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ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRESUNÇÃO DE CULPA DE LESADO E LESANTE
REPARTIÇÃO DA RESPONSABILIDADE
DANO DE PRIVAÇÃO DE USO
INDEMNIZAÇÃO
Sumário
I – A simples privação do uso é causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que pode servir de base à determinação da indemnização. O simples uso do veículo constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano. II - Embora a seguradora não esteja obrigada a disponibilizar veículo de substituição durante lapso de tempo superior ao estimado para a reparação do veículo sinistrado, não poderá deixar de arcar com a obrigação de indemnizar, quando o tempo estimado para a realização da reparação tenha sido ultrapassado sem que isso se deva a facto culposo do lesado ou da própria oficina que escolheu. III - Não constando do contrato de seguro qualquer exclusão de responsabilidade pelo facto do Segurado não comunicar em tempo útil a existência de acidentes, o que acarretou custos acrescidos, tal omissão de comunicação do acidente é inoponível a terceiros, encontrando-se a Seguradora obrigada a indemnizar estes terceiros. IV – Pese encontrarmo-nos perante uma presunção de culpas é de fazer apelo ao disposto no artº 570º, nº 1, do CC, repartindo as responsabilidades, porquanto a culpa do lesado resulta de uma outra presunção de culpa (que é diferente da culpa efectiva deste).
Texto Integral
Proc. nº 1533/23.6T8PRD.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Paredes - ...
A..., LDA, NIPC nº. ...85, intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra – B... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., NIPC nº. ...80.
Peticiona:
A condenação desta a pagar-lhe a quantia de €16.488,92 acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Para tanto, e em síntese, alegou que:
A A. é dona e legítima possuidora do veículo pesado de passageiros de marca VOLVO, com a matrícula ..-BP-...
No dia 13 de Junho de 2022, pelas 12h50m, circulava o referido veículo na Rua ... – ... - ..., sendo tal veículo conduzido por AA.
No circunstancialismo de tempo e lugar acima referidos, circulava o veículo da A. na referida estrada, quando, junto ao número ...6 da referida rua, o condutor do veículo ouviu um barulho, imobilizou a viatura e constatou que a tampa do ar condicionado havia sido arrancada e havia ficado presa num cabo de telecomunicações que estava abaixo da altitude regulamentar.
Comunicada a ocorrência à proprietária do cabo de telecomunicações, a mesma informou ter transferido a responsabilidade da sua actividade para a aqui Ré.
A R. ou a sua segurada nunca ordenaram a realização de peritagem e, em 10 de Agosto de 2022, decorridos quase dois meses do sinistro, a A. deu ordem de reparação da viatura, a qual ficou concluída em 12/08/2022.
Concluída a reparação do veículo, a A. remeteu à R. o valor da reparação e ainda a despesa a considerar com o custo de paralisação do veículo entre os dias 11/08/2022 e a conclusão da reparação em 12/08/2022.
O sinistro aqui em causa, ficou a dever-se a culpa exclusiva da segurada da Ré.
A estrada onde ocorreram os factos supra descritos tem o serviço de telecomunicações concessionado à segurada da Ré.
À data em que se verificou o sinistro, os cabos de telecomunicações que atravessam a estrada em causa, estavam baixos em relação à altura a que se devem encontrar, não tendo a segurada da Ré garantido que a instalação da infraestrutura permitia a normal circulação na rede viária, não sendo possível à A. ter conhecimento de tal desleixo por parte da segurada R..
Em consequência directa e necessária do acidente, o veículo da A. sofreu danos, designadamente na tampa do ar condicionado, a qual ficou danificada ficando impossibilitada de circular, atenta a possibilidade de danificar o próprio aparelho de ar condicionado, cujo valor importa o montante de € 402,00 (quatrocentos e dois euros).
Por força do sinistro ocorrido o veículo da A. não tem condições de segurança para circular, estando imobilizado desde o dia 13 de Junho de 2022.
A Autora é uma empresa que se dedica, com escopo lucrativo ao transporte público de passageiros, carreiras regulares, transporte de alunos, excursões e todo o tipo de serviços de transportes ocasionais, fazendo dessa a finalidade da sua actividade e o seu lucro, de modo que, a paralisação deste veículo da Autora lhe causou graves prejuízos, ascendendo os mesmos a, pelo menos, € 263,72 diários, num total de €16.086,92.
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A Ré, devida e regularmente citada, apresentou-se a contestar.
Para tanto, alegou que:
Entre a R. e a “C... CORPORATE CENTER, S.A.” foi celebrado um contrato de seguro do ramo “Responsabilidade Civil Exploração” sob a apólice n.º ...31.
A apólice cobre os danos causados a terceiros por facto emergente da actividade de uma das empresas seguras listadas na apólice.
A apólice foi celebrada com um capital máximo de € 500.000,00 por sinistro e agregado anual sujeita a uma franquia por sinistro a cargo do segurado de €3.500,00, apenas respondendo a seguradora por danos acima desse valor.
A R, apenas tomou conhecimento da ocorrência através de uma comunicação efectuada pela sua segurada em 9/9/2022, ou seja, depois de ocorrido o evento, a A. ter alegadamente, reparado a viatura e a mesma estar em funcionamento, não tendo sido possível a esta, nem verificar os danos, nem quantificar o custo.
Perante essa impossibilidade, na sequência de solicitação do seu segurado no sentido de proceder directamente ao pagamento dos reclamados danos no valor de € 929,44, disponibilizou-se para o fazer evitando o escrutínio litigante do “sinistro”. O que fez através da carta que o próprio A. junta como doc.7 que consubstancia uma proposta contratual de transacção extrajudicial que ficou sem efeito porque recusada pela A.
Só no dia23/6/2022 – onze dias depois - há registo deter sido dado conhecimento do acidente à “C...”, ainda que, quem o fez foi um terceiro “D..., Lda” e não a aqui autora.
A A. podia e devia – até porque orçamentou e fotografou os danos – usando da diligência de um bom pai de família, proceder à imediata reparação evitando a invocada paralisação, e não esperar para o fazer em 12/8/2022 quando em momento algum solicitou peritagem de que não podia estar à espera, muito menos da parte da aqui R. que a essa data, ainda nem sequer tinha conhecimento do ocorrido.
Apenas o faz, procurando um proveito ilegítimo, a partir do momento em que a R. de boa-fé, se disponibilizou para a regularização do sinistro sem possibilidade de avaliação e reparação dos danos.
Sendo uma empresa de transporte de passageiros, não alega um único custo com o afretamento de viatura de substituição, nem sequer prejuízo com perda de um concreto serviço e sua contrapartida, limitando-se a uma alegação genérica e conclusiva.
O protocolo em causa destina-se a acidentes de viação em que é interveniente e responsável um veículo automóvel com seguro de responsabilidade civil automóvel numa das seguradoras outorgantes o que não sucede no caso em apreço em que a R. é chamada por via de uma apólice de multirriscos exploração.
Por outro lado, o mecanismo de reparação de paralisações de veículos do protocolo exige que seja efectuada comunicação do acidente à seguradora no primeiro dia útil seguinte à ocorrência, o que não aconteceu.
Conclui pela absolvição do pedido.
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A Autora respondeu à matéria de excepção.
Quanto à alegada participação tardia do sinistro tal situação não pode ser imputada à Autora, mas apenas à relação existente entre a C..., S.A. e a Ré.
Quanto ao custo da reparação a Ré contradiz o conteúdo do relatório de peritagem que a mesma ordenou onde se encontra apurado que o custo da reparação são €402,00 e que os danos registados no veículo são enquadráveis na apólice.
