REPARTIÇÃO DE CULPAS
DOSIMETRIA DA PENA
INDEMNIZAÇÕES
Sumário

A factualidade alegada pelo recorrente apenas em sede de recurso não faz parte do objecto do processo, pois não foi levada a julgamento, nem submetida ao contraditório, não podendo o Tribunal de recurso dela conhecer.
Mesmo que não tenha havido impugnação da matéria de facto, o Tribunal de recurso pode, com fundamento na factualidade apurada, verificar se a sentença recorrida fez uma correcta repartição de culpas entre o arguido e o ofendido, no que respeita à responsabilidade de cada um deles na produção do acidente em apreço nos autos.
A alteração da repartição de culpas entre o arguido e o ofendido tem impacto na dosimetria da pena de multa a aplicar ao arguido, assim como se reflete nos vários segmentos das indemnizações atribuídas aos lesados.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1– Relatório

No processo nº 2839/20.1T9STB do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Local Criminal de … - Juiz …, por sentença datada de 2/05/2024, foi o arguido AA condenado:

- na parte criminal: como autor material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física por negligência grave, cometido sobre a pessoa de BB, p. e p. pelo art.º 148º, nºs 1 e 3 do Cód. Penal, por referência aos arts.º 13º, 15º, alíneas a) e b), e 144º, al. d), do mesmo diploma legal, bem como por referência ao disposto nos arts.º 18º, nº 1 e 24º, nº 1, ambos do Cód. Estrada, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), perfazendo a quantia de € 1.260,00 (mil, duzentos e sessenta euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 (seis) meses, nos termos do art.º 69º, n.º 1, al. a) do Cód. Penal;

- na parte cível:

A) a pagar a BB as quantias de:

. € 1.912,44 (mil, novecentos e doze euros e quarenta e quatro cêntimos), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 2.732,05 (dois mil, setecentos e trinta e dois euros e cinco cêntimos), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de compensação do dano não patrimonial estético sofrido na sua esfera jurídica por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data desta sentença até efectivo e integral pagamento;

. € 2.549,93 (dois mil, quinhentos e quarenta e nove euros e noventa e três cêntimos), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 3.642,75 (três mil, seiscentos e quarenta e dois euros e setenta e cinco cêntimos), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de compensação do dano não patrimonial atinente ao quantum doloris na sua esfera jurídica por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data desta sentença até efectivo e integral pagamento;

. € 11.761,01 (onze mil, setecentos e sessenta e um euros e um cêntimo), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 16.801,44 (dezasseis mil, oitocentos e um euros e quarenta e quatro cêntimos), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de compensação do dano não patrimonial atinente aos dias de incapacidade temporária para o trabalho sofridos, maxime os dias de internamento, projectado negativamente na sua esfera jurídica por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data desta sentença até efectivo e integral pagamento;

. € 4.900,00 (quatro mil e novecentos euros), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 7.000,00 (sete mil euros), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de compensação dos danos não patrimoniais referente às repercussões na sua vida laboral sofrido na sua esfera jurídica por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data desta sentença (2-5-2024) até efectivo e integral pagamento, absolvendo o demandado do demais peticionado neste concreto domínio;

. € 1.743,00 (mil, setecentos e quarenta e três euros), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 2.490,00 (dois mil, quatrocentos e noventa euros), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de ressarcimento dos danos patrimoniais respeitantes aos bens destruídos no acidente sofridos na sua esfera jurídica por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento;

. € 2.294,88 (dois mil, duzentos e noventa e quatro euros e oitenta e oito cêntimos), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 3.278,40 (três mil, duzentos e setenta e oito euros e quarenta cêntimos), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de ressarcimento dos danos patrimoniais respeitantes às perdas salariais (rectius dos suplementos remuneratórios) por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.

. € 239,30 (duzentos e trinta e nove euros e trinta cêntimos), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 341,86 (trezentos quarenta e um euros oitenta e seis cêntimos), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de ressarcimento dos danos patrimoniais sofridos na sua esfera jurídica com as despesas incorridas com as consultas médicas, aquisição de medicamentos e de outras despesas de farmácia, com exames de diagnóstico complementares, tudo por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento;

. € 17.785,60 (dezassete mil, quatrocentos e oito euros e sessenta), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 25.408,00 (vinte e cinco mil, quatrocentos e oito euros), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de compensação do dano biológico sofrido na sua esfera jurídica, por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data desta sentença até efectivo e integral pagamento;

B) a pagar ao CENTRO HOSPITALAR DE …. a quantia de € 19.130,66 (dezanove mil, cento e trinta euros e sessenta e seis cêntimos), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 27.329,51 (vinte e sete mil, trezentos e vinte e nove euros e cinquenta e um cêntimos), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, para ressarcimento pelas despesas médicas incorridas por aquela instituição hospitalar, acrescida dos juros contados, à taxa legal de 4 %, desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado.

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Inconformado com a decisão condenatória, veio o arguido interpor recurso, pugnando pela diminuição da pena de multa e dos montantes indemnizatórios em que foi condenado, para o que formulou as seguintes conclusões, após despacho de aperfeiçoamento:

“A) O arguido foi condenado como autor material e na forma consumada de 1 (um) crime de ofensa à integridade física por negligência grave, cometido sobre a pessoa de BB, p. e p. pelo art. 148.º, n.ºs 1 e 3 do Cód. Penal, por referência aos artigos 13.º, 15.º, alíneas a) e b), e 144.º, al. d), do mesmo diploma legal, bem como por referência ao disposto nos artigos 18.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1, ambos do Cód. Estrada, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), perfazendo a quantia de €1.260,00 (mil, duzentos e sessenta euros)

B) Condenou-se ainda o arguido supra id. na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 (seis) meses, nos termos do art. 69.º, n.º 1, al. a) do Cód. Penal.

C) Condenou-se o arguido, ora demandado, AA, a pagar a quantia de € 1.912,44 (mil, novecentos e doze euros e quarenta e quatro cêntimos), a título de compensação do dano não patrimonial atinente ao quantum doloris na sua esfera jurídica por causa do crime de ofensa à integridade física grave, a pagar-lhe a quantia de € 11.761,01 (onze mil, setecentos e sessenta e um euros e um cêntimo), a título de compensação do dano não patrimonial atinente aos dias de incapacidade temporária para o trabalho sofridos, a pagar-lhe a quantia de € 4.900,00 (quatro mil e novecentos euros), a título de compensação dos dano não patrimonial referente às repercussões na sua vida laboral, a pagar-lhe a quantia de € 1.743,00 (mil, setecentos e quarenta e três euros), a título de ressarcimento dos danos patrimoniais respeitantes aos bens destruídos no acidente sofridos na sua esfera jurídica por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, a pagar-lhe a quantia de € 2.294,88 (dois mil, duzentos e noventa e quatro euros e oitenta e oito cêntimos), a título de ressarcimento dos danos patrimoniais respeitantes às perdas salariais, a pagar-lhe a quantia total de € 239,30 (duzentos e trinta e nove euros e trinta cêntimos), a título de ressarcimento dos danos patrimoniais sofridos na sua esfera jurídica com as despesas incorridas com as consultas médicas, aquisição de medicamentos e de outras despesas de farmácia, a pagar-lhe a quantia total de € 17.785,60 (dezassete mil, quatrocentos e oito euros e sessenta), a título de compensação do dano biológico sofrido na sua esfera jurídica, a pagar-lhe a quantia de € 19.130,66 (dezanove mil, cento e trinta euros e sessenta e seis cêntimos), para ressarcimento pelas despesas médicas incorridas por aquela instituição hospitalar, tudo no valor global de € 65.686,42

D) O Recurso interposto pelo Arguido é-o nos termos do disposto nos arts. 399.º, 401.º n.º 1 al. b), art.º 406.º, art.º 408.º n.º 1 al. a) e art.º 410.º n.º 2, al. b), artº 427º e artº 428 º todos do Código do Processo Penal, versando portanto, matéria de direito.

E) O Arguido explicou ao Douto Tribunal os circunstancialismos da sua conduta: cumpriu ordens emanadas do seu superior hierárquico que não podem resultar estranhas, na dinâmica dos momentos anteriores ao sinistro: uma fuga, em excesso de velocidade, em velocípede sem matricula, nem iluminação, em e desobediência de um condutor á ordem de paragem.

F) A obediência hierárquica é referida no art. 271.º, n.º 3 da C.R.P. e, no plano ordinário, no art. 36.º, n.º 2 do Cód. Penal, sendo verdade que o dever de obediência hierárquica cessa quando conduzir à prática de um crime, conquanto, em casos limite, tal obediência possa ser subsumível à causa de justificação “genérica” de cumprimento de um dever, prevista no art. 31.º, n.º 2 do Cód. Penal.

G) Enquanto causa de justificação, a obediência hierárquica abrange os deveres de obediência no domínio do Direito público, v. g. nos militares e, o Arguido, é um militar da GNR,

H) Por isso mesmo, estava vinculado às ordens que lhe foram passadas pelo superior hierárquico, sob pena de infracção disciplinar se tivesse recusado cumpri-las,

I) Estando como estava à mercê daquele em moldes porventura difíceis de computar sendo um civil, mas facilmente compreensíveis para quem conhecer minimamente os usos e costumes dos militares.

J) Assim, se nos termos dos artigos 271.º, n.º 3 da C.R.P., e 36.º, n.º 2 do Cód. Penal, o dever de obediência hierárquica cessa quando conduzir à prática de um crime,

K) Ocorre todavia que, no presente caso, não se cometia nenhum crime (quanto muito, uma contra-ordenação – excesso de velocidade e/ou desrespeito pela sinalética vertical - o que é bem diferente).

L) O crime verificado é superveniente à contraordenação e, sejamos francos, ninguém ali imaginaria o que viria a suceder:

M) Nem a vítima que se não colocaria nessa situação se conhecesse o resultado ou o perfilasse como consequência directa, necessária e causal da sua conduta.

N) Nem o arguido que, no estrito cumprimento das ordens recebidas, assumiu que nenhum sinistro teria lugar (e sim, deveria ter computado essa possibilidade, mas uma possibilidade não é uma inevitabilidade),

O) Nem o seu superior hierárquico, cuja obrigação enquanto agente de autoridade máxima ali presente, era zelar pelo bem comum da ordem e paz publicas, traduzindo-se isso na sua lógica de raciocínio do momento e da respectiva pressão – como em tantos outros casos, em situações similares, para quem dedica a sua vida a servir o próximo nestes moldes – de lograr interceptar um irresponsável jovem que conduzia como o ofendido conduzia, sem matricula, sem luz, sem respeito pelas regras segurança rodoviária e, com absoluto desrespeito pelas ordens emanadas pelas autoridades.

P) Nestes termos, o arguido (inferior hierárquico), estava vinculado ao cumprimento da ordem, sob pena de insubordinação, em cumprimento das ordens que lhe foram dadas na altura pelo seu então superior hierárquico CC – que entretanto faleceu (cf. o comprovativo de assento de óbito de fls. 410 e 411),

Q) Neste caso, o agente tinha o dever legal de proceder à detenção de um condutor de um veículo motociclo sem matrícula, que não acatou a ordem de paragem da patrulha de GNR, encetando, ao invés, fuga do local em alta velocidade, sem, ademais, se mostrar devidamente protegido por equipamento adequado.

