 devem ser dados como não provados e o facto 15 deve passar a prever, apenas, que o arguido quis ofender o corpo e a saúde da ofendida, com base na jurisprudência que cita, argumentando que os factos constantes dos números anteriores (a estes) não podem ser qualificados como integrando o crime de violência doméstica, mas apenas o crime de ofensa à integridade física simples.
Indica as partes, que transcreve do depoimento da ofendida, como a prova que, na sua maneira de ver, impunha decisão diversa.
Nos termos do artº 412º, nº 3 do Código de Processo Penal, quando o recorrente impugne a matéria de factos, pretendendo o seu reexame, deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa (e, se for o caso, as provas que devem ser renovadas).
Ora, quando a prova tiver sido gravada, como ocorre no caso em apreciação, o recorrente deve indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Em tal caso, “o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa” (artº 412º, nº 6 do Código de Processo Penal).
Uma vez que o recorrente cumpre todas as referidas indicações, estando-se perante a impugnação ampla da matéria de facto, importa analisar se a prova produzida e gravada impõe decisão diversa.
A citada norma esclarece que, para além das “passagens indicadas” o tribunal deve ouvir “outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa”. Assim, é relevante, desde logo, a audição dos depoimentos completos em causa, porquanto, na normalidade das situações, a leitura ou audição de excertos desgarrados e descontextualizados de determinados depoimentos, por o serem, não permite entender o completo sentido e alcance do seu conteúdo.
Importa, porém, esclarecer que, nem todos os factos são objeto de pronúncia e de prova.
Em termos de aquisição processual, é pacífico que os factos sobre os quais deve recair o julgamento são tanto os trazidos pela acusação ou pronúncia, pelo pedido de indemnização civil e pela contestação, como os que resultem da discussão da causa.
Todos os referidos conjuntos de factos, nos termos do artº 358º, nº n.º 2 do Código de Processo Penal, têm de ser “relevantes para as questões de saber:
a) Se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime;
b) Se o arguido cometeu crime ou nele participou;
c) Se o arguido atuou com culpa;
d) Se se verifica alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa;
e) Se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança;
f) Se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil”.
De igual modo e com igual âmbito, o artº 124º do Código de Processo Penal delimita os factos que podem ser objeto de prova em processo penal, ao estabelecer, no seu nº 1, que “constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis”, a que acrescem, nos termos do seu nº 2, “os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil”.
Pelas razões expostas, não são todos os factos constantes das referidas peças processuais ou que resultem da discussão da causa que têm de ser objeto de prova e decisão (como provados ou não provados) na sentença, mas apenas os factos essenciais, sendo estes os relevantes enquanto constitutivos do tipo de crime, do seu cometimento ou participação pelo arguido, da culpa deste, que constituem alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa, que constituam pressupostos de punibilidade do agente, que permitam a escolha e determinação da pena ou a aplicação de medida de segurança e os relativos aos pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil (neste sentido se pronunciou, entre outros, o Ac. RP de 13/09/2021, relatado por Jorge Langweg e proferido no processo nº 7695/19.0T9PRT.P1).
De fora - do dever de serem elencados nos factos provados ou não provados da sentença e, como tal, fora do objeto da impugnação da decisão da matéria de factos - ficam todos os outros factos, designadamente os irrelevantes, supérfluos e acessórios, mas também os próprios meios de prova e os factos instrumentais para a valoração das provas (nomeadamente as razões que possam levar a atribuir maior ou menor credibilidade aos depoimentos, como por exemplo a razão de ciência de determinada testemunha). Estes dois últimos elementos serão considerados na motivação da decisão sobre a matéria de facto, mas não têm, nem devem, ser levados aos factos provados ou não provados da sentença e, como tal, estão fora do objeto da impugnação da decisão da matéria de facto.
Neste sentido se pronunciou o Ac. S.T.J. de 11/2/1998 (in B.M.J. nº 474, p 151), nos termos do qual “não existe violação do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal por nem todos os factos constantes da acusação/pronúncia e da contestação terem sido enumerados como provados ou não provados. Só os factos essenciais para a decisão da causa têm de constar dessa enumeração”.