Dada a existência de uma franquia de €3.500,00 requereu a intervenção provocada da C..., S.A.
Cumprido o contraditório, a Ré não deduziu oposição à requerida intervenção principal.
Foi admitida a intervenção principal provocada da C... CORPORATE CENTER, S.A.
Citada nos termos previstos no art. 319º, nºs.1 e 2, do C.P.C., veio a mesma contestar, por excepção, invocando a sua ilegitimidade passiva e por impugnação.
A Autora respondeu à excepção invocada, pugnando pela sua improcedência.
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Foi realizada Audiência Prévia, proferido despacho saneador, fixados o objecto do litígio e os temas da prova.
Admitida a prova, designou-se data para realização de Audiência de Discussão e Julgamento, à qual se procedeu, com observância do legal formalismo, como da respectiva acta consta.
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Foi prolatada sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:
“1-Condenar a Ré B... – Companhia de Seguros, S.A., a pagar à Autora, a quantia de € 929,44, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação, até integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.
2-Absolvo a Chamada do pedido.
As custas do processo são a suportar pela Autora e pela Ré, na proporção do respectivo decaimento, nos termos do art.527º, nºs.1 e 2, do C.P.C.
Registe e notifique.”
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É desta decisão que, inconformada, a Autora interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A) Deu o Mº. Juiz a quo como provado o ponto 4 e o ponto 31, mas que se tratará obviamente de lapso de escrita que importa corrigir, passando a dar-se como provado no ponto 4 que:
“4 – Provado apenas (e com o esclarecimento) que – a ocorrência foi comunicada à C..., S.A., a 23.06.2022, tendo a mesma informado ter transferido a responsabilidade da sua actividade para a aqui Ré.”
B) À situação sub judice aplica-se o acordo celebrado entre a Associação Nacional dos Transportadores Rodoviários de Pesados de Passageiros (a partir de agora “ANTROP”) e a Associação Portuguesa de Seguradoras (a partir de agora “APS”), e respectivas tabelas anexas.
C) Não atender ao conteúdo do referido acordo, é negar à partida a liberdade contratual das partes que o celebraram e as condições a que aceitaram submeter-se verificadas certas situações, como é o caso dos acidentes de viação.
D) Não pode o Tribunal coarctar a liberdade contratual das partes plasmada no artigo 405º do Código Civil, ao abrigo da qual o referido acordo foi subscrito e é actualizado anualmente.
Dito isto importa sublinhar que,
E) Entendeu o Mº. Juiz a quo que “a prova da efetiva reparação dos danos causados no veículo e da consequente imobilização em oficina, bem como a elativa ao custo dessa reparação, que a Autora teve que suportar, emerge da valoração crítica e conjugada, segundo as regras da lógica e da experiência comum (…)”, conciliando os meios de prova que enumera.
F) No dispositivo da sentença o Mº. Juiz a quo considera que a responsável pela ocorrência dos danos reclamados pela recorrente foi a recorrida “C...”, que a recorrente esteve privada do uso do veículo desde o dia em que sofreu os danos – 13 de Junho de 2022 - até à data da conclusão da reparação - 12 de Agosto de 2022 -, por outro, entendeu que tal privação de uso apenas deverá ser indemnizada pelo período de dois dias que correspondem ao tempo necessário à reparação do mesmo.
G) Da análise crítica da prova produzida em audiência e das regras da lógica e da experiência comum, o Mº. Juiz a quo concluiu pela verificação de tudo quanto é alegado pela recorrente em sede de petição inicial, mas para efeitos de cálculo do valor diário da paralisação aceita inclusive o conteúdo da tabela anexa ao acordo celebrado entre a “ANTROP” e a “APS”, mas, em concreto, define outras regras, alegadamente por ausência de prova de factos para além da privação de uso.
H) O acordo de paralisação firmado entre a “ANTROP” e a “APS”, junto à petição inicial como documento nº. 10, e cujo conteúdo não foi posto em crise em sede de contestação, define as regras que os associados da “ANTROP” e da “APS” devem seguir na situação de ocorrência de acidente de viação de que resultem danos num veículo de transporte pesado de passageiros e o valor diário correspondente à paralisação do referido meio de transporte.
I) Ora, o Mº. Juiz a quo ao considerar o acordo de paralisação da “ANTROP/APS” para efeitos de fixação do valor diário pela paralisação, não pode depois desconsiderar as demais regras contidas no referido acordo, nomeadamente, as regras relativas à comunicação do acidente e os dias a pagar como consequência dessa comunicação.
J) À recorrente é, por isso, devido o pagamento da indemnização pela paralisação do veículo com a matrícula correspondente a €16.086,92 (dezasseis mil e oitenta e seis euros e noventa e dois cêntimos).
K) Da decisão proferida e de que se recorre resulta, sem margem para dúvida, que:
- o acidente de viação ocorreu no dia 13 de Junho de 2022;
- que o sinistro e os respectivos danos daí emergentes são da responsabilidade da recorrida C...;
- que o veículo pesado de passageiros propriedade da recorrente ficou imobilizado entre o dia do acidente de viação – 13 de Junho de 2022 – e a data da conclusão da reparação – 12 de Agosto de 2022;
- que a ocorrência do acidente de viação foi comunicada à recorrida C... em 23 de Junho de 2022;
- que o valor diário para efeitos de paralisação considerado razoável pelo Tribunal a quo é de € 263,72 (duzentos e sessenta e três euros e setenta e dois cêntimos), de acordo com a tabela anexa ao acordo de paralisação entre a ANTROP/APS.
L) Não se alcança contudo o fundamento para que o número de dias de paralisação tenha sido reduzido a apenas dois, até porque o Mº. Juiz a quo considera que “é indemnizável a simples privação do uso independentemente da prova de danos concretos e independentemente do uso que era dado ao veículo”, para no mesmo momento considerar que existe “ausência de prova de outros factos para além da privação do uso”.
M) Tendo presente que o Mº. Juiz a quo utiliza os valores constantes da tabela anexa ao acordo de paralisação da “ANTROP/APS” para efeitos de fixação do valor diário a pagar à recorrente, deveria também ter atendido às condições constantes do referido acordo para atribuição do valor relativo à paralisação.
N) O nº. 2 do artigo 3º do acordo de paralisação “ANTROP/APS” define a forma de contabilização dos dias de paralisação e ainda as regras que as partes contratantes devem seguir.
O) Perante esta definição da forma de comunicação da ocorrência do acidente de viação, ao Tribunal a quo cabia aplicar o referido acordo, que considerou bastante para a fixação do valor diário devido pela paralisação, para fixar o período de paralisação entre os dias 23 de Junho de 2022 e o dia 12 de Agosto de 2022, num total de 51 (cinquenta e um dias) de paralisação.
P) Dessa forma, aplicando na íntegra o acordo de paralisação celebrado entre a “ANTROP/APS”, deveria a decisão ter fixado em €13.449,72 (treze mil quatrocentos e quarenta e nove euros e setenta e dois cêntimos) o montante a pagar à recorrente.
Q) Caso assim não se entenda, o que apenas por mera hipótese académica se aceita, não pode recair sobre a recorrente o prejuízo causado pela paralisação porquanto o juízo de equidade aparentemente efectuado na decisão de que se recorre imputa à recorrente tal prejuízo.
R) Da decisão de que se recorre resulta que a “C...” apenas comunicou à B... – Companhia de Seguros, S.A. (de ora em diante B...) a ocorrência do acidente de viação em 09/09/2022, conforme facto provado sob o número 27.