R) Não se pretende com isto dizer, desonestamente, que o Arguido não poderá ser responsabilizado pelas consequências da sua conduta (até porque o superior hierárquico lhe deu ordem expressa para deter o ofendido e seguir ao seu encalce até lograr esse objectivo; Não lhe deu ordens para seguir a dois metros de distancia do mesmo; não lhe indicou expressamente o tipo de condução a adoptar, entenda-se.)

S) Pretende-se sim que a compreensão de toda a dinâmica situacional do Arguido tem de resultar, na nossa modesta opinião, numa diminuição da sua ilicitude e da sua culpa.

T) Concomitantemente, na apreciação das culpas concorrentes na produção dos factos que deram origem ao sinistro e às consequências no sinistrado é flagrante que, da factualidade dada como apurada, existiu uma efectiva e flagrante situação do concurso de culpas na produção do acidente,

U) A Sentença recorrida dá como provado que a circulação rodoviária do motociclo dos presentes autos, circulava além do mais, sem matrícula em plena via pública levada a cabo pelo lesado BB que não estava autorizado a tal,

V) Seu como provado, o desrespeito pelo então vigente dever geral de recolhimento imposto pela Pandemia de COVID-19,

W) Bem como deu como assente o desrespeito pela ordem da paragem dada pela GNR e,

X) E ainda, estabeleceu como facto assente o desrespeito pela vítima, dos limites de velocidade para a zona,

Y) Tendo encetado fuga à autoridade, empreendendo em primeiro lugar, uma conduta temerária e desafiadora,

Z) Conduzindo tal veículo motociclo, nas supra descritas circunstâncias de espaço, modo e tempo, sem estar sequer devidamente equipado com fato de protecção individual,

AA) Ora, foram estes os factores iniciais e decisivos que contribuíram decisivamente não apenas como se diz na Douta Sentença : “ para que o evento danoso ocorresse e, ademais, com as consequências substancialmente mais graves e nefastas para ele.”

BB) Daqui resulta que, embora a fundamentação da Sentença estivesse ponderada e correcta, porque dá como supra ilustramos como assentes o factos essenciais que levaram ao sinistro,

CC) Na verdade, a final decisão, está em contradição insanável com aquela fundamentação, pois que a primeira (a decisão) atira a culpa para o Arguido, no grau em que o faz (70% para o Arguido e apenas 30% para o Assistente), ao arrepio daqueles factos provados- artº 410 nº 2, alínea b) CP – e com consequência numa inadequada fixação da dosimetria da pena encontrada – artº 71º nº 2 CP - a que adiante nos referiremos.

DD) Pois que, todos estes factos dados como provados, levaram à reacção do superior hierárquico do Arguido e, ao cumprimento deste último, das ordens daquele, nos moldes em que o fez,

EE) Sendo isto incontornável e, muito antes de serem qualificadas as consequências daquela condução do ofendido, cuja descrição na decisão recorrida aqui também acompanhamos.

FF) Na determinação concreta da pena o tribunal deveria ter atendido e sopesado todas estas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, clamam a favor do arguido: o grau de ilicitude da sua condução estava mitigado pelo cumprimento de uma ordem clara e precisa, o modo de execução era o idóneo para cumprir as ordens veiculadas e a gravidade das suas consequências eram no momento, muito honestamente, não computáveis.

GG) Na dinâmica dos factos, o grau de violação dos deveres de respeito pelas regras estradais é muito diminuído, conquanto, é absolutamente utópico conceber a possibilidade de interceptar indivíduos que se furtam às ordens emanadas por forças e serviços de segurança…conduzindo dentro dos limites legalmente permitidos.

HH) E tampouco se diga que bastaria ao Arguido anotar a matrícula e prosseguir posteriormente com as diligências probatórias para identificar o então meliante…até porque não havia matricula alguma para anotar.

II) A intensidade da negligência da conduta do Arguido é de longe menor do que a do Ofendido, mas mais – enquanto este último agia por simples impulso contra-ordenacional e concomitantemente criminoso – os sentimentos manifestados no cometimento do crime por parte do Arguido, e os fins ou motivos que o determinaram, estavam ao serviço do combate à criminalidade e contra-ordenacional.

JJ) Tendo o Arguido actuado assim - sob influência e ascendente de pessoa de quem dependia hierarquicamente e a quem devia obediência, a sua pena deveria ter sido especialmente atenuada nos termos do disposto no artº 72, nº 2, alínea a) CP.

KK) Mas, se a culpa do Arguido deveria ser ainda mais diminuída na medida da pena, também o deveria ser em sede do quantum indemnizatório (por danos patrimoniais e não patrimoniais), nos termos do disposto no art. 570.º (“Culpa do lesado”), do Cód. Civil, através do qual é atribuída relevância à culpa do lesado para efeitos, entre outros, de redução do montante indemnizatório.

LL) Assim, tendo ficado provado – como ficou, e bem - que a conduta do lesado concorreu para a produção do facto danoso aqui em questão,

MM) E, concorreu a conduta do ofendido, para a respectiva extensão causada pelo facto danoso,

NN) Assim, seria à luz deste comando legal que o Tribunal a quo, e concretamente, nesta dupla vertente, que se deveria ter fixado os montantes indemnizatórios, reduzindo mais substancialmente os mesmos, em razão da proporcionalidade da culpa do lesado, o que estamos em crer não ocorreu.

OO) O demandante conduziu o seu motociclo sem matrícula, sem seguro de responsabilidade civil, sem iluminação sem equipamento de protecção individual, sem parar, depois de ter sido mandado parar pela patrulha da GNR, sem respeitar o limite de velocidade, e logra o lesado, ainda assim e não obstante todo este circunstancialismo dado como provado pelo Douto Tribunal - e muito bem – obter uma compensação global que ascende a € 65.686,42,

PP) Por tudo isto, estamos em crer que, na nossa modesta opinião, deveria a atribuição das culpas causais do acidente, ser efectuada numa proporção de 45 % (quarenta e cinco por cento) para o demandante BB, enquanto condutor temerário do motociclo, e de 55 % (cinquenta e cinco por cento) para o arguido/demandado, enquanto condutor negligente que, de facto, infelizmente foi, do veículo automóvel GNR…, proporção esta a ter impacto directo na redução das indemnizações que deveriam ter sido concedidas ao demandante cível, nos termos do n.º 1 do art. 570.º, do Cód. Civil.

QQ) Paralelamente, do lado oposto à postura desafiante e criminogena do ofendido, temos um militar que cumpriu zelosamente as ordens que lhe foram dadas pelo seu superior hierárquico,

RR) Não para se cometer o crime que se veio infelizmente verificar,

SS) Mas para fazer aquilo que um militar da GNR deve fazer comummente: restabelecer a ordem, paz e tranquilidade públicas que flagrantemente estavam a ser colocadas em causa pela conduta do demandante.

TT) Não tendo nunca sido alvo de qualquer processo disciplinar,

UU) Nem tendo antecedentes criminais,

VV) Recebendo louvores pela sua prestação em prol dos cidadãos (cf. fls. 765),

WW) Diremos aliás que, as necessidades de prevenção especial são quase inexistentes no que ao Arguido tange, pese embora o seu grau de culpa incontornável mas, com as atenuações acima descritas, sendo que por isso, a pena de multa encontrada na Douta sentença exarada deveria ser reduzida em um terço.

XX) E, estando a responsabilidade do Arguido limitada pela concorrência efectiva das culpas do lesante/lesado, reduzida a 55%, o valor global por todos os pedidos de indemnização por este ultimo peticionado, ascenderia a 44.776,00 (quarenta e quatro mil, setecentos e setenta e seis euros), assim se fazendo a acostumada justiça.”

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O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso do arguido, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida, sem formular conclusões.

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O demandante civil BB também apresentou resposta ao recurso do arguido, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:

“i. O Tribunal a quo condenou o arguido como autor material na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física por negligência grave na pena de cento e oitenta dias de multa à taxa diária de sete euros, perfazendo a quantia de €1.260,00 e a uma pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de seis meses, assim como no pagamento dos encargos do processo.

ii. Tal no que, (com o devido respeito) singelamente foi condenado um arguido que, conforme provado (pontos 13. a 18. dos Factos Provados da Douta Sentença recorrida) conduziu uma viatura automóvel em contra o rodado pneumático traseiro de um motociclo, projetando o corpo do motociclista contra outro veículo automóvel , deixando-o prostrado no pavimento junto ao mesmo e arrastando o motociclo no pavimento pelo veículo matrícula GNR…, então, conduzido pelo arguido, por cerca de 62 (sessenta e dois) metros.

iii. Como consequência directa do embate descrito no ponto 13), BB sofreu fractura de 4.ª-11.ª costelas esquerdas, fraturas de 1.º-3.ª arcos costais a direita, hemopneumotorax bilateral drenado bilateralmente, contusão pulmonar bilateral, choque hemorrágico, contusão cardíaco lesão renal aguda a entrada no SU, rabdomiolise, traumatismo abdominal fechado com pequeno hematoma o ligamento gastrocólico, pequeno hematoma no meso do delgado ao nível do angulo de Treiz; pequeno hematoma no ligamento hépatoduopdenal, hematoma reo-peritoneal, não expansível ou pulsátil, TCE em PC com amnésia lacunar para o ocorrido com TAC CE com focos hemáticos frontais bilaterais, lesões essas que determinaram 493 (quatrocentos e noventa e três) dias de doença, com 90 (noventa) dias de afetação para o trabalho geral e 400 (quatrocentos) dias de afectação para o trabalho profissional.

iv. Tais lesões colocaram em perigo a vida de BB.

v. Do embate resultaram ainda como consequências permanentes para BB cicatriz em número de duas, cada uma com 2cm resultante de drenagem torácica no hemitorax esquerdo, cicatriz operatória abdominal na linha branca com 18cm.

vi. Ora vem o arguido, nas suas alegações de recurso pretender imputar a alguém que faleceu, seu Camarada, uma suposta responsabilidade que nunca suscitou (ou poderia!) antes no processo: dever de obediência hierárquica, quando estabelece o artigo 36.º do Código Penal que (...) 2 - O dever de obediência hierárquica cessa quando conduzir à prática de um crime.

vii. A exclusão da ilicitude de uma conduta penal ilícita realizada pelo arguido, militar da GNR num cumprimento de uma ordem proveniente de um superior hierárquico, ora suscitada e apenas em sede de recurso como dada em matéria de serviço e por motivo do mesmo, apenas poderá ocorrer quando essa ordem seja legítima.

viii. Estabelece o artigo 271.º da Constituição da República Portuguesa (Responsabilidades dos funcionários e agentes) que (...) nº 3. Cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções implique a prática de qualquer crime. (...). A Constituição impõe assim a prevalência do princípio da legalidade sobre o princípio hierárquico.

ix. O dever de obediência hierárquica cessa quando conduz, como é o caso dos autos à prática de um crime.

x. Donde resulta inequivocamente que a responsabilidade criminal não é excluída por efeito do dever de obediência ( vide artigo 36º do Código Penal) e não está isento da responsabilidade pelos atos que praticar, mesmo que por ordem de superior hierárquico.

xi. Acresce nunca ter sido comunicado ou efetuado reporte de perseguições à sala de unidade.

xii. Conforme fls. 105 e 106 da Douta Sentença e tomamos a liberdade de citar “estando em causa nos autos uma condução de veículo automóvel em contexto de perseguição policial, tal reivindica ainda a adopção pelo agente de especiais cautelas ordenadas pela Circular n.º 05/2013 da GNR, (Comando Operacional – Direcção de Operações), referente à temática das perseguições policiais a veículos em fuga, designadamente no seu Ponto 5 (Procedimentos), quando além de estabelecer um procedimento específico, por força do qual sempre que seja dado início a uma perseguição de suspeitos, deverá o militar responsável informar, via rádio, o oficial de serviço à sala de situação da Unidade a que se reportam a viatura da GNR [al. b) do indicado ponto 5)], manda que durante tais perseguições policiais os condutores das viaturas da GNR devam manifestar especiais deveres de cuidado e, ademais, esforçarem-se por garantir que das suas acções tomadas não resulte perigo para a integridade física de terceiros [al. f) do ponto 5)] e, no limite, exorta à suspensão imediata de todas as perseguições que, uma vez iniciadas, se venham, entretanto, a revelar perigosas para a integridade física dos militares da GNR envolvidos, dos perseguidos e de terceiros [al. g) do referido ponto 5)]”.

xiii. Perante a conduta ilícita tem lugar naturalmente a responsabilidade penal e civil respetivas.

xiv. O arguido, assim, atuou com dolo eventual e não com uma conduta “meramente” negligente.”

