Nos termos previstos no art. 615.º, n.º 1, al. e), do Cód. Proc. Civil, é nula a sentença na parte em que condena um dos réus, solidariamente com o outro réu, no pagamento de determinada quantia, quando o pedido de condenação no pagamento dessa quantia foi deduzido apenas contra o outro réu.
Sumário:
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I – Relatório
Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
AA instaurou a ação declarativa, com processo comum, contra BB e Fundo de Garantia Automóvel, peticionando a condenação dos réus a pagarem ao autor a quantia global de € 37.635,56, acrescido de juros, calculados à taxa legal, desde a citação até efetivo pagamento.
Alegou em síntese, ter sofrido os danos que descreve em consequência de um despiste do automóvel no qual seguia como passageiro, não tendo o condutor e proprietário do veículo seguro automóvel válido e eficaz na data da ocorrência do acidente.
Citados os réus, contestou o réu Fundo de Garantia Automóvel (doravante, FGA) arguindo a sua ilegitimidade material por preenchimento da exclusão prevista no art. 52.º, n.º 2, al. b), do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, por o autor ter conhecimento, na data e ocasião em que o acidente ocorreu, que o veículo no qual circulava como passageiro não tinha seguro válido e eficaz, e impugnando os factos por desconhecimento, concluindo pela improcedência da ação.
Em 03-10-2016 foi proferido despacho ordenando a citação da Segurança Social, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de fevereiro.
Citado, o Instituto da Segurança Social, I.P., deduziu em 28-10-2016 pedido de reembolso de subsídio de doença contra o réu BB, peticionando a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 1.133,16, acrescida de juros
de mora à taxa legal.
Alegou, em síntese, que efetuou o pagamento ao autor do montante de € 1.133,16 a título de subsídio de doença, no período decorrido de 07/06/2014 a 17/11/2014, em que o autor esteve incapacitado para o trabalho em consequência das lesões sofridas no acidente, tendo direito de regresso contra o réu BB pelos valores liquidados ao autor, nos termos e em conformidade com o disposto nos arts. 48.º e. 51.º, n.os 3 e 4 º 3 do art do D.L. n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
Na sequência de convite do tribunal para o efeito, o autor pronunciou-se, em 15-12-2016, quanto à arguição de ilegitimidade substantiva arguida pelo réu FGA na contestação, impugnando a factualidade alegada pelo referido réu, por desconhecer que o veículo conduzido pelo réu BB não possuía seguro, concluindo pela improcedência da exceção.
Na fase intermédia da ação (art. 595.º do Cód. Proc. Civil) – despacho de 19-01-2017, ref. 72749895 – foi fixado à ação o valor de € 38.635,56, relegado o conhecimento do mérito da ação, incluindo a exceção perentória arguida pelo réu, para final, e proferido despacho de identificação do objeto do litígio e de enunciação dos temas da prova.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento, na pendência do qual – por requerimento de 15-04-2024 – foi requerida a ampliação do pedido, acrescendo “aos montantes inicialmente indicados, mais a quantia de €40.000,00.”, o que foi deferido por despacho de 19-04-2024 (ref. 95051145).
Após realização da audiência final, foi proferida sentença que decidiu:
a) julgar a presente acção parcialmente procedente e, consequentemente, condenar solidariamente o Réu BB e o Fundo de Garantia Automóvel a pagarem ao A. AA a quantia global de 65.000,00 € (sessenta e cinco mil euros) a titulo de dano biológico e danos morais bem como na quantia 1.635,56€ (mil, seiscentos e trinta a cinco euros e cinquenta e seis cêntimos) por salários não recebidos tudo acrescido dos juros moratórios, à taxa legal desde a citação até integral cumprimento.
b) julgar procedente o pedido formulado pelo Instituto de Segurança Social e em consequência condenar solidariamente o Réu BB e o Fundo de Garantia Automóvel a pagarem ao Instituto de Segurança Social IP quantia global de 1.133,16€ (mil, cento e trinta e três euros e dezasseis cêntimos) acrescido dos juros moratórios, à taxa legal desde a citação até integral cumprimento.
Inconformado com a sentença, o réu FGA interpôs recurso de apelação, concluindo, no essencial:
i. Deve ser considerado provado o facto descrito na sentença como matéria de facto não provada sob a alínea E), ou seja, que à data do sinistro o autor tinha perfeito conhecimento que o veículo de matrícula ..-BS-.. não tinha seguro válido e eficaz no dia do sinistro; (…)
ix. Encontram-se reunidos nos autos elementos suficientes para se considerar tal facto como provado, designadamente:
- As declarações do próprio autor, prestadas em 05-01-2015, de forma espontânea, perante entidade terceira sem qualquer interesse no desfecho da causa, num primeiro momento de relativa proximidade à data do acidente (ocorrido em 07-06-2014), e a sua expressa admissão do conhecimento de inexistência de seguro válido e eficaz que garantisse a circulação do BS à data do acidente;
- A forma como o autor se comportou em sede de audiência de julgamento, em total desrespeito pelo Tribunal e pela verdade, tentando encobrir o facto de ter prestado aquelas declarações;
- As declarações dos restantes ocupantes do veículo, prestadas de forma espontânea perante entidade terceira sem qualquer interesse no desfecho da causa, num primeiro momento de relativa proximidade à data do acidente, as quais, no caso da testemunha CC se mantiveram de forma assertiva e absolutamente fiável em audiência de julgamento;
- As declarações claras e isentas prestadas pelo perito averiguador da A..., testemunha DD, no que se refere à espontaneidade da assunção deste facto por parte do autor e restantes ocupantes do veículo, bem como o conhecimento geral por parte da vizinhança da anterior apreensão do veículo;
- O integral teor do Relatório de Averiguação de Acidente de Viação elaborado pela A... e constante dos autos.