De igual modo, quanto a quais são os referidos factos essenciais, também o S.T.J. se pronunciou no sentido acima referido, no seu Ac. de 15/01/1997 (in C.J., tomo I, pág. 181), nos termos do qual “a obrigação legal de na sentença se fazer a descrição dos factos provados e não provados refere-se aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou na contestação”.
Em idêntico sentido e mais recente, temos, entre os outros, o Ac. RP de 13/09/2021, relatado por Jorge Langweg, proferido no processo nº 7695/19.0T9PRT.P1.
De igual modo e pelas mesmas razões, por força das disposições que temos vindo a citar e em especial nos termos do artº 124º do Código de Processo Penal, não constituem objeto da prova os meios de prova, precisamente por serem meios de prova e não factos.
Neste sentido se pronunciou (entre outros) o Ac. RL de 07/12/2021, relatado por Manuel Advínculo Sequeira, em cujo sumário se pode ler que “os meios de prova demonstram-se em si mesmos, para além de, legalmente, terem por objeto factos e não outros meios de prova, ou de obtenção desta, princípio geral enunciado no nº 1 do artº 124º do Código de Processo Penal”.
Fazemos esta precisão, porquanto, parte dos factos que o recorrente pretende ver alterados não são factos essenciais e, como tal, estão fora do objeto da impugnação da matéria de factos.
Vejamos, então se a prova produzida impõe decisão diversa quanto aos factos essenciais impugnados e quais os factos não essenciais impugnados.
Da audição completa do depoimento da ofendida (declarações para memória futura) e apreciado este à luz em conjugação com as regras da experiência comum se retira, sem qualquer margem para dúvida, a efetiva verificação dos factos essenciais dados como provados e ora recursivamente impugnados, sendo os demais factos recursivamente impugnados não essenciais, nos termos supra assinalados.
Efetivamente, a ofendida, nas suas declarações para memória futura, relatou a factualidade que resultou provada, em especial as condutas do arguido consistentes nas agressões (os vários puxões de cabelos e a dentada) e nas ameaças que lhe dirigiu e que resultaram provadas, fazendo-o de forma circunstanciada e esclarecedora, nada resultando do seu depoimento que pudesse suscitar alguma dúvida sobre a veracidade do por si relatado, tanto mais que os presenciou e sofreu.
De igual modo, o arguido, confessou em parte tal factualidade, admitindo ter discutido com a ofendia, ter-lhe puxado os cabelos, e que o voltou a fazer após abrir a porta aos amigos. Admitiu ainda ter tirado a faca à ofendida, tendo-lhe dito que a ia “ensinar a usar” e que foram os amigos que lhe tiraram a faca.
A própria testemunha HH, embora tentando minimizar o comportamento do arguido (seu amigo) acabou por relatar a discussão ocorrida entre o arguido e a ofendida, que o arguido lhe puxou os cabelos, tendo a ofendida ido ao chão.
Provadas que estão as agressões que o arguido infligiu na ofendida, necessariamente que, à luz das regras da experiência comum e de acordo com um juízo de normalidade social, se impõe a conclusão de que a ofendida ficou amedrontada, mesmo que o não tenha dito expressamente nas suas declarações.
De igual modo, provada que está a discussão ocorrida entre o arguido e a ofendida e que aquele a agarrou com força pelo cabelo, que puxou, de acordo com as referidas regras de experiência e normalidade do agir, esta gritou e quem se encontrava por perto necessariamente ouviu.
Outrossim, a dentada que o arguido deu na mão da ofendida, tendo deixado a marca dos dentes na zona atingida, não foi só um mero encosto, pelo que, seguramente, causou dores e hematoma (ainda que este pudesse ter sido ligeiro).
Pelas razões expostas, os factos essenciais dados como provados nos pontos 10., 11. e 16. a 20. dos factos provados da sentença, resultam do depoimento da ofendida, conjugado com as demais provas acima referidas e analisadas à luz e em conjugação com as regras da experiência comum.
Igualmente dos elementos probatórios acima referidos, em conjugação com as regras da experiência comum e face à prova dos factos (provados) referidos no ponto anterior, se conclui pela efetiva verificação dos factos integradores dos elementos subjetivos das condutas provadas do arguido, constantes dos pontos 24 a 27 dos factos provados. Ademais é, assim, redutora e insubsistente a alteração que o arguido pretende introduzir à redação no ponto 25. dos factos provados.