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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância.

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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal e proferido despacho de aperfeiçoamento das conclusões do recorrente, que este cumpriu.

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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.

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2 – Objecto do Recurso

Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt)

À luz destes considerandos, cumpre decidir se:

- o arguido agiu em cumprimento de uma ordem de um superior hierárquico, com reflexos na ilicitude e na culpa;

- a repartição de culpas do arguido e do ofendido na produção do acidente deve ser alterada para 55% e 45%, respectivamente;

- devem ser diminuídos os dias da pena de multa aplicada ao arguido;

- devem ser diminuídos os montantes indemnizatórios a pagar pelo arguido aos ofendidos em função da alteração da repartição de culpas na produção do acidente.

Nas suas conclusões de recurso aperfeiçoadas, vem o arguido invocar a violação por parte da decisão recorrida do disposto no art.º 410º, nº 2, al. b) do Cód. Proc. Penal, matéria esta que não constava das suas conclusões de recurso iniciais. No nosso despacho datado de 25/11/24 foi ordenada a notificação do recorrente para vir aos autos, no prazo de 10 dias, apresentar novas conclusões de recurso, procedendo à correção das deficiências apontadas nas inicialmente apresentadas, sob pena de rejeição do recurso que interpôs, informando-se de que se fossem apresentadas questões novas, não incluídas na anterior motivação, as mesmas não seriam consideradas.

Dispõe o art.º 417º, nºs 3 e 4 do Cód. Proc. Penal que o aperfeiçoamento das conclusões não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.

Por maioria de razão o “aperfeiçoamento” efectuado nestes autos não permite alterar a motivação de recurso inicial, através da introdução de novas questões, pois tal equivaleria à concessão de um novo prazo de recurso, não previsto na lei.

Assim sendo, não será considerada na apreciação do recurso a invocada violação por parte da decisão recorrida do disposto no art.º 410º, nº 2, al. b) do Cód. Proc. Penal.

*

3- Fundamentação:

3.1. – Fundamentação de Facto

A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos:

“ Factos Provados

Da audiência de julgamento e com relevo para a boa decisão da causa, resultaram provados os factos seguintes:

Da acusação em especial

1. No dia 25 de Maio de 2020, pelas 11h30, o arguido AA, no exercício das suas funções como militar da G.N.R., conduzia o veículo ligeiro de passageiros daquela autoridade de matrícula militar GNR…, devidamente identificado e caracterizado, no exercido das suas funções, na Rua …, …, nesta comarca de …, seguindo como arvorado o então militar da GNR CC.

2. No mesmo circunstancialismo de tempo e lugar, circulava o motociclo de marca «…», modelo «…», com de chassi n.º …, sem matrícula aposta, conduzido então por BB.

3. Quando BB, conduzindo o referido motociclo, ao aproximar-se do cruzamento da Rua …, …, nesta comarca de …, não respeitou o sinal rodoviário vertical de cedência de passagem (marca B1), não cedendo passagem ao veículo da G.N.R., tendo o condutor, aqui arguido, AA de travar o veículo por si pilotado para evitar a colisão.

4. Nesse momento, o militar da G.N.R. AA, aqui arguido, apercebeu-se de que o motociclo então conduzido por BB não tinha matrícula aposta, instalação luminosa ou espelhos retrovisores, tendo, por isso, sido de imediato, activado os sinais sonoros e luminosos do veículo da G.N.R., dando-se ordem de paragem a BB, através do altifalante, «senhor condutor encoste o veículo».

5. Porém, BB não acatou tal ordem de paragem, encetando, ao invés, fuga conduzindo o referido motociclo, percorrendo diversas artérias daquela localidade.

6. Perante tal conduta, o militar da G.N.R., Fábio Miguel Fonseca, aqui arguido, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros daquela corporação, de matrícula GNR-L 2781, iniciou perseguição ao motociclo então conduzido por Gonçalo Pereira, percorrendo diversas artérias daquela localidade.

7. Na Rua …, no sentido Rua …- …, BB efectuou uma ultrapassagem a uma viatura.

8. No local a estrada, que configura uma recta, tem largura de 6,05 metros e duas vias de trânsito, uma em cada sentido, separadas por uma linha longitudinal descontinua de marca M2, pouco visível.

9. Na ocasião fazia bom tempo, existia boa visibilidade e luminosidade, uma vez que era de dia e o piso estava seco.

10. A velocidade máxima permitida no local é de 50 Km/h, por ser uma via dentro da localidade, sendo a velocidade recomendada de 30 Km/h.

11. No local existia a sinalização vertical «A2a Lomba» – «indicação de troço ou ponte com deformação convexa no pavimento» e o sinal H6 – «Velocidade recomendada» de 30 Km/h.

12. O militar da G.N.R., aqui arguido, AA, seguindo no encalce de BB, entrou na referida Rua …, …, no sentido Oeste-Este, onde realizou também uma manobra de ultrapassagem, imprimindo velocidade ao veículo por si conduzido, logrando, dessa forma, aproximar-se do motociclo, seguindo na sua rectaguarda, a uma distância de cerca de 2 metros.

13. Porém, nesse momento, ao circular a uma velocidade não apurada, mas seguramente superior a 50Km/h, o arguido não logrou manter uma distância de segurança entre os referidos dois veículos e, assim, veio a embater com a parte frontal direita do veículo automóvel de matricula GNR…, por si conduzido, contra o rodado pneumático traseiro do motociclo então conduzido por BB.

14. Em consequência do embate descrito no ponto 13), BB foi projectado vindo a embater contra o veículo automóvel de matrícula … que estava estacionado em cima de parte do passeio do lado direito da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, ficando prostrado no pavimento junto ao mesmo.

15. Na sequência ainda do referido embate, o motociclo caiu na via e foi arrastado no pavimento pelo veículo matrícula GNR…, então, conduzido pelo arguido, por cerca de 62 (sessenta e dois) metros.

16. Como consequência directa do embate descrito no ponto 13), BB sofreu fractura de 4.ª-11.ª costelas esquerdas, fraturas de 1.º-3.ª arcos costais a direita, hemopneumotorax bilateral drenado bilateralmente, contusão pulmonar bilateral, choque hemorrágico, contusão cardíaco lesão renal aguda a entrada no SU, rabdomiolise, traumatismo abdominal fechado com pequeno hematoma o ligamento gastrocólico, pequeno hematoma no meso do delgado ao nível do angulo de Treiz; pequeno hematoma no ligamento hépato-duopdenal, hematoma reo-peritoneal, não expansível ou pulsátil, TCE em PC com amnésia lacunar para o ocorrido com TAC CE com focos hemáticos frontais bilaterais, lesões essas que determinaram 493 (quatrocentos e noventa e três) dias de doença, com 90 (noventa) dias de afetação para o trabalho geral e 400 (quatrocentos) dias de afectação para o trabalho profissional.

17. Tais lesões colocaram em perigo a vida de BB.

18. Do embate resultaram ainda como consequências permanentes para BB cicatriz em número de duas, cada uma com 2cm resultante de drenagem torácica no hemitorax esquerdo, cicatriz operatória abdominal na linha branca com 18cm.

19. O arguido, ao conduzir a viatura da GNR…, não manteve uma adequada distância de segurança relativamente ao motociclo, então, conduzido por BB que o precedia, vindo a colidir contra o mesmo, provocando a sua queda e, consequente, projecção do seu condutor BB contra o veículo automóvel de matrícula … que estava estacionado em cima de parte do passeio do lado direito da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, ficando prostrado no pavimento junto ao mesmo.

20. O arguido não regulou a velocidade de modo que, atendendo ao local e caraterísticas da via, pudesse efectuar uma manobra de evasão ou imobilizar o seu veículo no espaço livre à sua frente, de modo a evitar a colisão com o motociclo que na altura seguia à sua frente conduzido por BB.

21. Ao agir da forma descrita supra, o arguido actuou com falta de prudência, omitindo as cautelas que o dever geral de previdência aconselha e, ademais, sem os cuidados e atenção que o exercício da condução exige para evitar um resultado que podia e devia ter previsto.

22. O arguido podia e devia ter tido outro comportamento que evitasse a colisão e as consequências que se lhe seguiram.

Nomeadamente devia ter adequado a velocidade do seu veículo às condições da via e, bem assim, mantido uma adequada distância de segurança entre veículos, e podia e devia ter tido o cuidado, a precaução e a atenção necessárias para que, ao efectuar o seguimento do motociclo então conduzido por BB, o fizesse com a garantia de que de tal condução não resultava perigo para os restantes utentes da via, que nela circulavam, nomeadamente para BB que, nessa altura, conduzia o motociclo supra id..

23. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

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Do pedido de indemnização civil formulado por BB em especial

24. O embate melhor descrito no ponto 13), aqui dado por reproduzido, ocorreu em 25 de Maio de 2020, por causa do qual BB sofreu designadamente choque hemorrágico, com pneumotórax bilateral e hemotórax à esquerda com fractura de vários arcos costais, assim como contusão pulmonar, tendo, por isso, sido internado no Hospital de …, …, nesse mesmo dia 25 de Maio de 2020, onde permaneceu durante 32 dias, 7 dos quais em UCI, sendo a sua data de consolidação médico legal, de 30 de Setembro de 2021, donde os 493 (quatrocentos noventa e três) dias de doença, dos quais 62 (sessenta e dois) dias com défice funcional temporário absoluto [7 (sete) dias em UCI, num total de 32 (trinta e dois) dias de internamento], o que corresponde a um quantum doloris de 6 (seis) pontos.

25. BB esteve mais de um ano em casa, depois do crime, onde não conseguia levantar-se mercê das dores no tórax, as quais não lhe permitiam também descansar por ter dores intensas, não conseguir rodar o tronco ou dormir em qualquer posição, dependendo durante aquele período do auxilio de familiares próximos, como os pais ou a irmã, para seu vexame, pois antes era um jovem autónomo, seguro e feliz.

26. BB ficou politraumatizado na sequência do crime acusado, com traumatismo torácico, múltiplas fraturas contusão pulmonar, contusão cardíaca, foco de contusão, com potenciais sequelas cognitivo-comportamentais.