(…)
x. Ao abrigo do disposto no artigo 52.º n.º 2 b) do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, estão excluídos da garantia do FGA os danos causados aos passageiros que voluntariamente se encontrem no veículo causador do acidente, sempre que o Fundo prove que têm conhecimento de que o veículo não estava seguro, o que se provou nos presentes autos;
xi. Assim, os danos corporais sofridos pelo autor estão inelutavelmente excluídos da garantia do FGA, nos termos do disposto na alínea b) do artigo 52.º do Dec. Lei n.º 291/2017, de 21 de agosto, dado que este aceitou ser transportado no veículo de matrícula BS tendo perfeito conhecimento que esse veículo não beneficiava de contrato de seguro válido e eficaz, o que impõe a revogação da sentença recorrida e a necessária absolvição do FGA do pedido;
xii. Compulsado o pedido de reembolso do Instituto da Segurança Social que deu entrada nos presentes autos em 28 de outubro de 2016, verifica-se que o mesmo é apenas apresentado contra o réu BB, não tendo o FGA sido demandado;
xiii. Sucede que na alínea c) do segmento decisório da sentença sob recurso, julgou-se procedente o pedido formulado pelo Instituto da Segurança Social, IP e, em consequência, foram condenados solidariamente os réus BB e Fundo de Garantia Automóvel, a reembolsar àquela entidade o montante de € 1.133,16 (mil, cento e trinta e três euros e dezasseis cêntimos) acrescido de juros moratórios, à taxa legal desde a citação até integral cumprimento;
xiv. O tribunal recorrido, neste segmento decisório pronunciou-se de forma excessiva sobre o pedido de reembolso apresentado pelo Instituto da Segurança Social, e, ao fazê-lo, incorreu na nulidade prevista na parte final da al. d) do n.º 1 do art.º 615.º. do CPC, que aqui expressamente se invoca, com as legais consequências;
xv. Igualmente não se vislumbra qualquer fundamentação no que concerne à condenação do FGA neste particular pelo que, subsidiariamente argui-se a nulidade da sentença nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n. º 1, al. b) do CPC.
(…)
xviii. O FGA não é um responsável civil tendo apenas a função garantística pelo que a expressão “sobre quem impenda a obrigação de segurar” constante do nº 4 do citado artigo 51.º do DL n.º 291/07, de 21 de agosto deve ser entendida como reportada às empresas de seguros, e não ao FGA, a quem não é cometida legalmente qualquer “obrigação” de segurar;
xix. Com o pagamento efetuado pelo ISS ao autor a título de Subsídio de Doença, este instituto sub-rogou-se nos direitos do beneficiário (aqui autor), assistindo-lhe, nessa conformidade, legitimidade ativa para deduzir o seu pedido de reembolso. Porém, se o primitivo lesado – por força do disposto no n.º 3 do artigo 51.º do Dec. Lei n.º 291/07, de 21 de agosto – não pode demandar diretamente o FGA para lhe peticionar o pagamento de uma indemnização na parte em que esta não ultrapassasse o valor já pago pelo Instituto da Segurança Social, por maioria de razão, o próprio Instituto da Segurança Social, porque se encontra sub-rogado nos direitos daquele, também não o poderá fazer;
xx. O pedido de reembolso do ISS sempre se encontraria excluído do âmbito de competências do FGA, considerando o disposto no artigo 51.º, n.º 3 do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto;
xxi. Pelo que, face a tudo o supra exposto, deve a sentença recorrida ser considerada nula no que se refere à condenação do FGA constante da alínea c) do seu segmento decisório;
xxii. O Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 51.º e 52.º do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto, 570.º do Código Civil e 607.º e 608.º do Código de Processo Civil.
Conclui o apelante pela procedência do recurso, revogação da sentença e absolvição do recorrente FGA dos pedidos.
Não foi apresentada qualquer resposta às alegações de recurso.
II – Objeto do recurso
Face às conclusões das alegações de recurso, cumpre apreciar:
– Quanto à impugnação da decisão de facto, a pretendida consideração como provada da al. E) dos factos não provados.
– Quanto à questão jurídica:
a) Nulidade da sentença quanto à condenação do réu FGA no pagamento do pedido deduzido pelo Instituto da Segurança Social (als. b) e d) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil) e ilegitimidade substantiva do FGA quanto à condenação no pagamento/reembolso dos valores pagos pelo Instituto da Segurança Social, IP, ao autor.
b) Afastamento da responsabilidade do FGA por preenchimento da exclusão prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 52.º do Dec. Lei n.º 291/2017, de 21 de agosto (dependente da procedência da impugnação da decisão de facto).
– Acresce a responsabilidade pelas custas.
III – Fundamentação:
É a seguinte a fundamentação de facto da sentença recorrida:
Factos provados (tal como decidido pelo tribunal ‘a quo’, suprimindo-se, no entanto, do elenco dos factos provados matéria que não assume relevância para o conhecimento do objeto do recurso)
1. No dia 07-06-2014, cerca das 00 horas e 45 minutos, na rua ..., ao km 54,350, na freguesia ... e ..., no concelho de Marco de Canaveses, ocorreu um acidente de viação;
2. em que foram intervenientes o A., na qualidade de ocupante do veículo matrícula ..-BS-.., marca Audi, modelo ..., de seguida indicado apenas por Audi e conduzido pelo 1º Réu.