S) Ou seja, a recorrida “C...”, apesar de ter conhecimento do acidente de viação desde o dia 23 de Junho de 2022, demorou mais de dois meses a comunicar a ocorrência do mesmo à “B...” para onde transferiu a responsabilidade civil relativa ao exercício da sua actividade.
T) A recorrente agiu com a diligência que lhe era esperada e aguardou pelo contacto quer da recorrida “C...”, quer da respectiva companhia de seguros.
Decorridos 59 dias da ocorrência do acidente de viação e 49 dias da participação do mesmo à recorrida “C...”, a gerência decidiu dar ordem de reparação do veículo em causa.
U) Tendo presente a jurisprudência invocada pelo Mº. Juiz a quo em sede de sentença, deveria a decisão quanto ao período de paralisação ser outra, considerando os dias de efectiva imobilização do veículo, que o Tribunal considera como se tendo verificado, condenando-se ao pagamento de um valor fixado, esse sim, com recurso “à equidade”.
V) Assim, porque a simples privação do uso do veículo é indemnizável independentemente da prova dos danos concretos e da prova do uso dado ao veículo, deve a paralisação do veículo com a matrícula ..-BP-.. ser totalmente indemnizada no período de 13 de Junho a 12 de Agosto de 2022.
X) Caso assim não se entenda, deverá o período da paralisação considerado para efeitos de indemnização ser o que decorreu entre 23 de Junho e 12 de Agosto de 2022.
Y) A recorrida “C...” transferiu a sua responsabilidade do exercício da sua actividade para a recorrida “B...”, numa apólice que comporta uma franquia correspondente a € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros).
Z) Verificada que está a responsabilidade imputável à “C...”, como resulta da douta Sentença de que se recorre, e tendo esta transferido a responsabilidade civil pelo exercício da sua actividade para aquela companhia de seguros, deve a recorrida “B...” ser condenada ao pagamento da indemnização pela paralisação devida à recorrente, cabendo-lhe a final exercer o direito de regresso sobre aquela, nos termos do contrato de seguro que apenas diz respeito à 1ª. e 2ª. RR, aqui ambas recorridas.
AA) Ou, caso assim não se entenda, deve a recorrida “C...” ser condenada ao pagamento do valor da franquia, no montante de €3.500,00 (três mil e quinhentos euros) e a recorrida “B...” condenada ao pagamento do remanescente da indemnização por paralisação do veículo com a matrícula ..-BP-.., correspondente a €12.586,92 (doze mil quinhentos e oitenta e seis euros e noventa e dois cêntimos) – considerando 61 dias de paralisação – ou em alternativa € 9.949,72 (nove mil novecentos e quarenta e nove euros e setenta e dois cêntimos) – considerando 51 dias de paralisação.
AB) Deve a sentença proferida ser parcialmente revogada, substituindo-se por outra que fixe o direito à indemnização pelo período de paralisação, com relação aos dias em que a mesma ocorreu, e que Mº. Juiz a quo considerou verificados, fixando-se a indemnização desses dias nos termos que constam do acordo de paralisação ANTROP/APS e respectiva tabela anexa.
Conclui, assim, pela procedência do recurso, nos termos acima peticionados.
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A Ré B... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., apresentou recurso subordinado e contra-alegações ao recurso apresentado pela Autora, apresentando as seguintes conclusões:
1) Factos são realidades concretas da vida física ou humana susceptíveis de prova, não podendo a fundamentação de facto de uma sentença ser incluída de afirmações ambíguas ou juízos conclusivos;
2) É o que acontece na sentença em apreço, com os pontos de factos n.ºs 7, 8 e 9 nos quais se alude a uma empresa das seguradas que não é identificada nem concretizada, em contradição com a fundamentação de direito que, sem suporte de facto aponta depois uma delas, que nem sequer é parte nos autos como “responsável”;
3) Do mesmo modo, não traduz um facto mas uma afirmação conclusiva o ponto de facto nº 10, devendo, tal como os anteriores, serem eliminados do elenco dos factos provados e consequentemente, alterada a sentença e julgada a acção improcedente por força do disposto no art.º 342.º do CCiv atenta a ausência de demonstração de factos susceptíveis de fundamentar a condenação;
4) Não havendo provados factos concretos que confirmem um posicionamento do cabo em medida não legal ou regulamentar, e nem sequer da posição da dita tampa plástica e sua altura, que permita concluir concreta e validamente por um erro de manutenção da rede por parte de qualquer das “entidades seguradas”, não podiam ter-se por verificada uma ilicitude a quem quer que fosse na gestão da rede;
5) Como, ainda que se provasse conclusivamente que o cabo estaria “descaído”, nem sequer se demonstrou que esse “descaimento” fosse numa medida que pudesse ser avistado e detectado pelos responsáveis pela gestão da rede de comunicações “C...”, fossem eles quem fossem;
6) Pelo contrário, dos factos provados sob os pontos 35) a 38) dos factos provados resultou apurado que o condutor do veículo da R. já tinha passado várias vezes antes no local, apercebendo-se que o cabo estava numa posição que tocava e deslizava pelo tejadilho do seu veículo, por vezes quando por ele passava, sem que tomasse qualquer iniciativa de avisar a autoridade policial ou administrativa, mantendo-se a passar no local nesses moldes até se dar a ocorrência em causa nestes autos;
7) Demonstrando-se ainda a percepção clara de previsibilidade de danos do condutor da A., ao referir que “abrandava e passava devagar” com o cabo a deslizar no seu tejadilho, torna-se evidente a sua omissão de dever de cuidado, ilícita e temerária, que se veio a revelar incontornavelmente causal dos danos verificados na placa plástica do tejadilho do veículo;
8) Já que nos termos do disposto no art.º 3º n.º 3 do Código da Estrada, os condutores devem abster-se de actos que possam comprometer a segurança dos veículos e utilizadores da via, prima facie do seu veículo e dos seus passageiros, o que acontece quando o condutor, tendo a percepção de um obstáculo aéreo que por vezes entra em contacto com o tejadilho do veículo, reiteradamente, continua a passar sem contactar as autoridades para que providenciem a regularização desse obstáculo;
9) Sendo evidente o juízo de censura que merece esse comportamento do condutor, nenhum resulta imputável aos responsáveis pela gestão do cabo se nem sequer se prova a medida do “descaimento do cabo” a sua natureza não regulamentar e muito menos a sua percepção pela entidade responsável pela gestão, quando o condutor de um pesado que detecta o descaimento não o comunica e prossegue a passar com o mesmo “descaído”;
10) Além do mais, no caso, há presunção de culpa do condutor, motorista de pesado de passageiros que o conduzia no interesse e por conta da autora, caindo no âmbito da presunção de culpa do n.º 3 do art.º 503.º do CCiv e consequentemente da autora por via do art.º 500.º n.º 1 do mesmo Código;
11) A actividade de gestão ou manutenção de uma rede de cabos de comunicações, ainda que alguns colocados por via aérea, manifestamente, não traduz uma actividade perigosa, não se subsumindo à previsão do n.º 2 do art.º 493.º do CCiv.