27. BB teve uma omalgia no ombro esquerdo com limitação articular.

28. BB foi acompanhado em psiquiatria, mercê de «um quadro depressivo grave reativo ao seu acidente e às limitações associadas ao mesmo.».

29. BB temeu pela sua vida, por ter estado em risco de morte, perante a actuação do arguido, aqui demandado.

30. BB, por causa deste acidente, teve um período de repercussão temporária na actividade profissional total entre 25-6-2020 e 7-6-2021, ou seja, de 347 (trezentos e quarenta e sete dias) e, depois, um período de repercussão temporária na actividade profissional parcial entre 8-6-2021 e 30-9-2021, ou seja, de 147 (cento e quarenta e sete dias), com défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, sendo avaliados com valorização em 15 (quinze) pontos (Nos termos do Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23-10), por:

a. Mf1401 – Dores intercostais – pós-fratura de arcos costais/esterno: 3 (três);

b. Nb0903 – com ligeira repercussão na autonomia pessoal, social e profissional: 10 (dez);

c. Mf1202 – Ombro doloroso: 3 (três).

31. BB, …, agora não consegue desempenhar algumas tarefas, desde que exijam a realização de força, o levantamento de pesos, ou a mera presença em formatura, pois não consegue colocar − como devido − os braços atrás das costas com as mãos unidas, ato relevante para os bombeiros, o que se evidencia pelo GUIA DE PROTOCOLO EM CERIMÓNIAS DE BOMBEIROS – 2.ª Edição – Revista (Edição: Autoridade Nacional de Proteção Civil/ Direcção Nacional de Bombeiros - Autores: Vítor Ginja (Autoridade Nacional de Protecção Civil) Fernando Vilaça e José Gomes da Costa (Liga dos Bombeiros Portugueses) Data de publicação: Setembro de 2011 (2.ª Edição – Revista) ISBN: 978-989-8343-09-3 Disponibilidade em suporte pdf: www.prociv.pt.

32. Ou seja, algumas das tarefas que BB desempenhava profissionalmente como …, agora não consegue desempenhar ou sente a repercussão permanente na actividade profissional, necessitando, por isso, de efectuar esforços acrescidos.

33. O mesmo ocorre na repercussão nas actividades desportivas e lúdicas, pois BB deixou de conseguir praticar as modalidades desportivas por si praticadas regularmente (mais do que duas vezes por semana) de futebol, o que nunca será indemnizável por valor inferior a 3 (três) pontos.

34. BB, por causa das lesões supra descritas, apresenta uma cicatriz que lhe atravessa a zona dianteira do tronco, desde o peito até junto da zona pélvica, ou seja, tem cicatrizes várias visíveis à distância social.

35. BB, em especial perante uma cicatriz que divide o seu corpo ao meio passou a ter a alcunha do «dois corpos», no …, o que lhe provoca sofrimento ao ter que, diariamente, tomar duche no quartel dos ….

36. Obviando a tal humilhação quando vai para a praia (o que evita), pois aí nem sequer tira a camisola.

37. A autoestima de BB baixou consideravelmente, vivendo agora com vergonha (que não deveria ser a sua), sendo a valoração do dano estético permanente fixado em 3 (três) pontos.

38. Desde o referido embate, quando BB está de serviço no seu posto de trabalho, no …, quando ocorre um acidente que envolva motas, espera sempre que os seus colegas tenham a iniciativa para ir socorrer, ficando de tal forma ansioso que não consegue mexer-se.

39. Desde o referido embate, o dia 25 de Maio passou a ser um dia em que BB se isola bastante, não saindo de casa e, se estiver de serviço coloca férias, não conseguindo sair de casa pois esse dia tornou-se um tormento para si.

40. Antes de 25 de Maio de 2020 BB ia a jantares de família que se realizavam no quartel da GNR organizados por tio paterno, o que deixou de acontecer mercê do desconforto de BB estar em ambientes onde estejam elementos com a farda da GNR.

41. BB tem evitado circular na rua onde ocorreu o embate, a qual era local de passagem constante para ir a casa dos pais, então passando a fazer uma volta mais longa.

42.BB passou a ter mudanças de humor, a falar sozinho, quando anteriormente era uma pessoa calma.

43. Em Janeiro de 2023, por insistência da família por forma a tentar ultrapassar o medo que sente, BB adquiriu uma nova moto, do mesmo género da anterior, com a qual no início não conseguiu circular mais do que duas vezes e, ainda assim, sempre na companhia de amigos, pois o receio persiste.

44. BB viveu e vive com angústia, receio e, ademais, atormentado com o acto contra si infligido.

45. BB desenvolveu distúrbios de sono, com pesadelos constantes, onde experimenta um medo constante devido às ofensas físicas de que foi vítima.

46. BB, em consequência dos actos praticados pelo arguido, aqui demandado, vive retraído, sendo que a sua vida, a nível profissional e pessoal, foi afectada, por mágoa e sofrimento infindável, deixando-o entristecido e esgotado dentro deste ciclo repetitivo de sentimentos.

47. Por causa do embate, BB ficou com a sua mota, que havia adquirido na véspera pelo preço de € 2.200,00 (dois mil e duzentos euros) destruída, bem como irreparáveis ficaram as suas botas de enduro no valor de € 150,00 (cento e cinquenta euros), o seu capacete no valor de € 90,00 (noventa euros) e a roupa (t-shirt e calções) destruída no valor € 50,00 (cinquenta euros).

48. Por causa do embate, BB esteve impedido de trabalhar pelo menos até 30-9-2021, o que lhe causou perdas salariais no valor total de € 3.278,40 (três mil, duzentos e setenta e oito euros e quarenta cêntimos).

49. O arguido, ora demandado, sabia que o seu comportamento acima descrito nos pontos 12) e 13), aqui dado por reproduzido, era proibido, por não estar a conduzir com a diligência necessária e, não obstante, prosseguiu com o mesmo, prevendo que com ele poderia causar prejuízos patrimoniais e não patrimoniais ao aqui demandante BB, enquanto condutor do motociclo perseguido por aquele nos termos supra apurados, mas não se conformou com tal resultado.

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Do pedido de indemnização civil formulado pelo Centro Hospitalar de …, em especial

50. Na sequência da supra referida factualidade empreendida pelo arguido, ora demandado e, bem assim, por BB, este foi transportado para o Hospital de …, em …, onde beneficiou da prestação de cuidados de saúde e assistência médica (“911-4-Procedimentos Extensos Abdominais/Torácicos por Traumatismo Múltiplo Significativo”), que importaram despesas para a instituição hospitalar no valor total de € 27.329,51 [vinte e sete mil, trezentos e vinte e nove euros e cinquenta e um cêntimos]

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Das condições pessoais e económico-sociais do arguido/demandado e seus antecedentes criminais em especial

51. O arguido/demandado nasceu em …1987, e está divorciado.

52. O arguido/demandado vive sozinho.

53. O arguido/demandado exerce a actividade profissional de militar da GNR, auferindo um rendimento mensal no valor de € 1.200,00 (mil e duzentos euros).

54. O arguido/demandado suporta a título de despesas correntes com as duas prestações bancárias, água, luz, gás, no valor global de € 880,00 (oitocentos e oitenta euros).

55. Como habilitações literárias, o arguido tem o 12.º ano de escolaridade.

56. O arguido não regista antecedentes criminais.

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Factos Não Provados

Com relevância para a boa decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos não compagináveis com os acima indicados, designadamente não se provou que BB anteriormente ao embate de que foi interveniente e que está aqui em apreciação praticasse mais de uma vez por semana a modalidade de kickboxing.”

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3.2.- Mérito do recurso

O presente recurso tem apenas como fundamento matéria de direito, pretendendo o recorrente a diminuição da pena de multa e dos montantes indemnizatórios em que foi condenado, alegando para tanto que a ilicitude da sua conduta e a sua culpa se mostram diminuídas por ter agido no cumprimento de uma ordem do seu superior hierárquico, ou seja, nos termos do disposto no art.º 36º, nº 2 do Cód. Penal, mas que, para além disso, não se mostra correcta a repartição de culpas na produção do acidente em apreço efectuada na decisão recorrida.

A)Causa de exclusão da ilicitude. Dispõe o art.º 36º do Cód. Penal, no que concerne ao conflito de deveres, que: “1 - Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar. 2 - O dever de obediência hierárquica cessa quando conduzir à prática de um crime.”

Sucede, porém, que no presente recurso o recorrente não impugnou a matéria de facto apurada na decisão recorrida, nos termos do art.º 410º ou do art.º 412º do Cód. Proc. Penal, não resultando da leitura da decisão recorrida a verificação de nenhum dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 daquele diploma.

Assim sendo, a matéria de facto a que temos que nos ater é a que resultou provada na sentença recorrida, da qual não constam quaisquer factos dos quais se possa concluir que a atuação do arguido foi em cumprimento de uma ordem do seu superior hierárquico.

Na verdade, na factualidade apurada não consta que o arguido agiu em cumprimento de uma ordem do seu superior hierárquico, que ordem foi essa, qual o seu concreto conteúdo, em que circunstâncias foi dada e se o arguido a respeitou integralmente.

Ora, não fazendo tal factualidade parte do objecto do processo, porquanto não consta da acusação pública, o arguido não apresentou contestação e tais factos não resultaram provados da discussão da causa, a sentença proferida nos autos não se pronunciou, e bem, sobre a mesma.

Em conclusão, a factualidade alegada pelo recorrente em sede de recurso não faz parte do objecto do processo, não foi levada a julgamento, nem submetida ao contraditório, pelo que não pode agora este Tribunal de recurso conhecer da mesma, atento o disposto nos art.º 32º, nºs 1 e 5 da CRP e art.º 379º, nº 1, alínea b) do Cód. Proc. Penal.

Impõe-se, assim, concluir que não se provou a ocorrência da causa de diminuição da ilicitude do comportamento e da culpa invocada pelo arguido, improcedendo, neste tocante, o recurso, sem necessidade de mais considerandos.

B) Responsabilidade do arguido e do ofendido na produção do acidente

Como se referiu, no presente recurso não há impugnação da matéria de facto e não se verificou qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa do arguido.

O recorrente também não põe em causa a qualificação jurídica dos factos, aceitando ter praticado um crime de ofensa à integridade física por negligência grave, cometido sobre a pessoa de BB, p. e p. pelo art.º 148º, nºs 1 e 3 do Cód. Penal, por referência aos arts.º 13º, 15º, alíneas a) e b), e 144º, al. d), do mesmo diploma legal, e aos arts.º 18º, nº 1 e 24º, nº 1, ambos do Cód. Estrada.

Não obstante, com fundamento na factualidade apurada, importa verificar se a sentença recorrida fez uma correcta repartição de culpas entre o arguido e o ofendido, no que respeita à responsabilidade de cada um deles na produção do acidente em apreço nos autos.

A decisão recorrida considerou ser o arguido culpado em 70% e o ofendido em 30%, mas o recorrente peticiona agora uma repartição de culpas de 55%/45%, respectivamente.

Vejamos se lhe assiste razão.