3. Do local do sinistro, o A. foi transportado ao Hospital ..., no Porto, onde à entrada lhe foi diagnosticado politraumatismo com TCE (…);
4. No Hospital ... efetuou os seguintes exames auxiliares de diagnóstico:
– TAC cerebral que revelou o seguinte:
a) (…)
k) (…)
– TAC face que revelou o seguinte:
l) (…)
o) (…)
– TAC cervicotoracoabdominopálvico:
p) (…)
r) (…)
5. Devido ao diagnóstico, com vista ao tratamento de prevenção das possíveis consequências das supra referidas lesões manteve a situação de internamento até 16-06-2014 – data em que teve alta.
6. Após a alta continuou a ser seguido no Hospital ... em consulta de oftalmologia e de Otorrino, tendo-se deslocado a este hospital pelo menos 03 vezes.
7. Devido ao sinistro o Autor ficou impossibilitado de trabalhar desde 7.6.2014 até 17.11.2014 (…).
8. Findos os tratamentos e apesar dos mesmos, o A. passou a sentir tonturas, dores de cabeça, vertigens e a ouvir com mais dificuldade.
9. o A. sofreu dores fortes com os tratamentos;
10. o autor ficou emocionalmente perturbado.
11. Em termos profissionais o A. passou a ter dificuldades em fazer esforços que interferem com as costelas.
12. sofreu também muito incómodo e ansiedade durante o período de internamento e os cerca de quinze dias em que teve que permanecer acamado e que não sair de casa;
13. à data do acidente o autor era funcionário na empresa “B... Lda como ajudante e auferia o salário mínimo nacional de 480,00€.
14. Devido ao acidente deixou de auferir salários respeitantes ao período que vai de 7 de junho de 2014 a 17 de novembro de 2014 no valor global de 2.716,67, respeitantes a 163 dias.
15. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 31/05/2015, tendo em conta os seguintes aspetos: alta do Hospital ....
16. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 31/05/2015.
17. O Período de Défice Funcional Temporário Total é fixável num período de 10 dias.
18. O Período de Défice Funcional Temporário Parcial sendo é fixável num período 349 dias.
19. O Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total é fixável num período total de 164 dias.
20. O Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial é fixável num período total de 195 dias.
21. O Quantum Doloris é fixável no grau 5/7.
22. O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 11 pontos.
23. As sequelas descritas no relatório medico legal junto aos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
24. O Dano Estético Permanente é fixável no grau 1 /7
25. O autor precisa de ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares; ajudas técnicas;
26. O autor nasceu a 13.05.1993 – cfr documento junto aos autos a fls. 228. (…)
27. À data deste acidente, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo com a matrícula ..-BS-.., não se encontrava validamente transferida para qualquer Seguradora pelo Demandado através de contrato de seguro, pelo que não existia um seguro válido e eficaz
28. Em virtude do acidente mencionado, o Autor sofreu as lesões melhor descritas na P.I., ficando incapacitado para o trabalho no período compreendido de 07/06/2014 a 17/11/2014.
29. Por motivo das lesões sofridas, o Instituto da Segurança Social pagou ao Autor o montante de € 1.133,16 (Mil, cento e trinta e três euros e dezasseis cêntimos) a título de Subsídio de Doença, no período decorrido de 07/06/2014 a 17/11/2014 (…).
A) O acidente ocorreu da seguinte forma: (…).
B) (…)
C) (…)
D) Que o autor ficou com receio de andar de carro.
E) Que à data do sinistro o autor tinha perfeito conhecimento que o veículo de matrícula ..-BS-.. não possuía seguro válido e eficaz no dia do sinistro.
Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Defende o apelante que deve ser considerada provada a factualidade vertida na al. E) dos factos não provados [À data do sinistro o autor tinha perfeito conhecimento que o veículo de matrícula ..-BS-.. não possuía seguro válido e eficaz no dia do sinistro], indicando como meios de prova que, na sua perspetiva, impõem tal decisão, a apreciação conjugada do Relatório de Averiguação de Acidente de Viação elaborado pela A... (do qual constam declarações dos ocupantes do veículo, incluindo o autor, elaboradas e subscritas pelos próprios) com o depoimento de parte do réu, as declarações da testemunha CC, ocupante da viatura, e da testemunha DD, averiguador da A... que elaborou o relatório de averiguação do acidente, por deles resultar que «(…) todos os ocupantes da viatura, e o autor especificamente, tinham pleno conhecimento da inexistência de seguro válido e eficaz que titulasse a circulação do veículo de matrícula ..-BS-.. à data do acidente, o que foi, aliás, admitido por todos, e especificamente pelo autor, com total espontaneidade, numa primeira fase de averiguação do sinistro por entidade externa ao FGA».
Manifesta a sua discordância quanto à motivação da convicção efetuada pelo tribunal a quo, por este ter «(…) ancorado a sua decisão unicamente no princípio da imediação e da livre apreciação da prova, ultrapassando olimpicamente a prova inegável constante dos autos e resultante das afirmações perentórias das testemunhas que, desde o primeiro momento afirmam, sem qualquer hesitação, o conhecimento por parte do autor (e de todos os ocupantes do veículo) da inexistência de seguro automóvel à data do sinistro e, ainda, as afirmações e confissão deste facto pelo próprio autor perante o perito da A..., numa fase em que, naturalmente, ainda não se encontrava ciente da consequente exclusão da responsabilidade do FGA no caso (porque quando se tornou ciente, mentiu descaradamente em Tribunal) (…)».
O tribunal a quo fundamentou assim a decisão quanto à matéria vertida na al. E) dos factos não provados:
«(…) importa referir que em sede de audiência os il. Mandatários focaram-se essencialmente na questão elencada no ponto 4) e 5) dos temas da prova, qual seja, apurar:
(4) Do conhecimento do autor, à data do indicado sinistro, da inexistência de seguro válido e eficaz emergente da circulação rodoviária do veículo de matrícula ..-BS-..; e (5) Em caso afirmativo, da colocação voluntária do autor como ocupante nesse veículo e desse transporte a título gratuito;
E esta matéria – cuja prova, por força da expressa imputação do ónus da prova feita na alínea b) do n.º 2 do art. 52.º da Lei 27/2007 de 31/08, incumbia ao FGA – mereceu resposta negativa, pelas razões que abaixo esclarecermos.