12) Pelo que a culpa do lesado, neste caso a A., presumida como comitente, e a do seu condutor, como comissário, afastam a obrigação de indemnizar atento o disposto no art.º 570.º do CCiv, como sempre afastariam a presunção invocada e referida na sentença mencionada no considerando anterior;
13) Sendo evidente que o único facto ilícito e culposo que determinou a ocorrência dos danos foi a descrita actuação temerária do condutor da A.;
14) As regras procedimentais do ponto 14.7 das condições gerais da apólice são res inter alios, vinculando apenas seguradora e tomadora/seguradas entre si, não traduzindo deveres exigíveis por terceiros, e muito menos determinar uma condenação judicial em processo onde a entidade, alegadamente, causadores não é parte;
15) E, ainda mais quando a R. cumpriu essa disposição perante a tomadora, e a pedido desta e a autora, recusou a prestação optando pelo apuramento judicial da responsabilidade e responsáveis, sem demandar entidade que se provasse ser a responsável;
16) Pelo que, existindo franquia de €3.500,00 até à qual são as seguradas que respondem pelos danos, nunca podia a recorrente subordinada ser condenada como foi na sentença recorrida;
17) Violou a sentença recorrida o disposto nos artigos 5.º n.º1 e 2, 615.º n.º 1 c) e 607.º n.º 3 e 4 do CPCiv e 342.º, 405.º, 493.º n.º 2, 500.º n.º 1, 503.º n.º 3 do CCiv e 3º n.º 3 do CE.
Conclui pelo provimento do recurso subordinado e a decisão quanto aos pontos da matéria de facto impugnada e se revogue a sentença recorrida e absolva a Recorrida da condenação.
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A Autora apresentou contra-alegações ao recurso subordinado apresentado pela R. B..., concluindo pela improcedência do recurso subordinado.
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Os 2 recursos foram admitidos como de apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
No exame preliminar considerou-se nada obstar ao conhecimento do objecto do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (C. P. Civil).
Assim, partindo das conclusões das alegações apresentadas pelos Apelantes, as questões a decidir no presente recurso, são as seguintes:
a) Se existem razões válidas para modificar a decisão da matéria de facto, nos termos pretendidos pela R./recorrida;
b) Se se justifica a alteração da solução jurídica dada ao caso pela 1.ª instância.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
1. OS FACTOS
1.1. Factos provados
O tribunal de que vem o recurso julgou provados os seguintes factos;
Constantes da Petição Inicial:
1-A A. é dona e legítima possuidora do veículo pesado de passageiros de marca VOLVO, com a matrícula ..-BP-...
2-No dia 13 de Junho de 2022, pelas 12h50m, circulava o referido veículo na Rua ... – ... - ..., sendo tal veículo conduzido por AA.
3-No circunstancialismo de tempo e lugar acima referidos, circulava o veículo da A. na referida estrada, quando, junto ao número ...6 da referida rua, o condutor do veículo ouviu um barulho, imobilizou a viatura e constatou que a tampa do ar condicionado havia sido arrancada e havia ficado presa num cabo de telecomunicações que estava abaixo da altitude regulamentar.
4-Provado apenas (e com o esclarecimento) que - a ocorrência foi comunicada à C..., S.A., a 23.06.2023, tendo a mesma informado ter transferido a responsabilidade da sua actividade para a aqui Ré.
5-Em 10 de Agosto de 2022, sem que até aí a Ré tenha dado ordem de peritagem, decorridos quase dois meses do sinistro, a A. deu ordem de reparação da viatura, a qual ficou concluída em 12/08/2022.
6-Concluída a reparação do veículo, a A. remeteu à R. o valor da reparação e ainda a despesa a considerar com o custo de paralisação do veículo, entre os dias 11/08/2022 e a conclusão da reparação em 12/08/2022.
7-(Com o esclarecimento) A estrada onde ocorreram os factos supra descritos tem o serviço de telecomunicações concessionado a uma das empresas segurada da Ré.
8-(Com o esclarecimento) No âmbito da referida concessão compete (a uma das) segurada(s) da Ré observar e fazer cumprir o seu dever de vigilância, fiscalização e segurança da rede.
9-(Com o esclarecimento) Sobre (uma das) segurada(s) da Ré impende o dever de manter em bom estado de funcionamento, segurança e conservação a infra-estrutura em causa – rede de telecomunicações -, no local indicado.
10-À data em que se verificou o sinistro, os cabos de telecomunicações que atravessam a estrada em causa, estavam baixos em relação à altura a que se devem encontrar.
11-(Com o esclarecimento) A A. reclamou a situação junto (de uma das) seguradas da Ré e posteriormente junto da Ré.
12-A qual aceitou apenas pagar à A. o valor da reparação que consta do auto de peritagem - € 402,00 (quatrocentos e dois euros).
13-Tendo-se recusado a efectuar o pagamento dos dias de paralisação da viatura, para além de dois, pelo facto de entender não existir justificação plausível.
14-Em consequência directa e necessária do acidente, o veículo da A. sofreu danos, designadamente na tampa do ar condicionado, a qual ficou danificada ficando impossibilitado de circular, atenta a possibilidade de danificar o próprio aparelho de ar condicionado.
15-Por força do sinistro ocorrido o veículo da A. não tem condições de segurança para circular, estando imobilizado desde o dia 13 de Junho de 2022.
16-Tratando-se de um veículo que a Autora utiliza no transporte de passageiros, de carreiras e serviços de que é concessionária e ainda nos serviços de aluguer para transporte de alunos, trabalhadores e excursionistas.
17-A Autora é uma empresa que se dedica, com escopo lucrativo ao transporte público de passageiros, carreiras regulares, transporte de alunos, excursões e todo o tipo de serviços de transportes ocasionais, fazendo dessa a finalidade da sua actividade e o seu lucro.
18-O veículo interveniente no acidente é um veículo de categoria II, possuindo uma lotação de 56 lugares.
19-E esteve imobilizado e impossibilitado de circular desde o sinistro em 13/06/2022.
20-Com a verificação do acidente, a Autora ficou privada do uso do mesmo.
21-O valor diário de paralisação acordado para este tipo de veículo, entre a Associação Nacional de Transportadores Rodoviários de Pesados de Passageiros (ANTROP), de que a Autora é associada e a Associação Portuguesa de Seguradoras, de que a Ré é associada é de € 263,72 (duzentos e sessenta e três euros e setenta e dois cêntimos) por cada dia de paralisação.
22-Diariamente a Autora recebe encomendas de serviços de todos os tipos.
23-Com a paralisação do veículo aqui sinistrado, a Autora viu-se privada de poder dispor do mesmo e de o utilizar nesses serviços.
Constantes da contestação da Ré B... -COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.:
24-Entre a R. e a “C... CORPORATE CENTER, S.A.” foi celebrado um contrato de seguro do ramo “Responsabilidade Civil Exploração” sob a apólice n.º ...31.
25-A apólice cobre os danos causados a terceiros por facto emergente da actividade de uma das empresas seguras listadas na apólice.
26-A apólice foi celebrada com um capital máximo de €500.000,00 por sinistro e agregado anual sujeita a uma franquia por sinistro a cargo do segurado de €3.500,00, apenas respondendo a seguradora por danos acima desse valor que é a cargo da segurada.
27-A R., apenas tomou conhecimento da ocorrência através de uma comunicação efectuada pela sua segurada em 9/9/2022, depois de ocorrido o evento, a A. ter reparado a viatura e a mesma estar em funcionamento, não tendo sido possível a esta, nem verificar os danos, nem quantificar o custo.
28-Perante essa impossibilidade, na sequência de solicitação do seu segurado no sentido de proceder directamente ao pagamento dos reclamados danos no valor de €929,44, disponibilizou-se para o fazer evitando o escrutínio litigante do “sinistro”.
29-O que fez através da carta que o próprio A. junta como doc.7 e foi recusado pela A.
30-A A. já desde pelo menos dia 13/6/2022 sabia que o cabo envolvido no acidente era propriedade da “C...”.