Voltando à sentença recorrida, quanto ao comportamento do arguido e do ofendido aquando da ocorrência do acidente em apreço, apurou-se que:

- No dia 25 de Maio de 2020, pelas 11h30, o arguido, no exercício das suas funções como militar da G.N.R., conduzia o veículo ligeiro de passageiros daquela autoridade, de matrícula militar GNR…, devidamente identificado e caracterizado, na Rua …, em …;

- No mesmo circunstancialismo de tempo e lugar, circulava o motociclo de marca «…», modelo «…», com de chassi n.º …, sem matrícula aposta, conduzido por BB;

- Quando BB, conduzindo o referido motociclo, se aproximou do cruzamento da Rua …, não respeitou o sinal rodoviário vertical de cedência de passagem (marca B1) e não cedeu passagem ao veículo da G.N.R., tendo o arguido que travar o veículo por si conduzido para evitar a colisão;

- Nesse momento, o arguido apercebeu-se de que o motociclo conduzido por BB não tinha matrícula aposta, instalação luminosa ou espelhos retrovisores, tendo, por isso, sido de imediato, activado os sinais sonoros e luminosos do veículo da G.N.R., dando-se ordem de paragem a BB, através do altifalante, «senhor condutor encoste o veículo»;

- BB não acatou tal ordem de paragem, encetando a fuga conduzindo o referido motociclo através de diversas artérias daquela localidade;

- Perante tal conduta, o arguido, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros daquela corporação, de matrícula GNR…, iniciou perseguição ao motociclo conduzido por BB, percorrendo também diversas artérias daquela localidade;

- Na Rua …, no sentido Rua …- …, BB efectuou uma ultrapassagem a uma viatura;

- A velocidade máxima permitida no local é de 50 Km/h, por ser uma via dentro da localidade, sendo a velocidade recomendada de 30 Km/h;

- O arguido, seguindo no encalce de BB, entrou na Rua …, …, no sentido Oeste-Este, onde realizou também uma manobra de ultrapassagem, imprimindo velocidade ao veículo por si conduzido, logrando, dessa forma, aproximar-se do motociclo, seguindo na sua rectaguarda, a uma distância de cerca de 2 metros;

- Porém, nesse momento, ao circular a uma velocidade não apurada, mas seguramente superior a 50Km/h, o arguido não logrou manter uma distância de segurança entre os referidos dois veículos e veio a embater com a parte frontal direita do veículo automóvel de matricula GNR…, por si conduzido, contra o rodado pneumático traseiro do motociclo então conduzido por BB;

- Em consequência do embate descrito no ponto 13), BB foi projectado vindo a embater contra o veículo automóvel de matrícula … que estava estacionado em cima de parte do passeio do lado direito da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, ficando prostrado no pavimento junto ao mesmo;

- Como consequência directa do embate descrito, BB sofreu as lesões supra descritas que colocaram a sua vida em perigo e das quais resultaram deformidades permanentes nos moldes apurados.

Desta factualidade resulta que o arguido violou os deveres de cuidado previstos nos arts.º 18º, nº 1, relativo à distância entre veículos, e 24º, nº 1, relativo à obrigação de adequação de velocidade, ambos do Cód. Estrada, os quais impõem, respectivamente, que:

- o condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste, tendo em especial consideração os utilizadores vulneráveis (como era o caso de um motociclo);

- o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.

Porém, também o ofendido manteve uma condução imprudente, violando os seguintes deveres previstos no Cód. Estrada:

- Art.º 4º, nº 1: o utente deve obedecer às ordens legítimas das autoridades com competência para regular e fiscalizar o trânsito ou dos seus agentes, desde que devidamente identificados como tal;

- Art.º 7º, nº 1: as prescrições resultantes dos sinais prevalecem sobre as regras de trânsito;

- Art.º 11º, nº 2: os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança;

- Art.º 12º, nº 1 : os condutores não podem iniciar ou retomar a marcha sem assinalarem com a necessária antecedência a sua intenção e sem adotarem as precauções necessárias para evitar qualquer acidente;

- Art.º 24º, nº 1: o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente;

- Art.º 29º, nº 1: o condutor sobre o qual recaia o dever de ceder a passagem deve abrandar a marcha, se necessário parar, ou, em caso de cruzamento de veículos, recuar, por forma a permitir a passagem de outro veículo, sem alteração da velocidade ou direção deste; - Art.º 32º, nº 1: os condutores devem ceder a passagem às colunas militares ou militarizadas, bem como às escoltas policiais;

- Art.º 59º, nºs 1 e 3, alínea a): os dispositivos de iluminação de sinalização luminosa e os refletores que devem equipar os veículos, bem como as respetivas características, são fixados em regulamento. (…) é sancionado com coima quem conduzir veículo que não disponha de algum ou alguns dos dispositivos previstos no regulamento referido no n.º 1;

- Art.º 65º, nº 1: qualquer condutor deve ceder a passagem aos condutores dos veículos que transitem em missão de polícia;

- Art.º 93º, nº 2: os condutores dos motociclos devem transitar com as luzes de cruzamento para a frente e de presença à retaguarda acesas;

- Art.º 117º, nº 1: os veículos a motor e os seus reboques só são admitidos em circulação desde que matriculados;

- Art.º 118º, nºs 1, 8 e 10: por cada veículo matriculado deve ser emitido um documento destinado a certificar a respetiva matrícula, donde constem as características que o permitam identificar. Cada veículo matriculado deve estar provido de chapas com o respetivo número de matrícula. Quem colocar em circulação veículo cujas características não confiram com as mencionadas no documento que o identifica é sancionado com coima.

Quanto à violação de deveres de cuidado por parte dos dois condutores e à atribuição da culpa na produção do acidente, lê-se na fundamentação de direito da decisão recorrida que:

“(…) nesta matéria específica rege o disposto no art. 570.º (“Culpa do lesado”), do Cód. Civil, quando nos diz que: «1 − Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao Tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída. 2 − Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.».

Ou seja, através de tal comando legal é atribuída relevância à culpa do lesado para efeitos, entre outros, de redução do montante indemnizatório. Assim, se se lograr provar que a conduta do lesado outrossim concorreu para a produção do facto danoso aqui em questão, então será à luz deste comando legal que este Tribunal deverá infra fixar os montantes indemnizatórios, se necessário for reduzindo os mesmos, em razão da proporcionalidade da culpa do lesado. (…)

Ora, como se viu da aferição atrás realizada, resulta da factualidade provada a respeito designadamente nos pontos 2) a 7), que o aqui lesado/demandante BB conduziu o seu motociclo sem matrícula, sem seguro de responsabilidade civil, sem sistema de luzes, sem se munir de todo o equipamento de protecção individual e, ademais, depois de ter sido mandado parar pela patrulha da GNR, da qual fazia parte o arguido/demandado, bem como se apurou que o fazia a uma velocidade não concretamente apurada, mas imprimindo uma velocidade significativa e, como tal, imprópria para as condições da via, sendo que a velocidade máxima permitida no local era de 50 km/h, se bem que a recomendada no local do embate até era de 30 Km/h. (…)

Assim sendo, provado ficou que nas apontadas circunstâncias de tempo, lugar e modo, o lesado/demandante BB conduziu efectivamente o referido veículo motociclo desrespeitando não só as regras estradais que vedam a utilização desse tipo de veículo na via pública, além do mais, por não ter matrícula, mas também e decisivamente violou a obrigação de parar imposta pela GNR (artigos 4.º, n.º 1, e 7.º, n.º 3, ambos do Cód. Estrada) e, além disso, desrespeitou a norma estradal que obriga a ajustar a velocidade imprimida ao veículo motorizado por si conduzido em função das condições e características da via de trânsito em que seguia (art. 24.º, n.º 1 do Cód. Estrada), ou seja, em termos técnico-jurídicos aquele exercia a condução do seu veículo motociclo em desrespeito das aludidas normas rodoviárias e, bem assim, imprimindo ao motociclo por si então conduzido uma velocidade excessiva (…)

Provou-se, com efeito, designadamente no ponto 8), que o local onde ocorreu o embate tinha uma boa visibilidade em toda a sua extensão, para ambos os intervenientes – ou seja, ambos tinham visibilidade suficiente para se terem apercebido da presença um do outro – o que quer dizer que também o condutor do motociclo, aqui lesado/demandante BB teve as condições necessárias para se ter apercebido da presença do veículo da GNR, então, conduzido pelo arguido que lhe movia perseguição com os sonoros ligados e, caso tivesse respeitado a ordem de paragem, também poderia ter evitado o embate, daí se poder afirmar que a sua conduta temerária e descuidada outrossim contribuiu, conquanto num 2.º grau, para a produção do evento danoso.

Nestas condições era, pois, exigível ao lesado/demandante BB uma maior prudência e sensatez, pois todos os condutores têm a obrigação de parar perante a ordem dada pela GNR, tal como o impõe os artigos 4.º, n.º 1, e 7.º, n.º 3, ambos do Cód. Estrada, sob pena de assumir, como fez, uma condução assaz temerária, perigosa e, ademais, desafiadora da autoridade pública, que pese embora não justifique como acima ficou expresso, ainda assim, induziu, em certa medida, o comportamento adoptado pelo arguido, aqui demandado, que, realce-se, não obstante tal, devia ter tido maiores cuidados e prudência, o que malgrado não teve, pelo que assumiu, em termos jurídico-penais, uma conduta negligente e, como tal, deveras censurável penalmente. Disso não há dúvida, acrescentamos nós.

Assim, in casu, deve considerar-se que a conduta “culposa” em sentido impróprio do lesado, aqui demandante cível BB é, a nosso ver, concorrente com a culpa em sentido próprio do arguido, aqui demandado, enquanto condutor do veículo automóvel GNR…, importando, destarte, nos termos do n.º 1 do art. 570.º, do Cód. Civil, determinar a proporção da responsabilidade a atribuir ao lesante, aqui demandado e ao lesado, aqui demandante cível.(…)

Por outro lado, o arguido, aqui demandado, enquanto condutor do veículo automóvel GNR… adoptou uma postura deveras descuidada em todo o procedimento na condução encetada e, depois, mantida em contexto de perseguição policial (…), tanto mais que além de não guardar uma distância de segurança razoável para o veículo motociclo precedente, o arguido, ora demandado, imprimiu uma velocidade decerto excessiva ao veículo automóvel GNR… que então conduzida, que além de pressionar o condutor do motociclo BB, fez com que, a dado momento, embatesse com a parte frontal da viatura automóvel da GNR… que ele conduzida contra o rodado pneumático traseiro do motociclo então conduzido por BB, provocando, por causa disso, a queda deste do motociclo e, sequente, projecção violenta contra o veículo automóvel que estava estacionado na berma, provocando-lhe lesões graves que o colocaram em perigo de vida, podendo, então, concluir-se que a postura do arguido, aqui demandado, enquanto condutor infractor, mas investido em especiais deveres de protecção por ser um militar da GNR, embora em certa medida induzido por posturas e manobras alheias (como foi o lamentável comportamento do lesado, aqui demandante cível) é, ainda assim, censurável em grau superior ao do comportamento temerário e displicente do lesado, aqui demandante, BB. Atenta esta diferença de grau no apuramento das responsabilidades de um e de outro, deve a atribuição das culpas causais do acidente, ser efectuada, a nosso ver de acordo com as variáveis de ponderação acima indicadas, numa proporção de 30 % (trinta por cento) para o demandante BB, enquanto condutor temerário do motociclo, e de 70 % (setenta por cento) para o arguido/demandado, enquanto condutor negligente do veículo automóvel GNR…, proporção esta a ter impacto directo na redução das indemnizações que devam ser concedidas ao aqui demandante cível, nos termos do n.º 1 do art. 570.º, do Cód. Civil.(…)”.