Vejamos.
Da instrução dos autos salientamos:
- a documentação clinica junta pelo autor na petição inicial;
- o relatório pericial;
Já em audiência de julgamento foram ouvidos em depoimento de parte o autor e o réu e foi produzida prova testemunhal (inquiridas a mãe e irmão do autor, uma das ocupantes do veículo à data do acidente e o perito averiguador do sinistro);
Salienta-se ainda a junção aos autos pelo FGA, já em sede de audiência de julgamento, do relatório de avaliação de sinistro elaborado pela A... e subscrito pelo perito ouvido em audiência.
Façamos agora uma breve resenha da prova produzida no julgamento:
A audiência de julgamento iniciou-se com o depoimento de parte prestado pelo reu, BB, condutor do veículo no dia do sinistro. O réu começou por afirmar que não se recorda no dia de acidente e que, por isso, só sabe o que posteriormente lhe contaram sobre essa data.
Refere que lhe disseram que estaria a celebrar o seu aniversario e que conhecia quer o autor quer as testemunhas. Admitiu que a viatura da sua propriedade estava apreendida por “coisa ilegais”, designadamente pelas “jantes” – desde tempo que não recorda - e que as pessoas que circulavam consigo sabiam desta circunstância, ou seja, que o veículo estava apreendido, apesar do veículo não ter qualquer característica que denotava esta apreensão.
Na decorrência do seu depoimento foi junto aos autos o relatório de averiguação de acidente de viação elaborado pela A... com o qual foi confrontado. Visualizando quer a documentação quer as declarações que lhe estão atribuídas mostrou-se confuso, inicialmente referindo que o que está escrito é a verdade dos factos, e posteriormente – a instancia do il. Mandatário do autor -, refere que não se recorda de as ter escrito pois teve um traumatismo craniano.
Disse que já tinham andado no carro em causa, mas tinha sido a primeira vez que o fizeram após a apreensão por força das jantes. Disse que o AA, autor, ficou “mais danificado” porque ia sem cinto (pelo que lhe disseram), e sabe que passou mal apesar de não o haver visitado nem mais contactado após o sinistro.
Descreveu ainda como decorreu a apreensão do seu veículo.
O Réu mostrou-se pouco colaborante no depoimento prestado de forma notariamente comprometida.
Passou-se ao depoimento de parte do autor, AA, que começou por referir que apesar de conhecer o condutor do veículo e restantes ocupantes não tem confiança com os mesmos (não sabendo onde é que ele vive, apenas conhecendo porque frequentavam o mesmo café “C...”). Referiu que já tinha andado com o Réu “meia dúzia de vezes”, mas ter sido a primeira vez que foi conduzido no Audi ....
Contou o que se recorda quanto ao momento prévio à sua entrada no veículo automóvel referindo que era o seu colega EE que era para ir com o Réu a um bar em ... que já frequentara anteriormente, mas desacompanhado do réu.
Do acidente recorda-se que seguia no banco detrás, mas não se recorda de muito mais, tendo acordado já no hospital. Referiu não saber quem são os outros ocupantes, FF e CC, conhecendo-se de conviver do café e sabia que a CC era namorada do BB, mas não eram amigos. Afiançou que o Réu nunca lhe disse nada sobre a viatura e que se lembra de uma pessoa vir ter consigo para assinar umas folhas para “resolver as coisas”, dizendo-lhe para assinar ao que o mesmo assentiu.
Confrontado com a documentação junta aos autos designadamente com as declarações que são a si atribuídas e constante de fls. 213 e 214 referiu não reconhecer tal letra como sendo sua nem reconhecer a sua assinatura dizendo que “Não fui eu que escrevi isto nem prestei estas declarações” reiterando que “não sabia de nada das jantes” desconhecendo que o veiculo estava numa situação ilegal tanto que o réu não lhe era pessoa próxima.
Também o autor prestou um depoimento comprometido e pouco espontâneo, designadamente no confronto da documentação.
Passou-se à inquirição das testemunhas.
(…)
CC. Esta testemunha foi uma das ocupantes do veículo no dia do acidente (seguia no lugar do pendura na frente e apesar de estar separada há mais de um ano do réu era, à data, namorada do condutor de quem actualmente tem uma filha).
Descreveu os momentos prévios ao acidente: estavam no Café C... quando decidiram ir a um bar em ... seguindo o autor no lugar atras de si ficando mais ferido porque não levava cinto.
Referiu que iam em ambiente de festa seguindo o AA com uma garrafa de cerveja.
Afiançou que se recorda que o FF e o EE (outro amigo que estava no café) estavam a convencer o BB a dar uma volta de carro sabendo que o carro estava apreendido tendo depois chamado o AA para se juntar à saída.
Explicou como foi feita a apreensão do veículo (a GNR foi a casa do BB um mês antes do acidente).
Disse que inicialmente era para ser o EE a ser transportado no veículo mas pela desistência deste acabou por ir o AA que seguiu no veículo.
(…)
Disse que nesse dia era o aniversario do BB e que festejavam esta data. Conta que apesar de ter ideia de que os indivíduos que mais insistiam com o BB em levar o carro (e contra a sua vontade) terem sido o FF e o EE, o AA ouvira toda a conversa tendo afirmado de forma convicta e séria que foi conversado entre todos no café que o veiculo “não tinha documentos” sendo peremptoria a afirmar que apesar do AA ter sido chamado posteriormente foi falado à frente deste do “problema das jantes e da falta de documentos” “pelo que ele sabia do problema do carro”.