31-Só no dia 23/6/2022 há registo de ter sido dado conhecimento do acidente à “C...”, por parte da “D..., Lda”, com o apoio de um corretor de seguros “Seguramos”.
32-É da “D..., Lda” o orçamento junto como doc.8 que anuncia a necessidade de 2 horas de serralheiro e 2 h de pintura para a reparação que é descrito carecer de 2 dias, o que motivou um primeiro pedido de indenização à “C...” desses dois dias necessários.
33-A A. orçamentou e fotografou os danos.
34-A Ré incumbiu um averiguador de apurar as circunstâncias.
35-Daí resultou apurado que, o fio em causa já se encontrava há várias semanas descaído e a embater nos veículos que por ali passavam.
36-O próprio condutor do veículo – AA – reconhecera ao averiguador que já tinha detectado a anomalia e por várias vezes já tinha ao passar sentido o fio a deslizar raspando pelo tejadilho do veículo e que abrandava e passava devagar.
37-Sem que alguma vez providenciasse no sentido de avisar a autoridade policial ou o responsável pelo cabo.
38-Optando no dia em causa por mais uma vez passar.
Constantes da contestação da Chamada:
39-Os cabos de telecomunicações em crise são propriedade da empresa C... TECHNOLOGY – CONCEPÇÃO, CONSTRUÇÃO E GESTÃO DE REDES DE COMUNICAÇÕES, S.A.
40-C... TECHNOLOGY – CONCEPÇÃO, CONSTRUÇÃO E GESTÃO DE REDES DE COMUNICAÇÕES, S.A., tem por objecto a concepção, construção, gestão e exploração de redes de comunicações eletrónicas e dos respectivos equipamentos e infraestruturas, mediante a implantação, instalação e exploração de infraestruturas fixas ou móveis para colocação de equipamento de telecomunicações e de outra natureza conexa ou acessória à actividade, gestão de activos tecnológicos próprios ou de terceiros e prestação de serviços de gestão e manutenção dos mesmos serviços conexos.
41-A Chamada C... CORPORATE CENTER, S.A., tem por objecto a prestação de serviços de apoio às empresas e consultorias de gestão e administração, incluindo serviços contabilísticos, logísticos, administrativos, financeiros, de fiscalidade, de recursos humanos e quaisquer outros serviços que sejam subsequentes ou conexos com as actividades anteriormente.
42-Por contrato de seguro, em regime de cosseguro, celebrado entre a C... e a Ré Seguradora B... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., foi transferida a cobertura dos riscos relacionados com responsabilidade civil geral de exploração de actividade, nos termos da apólice n.º ...31.
43-Este contrato cobre os riscos relacionados com responsabilidade civil geral de exploração de actividade da C... e também os riscos relacionados com responsabilidade civil geral de exploração da actividade das empresas que compõem o grupo C....
44-O contrato de seguro encontrava-se em pleno vigor à data da verificação do sinistro.
A.2.) Factos não provados.
Não resultaram provados os seguintes factos:
Constantes da Petição Inicial:
1-O condutor do veículo da A. conduzia atento ao que se passava na estrada.
2-O condutor do veículo da A. conduzia pela sua mão de trânsito.
3-A velocidade reduzida, atento o local.
4- Não sendo possível à A. ter conhecimento de tal desleixo por parte da segurada R..
5- Com a verificação do acidente, a Autora ficou e esteve impossibilitada de satisfazer serviços no período de paralisação do veículo, desde a ocorrência do acidente até à integral reparação dos danos.
6- Com a verificação do acidente, a Autora ficou impossibilitada de satisfazer serviços no período de paralisação do veículo.
7- Ao ficar privada do uso do veículo, que deixou de poder circular até à reparação integral, a Autora viu-se forçada a reorganizar os serviços que estavam escalados para o veículo em questão para os dias seguintes, com todas as condicionantes e alterações de escalas de trabalho e descanso.
8-E ainda não aceitando serviços ocasionais de aluguer por insuficiência de meios para dar resposta aos contratos já assumidos.
9-A Autora não possui veículos em excedente.
10-A Autora viu-se forçada a renunciar a realização de serviços ocasionais e de aluguer que lhe permitiriam com certeza, auferir diariamente uma quantia nunca inferior à peticionada.
11-A Autora sentiu inconveniência e no incómodo de não conseguir servir os seus clientes, que tiveram que se socorrer de empresas da concorrência.
Constantes da Contestação da Ré:
12-O veículo não ficou impossibilitado de circular.
13- Bem sabendo (o condutor do veículo da Autora) que, além de poder rebentar o cabo e causar danos a terceiros podia causar danos à viatura que conduzia com isso se conformando.
14-A C... efectua a supervisão e fiscalização das suas instalações reparando, de imediato, qualquer anomalia ou desconformidade que lhe seja reportada.
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1.3 – A Apelante pretende a rectificação de erro material no ponto 4) dos factos provados, devendo ficar a constar 23.06.2022 em vez de 23.06.2023.
Efectivamente, assiste-lhe razão, porquanto do documento nº. 5 junto à petição inicial - e testemunhal – BB, testemunha das recorridas, tal como, aliás, já consta do ponto 31.
Assim sendo, rectifica-se a aludida alínea 4) dos factos provados, ficando a constar:
Provado apenas (e com o esclarecimento) que - a ocorrência foi comunicada à C..., S.A., a 23.06.2022, tendo a mesma informado ter transferido a responsabilidade da sua actividade para a aqui Ré.
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No âmbito do recurso subordinado a R. B... pretende que sejam eliminados os pontos dos factos provados n.ºs 7, 8 e 9 e 10.
Alega que não é identificada nem concretizada, em contradição com a fundamentação de direito que, sem suporte de facto aponta depois uma delas, que nem sequer é parte nos autos como “responsável”, sendo que no 10 apenas uma afirmação conclusiva.
Ora, não pode a fundamentação de facto de uma sentença ser incluída de afirmações ambíguas ou juízos conclusivos.
Dispõe o art. 662.º, n.º 1 do C. P. Civil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
À luz deste preceito, “fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.
O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância, nos termos consagrados pelo art. 607.º, n.º 5, do C. P. Civil, sem olvidar, porém, os princípios da oralidade e da imediação.
A modificabilidade da decisão de facto é ainda susceptível de operar nas situações previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 662.º do C. P. A Civil.
Relativamente aos pontos 7, 8 e 9 há que contextualizá-los com o provado em 39) e 40), em que é claro a relação entre as empresas.
A testemunha BB – responsável pela manutenção de redes, exercendo funções na C... TECHNOLOGY, pertencente ao grupo C... CORPORATE CENTER – referiu que a rede é propriedade da C... TECHNOLOGY, sendo esta empresa a responsável pela manutenção, fiscalização, reabilitação, reparação dos cabos da rede. Referiu que sempre que há ocorrências anómalas são repostadas e mandam alguém reparar. Disse que a C... TECHNOLOGY foi avisada por outra empresa – E... – via email de 14.06.2022, tendo sido feita uma reparação do cabo em causa.
CC – perito averiguador da F... – fez o relatório de peritagem que se encontra junto aos autos e assinado por si, deslocou-se ao local do sinistro e o cabo já estava na altura em que não constituía perigo para a circulação automóvel; falou com o condutor, viu a viatura; referiu que apurou que de facto o cabo era da C..., é responsabilidade da mesma mantê-lo a altura regulamentar e os danos eram enquadráveis.
Do exposto decorre que a matéria expressa nos aludidos factos provados não constituem apenas formulações genéricas e conclusivas, pelo que se encontram devidamente inseridos na factualidade provada, de acordo com disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil.