Não constituem factos essenciais, terem os amigos do arguido ouvido ou não a ofendida a gritar, ter ou não sido por isso que bateram à porta, bem como, a pormenorizada diferença sequencial que o arguido pretende introduzir em tais factos, sendo que, os factos novos ou a nova versão daqueles, não se tratando de factos alegados, nem na acusação, nem na contestação e não constando dos factos não provados da sentença, estão fora do âmbito da impugnação da matéria de facto.
Deste modo se conclui que a prova produzida não impunha decisão diversa da matéria de facto, antes dela resultando que se devem manter como provados, na sua redação original, os factos constantes dos pontos 10., 11., 16. a 20 e 24 a 27 dos factos provados da sentença recorrida, nem sequer havendo lugar ao aditamento de quaisquer factos novos.
Na verdade, e segundo é pacífico, tanto na doutrina como na jurisprudência, a impugnação ampla da matéria de facto não se destina, em sede de recurso, a efetuar um novo julgamento da causa, mas sim a corrigir concretos erros de julgamento e, portanto, quanto a concretos pontos em que houve uma errada decisão da matéria de facto.
Acresce que, ouvida a prova gravada, em especial o depoimento da ofendida, corroborado em parte pelos demais depoimentos, à luz e em conjugação com as regras da experiência comum, é manifesto que o Tribunal recorrido apenas se poderia convencer no sentido em que formou a sua convicção.
A reapreciação da matéria de facto, com a audição da prova gravada, não se destina a formar uma nova convicção pelo Tribunal de recurso, mas apenas a sindicar erros de julgamento do Tribunal de primeira instância, segundo é pacífico na jurisprudência e na doutrina. Vale por dizer que, havendo depoimentos a relatar os factos provados – e há-os e são aqueles em que o Tribunal recorrido se baseou para dar como provados os factos que deu - e tendo o Tribunal recorrido valorado tais depoimentos para dar aqueles como provados, afastado está qualquer erro de julgamento a corrigir. Questão diversa é a de ser possível, a partir dos depoimentos prestados, formar duas diferentes convicções, sendo uma a que o Tribunal recorrido formou e outra diversa a que o arguido pretendia que se tivesse formado. Neste caso, não se destinando o recurso da matéria de facto a efetuar um novo julgamento, não pode o Tribunal de recurso substituir a convicção daquele por outra, ainda que possível. Será bom não se olvidar que, enquanto o Tribunal aprecia objetivamente a prova, já o arguido fá-lo do seu ponto de vista, necessariamente subjetivo e interessado.
Assim, tendo o Tribunal de recurso, ao ouvir a prova gravada, concluído, como efetivamente concluiu, que a factualidade em apreciação e dada como provada, nos termos em que o foi, foi relatada pelos depoentes em cujas declarações o Tribunal recorrido fundou a sua convicção para dar tais factos como provados, como ocorre na situação em apreciação, temos de julgar o recurso improcedente, nesta parte.
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2. Da qualificação jurídico-penal
O recorrente defende que os factos praticados pelo arguido, não tendo a sua conduta assumido “um caráter violento, nem a sua configuração global revelou desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, uma vez que foi não foi percecionada como tal”, não pode ser qualificada como “maus tratos”, mas apenas como ofensa à integridade física simples. Admitindo este crime desistência de queixa e tendo a ofendida já declarado não desejar procedimento criminal, deve ser determinado o arquivamento dos autos.
Vejamos se os factos integram ou não os elementos típicos do crime de violência doméstica previsto e punido nos termos do artº 152º, nº 1, alínea b) do Código Penal, como qualificado pela sentença recorrida.
De acordo com esta norma, “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns” a pessoa “com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação”, “é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”.
Da expressão “de modo reiterado ou não”, resulta ter deixado de ser elemento do tipo a reiteração das condutas previstas nesta norma, pondo-se termo a uma querela doutrinária e jurisprudencial que dividia quem exigia a reiteração, por um lado, e quem a dispensava, por outro.