Foi peremptoria, e agora instancia da Ilustre Mandataria do FGA, a afirmar não ter dúvida de que todos os ocupantes entraram no veículo tendo plena consciência de que a documentação do veículo estava apreendida, e que o veiculo não tinha seguro.
Por fim foi inquirido DD, que à data exercia a profissão de averiguador de sinistros na empresa «A...» e foi o responsável pela averiguação do sinistro objecto dos autos e do relatório junto aos autos a fls. 187 e ss .
Começou por descrever como foi solicitado pelo Fundo de Garantia os seus serviços e as diligencias que encetou (deslocação ao local, entrevista com os ocupantes) com vista ao apuramento das responsabilidades no sinistro em concreto.
Referiu que uma das circunstâncias a apurar na situação concreta era saber se os ocupantes tinham conhecimento da irregularidade do veículo.
Confrontado com o relatório de fls. 187 e ss confirmou que no caso em apreço a investigação não se mostrou complicada tanto que os ocupantes de forma espontânea lhe comunicaram que sabiam que o veículo circulava sem o seguro assim como a descrição feita do acidente.
Afiança não ter instruído as partes a escreverem quaisquer declarações que não correspondessem ao que as mesmas relataram, negou ter referido aos sinistrados que lhes bastava assinarem a documentação para solucionarem o seu problema. Referiu que apurou, à data, que a apreensão do veículo do réu tinha sido comentada nos cafés, e que o texto escrito pelos ocupantes do veículo – um ano após o acidente - foi feito com base na conversa que tiveram sendo que as declarações prestadas foram-no de forma consentânea.
Instado sobre se quando procurou o AA falou com ele sobre se estava a trabalhar respondeu que o fez porque o formulário faz essa questão.
Impõe-se agora fazer a apreciação crítica desses testemunhos.
E para essa tarefa importará consignar dois aspectos a reter:
- em primeiro lugar o juiz não é possuidor de um detector de verdade e mentira que possa aferir, de forma fidedigna, se as testemunhas falam a verdade ou se a omitem, contudo, é sintoma de verdade a simplicidade dos factos, atestada de acordo com aquilo que habitualmente ocorre na natureza ou é habitual verificar-se nas ações humanas, assim como é sintoma de verdade a circunstância das provas se inserirem num todo coerente.
- em segundo lugar não é o facto do maior número de testemunhas reiterarem uma determinada realidade que faz o julgador tender para dar credibilidade à versão apresentada pelo maior número pessoas.
Por estas razões o Tribunal afere a prova com base nas regras da experiência sendo fundamental o princípio da imediatização que pressupõe um contacto direto e pessoal entre o Julgador e as pessoas que perante ele depõem.
Vejamos o caso dos autos.
Os depoimentos de parte visam a confissão de factos que sejam desaforáveis à parte que os presta – art. 452.º do CPC – o que não logrou conseguir-se em nenhum dos depoimentos prestados, posto que nem o autor afirmou que sabia que o veículo estava sem seguro nem o réu afirmou que o autor desconhecia esta realidade.
Os dois protagonistas destes autos tiveram depoimentos antagónicos sobre esta matéria e nem um nem outro se mostraram genuínos e espontâneos tendo sido perceptiveis no autor diversas hesitações/contradições no seu depoimento. De facto, o autor afirmou com firmeza determinados factos que em momentos ulteriores admite não coincidirem com a realidade, assim foi quando afiançou de forma totalmente firme que não conhecia os demais tripulantes do veiculo (ou que tinha um conhecimento distante dos mesmos) quando já havia sido namorado de CC e já conhecia BB antes desta iniciar uma relação com este último (sendo alias que uma qualquer relação mais próxima do que a de um mero conhecimento justifica uma boleia para um bar num dia comemorativo do aniversario do condutor), como mais tarde veio a admitir após ter sido confrontado sobre as declarações prestadas por CC; Mais relevante foi a forma convicta com que afirmou que os dizeres e a assinatura que lhe é imputada a si no relatório de avaliação de sinistro da A... a fls. 213 e 214 não era da sua lavra, o que repetiu por diversas vezes, para depois apresentar versão diferente dizendo que escrevera aquele texto por lhe haver sido dito ou aconselhado pelo perito averiguador que ao faze-lo resolveria a sua situação.
Ou seja, o tribunal não o descura, que a postura do autor não foi colaborante para credibilizar a sua versão.
Certo é também que o Tribunal percebeu pela forma como todos os intervenientes depuseram (expressões de linguagem utilizadas, as emoções que deixam transparecer, designadamente de inquietude, através de expressões faciais, comportamento vivenciais exteriorizados (como o total alheamento do estado de saúde do principal lesado do acidente por banda dos demais intervenientes do sinistro), que o extracto social deste grupo de pessoas que se juntaram neste infortúnio e drástico episódio de vida é mediano/baixo, o que por vezes leva a revelarem em tribunal comportamentos (inclusive por insegurança) que só os prejudica, que foi o que se sentiu no que concerne ao autor.
Depois também é certo que foram apresentadas duas testemunhas cujo depoimento, numa apreciação superficial da prova produzida poderia creditar a versão do FGA, pois que analisando de forma simplista o depoimento de CC – que repetiu diversas vezes que os ocupantes sabiam da irregularidade do veículo – (e fê-lo de forma segura) poderia levar o julgador a dar tal matéria como provada.
Acontece que a apreciação da prova não pode ser feita desta forma redutora.
E nem sempre a verificação de um depoimento incoerente (como foi o do autor) e aparentemente fidedigno (como pareceu o de CC) se mostram factores suficientes para dar como provada determinada matéria.