Em suma, é de indeferir a impugnação.
Relativamente ao ponto 10)
A impugnação aqui também é de improceder.
Com efeito, a testemunha DD – engenheiro mecânico, responsável pela oficina de manutenção e reparação de viaturas do grupo da Autora, referiu que a tampa aqui em causa tem cerca de 2,5 metros de comprimento e cerca de 70 cm de largura e que ficou “pendurada” no cabo em causa e que se deslocaram ao local dois funcionários do grupo para a retirarem do local.
AA – motorista, funcionário da Autora, conduzia o veículo no dia do sinistro – descreveu as circunstâncias de tempo, lugar, modo, na altura do acidente em causa nos autos; o sentido de marcha do veículo, a carreira que fazia, a forma como se desenrolou o acidente, os danos provocados no autocarro,
Pese não estar expressa em valores concretos a altura a que se encontravam os cabos ela seria sempre inferior ao devido, porquanto veículo embateu nos mesmos por não se encontrar a altura regulamentar.
Assim sendo, improcede a impugnação
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1.5 Síntese conclusiva:
Rectifica-se o ponto 4) dos factos provados, ficando a constar:
Provado apenas (e com o esclarecimento) que - a ocorrência foi comunicada à C..., S.A., a 23.06.2022, tendo a mesma informado ter transferido a responsabilidade da sua actividade para a aqui Ré.
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Improcede a pretensão da R./Recorrida em alterar a matéria de facto.
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2 - OS FACTOS E O DIREITO.
A recorrente pugna pelo pagamento da indemnização pela paralisação do veículo com a matrícula correspondente a €16.086,92 (dezasseis mil e oitenta e seis euros e noventa e dois cêntimos).
A sentença recorrida considerou ser de apenas ressarcir a Autora/Apelante no valor de €929,44, correspondente aos danos sofridos com a reparação do autocarro (€402,00), acrescido do período necessário à referida reparação - 2 dias – no valor de €527,44.
Por sua vez a R. considera que não está obrigada a indemnizar por desconhecer atempadamente o acidente, pelo facto de haver uma franquia no seguro e ainda pelo acidente se ter devido a imprudência e culpa exclusiva do condutor da Autora.
Conhecendo:
"A privação de uso de um veículo automóvel durante um certo lapso de tempo, em consequência dos danos sofridos em acidente de trânsito, constitui, só por si, um dano indemnizável”, vide Acórdão do Supremo Tribunal de 05.07.2007, processo n.º 07B1849, in www.dgsi.pt.
"O uso de um veículo automóvel constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação consubstancia um dano patrimonial que deve, por si só, ser indemnizado com recurso a critérios de equidade. Por conseguinte, mesmo quando se trate de veículo em relação ao qual inexista prova de qualquer utilização lucrativa, não está afastada a ressarcibilidade dos danos tendo em conta a mera indisponibilidade do bem", vide acórdão do TRC, de 26.11.2002, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Tomo V, pág. 19 e ss.
"Tratando-se de veículo automóvel de pessoa singular ou de empresa utilizado como instrumento de trabalho ou no exercício de actividade lucrativa, a existência de um prejuízo material decorre normalmente da simples privação do uso, independentemente da utilização que, em concreto, seria dada ao veículo no período de imobilização, ainda que o veículo seja substituído por outro de reserva.", vide Abrantes Geraldes in “Temas da Responsabilidade Civil”, I Volume, Indemnização do Dano da Privação do Uso”, 2ª edição..
“A privação do uso, desacompanhada da sua substituição por um outro veículo ou do pagamento de uma quantia bastante para alcançar o mesmo efeito, reflecte o corte definitivo e irrecuperável de uma "fatia" dos poderes inerentes ao proprietário. Deste modo, a simples privação do uso é causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que pode servir de base à determinação da indemnização. Aliás, o simples uso do veículo constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano.
E o dano imediatamente ressarcível é precisamente a indisponibilidade do bem, qualquer que fosse a actividade (lucrativa, benemérita ou de simples lazer) a que o veículo estava afecto.”, vide Ac. TRP, de 20. 02. 2025, processo 170/20.1T8MAI.P1, Relator Paulo Dias da Silva, in www.dgsi.pt.
Assim, dentro do acima exposto, também entendemos ser de ressarcir o período de indisponibilidade do veículo, caso não seja atribuído outro, perspectiva que se encontra claramente abrangida e consagrada pela entrada em vigor, a partir de fins de 2006, do Decreto Lei n.º 83/2006, de 03.05, que introduziu o artigo 20.º-J no Decreto Lei n.º 522/85, de 31.12, regime depois substituído por um igual no Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08, actualmente em vigor, que, pelo seu artigo 42.º, obriga as seguradoras, verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, a pôr à disposição do lesado um veículo de substituição (de características semelhantes) a partir da data em que assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente.
Atente-se que o único pressuposto do direito é a imobilização do veículo sinistrado, não se exigindo ao lesado que alegue e prove que tinha possibilidade ou a vontade de continuar a utilizar o veículo sinistrado.
Compulsada a sentença recorrida constata-se que a mesma apenas considerou para efeitos de indemnização pela não utilização do veículo o período de 2 dias da reparação e não todo o período de tempo que o veículo esteve imobilizado, o que ocorreu desde a data do acidente (13.06.2022) até à data em que o mesmo ficou reparado (12.08.2022).
Prima facie, seguindo o acima exposto, seriamos de considerar dar provimento ao recurso, mas será assim?
A sentença recorrida, na fundamentação de direito, sustentou “Cremos que a Autora não actuou com a diligência que lhe era esperada, de forma a minimizar os “danos” reclamados a título de paralisação, uma vez que orçou atempadamente a reparação dos danos e tirou fotografias ao veículo acidentado que lhe permitiriam avançar com a reparação, sem por em causa o recebimento do montante daquela.
Acresce que, apesar de ser indemnizável a simples privação do uso independentemente da prova de danos concretos e independentemente do uso que era dado ao veículo, a verdade é que a ausência de prova de outros factos para além da privação do uso impede que na graduação da gravidade do dano diário possa ser considerado de grande impacto no património da autora a falta de disponibilidade do veículo.”
Como já acima vimos, não é de acolher esta última parte da sentença, pelas razões já atrás expendidas, pelo que resta de saber se é de manter a sentença recorrida atenta a falta de diligência da Autora.
O art. 42.º do DL n.º 291/2007 está longe de resolver todos os problemas implicados pela privação do uso do veículo, suscitando várias questões.
Desde logo, em face da redacção do seu n.º 1, coloca-se a questão de saber se são ressarcíveis os danos referentes ao período de tempo que antecede a assumpção de responsabilidade por parte da seguradora.
A resposta não poderá deixar de ser afirmativa: embora nessas situações não esteja prevista a atribuição de veículo de substituição, não fica afastada a indemnização em dinheiro.
Assim, embora a seguradora não esteja obrigada a disponibilizar veículo de substituição durante lapso de tempo superior ao estimado para a reparação do veículo sinistrado, não poderá deixar de arcar com a obrigação de indemnizar, quando o tempo estimado para a realização da reparação tenha sido ultrapassado sem que isso se deva a facto culposo do lesado ou da própria oficina que escolheu.
Vejamos se houve culpa do lesado pela demora na reparação do veículo.
- O acidente ocorreu no dia 13.06.2022.
- A ocorrência foi comunicada à C..., S.A., a 23.06.2022, tendo a mesma informado ter transferido a responsabilidade da sua actividade para a aqui Ré.