Porém, como bem se refere no Acórdão do TRE de 25/03/2010 (proferido no processo nº 345/07.9PAENT.E1, relatado por Correia Pinto, consultável in dgsi.pt) com a atual configuração do crime de violência doméstica, efetuada pela Lei nº 59/2007, não se pretendeu integrar neste crime “todo e qualquer ato de agressão entre cônjuges ou ex-cônjuges, de modo a que deixe de ser configurável, entre tais intervenientes, a incriminação do artigo 143º do Código Penal”.
Contudo, como igualmente se assinala no referido Acórdão, “não se exigindo comportamentos reiterados” para o cometimento do crime de violência doméstica é necessário um “comportamento que se possa qualificar como maus tratos, o que não ocorre com qualquer agressão; ou seja, a configuração do crime pressupõe a existência de maus tratos físicos e psíquicos, ainda que praticados de uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, traduzindo, nomeadamente, atos de crueldade, insensibilidade ou vingança da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação”.
Como esclarece Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal, em anotação do artº 152º), estamos perante “um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima”, sendo que “o tipo objetivo inclui as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal”.
O agente visa, normalmente, através de tais condutas ilícitas e intimidatórias, obter domínio sobre a vítima, no âmbito da relação que os liga ou humilhando-a e vingando-se face à cessação da relação que mantinham.
A norma protege também relações de namoro, ao prever expressamente “relação de namoro (…), ainda que sem coabitação”.
Como assinala Paulo Pinto de Albuquerque (in obra e local acima citados), os “maus tratos físicos” correspondem nomeadamente ao crime de ofensa à integridade física simples enquanto que os “maus tratos psíquicos” correspondem designadamente aos crimes de ameaça, coação, difamação e injurias.
No caso em apreciação, os factos praticados pelo arguido contra AA, quer pela sua gravidade, quer no contexto de relação de namoro, quer ainda no contexto de agressividade e desejo confesso de domínio por parte do arguido (“hoje vais ver quem manda”), em que foram praticados, encontram-se completamente dentro do âmbito de proteção da norma incriminadora do crime de violência doméstica.
Vejamos porquê.
O arguido e a vítima namoravam à data dos factos (relação que durava desde o final do Verão de ...). No âmbito dessa relação mantinham discussões desde há alguns dias, até que o arguido decidiu impor, pela força e intimidação, a sua vontade à sua namorada, começando por lhe dizer “hoje vais ver quem manda aqui”. E é nesse contexto que ocorreram as agressões e as ameaças provadas. Aquelas, pela repetição e intensidade dos puxões de cabelo e pela dentada, assumem alguma gravidade e revelam, não só uma elevada energia criminosa por parte do arguido, mas também a sua intenção de a humilhar AA e de assumir, pela força, uma posição de domínio no seio da relação de namoro que mantinha com a vítima, “vergando” a vontade desta à sua. E até persistindo nas agressões, mesmo após a chegada dos seus amigos, e na presença destes, numa clara demonstração de pretender humilhar (publicamente) a vítima.
Estamos, assim, perante condutas do arguido praticadas no contexto da sua relação de namoro com a vítima, colocando-a numa posição vulnerável, consistentes essencialmente em maus tratos físicos (puxou-lhe consecutivamente os cabelos, com força, insistentemente e por várias vezes e mordeu-a na mão, deixando nesta a marca dos seus dentes), mas também psíquicos (ameaçando dar-lhe com a faca), reveladores de grande violência e agressividade por parte do arguido e que claramente se enquadram, tanto na letra como no espírito e, portanto, no âmbito de proteção da norma constante do artº 152º, nº 1, al. b) do Código Penal.
Concluímos, assim, que a conduta do arguido integra todos os elementos típicos do crime de violência doméstica pelo qual foi condenado, pelo que nenhuma censura nos merece a qualificação jurídico penal efetuada pela douta sentença recorrida. Prejudicada fica, assim, a necessidade de queixa.
Improcede, deste modo, também este segmento do recurso.
***
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordamos em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, a douta sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça por si devida em 4 (quatro) UC.
Comunique de imediato à primeira instância
*
Lisboa, 3 de abril de 2025
Os Juízes Desembargadores, Eduardo de Sousa Paiva Diogo Coelho de Sousa Leitão Ana Paula Guedes