Da leitura da decisão decorre que o Mmº Juiz a quo, de forma assaz prolixa e excessivamente repetitiva, cumpre dizê-lo, reconheceu a violação de deveres de cuidado na circulação rodoviária também pela vítima do acidente, mas não retirou daí todas as consequências jurídicas que podia e devia ter retirado.

Da conjugação dos factos apurados e de todas as normas supra citadas resulta que o arguido tinha o dever de circular a velocidade que lhe permitisse parar em segurança no espaço livre e visível à sua frente, bem como o dever de manter relativamente ao veículo do ofendido, que seguia à sua frente, uma distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste último.

Porém, conforme se viu, foi o comportamento do ofendido que originou a perseguição policial por parte do arguido e que veio a ter como desfecho o embate em apreço, com as consequências daí advenientes para a saúde do ofendido.

Por outro lado, prevê-se no art.º 64º, nº 1 do Cód. Estrada que: “1 - Os condutores de veículos que transitem em missão de polícia, de prestação de socorro, de segurança prisional ou de serviço urgente de interesse público assinalando adequadamente a sua marcha podem, quando a sua missão o exigir, deixar de observar as regras e os sinais de trânsito, mas devem respeitar as ordens dos agentes reguladores do trânsito.”

Ou seja, o arguido iniciou a perseguição do ofendido, após este não ter respeitado um sinal de trânsito que lhe impunha a paragem à entrada de um cruzamento, não ter dado passagem ao veículo prioritário da GNR, circulando sem chapa de matrícula afixada no seu motociclo, sem as luzes de presença obrigatórias, sem refletores, a uma velocidade excessiva para o local, empreendendo uma condução totalmente descontrolada, desenfreada, desobediente, desafiadora da autoridade e que podia pôr em risco não só a sua própria vida, saúde e bens patrimoniais, como os dos demais utentes da via.

O arguido desrespeitou, é certo, os assinalados deveres de circulação automóvel, de distância entre veículos e de velocidade adequada, porém, a violação de tais deveres mostra-se em parte justificada pelo dever funcional e profissional que lhe impunha deter o ofendido e pôr termo à sua condução perigosa, dado que se o ofendido não fosse seguido e interceptado pela GNR, jamais poderia ser identificado, face à ausência de chapa de matrícula aposta no seu veículo.

Atento o disposto no art.º 487º, nº 2 do Cód. Civil, a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.

Consagra-se aqui o critério da culpa em abstracto, conforme à diligência de um homem normal, medianamente sagaz, prudente e cuidadoso, em face do condicionalismo próprio do caso concreto.

O critério legal de apreciação da culpa é, assim, um critério abstracto, ou seja, deve ter em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do acidente de viação em causa, por referência a um condutor normal.

Em face da matéria de facto apurada, impõe-se a conclusão de que quer o arguido, quer o ofendido, ao agirem como agiram, podendo ter agido de outro modo, tiveram culpa na produção do acidente em apreço.

É do conhecimento geral que a condução automóvel é uma actividade perigosa que a vida moderna consente, por se entender que a sua permissão é mais útil do que a sua proibição.

Porém, com vista a atenuar os riscos que lhe são inerentes, exige-se aos condutores a observância de determinadas regras de cuidado.

O arguido, honestamente, assumiu a necessidade de ser responsabilizado pelas consequências nefastas da sua conduta.

Face aos factos apurados, e tendo em conta todo o quadro normativo em causa, impõe-se concluir que são menores a ilicitude e a culpa com que o arguido agiu face ao comportamento do ofendido.

Estatui o art.º 570º, nº 1 do Cód. Civil que:

“Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”

Concatenada toda a prova produzida e avaliada toda a factualidade apurada, tendo em conta os limites do recurso, impõe-se considerar que o arguido contribuiu em 55% para a produção do acidente e a vítima em 45%, conforme peticionado pelo arguido, ora recorrente, pois, não obstante a violação dos deveres de cuidado pelo arguido, foi o comportamento da vítima que contribuiu em maior percentagem para a produção do acidente em apreço nos autos.

Julga-se, assim, procedente o recurso, nesta matéria, impondo-se ajustar a pena de multa aplicada ao arguido e os montantes indemnizatórios em que foi condenado em conformidade com a alteração da repartição de culpas agora efectuada.

C) Responsabilidade penal do arguido

A decisão recorrida condenou o arguido pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência grave, sobre a pessoa de BB, p. e p. pelo art.º 148º, nºs 1 e 3 do Cód. Penal, por referência aos arts.º 13º, 15º, alíneas a) e b), e 144º, al. d), do mesmo diploma legal, bem como por referência ao disposto nos arts.º 18º, nº 1 e 24º, nº 1, ambos do Cód. Estrada, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), perfazendo a quantia de € 1.260,00 (mil, duzentos e sessenta euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 (seis) meses, nos termos do art.º 69º, n.º 1, al. a) do Cód. Penal.

O crime de ofensa à integridade física por negligência grave vem previsto no art.º 148º, nºs 1 e 3 do Cód. Penal, sendo punível com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias. O recorrente não pôs em causa a espécie de pena que lhe foi aplicada, o quantitativo diário da pena de multa, nem a pena acessória que lhe foi aplicada.

Alegou, porém, que actuou sob influência e ascendente de pessoa de quem dependia hierarquicamente e a quem devia obediência, pelo que a sua pena deveria ter sido especialmente atenuada nos termos do disposto no art.º 72º, nº 2, alínea a) do Cód. Penal. Uma vez que esta circunstância não resultou provada, conforme supra referido, não será a mesma agora considerada em sede de recurso, pelo que, quanto a esta matéria, nada mais há a decidir. O arguido considera também serem excessivos os dias de multa em que foi condenado, cumprindo apurar se lhe assiste ou não razão.

Quanto à determinação da medida da pena, esta deve ser apurada de acordo com os seguintes critérios enunciados no art.º 71º do Cód. Penal: “ Artigo 71.º - Determinação da medida da pena

1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”

Estes critérios devem ser relacionados com os fins das penas previstos no art.º 40º do mesmo diploma, onde se estabelece no seu nº 1 que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e no seu nº 2 que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Quanto à determinação concreta da pena de multa, estabelece o art.º 47º, nºs 1 e 2 do Cód. Penal que:

“1 - A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º, sendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360.

2 - Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5 e € 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.”

Como se refere no Acórdão do STJ de 28/09/2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, as finalidades da punição e a determinação em concreto da pena, nas circunstâncias e segundo os critérios previstos no art.º 71º do Cód. Penal, têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena. Tais elementos e critérios contribuem não só para determinar a medida da pena adequada à finalidade de prevenção geral, consoante a natureza e o grau de ilicitude do facto tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores, como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial, em função das circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão e arrependimento e permitem também apreciar e avaliar a culpa do agente. Em síntese, pode dizer-se que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (cf. Figueiredo Dias, in “ Direito Penal, Parte Geral “, Tomo I, 3ª Edição, 2019, Gestlegal, pág. 96). Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto “ O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182), apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»

Para Figueiredo Dias, nas Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito, ou de «determinação concreta da pena»). As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».

Voltando ao caso dos autos, a sentença recorrida fundamentou a aplicação ao arguido da pena de multa pela seguinte forma:

“ (…) Contra o arguido apontam:

Da Culpa em sentido lato em especial O grau de ilicitude dos factos que se afigura, apesar de tudo, elevado, tendendo ao seu modo de execução, com flagrante desrespeito pelas normas estradais de protecção da circulação rodoviária previstas nos artigos 18.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1, ambos do Cód. Estrada, bem como das ordens dadas pelo Comando da GNR, que estão concretizadas no Ponto 5) da Circular 05/2013 do Comando da GNR (normas estas que albergam o dever de cuidado que colimava o arguido), nos termos apurados, que apenas por um acaso não tiverem consequências mais graves para a vítima BB, conquanto tivessem sido, de facto, graves as lesões e ferimentos causados por causa da conduta displicente e descuidada assumida pelo arguido em violação da ordem jurídica nos termos supra apurados a respeito; O grau de intensidade da negligência que reveste a forma consciente, deveras preocupante, pois, revela uma manifesta falta de cuidado e de atenção do arguido enquanto condutor investido em especiais deveres de cuidado impostos pelas ordens dadas pelo seu Comando e que estão concretizadas no Ponto 5) da Circular 05/2013 do Comando da GNR, por na altura estar a encetar uma perseguição policial, revestindo, assim, um grau de culpa assinalável conquanto dentro do espetro da negligência; A ausência de sincero arrependimento por parte do arguido pela prática dos factos delitivos, o que, digamos, é para nós deveras perturbador.

*

Das Necessidades de Prevenção Geral As prementes necessidades de prevenção geral que neste domínio rodoviário se fazem sentir e que, por isso, reivindicam uma reacção penal adequada e proporcional aos danos decorrentes de conduções de veículos motorizados imprudentes e descuidadas, como foi o caso.

*

A favor do arguido apontam:

Das Necessidades de Prevenção Especial

Com é sabido, o arrependimento (sincero) é um acto interior revelador de uma personalidade que rejeita o mal praticado e que permite a emissão de um juízo de confiança no comportamento futuro do agente, por forma a que, se vierem a deparar-se-lhe situações idênticas, não voltará a delinquir: o agente revela uma reinserção social, consumada ou prestes a consumar-se, pelo que as exigências de prevenção, na determinação da medida da pena, são de diminuta relevância.

Vale por dizer, assim, que existirá um arrependimento relevante quando o agente mostre ter feito reflexão positiva sobre os factos ilícitos cometidos e propósito firme de, no futuro, inflectir na sua conduta anti-social, de modo a poder concluir-se pela probabilidade séria de não recair no crime.

Mostram-se reduzidas, dado que o arguido não regista antecedentes criminais e, além disso, está inserido sócio-familiarmente. Sem embargo do que se deixou acima exposto no que tange ao grau de culpa do arguido, teve-se aqui em devida consideração enquanto factor de mitigação da culpa do arguido, a conduta assaz temerária, imprudente e desafiante assumida também pela vítima BB, mormente quando não acatou a ordem de paragem dada pela patrulha da GNR, a quem devia obediência e, ademais, encetou fuga do local, espoletando, dessa forma, tal perseguição policial que se veio a revelar desastrosa.

Sopesados estes elementos todos eles desfavoráveis, considera-se justa, adequada e proporcional a aplicação ao arguido, pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física por negligência grave cometido sobre a pessoa de BB, de uma pena concreta de 180 (cento e oitenta) dias de multa, pois tal dosimetria penal não excede a culpa em sentido lato do agente e, outrossim, salvaguarda as necessidades de prevenção geral e especial reclamadas.” Analisada a decisão, verifica-se que o Tribunal a quo relativamente ao arguido não teve integralmente em conta o seu comportamento anterior ao facto, traduzido no cumprimento de um dever funcional de perseguir e deter um condutor com as características de condução do ofendido.

Por outro lado, importa considerar a alteração da repartição de culpas entre o arguido e o ofendido supra efectuada tem que ter impacto na dosimetria da pena de multa a aplicar agora ao arguido.

É indiscutível que são muito elevadas, e carecem de ser ponderadas, as necessidades de prevenção geral positiva, tendo em conta a grande sinistralidade rodoviária ainda existente no nosso país e os perigos para a saúde e para a vida de terceiros que a prática da condução potencia, geradores de insegurança social e justificadores de uma resposta punitiva firme, para assegurar a confiança da comunidade na validade das normas jurídicas e na circulação rodoviária.