- Em 10 de Agosto de 2022, sem que até aí a Ré tenha dado ordem de peritagem, decorridos quase dois meses do sinistro, a A. deu ordem de reparação da viatura, a qual ficou concluída em 12/08/2022.
- A A. reclamou a situação junto (de uma das) seguradas da Ré e posteriormente junto da Ré.
- A R., apenas tomou conhecimento da ocorrência através de uma comunicação efectuada pela sua segurada em 9/9/2022, depois de ocorrido o evento, a A. ter reparado a viatura e a mesma estar em funcionamento.
- A A. já desde, pelo menos, dia 13/6/2022 sabia que o cabo envolvido no acidente era propriedade da “C...”.
- Só no dia 23/6/2022 há registo de ter sido dado conhecimento do acidente à “C...”, por parte da “D..., Lda”, com o apoio de um corretor de seguros “Seguramos”.
Da factualidade atrás exposta decorre que a Autora comunicou o acidente à C... em 23.06.2022, tendo sido informada por esta que havia transmitido a responsabilidade para a aqui R., a qual apenas soube do acidente em 09.09.2022, por comunicação da segurada C....
Do exposto, prima facie, seriamos levados a concluir que não podem ser assacadas quaisquer responsabilidades à Ré B... no atraso da reparação do veículo automóvel, inexistindo culpa e nexo de causalidade entre a demora na reparação do veículo e a sua reparação efectiva.
Sucede que se encontrava em vigor um contrato de seguro, em regime de cosseguro, celebrado entre a C... e a Ré, pelo qual foi transferida a cobertura dos riscos relacionados com responsabilidade civil geral de exploração de actividade, nos termos da apólice n.º ...31.
Nos termos da cláusula 6.1. do aludido contrato “O Segurador, de acordo com os termos e condições das Condições Gerais e desta apólice, garante o pagamento das indemnizações que, de acordo com a legislação em vigor, possam ser exigidas ao Segurado, a titulo de responsabilidade civil extracontratual, por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, resultantes de lesões materiais e/ou corporais causadas acidentalmente a terceiros no decurso da exploração da actividade da empresa segurada.”
Dispondo-se ainda na cláusula 7.2. RESPONSABILIDADE CIVIL GERAL
“Por esta cláusula, e de acordo com os termos e condições desta proposta e das Condições Gerais, a Seguradora garante o pagamento das indemnizações que, de acordo com a legislação em vigor, possam ser exigidas ao Segurado, como civilmente responsável, por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, resultantes de lesões materiais e/ou corporais causadas acidentalmente a terceiros no decurso do exercício da sua actividade, decorrente entre outros, a título enunciativo mas não limitativo…”
Do aludido contrato de seguro não consta qualquer exclusão de responsabilidade pelo facto da Segurada não comunicar em tempo útil a existência de acidentes.
O contrato de seguro “É aquele em que uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada, a, no caso de realização de um risco, indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos, ou, tratando-se de evento relativo à pessoa humana, entregar um capital ou renda, ao segurado ou a terceiro, dentro dos limites convencionalmente estabelecidos, ou a dispensar o pagamento dos prémios tratando-se de prestações a realizar em data indeterminada”, Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro”, pág. 23..
O contrato de seguro é essencialmente regulado pelas disposições particulares e gerais constantes da respectiva apólice e, nas partes omissas, pelo disposto no Código Comercial e, na falta de previsão deste último diploma, pelo disposto no Código Civil.
No presente caso, encontrando-se transferida a responsabilidade civil da Interveniente Principal C..., pese esta não tenha comunicado no prazo de 8 dias a verificação do sinistro, artº 100.º do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril, (Regime Jurídico do Contrato de Seguro ), tal omissão constitui uma questão não imputável a terceiros, como a aqui Autora, pelo que está a Ré B... obrigada a indemnizar, sem prejuízo de eventual direito de regresso perante a aqui segurada, mas que nesta sede não cabe apreciar.
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Relativamente ao número de dias a indemnizar, pelas razões já acima expressas, ele corresponderá aos dias que o veículo esteve imobilizado, contados desde a data em que a Autora comunicou à Interveniente Principal C... o acidente, ou seja, desde 23.06.2022 até à data em que a reparação ficou concluída (12/08/2022), não se contando os dias desde o acidente até à comunicação por tal prazo de inércia ser atribuível à Autora/Apelante, pelo que o período de indemnização é de 51 dias.
Relativamente ao valor da indemnização/dia, considerando as regras da equidade, atente-se que estamos perante um veículo pesado de passageiros, tendo ainda em conta o acordo celebrado entre Associação Nacional de Transportadores Rodoviários de Pesados de Passageiros (ANTROP), entidade representante de grande parte do sector dos transportes rodoviários de pesados de passageiros (sendo a Autora uma associada), consideramos como equitativo e razoável o valor referido na sentença recorrida de €263,72 por cada dia de paralisação, o que perfaz a quantia de €13.449,72.
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Questão da culpa na produção do acidente.
A Ré B... alega que o único facto ilícito e culposo que determinou a ocorrência dos danos foi a descrita actuação temerária do condutor da A..
A culpa do lesado, neste caso a A., presumida como comitente, e a do seu condutor, como comissário, afastam a obrigação de indemnizar atento o disposto no art.º 570.º do C. Civ, como sempre afastariam a presunção invocada do artº 493º, nº 2 referida na sentença.
Além do mais, no caso, há presunção de culpa do condutor, motorista de pesado de passageiros que o conduzia no interesse e por conta da autora, caindo no âmbito da presunção de culpa do n.º 3 do art.º 503.º do CCiv e consequentemente da autora por via do art.º 500.º n.º 1 do mesmo Código.
Alega ainda que a actividade de gestão ou manutenção de uma rede de cabos de comunicações, ainda que alguns colocados por via aérea, manifestamente, não traduz uma actividade perigosa, não se subsumindo à previsão do n.º 2 do art.º 493.º do CCiv.;
Apreciando:
Encontramo-nos no âmbito da responsabilidade extracontratual, dispondo o art. 483º do C.C. que aquele que por dolo ou mera culpa violar ilicitamente os direitos de outrem constitui-se na obrigação de indemnizar o lesado. Só existe obrigação de indemnizar quando haja culpa do agente, fora disso a obrigação só existe nos casos taxativamente estipulados na lei.
São, assim, pressupostos da responsabilidade civil - a prática de um facto voluntário ilícito, imputável ao agente a título de dolo ou culpa, um dano ou prejuízo reparável e um nexo de causalidade adequada entre este dano e aquele facto.
Prescreve o art. 29° do Dec. Lei n° 31/03, de 17/2, que a concessionária da rede de telecomunicações responde por quaisquer prejuízos causados a terceiros no exercício das actividades que constituem o objecto da concessão, pela culpa ou pelo risco, não sendo assumido pelo concedente qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito.
O citado preceito não define os pressupostos da responsabilidade, limitando-se a remeter para o regime geral, pelo que se terá de fazer apelo aos preceitos do CC que regulam a responsabilidade civil.
Sobre danos causados por coisas, animais ou actividades, dispõe o artº 493º, do C. Civil:
Artigo 493.º
1. Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
2. Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.
Reconduzindo-nos aos presentes autos constatamos encontrar-se provado que à data em que se verificou o sinistro, os cabos de telecomunicações que atravessam a estrada em causa, estavam baixos em relação à altura a que se devem encontrar, o que provocou os danos sofridos pela viatura.
Contrariamente ao expresso na sentença recorrida, a conduta em causa subsume-se ao nº 1, do artº 493º e não ao nº 2, neste sentido veja-se o Ac do STJ de 20.11.2014, processo nº 0155/11.9TCFUN.L1.S1, Relator Abrantes Geraldes, in www.dgsi.pt.