Isto porque, à luz das regras da experiência não é normal que um proprietário de um veículo difunda pelos conhecidos de um café que circula sem seguro, quando esta circunstância não enaltece a postura de um homem médio comum.
Mas, mais do que isso, ficou a julgadora convicta que o que efectivamente foi difundido e era conhecido pelos ocupantes do veículo era uma realidade abstrata que não se coaduna com o efectivo e concreto conhecimento que a norma do artigo 52.º, n.º 2 al b) acima referida exige.
Ou seja, esta norma obriga a que o passageiro estivesse voluntariamente no veículo sinistrado (o que não se duvida) e ainda à prova de que esse passageiro tinha o conhecimento de que o veículo não estava seguro” (sublinhado nosso).
E o facto cujo conhecimento se exige não é o de que o veiculo “estava apreendido” ou que o veiculo tinha as “jantes ilegais” ou que o veiculo “não tinha os documentos” – frases estas repetidas pela testemunha CC – mas que o veiculo não tinha seguro, que são circunstâncias totalmente distintas.
E a forma como se insta uma pessoa do meio social das intervenientes no acidente pode dar origem a respostas que não se coadunam com esse efectivo conhecimento.
Esta conclusão alcançou-a a julgadora em pleno julgamento – o que só o principio da imediação consente – ao verificar que no caso concreto a forma como se coloca a questão à testemunha (mesmo que involuntariamente) pode leva-la a responder de formas distintas mas com resultados e consequências jurídicas totalmente antagónicas.
E em face do princípio da livre apreciação da prova o juiz é livre de relevar ou não os elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação: pode dar crédito às declarações das testemunhas (como até se deu à da testemunha CC ou da testemunha DD) mas desvaloriza-las ou deixar de as considerar decisivas porque não se está obrigado a aceita-las acriticamente, podendo respigar desses meios de prova aquilo que nos parece credível, razoável ou possível à luz das regras da experiencia, que foi o que sucedeu neste caso.
De facto, no caso concreto, foi patente que enquanto esta testemunha era instada sobre o conhecimento que o autor tinha sobre as irregularidades do veiculo esta respondeu sempre assertivamente e de forma intuitiva positivamente ao facto deste conhecer as realidades acima expostas (não tinha documentos, tinha as jantes ilegais, estava apreendido) mas só respondeu afirmativamente ao (alegado) conhecimento da falta de seguro quando fora instada pelos il mandatários à formulação da questão feita desta forma sugestiva.
E da mesma forma terá sucedido com a averiguação feita pela A... e com a formulação das questões feitas aos intervenientes no acidente.
É evidente que não incumbia ao investigador informar os entrevistados que existia esta exclusão da obrigação de indemnizar. Mas sabia-o bem o investigador e tinha como único e exclusivo propósito de investigação apurar esta circunstância como o próprio de forma honesta nos referiu. E se assim foi – premeditadamente ou não – tudo nos leva a crer que a forma como terá formulado as questões ao autor à data dos factos levou-o a responder da forma que o fez sem que este estivesse convicto e conhecer da efectiva realidade do que se pretendia saber.
Note-se inclusive a formulação apresentada nos próprios dizeres que são apontados ao autor denotam que a mesma foi feita com palavras de aconselhamento exterior (como sejam o facto de se deixar consignado que “Esta é a informação que eu sei e escrevi da minha livre vontade”, palavras estas que naturalmente foram solicitadas pelo investigador pois que não seria normal que um homem medio do extracto social do autor tivesse o discernimento de fazer a referencia à “sua livre vontade”.
Mais ainda enunciação feita do relato do acidente e dos factos que era ou não conhecedor coloca em fundada dúvida a julgadora sobre o efectivo conhecimento da falta de seguro ou apenas – como se percebeu do acima explicitado depoimento de CC – da apreensão do veiculo e que pela formulação da questão feita pelo investigador haja sido consignada a frase que se deixou escrita num relatório, notoriamente sem noção das consequências que esta facto implicaria e sem o efectivo conhecimento da inexistência de seguro.
“O OVSS (sinistrado B), declarou o seguinte: "Circulávamos como passageiro no carro do meu amigo, de livre vontade, no banco de trás, no sentido ..., do Café C... para ..., para o Bar D... em ..., e não me recordo de mais nada. Andava sem documentos por causa das jantes porque estava apreendido desde 2014 do princípio do ano, apesar de não ter documentos, continuou a andar com o carro. Todos os passageiros Audi ... sabiam que não podia conduzir o carro, por estar apreendido, logo, não podia ter seguro, conforme foi dito no Café. Esta é a informação que eu sei e escrevi da minha livre vontade. Após os vistos legais, cumpre decidir.
Ora, é evidente que até a formulação apresentada não faz sentido à luz das regras da experiência quanto ao efectivo conhecimento da falta se seguro dado que o facto de um veículo estar apreendido não é sinónimo de ausência de seguro.
Assim sendo e por estas razões de deu como não provado o facto descrito em E), sendo certo que sempre a esta conclusão se chegaria com base no principio estabelecido no nosso ordenamento jurídico face ao qual o Tribunal aprecia livremente as provas tendo presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artº 414º do Código de Processo Civil, de que a “dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”.
A decisão do tribunal a quo quanto à al. E) dos factos não provados está devidamente explicitada e fundamentada, sendo os meios de prova indicados pelo apelante como justificando a alteração dessa decisão os mesmos meios de prova que foram considerados, analisados e valorados pelo tribunal recorrido.