São também muito graves as consequências do embate, traduzidas nos danos daí advenientes para a saúde e bem-estar do ofendido.

Porém, são diminutas as necessidades de prevenção especial, face a um arguido que não regista antecedentes criminais, reconhece a sua quota-parte de responsabilidade na produção do acidente em apreço nos autos e se mostra socialmente inserido.

Assim, tudo visto e ponderado, considera-se adequado e proporcional aplicar ao arguido uma pena de 120 dias de multa, conforme peticionado pelo mesmo neste recurso. Pese embora o arguido não o questione, entendemos que não é excessivo o valor diário da multa fixado na decisão recorrida. Tal valor foi fixado atendendo às condições económicas apuradas ao arguido, não devendo o mesmo ser alterado, porquanto a pena de multa deve implicar um sacrifício económico para o agente, a fim de não ficar completamente esvaziada de qualquer conteúdo. O arguido também não questionou a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor que lhe foi aplicada, entendendo-se, de igual forma, ser a mesma de manter, uma vez que foi fixada muito próxima do mínimo legal e dever importar para o arguido algum sacrifício, porquanto é de uma verdadeira pena que se trata. Entende-se, assim, ser de conceder provimento ao recurso nesta matéria e condenar o arguido numa pena de multa no valor global de 840 euros (oitocentos e quarenta euros).

D) Montantes indemnizatórios a pagar pelo arguido aos ofendidos

A decisão recorrida condenou o arguido a pagar a BB as quantias de:

. € 1.912,44 (mil, novecentos e doze euros e quarenta e quatro cêntimos), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 2.732,05 (dois mil, setecentos e trinta e dois euros e cinco cêntimos), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de compensação do dano não patrimonial estético sofrido na sua esfera jurídica por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data desta sentença até efectivo e integral pagamento;

. € 2.549,93 (dois mil, quinhentos e quarenta e nove euros e noventa e três cêntimos), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 3.642,75 (três mil, seiscentos e quarenta e dois euros e setenta e cinco cêntimos), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de compensação do dano não patrimonial atinente ao quantum doloris na sua esfera jurídica por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data desta sentença até efectivo e integral pagamento;

. € 11.761,01 (onze mil, setecentos e sessenta e um euros e um cêntimo), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 16.801,44 (dezasseis mil, oitocentos e um euros e quarenta e quatro cêntimos), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de compensação do dano não patrimonial atinente aos dias de incapacidade temporária para o trabalho sofridos, maxime os dias de internamento, projectado negativamente na sua esfera jurídica por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data desta sentença até efectivo e integral pagamento;

. € 4.900,00 (quatro mil e novecentos euros), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 7.000,00 (sete mil euros), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de compensação dos danos não patrimoniais referente às repercussões na sua vida laboral sofrido na sua esfera jurídica por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data desta sentença (2-5-2024) até efectivo e integral pagamento, absolvendo o demandado do demais peticionado neste concreto domínio;

. € 1.743,00 (mil, setecentos e quarenta e três euros), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 2.490,00 (dois mil, quatrocentos e noventa euros), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de ressarcimento dos danos patrimoniais respeitantes aos bens destruídos no acidente sofridos na sua esfera jurídica por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento;

. € 2.294,88 (dois mil, duzentos e noventa e quatro euros e oitenta e oito cêntimos), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 3.278,40 (três mil, duzentos e setenta e oito euros e quarenta cêntimos), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de ressarcimento dos danos patrimoniais respeitantes às perdas salariais (rectius dos suplementos remuneratórios) por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.

. € 239,30 (duzentos e trinta e nove euros e trinta cêntimos), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 341,86 (trezentos quarenta e um euros oitenta e seis cêntimos), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de ressarcimento dos danos patrimoniais sofridos na sua esfera jurídica com as despesas incorridas com as consultas médicas, aquisição de medicamentos e de outras despesas de farmácia, com exames de diagnóstico complementares, tudo por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento;

. € 17.785,60 (dezassete mil, quatrocentos e oito euros e sessenta), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 25.408,00 (vinte e cinco mil, quatrocentos e oito euros), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, a título de compensação do dano biológico sofrido na sua esfera jurídica, por causa do crime de ofensa à integridade física grave de que foi vítima, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data desta sentença até efectivo e integral pagamento;

. e a pagar ao CENTRO HOSPITALAR DE … a quantia de € 19.130,66 (dezanove mil, cento e trinta euros e sessenta e seis cêntimos), correspondente a 70 % da quantia inicialmente fixada de € 27.329,51 (vinte e sete mil, trezentos e vinte e nove euros e cinquenta e um cêntimos), por actuação do mecanismo de concorrência de culpas previsto no art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil, para ressarcimento pelas despesas médicas incorridas por aquela instituição hospitalar, acrescida dos juros contados, à taxa legal de 4 %, desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado.

No presente recurso, verifica-se que o recorrente, demandado cível, não põe em causa os danos apurados na decisão recorrida sofridos pelos lesados em consequência do acidente em apreço, nem os montantes atribuídos nos vários segmentos da indemnização fixada.

Apenas pretende que as quantias em que foi condenado, a título de indemnização, sejam reduzidas na mesma proporção da redução da sua culpa na produção do acidente.

Apreciemos a sua pretensão.

De acordo com o disposto no art.º 129º do Cód. Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.

Quanto à responsabilidade civil por factos ilícitos, dispõem os arts.º 483º, nº 1, 486º e 563º do Cód. Civil que tem a mesma os seguintes pressupostos, todos verificados nos presentes autos:

a) o facto ilícito, enquanto acção voluntária, ou omissão, violadora de bens jurídicos patrimoniais ou pessoais de terceiros;

b) o nexo de imputação do facto ao lesante;

c) a existência de um dano ou prejuízo causado pelo facto ilícito;

d) o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.

Segundo o previsto no art.º 562º do Cód. Civil, a obrigação de indemnizar tem em vista a reconstituição da situação que existiria na esfera patrimonial do lesado se não tivesse ocorrido o facto causador da lesão.

Relativamente aos danos patrimoniais apurados na decisão recorrida, os mesmos não oferecem qualquer dúvida quer quanto à obrigação de indemnizar, quer quantos aos valores fixados, os quais se mostram ajustados, bem fundamentados e consentâneos com a prova produzida.

A este respeito, o demandante BB deduziu pedido indemnizatório contra o arguido, nos seguintes termos:

a) Danos patrimoniais, relativos aos bens perdidos na data do crime: € 2.490,00 (dois mil, quatrocentos e noventa euros);

b) Perdas salariais decorrentes de Incapacidade Temporária: € 3.278,40 (três mil, duzentos e setenta e oito euros e quarenta cêntimos);

c) Despesas comprovadas: € 341,86 (trezentos quarenta e um euros oitenta e seis cêntimos) referentes a despesas médicas, medicamentosas e tratamentos realizados em consequência da actuação do arguido.

A decisão recorrida fixou a indemnização quanto a estes pedidos pela seguinte forma:

a) danos patrimoniais, relativos aos bens perdidos na data do crime: € 2.490,00 (dois mil, quatrocentos e noventa euros), condenando o arguido a pagar ao lesado BB a quantia de € 1.743,00, correspondente a 70 %, do valor global fixado;

b) Perdas salariais decorrentes de Incapacidade Temporária: € 3.278,40 (três mil, duzentos e setenta e oito euros e quarenta cêntimos), condenando o arguido a pagar ao lesado BB a quantia de € 2.294,88, correspondente a 70 %, do valor global fixado;

c) Despesas comprovadas: € 341,86 (trezentos quarenta e um euros oitenta e seis cêntimos) referentes a despesas médicas, medicamentosas e tratamentos realizados em consequência da actuação do arguido, condenando o arguido a pagar ao lesado BB a quantia de € 239,30, correspondente a 70 %, do valor global fixado.

Por seu turno, o Centro Hospitalar de … pediu que o arguido fosse condenado a reembolsar-lhe as despesas incorridas com a assistência médica e com os tratamentos prestados a BB, na sequência das lesões de que foi vítima ocasionadas pelo arguido, no valor total de € 27.329,51 (vinte e sete mil, trezentos e vinte e nove euros e cinquenta e um cêntimos), acrescida de juros à taxa legal desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.

Fazendo repercutir aqui a concorrência de culpas que fixou, na ordem de 70 % a cargo do arguido/demandado e de 30 % a suportar pelo lesado, a decisão recorrida condenou o arguido a pagar a este demandante a quantia de €19.130,66 (dezanove mil, cento e trinta euros e sessenta e seis cêntimos), devida a título de ressarcimento de tais danos patrimoniais, correspondente a 70 % da indemnização devida, ficando os outros 30 % a cargo do próprio lesado.

Já quanto à indemnização por danos não patrimoniais, segundo o disposto no art.º 496º, nº 1 do mesmo diploma, na mesma deve-se atender aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

A indemnização por danos morais, visando uma compensação do lesado pelo sofrimento, é fixada segundo critérios de equidade, nos termos previstos nos arts.º 496º, nº 4 e 566º, nº 3 do Cód. Civil, e actualizada ao momento do julgamento ( cf., neste sentido, Ac. STJ de 14/3/91, in BMJ 405, pág. 443 ).

Importa, no entanto, determinar quais são os danos não patrimoniais indemnizáveis.

Conforme é hoje unanimemente entendido, a gravidade do dano não patrimonial mede-se por um padrão objetivo, consoante as circunstâncias do caso concreto, devendo ser afastados fatores suscetíveis de traduzir uma sensibilidade exacerbada ou requintada do lesado (cf., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª Edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 499, nota 1).

O dano indemnizável deve ser assim um dano de tal modo grave que mereça a tutela do direito e justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado, não relevando para efeitos de indemnização os simples incómodos ou contrariedades (cf., neste sentido, Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10ª Edição, pág. 606).

A gravidade do dano deve, pois, aferir-se com recurso a critérios objectivos, como sejam a dignidade e o valor intrínseco do bem ou interesse jurídico violado.

Não é, no entanto, possível estabelecer um paralelismo absoluto entre a gravidade do dano e a dignidade do bem jurídico violado, havendo outros factores que podem conferir gravidade ao dano, como por exemplo a intensidade da lesão, quer em termos temporais, quer em termos de afectação do bem ou interesse em causa, e a censurabilidade da conduta do agente, apta a justificar a qualificação como grave de um dano que pelos critérios da dignidade e da intensidade poderia ficar sem protecção.

Na determinação dos danos não patrimoniais indemnizáveis cabem ainda os decorrentes de uma especial sensibilidade do lesado, como sejam a doença, a idade e a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais.

Não são, no entanto, atendíveis os meros incómodos e pequenas contrariedades, que na perspectiva do lesado mereceriam a tutela do direito, mas que não passam no crivo de uma avaliação objectiva ou de mero bom senso.

Quanto à definição de quais sejam os danos não patrimoniais indemnizáveis, destaca-se o dano moral em sentido próprio ou subjectivo, ou seja, a humilhação, a angústia, a vergonha e a ansiedade, nele se incluindo também a própria dor, que no direito português abrange quer a dor física, quer o sofrimento moral.