O aludido nº 1, do artº 493º, prescreve uma solução assente na presunção de culpa do proprietário ou possuidor da coisa ou da pessoa a quem incumbe o dever de a vigiar, presunção que apenas se considera ilidida quando o agente a quem é imputada a responsabilidade demonstrar que não houve qualquer culpa da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que agisse com toda a diligência.
“quem tem a coisa à sua guarda deve tomar as medidas necessárias a evitar o dano. As coisas abandonadas a si mesmas podem constituir um perigo para terceiros e o guarda delas deve, por isso, adoptar aquelas medidas; por outro lado, está em melhor situação do que o prejudicado para fazer a prova relativa à culpa, visto que tinha a coisa à sua disposição e deve saber, como ninguém, se realmente foi cauteloso na guarda”, vide Vaz Serra, Trabalhos Preparatórios do Cód. Civil, BMJ 85º, pág. 365.
No caso concreto, não há dúvida de que a C..., como concessionária da rede de telecomunicações do cabo em causa, tinha o dever de vigiar cabos de telecomunicações, a fim de evitar quaisquer danos a terceiros.
Dever que deveria ter sido especialmente reforçado, de modo a evitar a ocorrência de danos para terceiros, dado o cabo se encontrar sobre a estrada.
A exoneração da sua responsabilidade dependeria da prova da ausência de qualquer culpa da sua parte, designadamente verificação da situação em que se encontravam os cabos na via pública, por colidir com a segurança estradal.
Assim sendo, é evidente haver culpa da C..., a qual tendo transferido a responsabilidade civil da sua actividade para a R. B..., mediante contrato de seguro, terá esta que responder em conformidade.
Sucede que a R. B... invoca que a sua responsabilidade se encontra afastada pela culpa do lesado, neste caso a A., presumida como comitente, e a do seu condutor, como comissário, afastam a obrigação de indemnizar, atento o disposto no art.º 570.º do C. Civ.
Além do mais, no caso, há presunção de culpa do condutor, motorista de pesado de passageiros que o conduzia no interesse e por conta da autora, caindo no âmbito da presunção de culpa do n.º 3 do art.º 503.º do CCiv e consequentemente da autora por via do art.º 500.º n.º 1 do mesmo Código.
Dispõe o Artigo 503.º (Acidentes causados por veículos)
1. Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
2. As pessoas não imputáveis respondem nos termos do artigo 489.º
3. Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do n.º 1.
A presunção do nº 3, diz respeito aos condutores de veículos por conta de outrem.
No caso sub judice está provado que o veículo ..-BP-.. era propriedade da Autora e era conduzido por AA, o que fazia por conta da Autora, pois tal nunca foi posto em questão.
Está ainda provado:
- O fio em causa já se encontrava há várias semanas descaído e a embater nos veículos que por ali passavam.
- O próprio condutor do veículo – AA – reconhecera ao averiguador que já tinha detectado a anomalia e por várias vezes já tinha ao passar sentido o fio a deslizar raspando pelo tejadilho do veículo e que abrandava e passava devagar.
- Sem que alguma vez providenciasse no sentido de avisar a autoridade policial ou o responsável pelo cabo.
- Optando no dia em causa por mais uma vez passar.
A referida matéria de facto leva a concluir que o condutor do veículo ..-BP-.., ao actuar da forma descrita actuou com culpa, mesmo admitindo ter pensado poder passar novamente com o autocarro com os cabos a raspar pelo tejadilho, como já tinha feito anteriormente, tem de se reconhecer ter tido um comportamento temerário e, nesta medida, tem de se entender que actuou com culpa.
Do exposto decorre estamos perante um concurso de culpas, ainda que presumidas, entre a C... e o condutor do veículo ..-BP-.., pelo que será de aplicar o disposto no artº 570º do CC.
Dispõe o artigo 570.º do Código Civil:
1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
2. Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.
O disposto no artigo 570.º do Código Civil, enquadra-se como uma das excepções ao critério definido pela ‘teoria da diferença’, expressamente ressalvadas no n.º 2 do artigo 566.º do mesmo diploma legal: situações em que “com base em fundamentos especiais, se suprime ou limita a obrigação de indemnização”, sendo uma delas o caso em que concorre a culpa do lesado, desde que o seu comportamento seja “concausa do dano, da produção ou do agravamento”, vide Pinto Monteiro in Cláusulas Limitativas e de Execução de Responsabilidade Civil, Coimbra, 1985 – Separata do volume XXVIII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 91.
Refere ainda o citado autor que o que a lei exige para a verificação do condicionalismo enunciado que “o dano seja causado, tanto por facto do lesante como por facto do lesado, um e outro causa adequada do dano, havendo assim um nexo de concausalidade – a culpa do lesado, aliada à culpa do lesante poderá relevar no sentido de reduzir ou mesmo de excluir a indemnização”.
Há concausalidade da culpa quando o facto do agente concorre com um facto culposo da vítima, ocorrendo a redução ou exclusão da indemnização quando o prejudicado não adopte a conduta exigível com que poderia ter evitado a produção do dano ou o agravamento dos seus efeitos, vide Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Almedina, 2011, pág. 781 e seguintes.
No que ao caso sub-judice encontrámo-nos perante uma presunção de culpas, sucede que a culpa do lesado resulta de uma outra presunção de culpa (que é diferente da culpa efectiva do lesado), apesar de o lesado não ter comunicado o estado dos cabos, o dever de vigilância não deixa de recair sobre a lesante, pelo que será de integrar a conduta no nº 1 do artº 570º e não no seu nº 2, vide neste sentido Ac. do STJ, de 03.11.2020, processo 1516/15.0T8BJA.E1.S1, Relator Maria João Vaz Tomé, in www.dgsi.pt.
Assim, considerando o disposto no artº 570, nº 1, entende-se ser de atribuir uma repartição de culpas em 50% a cada um dos intervenientes no acidente, pelo que será de conceder à Autora o montante total de €6.925,86 (€13.449,72 de imobilização do veículo + €402,00 (quatrocentos e dois euros da reparação = €13.851,72: 2 = €6.925,86).
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Relativamente à questão da existência da franquia de €3.500,00 cabe dizer que tal é inoponível a terceiros.
Com efeito, pese constar do ponto 12 do contrato de seguro que “em caso de sinistro coberto pela apólice, a cargo do Segurado fica a franquia de € 3.500 por sinistro”, a aludida franquia apenas tem aplicação às relações directas entre seguradora e segurado, neste caso R. e Interveniente principal, pelo que sendo a Autora uma terceira não lhe é oponível a franquia.
Assim sendo, está a R. obrigada ao pagamento da indemnização sem dedução da franquia.
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Assim, procederá parcialmente o recurso da Apelante e parcialmente procedente o recurso subordinado.
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IV – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 3ª secção deste Tribunal da Relação do Porto:
a) Na parcial procedência do recurso da Autora/Apelante, condenando-se a R/Apelada no valor de €6.925,86 (seis mil novecentos e vinte e cinco euros e oitenta e seis cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação, até integral pagamento;
b) Em dar parcial provimento ao recurso subordinado da R. B... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., repartindo as culpas em 50%.
c) Manter-se a sentença na parte em que absolveu a Interveniente Principal C..., S.A.
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Custas por Apelante e Apelada de acordo com o vencimento/decaimento – artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
Porto, 20 de Março de 2025
Álvaro Monteiro
Judite Pires
Maria Manuela Barroco Esteves Machado