O que está em causa é, no fundo, a diferente convicção e valoração do apelante, perante os meios de prova produzidos, face à convicção e valoração feita pelo tribunal a quo. Ora, a impugnação da decisão de facto não se destina a contrapor a convicção da parte e do seu mandatário à convicção formada pelo tribunal, com vista à alteração da decisão. Destina-se, sim, à especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (art. 640.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil).
Acresce que entendemos (de resto, como também entendeu o tribunal a quo) – conforme é referido no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-04-2022, proc. n.º 9338/21.2T8LSB.L1-2 – que «(…) Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre os factos num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.
O julgamento dos factos, na sua valoração, mormente quando se reporta a meios de prova produzidos oralmente, não se reconduz a uma operação aritmética de número ou de adição de depoimentos, antes tem de atender a uma multiplicidade de factores, não se bastando com a palavra pronunciada, mas nele confluindo aspetos tão variados como, as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber quem estará a falar com verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida. (…)».
Ora, lida a motivação da decisão de facto da sentença recorrida, e tendo-se procedido à audição integral dos depoimentos indicados pelo apelante nas alegações de recurso (e não apenas aos trechos das gravações indicados no recurso), concluímos pela falta de fundamento da impugnação da decisão de facto deduzida pelo apelante, afigurando-se-nos correta a análise e valoração da prova efetuada pela primeira instância, nos moldes da motivação da decisão transcrita.
Acrescentaremos ainda, a corroborar a convicção formada pelo tribunal a quo:
1) O depoimento prestado pelo réu, quanto às circunstâncias em que escreveu a declaração por si assinada que se encontra junta ao Relatório de Averiguações (sendo que tal parte do seu depoimento não consta da transcrição efetuada pelo apelante nas alegações de recurso), que teve o seguinte teor:
«(…) Questão (mandatário do autor) – Recorda-se do que o perito lhe disse?
Resposta – Não. Lembro-me de ele ter ido lá ter comigo mas não me recordo ao certo.
Questão – Já passaram, deixe cá ver 2014 não é … não (… 3 de janeiro de 2015. Então o senhor não se recorda do que ele lhe disse?
A minha pergunta é: este texto que está aqui diz o senhor que a letra é sua… o que está aqui foi iniciativa da sua pessoa ou foi ele que lhe sugeriu este texto que está aqui?
Resposta – Ele ia-me dizendo da forma que eu ia escrevendo.
Questão – Foi ele que lhe ditou o texto?
Resposta – Sim. Eu disse-lhe mais ou menos o que sabia pelo que me tinham dito e ele sugeriu que eu escrevesse isso. (…)».
2) Efetuada a audição da totalidade dos depoimentos indicados pelo apelante nas alegações de recurso, resulta também confirmada a existência de uma errada assunção ou colagem entre a ‘falta de documentos’, ‘situação ilegal da viatura’, ‘apreensão da viatura por estar ilegal por causa das jantes’, e a falta de seguro de responsabilidade civil automóvel, sendo justificado e fundamentado o juízo efetuado pelo tribunal a quo quanto à valoração do depoimento da testemunha CC quanto às respostas afirmativas às questões sobre o conhecimento pelo autor de que ‘o carro não tinha seguro’ (o que, de resto, pode ser facilmente contatado pela leitura das transcrições efetuadas dos depoimentos – perguntas e respostas).
Concluímos, deste modo, pela improcedência da impugnação da decisão de facto.
Análise dos factos e aplicação da lei
São as seguintes as questões de direito a abordar:
1. Responsabilidade do FGA quanto ao pedido de reembolso deduzido pelo ISS, IP
1.1. Nulidade da sentença – excesso de pronúncia
1.2. Outras nulidades – falta de fundamento da condenação
2. Responsabilidade do FGA quanto à indemnização dos danos sofridos pelo autor
3. Responsabilidade pelas custas
1. Responsabilidade do FGA quanto ao pedido de reembolso deduzido pelo ISS, IP
Pretende o apelante a revogação da decisão recorrida na parte em que condenou o FGA (solidariamente com o réu BB) a pagar ao Instituto de Segurança Social, IP, a quantia global de 1.133,16€ acrescido dos juros moratórios, à taxa legal desde a citação até integral cumprimento.
Invoca que a sentença recorrida padece, nesta parte, de nulidade por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), do Cód. Proc. Civil) e ainda, subsidiariamente, de nulidade por falta de fundamentação (art. 615.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil).
Sem conceder, invoca ainda a ilegitimidade material do FGA para ser demandado pelo Instituto de Segurança Social, IP (ISS), para o pagamento dos valores liquidados pelo ISS ao autor a título de subsídio de doença, por força do disposto no art. 51.º do DL n.º 291/07, de 21 de agosto, concluindo que o pedido de reembolso do ISS sempre estaria excluído do âmbito de competência do FGA
1.1. Nulidade da sentença – excesso de pronúncia
Dispõe o art. 615.º do Cód. Proc. Civil nos seguintes termos:
Artigo 615.º
Causas de nulidade da sentença
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.
3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.
4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.
Como resulta do Relatório deste aresto, o Instituto da Segurança Social, I.P., deduziu pedido de reembolso de subsídio de doença apenas contra o réu BB, e peticionou a condenação apenas deste réu a pagar-lhe a quantia de € 1.133,16, acrescida de juros de mora à taxa legal.
É manifesto, pois, que não foi deduzida pelo Instituto da Segurança Social, I.P., qualquer pedido contra o aqui réu FGA.
Dispõe o art. 3.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil – onde se consagra o princípio do dispositivo, princípio estruturante do processo civil –, que o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição, estando este princípio do dispositivo em estreita relação com a consagração, no art. 609.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, dos limites da condenação, ao aí se estabelecer que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
Assume, assim, importância fulcral a dedução do pedido (na petição inicial) [1].