É ainda possível a ofensa de bens de carácter imaterial, desprovidos de conteúdo económico e insuscetíveis de avaliação pecuniária, como sejam a integridade física, a saúde, a correcção estética, a liberdade, a honra ou a reputação.

A ofensa objectiva destes bens tem, em regra, um reflexo subjectivo na vítima, traduzido na dor ou sofrimento, de natureza física ou moral ( cf. neste sentido, Galvão Telles, in “Direito das Obrigações”, 6ª Edição, Coimbra Editora, 1989, pág. 375).

Também Antunes Varela identifica os danos não patrimoniais com os prejuízos, como as dores físicas, os desgosto morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação e os complexos de ordem estética, que não são susceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome, pelo que não integram o património do lesado e apenas podem ser compensados pecuniariamente (in “Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Edição, Almedina, 2003, pág. 602 e seguintes).

Na senda da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tem-se vindo também a autonomizar do dano moral em sentido estrito, o dano não patrimonial derivado da lesão da dignidade humana, decorrendo esta autonomização do reconhecimento de que os actos atentatórios da dignidade humana provocam angústia, amargura e desespero ( cf. neste sentido “Danos Não Patrimoniais”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, FDUC, Vol. III, Direito das Obrigações, 2007, págs. 505 a 512).

No entanto, como sustenta Vaz Serra, in BMJ, vol. 83º, pág. 85: “ (…) a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido equivalente do dano, isto é, de um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão; trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo apenas moral, não é susceptível de avaliação”.

Assim sendo, uma vez que o ressarcimento dos danos não patrimoniais deriva da violação de direitos fundamentais, deve-se abandonar um critério miserabilista no que respeita à fixação dos respetivos montantes indemnizatórios.

Nesta conformidade, a decisão recorrida encontra-se, também neste tocante, bem fundamentada de facto e de direito.

Os danos morais sofridos pela vítima em resultado do acidente em apreço, tendo em conta a sua duração e intensidade, são de tal modo graves que merecem, efectivamente, a tutela do direito, impondo-se atribuir-lhe uma indemnização compensatória pelo sofrimento dos mesmos.

Uma vez que não existe a possibilidade de quantificar os danos morais, a sua ressarcibilidade tem que ser feita com recurso à equidade, ou seja, através de um critério de razoabilidade, ditado pelo bom senso.

Face aos danos de natureza não patrimonial em apreço há que ter em conta que a indemnização deve ser significativa de modo a representar uma efetiva compensação pelos prejuízos sofridos, mas sem representar um enriquecimento injustificado do lesado à custa do lesante.

A título de danos não patrimoniais, a vítima do acidente peticionou:

(i) pelo dano estético sofrido, que quantificou, na escala respectiva, uma valoração de 3 (três), reclamou uma compensação pecuniária no valor de € 2.732,05 (dois mil, setecentos e trinta e dois euros e cinco cêntimos);

(ii) pelo Quantum Doloris, que quantificou, na escala respectiva, uma valoração de 6 (seis), peticionou uma compensação pecuniária no valor de € 3.642,75 (três mil, seiscentos e quarenta e dois euros e setenta e cinco cêntimos);

(iii) Por conta dos dias que esteve com incapacidade temporária com internamento, reclamou uma compensação pecuniária no valor de € 16.801,44 (dezasseis mil, oitocentos e um euros e quarenta e quatro cêntimos); e

(iv) Para compensação pela repercussão na sua vida laboral, peticionou uma compensação pecuniária no valor de € 28.458,82 (vinte e oito mil, quatrocentos e cinquenta e oito euros e oitenta e dois cêntimos).

Da análise da decisão recorrida decorre que foram bem ponderadas as circunstâncias que qualificam os danos sofridos pela vítima, assim como foram bem calculados os montantes indemnizatórios correspondentes, tendo-se atribuído indemnização por:

1- dano estético no valor de € 2.732,05, condenando o arguido a pagar ao lesado BB a quantia de € 1.912,44, correspondente a 70 %, do valor global fixado;

2- quantum doloris no valor de € 3.642,75, condenando o arguido a pagar ao lesado BB a quantia de € 2.549,93, correspondente a 70 %, do valor global fixado;

3- dias em que esteve com Incapacidade Temporária para o trabalho, alguns com internamento, no valor de € 16.801,44, condenando o arguido a pagar ao lesado BB a quantia de € 11.761,01, correspondente a 70 %, do valor global fixado;

4- repercussão na sua vida laboral no valor de € 7.000,00, condenando o arguido a pagar ao lesado BB a quantia de € 4.900,00, correspondente a 70 %, do valor global fixado.

Por último, quanto à indemnização do dano biológico do lesado, entendeu a decisão recorrida ser equitativo fixar o valor da indemnização na quantia peticionada de € 25.408,00 (vinte e cinco mil, quatrocentos e oito euros).

Em consequência, condenou o arguido no pagamento ao lesado BB, de uma parcela correspondente a 70 % desse valor, que fixou em € 17.785,60.

Sucede, porém, que todas as quantias indemnizatórias a pagar pelo arguido aos lesados foram fixadas com base no pressuposto de que o arguido havia contribuído em 70% para a produção do acidente em apreço nos autos.

Uma vez que a repartição de culpas na produção do acidente se fixou agora em 55% para o arguido e em 45% para a vítima, os vários segmentos das indemnizações atribuídas aos lesados têm que reflectir essa repartição de culpas, em conformidade com o disposto no art.º 570º, nº 1 do Cód. Civil.

Decorre desta norma que quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

Em face do exposto, impõe-se agora condenar o arguido a pagar a:

A) BB as quantias de:

. € 1.502,62 (mil, quinhentos e dois euros e sessenta e dois cêntimos), correspondente a 55% da quantia inicialmente fixada de € 2.732,05 (dois mil, setecentos e trinta e dois euros e cinco cêntimos), a título de compensação pelo dano estético, acrescido de juros legais de 4% contados desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento;

. € 2.003,51 (dois mil e três euros e cinquenta e um cêntimos), correspondente a 55% da quantia inicialmente fixada de € 3.642,75 (três mil, seiscentos e quarenta e dois euros e setenta e cinco cêntimos), a título de compensação pelo quantum doloris, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento;

. € 9.240,79 (nove mil, duzentos e quarenta euros e setenta e nove cêntimos), correspondente a 55% da quantia inicialmente fixada de € 16.801,44 (dezasseis mil, oitocentos e um euros e quarenta e quatro cêntimos), a título de compensação pelos dias de incapacidade temporária para o trabalho, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data desta sentença até efectivo e integral pagamento;

. €3.850,00 (três mil, oitocentos e cinquenta euros), correspondente a 55% da quantia inicialmente fixada de € 7.000,00 (sete mil euros), a título de compensação pelas repercussões na sua vida laboral, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento;

. € 1.369,50 (mil, trezentos e sessenta e nove euros e cinquenta cêntimos), correspondente a 55% da quantia inicialmente fixada de € 2.490,00 (dois mil, quatrocentos e noventa euros), a título de ressarcimento dos bens destruídos no acidente, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento;

. € 1.803,12 (mil, oitocentos e três euros e doze cêntimos), correspondente a 55% da quantia inicialmente fixada de € 3.278,40 (três mil, duzentos e setenta e oito euros e quarenta cêntimos), a título de ressarcimento por perdas salariais, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.

. € 188,02 (cento e oitenta e oito euros e dois cêntimos), correspondente a 55% da quantia inicialmente fixada de € 341,86 (trezentos quarenta e um euros e oitenta e seis cêntimos), a título de ressarcimento de despesas com consultas médicas, aquisição de medicamentos, outras despesas de farmácia e exames de diagnóstico complementares, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento;

. € 13.974,40 (treze mil, novecentos e setenta e quatro euros e quarenta cêntimos), correspondente a 55% da quantia inicialmente fixada de € 25.408,00 (vinte e cinco mil, quatrocentos e oito euros), a título de compensação pelo dano biológico, acrescido de juros legais de 4 % contados desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento;

B) CENTRO HOSPITALAR DE … a quantia de € 15.031,23 (quinze mil e trinta e um euros e vinte e três cêntimos), correspondente a 55% da quantia inicialmente fixada de € 27.329,51 (vinte e sete mil, trezentos e vinte e nove euros e cinquenta e um cêntimos), para ressarcimento de despesas médicas, acrescida dos juros contados, à taxa legal de 4 %, desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.

Procede, assim, o recurso, impondo-se alterar a decisão recorrida em conformidade.

*

4. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar:

A) Procedente o recurso apresentado por AA, e, em consequência:

- alteram a decisão recorrida, condenando o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. º 148º, nºs 1 e 3 do Cód. Penal, por referência aos arts.º 13º, 15º, alíneas a) e b) e 144º, al. d) do mesmo diploma legal, e aos arts.º 18º, nº 1 e 24º, nº 1, ambos do Cód. Estrada, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 7 euros, o que perfaz a multa global de 840 euros (oitocentos e quarenta euros);

- alteram a decisão recorrida, condenando o arguido AA a pagar a:

- BB as seguintes quantias:

a) € 1.502,62 (mil, quinhentos e dois euros e sessenta e dois cêntimos), a título de compensação pelo dano estético, acrescido de juros legais de 4%, contados desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento;

b) € 2.003,51 (dois mil e três euros e cinquenta e um cêntimos), a título de compensação pelo quantum doloris, acrescido de juros legais de 4%, contados desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento;

c) € 9.240,79 (nove mil, duzentos e quarenta euros e setenta e nove cêntimos), a título de compensação pelos dias de incapacidade temporária para o trabalho, acrescido de juros legais de 4%, contados desde a data desta sentença até efectivo e integral pagamento;

d) € 3.850,00 (três mil, oitocentos e cinquenta euros), a título de compensação pelas repercussões na sua vida laboral, acrescido de juros legais de 4%, contados desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento;

e) € 1.369,50 (mil, trezentos e sessenta e nove euros e cinquenta cêntimos), a título de ressarcimento dos bens destruídos no acidente, acrescido de juros legais de 4%, contados desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento;

f) € 1.803,12 (mil, oitocentos e três euros e doze cêntimos), a título de ressarcimento por perdas salariais, acrescido de juros legais de 4%, contados desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.

g) € 188,02 (cento e oitenta e oito euros e dois cêntimos), a título de ressarcimento de despesas com consultas médicas, aquisição de medicamentos, outras despesas de farmácia e exames de diagnóstico complementares, acrescido de juros legais de 4 %, contados desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento;

h) € 13.974,40 (treze mil, novecentos e setenta e quatro euros e quarenta cêntimos), a título de compensação pelo dano biológico, acrescido de juros legais de 4%, contados desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento;

- CENTRO HOSPITALAR DE … a quantia de € 15.031,23 (quinze mil e trinta e um euros e vinte e três cêntimos), para ressarcimento de despesas médicas, acrescida de juros contados, à taxa legal de 4%, desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento; C) no mais confirmam a decisão recorrida.

D) Atento o provimento do recurso, quanto a custas:

- não são devidas custas pelo recorrente na parte criminal;

- são devidas custas na parte cível que se fixam em 55% a cargo do recorrente e em 45% a cargo de cada um dos demandantes cíveis, relativamente a cada um dos pedidos pelos mesmos formulados.

Évora, 11 de Março de 2025

(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)

Carla Francisco

(Relatora)

Edgar Valente

Carla Oliveira

(Adjuntos)