“A formulação do pedido (art. 552.º, n.º 1, al. e), do Cód. Proc. Civil), que vai determinar o objeto da instância e que circunscreve o âmbito da decisão final, é uma necessidade que resulta, além do mais, da consagração plena do princípio do dispositivo, que faz recair sobre os interessados que recorrem às instâncias judiciais o ónus de conformação do objeto do processo (art. 3.º), com repercussão nos limites da sentença (art. 609.º, n.º 1): o pedido delimita os poderes do juiz, já que este não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir” – cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 17.
Resulta deste n.º 1 do art. 609.º do Cód. Proc. Civil que “[l]imitado pelos pedidos das partes, o juiz não pode, na sentença, deles extravasar: a decisão, seja condenatória, seja absolutória, não pode pronunciar-se sobre mais do que o que foi pedido ou sobre coisa diversa daquela que foi pedida. O n.º 1 fala apenas de condenação, mas o preceito que consagra vale também para a absolvição: o réu não pode ser absolvido dum pedido que o autor contra ele não deduziu, o que teria a consequência, por via da formação do caso julgado (art. 619-1), de impedir o autor de, em nova ação, pedir aquilo que o réu fosse absolvido de reconhecer ou prestar (art. 580.º-1), embora não tivesse constituído objeto da primeira ação.
O objeto da sentença coincide assim com o objeto do processo, não podendo o juiz ficar aquém nem ir além do que foi pedido.” – cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, Almedina, págs. 714 e 715.
Afigura-se-nos, no entanto, que o vício verificado – condenação do réu FGA a pagar ao Instituto de Segurança Social IP da quantia de € 1.133,16 acrescido dos juros moratórios, à taxa legal desde a citação até integral cumprimento, quando o referido Instituto de Segurança Social IP não deduziu qualquer pretensão (pedido de condenação) contra o FGA, mas apenas contra o outro réu –, apesar de enquadrado pelo apelante na al. d) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil, respeitando essencialmente ao segmento decisório – de condenação num pedido que não foi deduzido, é antes subsumível na hipótese legal da al. e) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil.
Deste modo, a sentença recorrida, na parte em que condenou o FGA (em regime de solidariedade com o outro réu) no pagamento ao Instituto de Segurança Social IP da quantia de € 1.133,16 acrescido dos juros moratórios, à taxa legal desde a citação até integral cumprimento, padece do vício da nulidade previsto no art. 615.º, n.º 1, al. e), do Cód. Proc. Civil, sendo de julgar procedente a arguição de nulidade da decisão recorrida quanto à condenação do FGA no pagamento ao Instituto de Segurança Social IP da referida quantia de € 1.133,16 e juros moratórios, à taxa legal desde a citação até integral cumprimento.
1.2. Outras nulidades – falta de fundamento da condenação
Atendendo à procedência da nulidade da sentença na parte em que condenou o FGA no pagamento ao Instituto de Segurança Social IP da quantia de € 1.133,16, acrescido dos juros moratórios, à taxa legal desde a citação até integral cumprimento, fica prejudicada a apreciação da arguida nulidade por não especificação dos fundamentos da decisão (al. b) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil), bem como a apreciação da ilegitimidade material do FGA para ser demandado pelo Instituto de Segurança Social, IP (ISS).
2. Responsabilidade do FGA quanto à indemnização dos danos sofridos pelo autor
Defende o apelante que se encontra excluída a sua responsabilidade, por força da verificação da exclusão prevista na al. b) do n.º 2 do art. 52.º do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, aprovado pelo DL n.º 291/2007 de 21 de agosto (diploma que também transpôs parcialmente para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Diretivas n.os 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Diretiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis).
Dispõe o art. 52.º do referido DL 291/2007 de 21 de agosto nos seguintes termos:
Artigo 52.º
Exclusões
1 - São aplicáveis ao Fundo de Garantia Automóvel as exclusões previstas para o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
2 - Estão também excluídos da garantia do Fundo de Garantia Automóvel:
a) Os danos materiais causados aos incumpridores da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel;
b) Os danos causados aos passageiros que voluntariamente se encontrassem no veículo causador do acidente, sempre que o Fundo prove que tinham conhecimento de que o veículo não estava seguro; [2]
c) Os danos sofridos pelo causador doloso do acidente, pelos autor, cúmplice, encobridor e receptador de roubo, furto ou furto de uso de veículo que intervenha no acidente, bem como pelo passageiro nele transportado que conhecesse a posse ilegítima do veículo, e de livre vontade nele fosse transportado.
É manifesto que a procedência deste fundamento do recurso dependia, integralmente, da alteração da decisão de facto, mediante a consideração como provada da matéria de facto vertida na al. E) dos factos não provados.
Atenta a improcedência do recurso quanto à impugnação da decisão de facto, é de concluir, sem necessidade de outras considerações, igualmente pela improcedência deste fundamento do recurso.
3. Responsabilidade pelas custas
A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Regulamento das Custas Processuais).
As custas ficam a cargo da apelante, na proporção do seu decaimento, ou seja, a apelante suportará as custas da ação e do recurso na parte em que decaiu (quanto à condenação no pagamento da indemnização fixada na sentença recorrida ao autor).
IV – Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se em julgar o recurso parcialmente procedente quanto à arguição de nulidade, declarando-se a nulidade da decisão recorrida, por condenação além do pedido, quanto à condenação do FGA (em regime de solidariedade) no pagamento ao Instituto de Segurança Social IP da quantia de € 1.133,16 acrescido dos juros moratórios, à taxa legal desde a citação até integral cumprimento.
No mais, mantém-se a decisão apelada.
Custas a cargo da apelante, na proporção do seu decaimento (quanto à condenação no pagamento da indemnização fixada na sentença recorrida ao autor).
Notifique.