EXECUÇÃO DE SENTENÇA
EMBARGOS DE EXECUTADO
INDEFERIMENTO LIMINAR
CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
Sumário

Sumário da responsabilidade da relatora, cfr. art. 663º, nº7 do CPC.:
I - O dever geral de assegurar o contraditório na dinâmica da tramitação do processo e a sua violação pela prolação de decisão sobre questões de facto ou de direito “sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem” (art. 3º, nº 3 do CPC) assenta num elemento essencial: a novidade/imprevisibilidade da questão apreciada ou do enquadramento jurídico da mesma face às questões de facto e de direito discutidas nos autos e/ou conhecidas pela parte contra a qual é proferida.
II - Não constitui questão nova ou imprevisível o efeito jurídico que o tribunal extrai dos factos e das normas legais invocadas pelas partes, distinto do por elas preconizado.
III - No rol dos fundamentos de embargos à execução fundada em sentença não se inclui uma qualquer declaração de vontade/deliberação social da própria executada, de não reconhecimento ou de não atribuição ao exequente do direito que a este foi reconhecido pela sentença que executa.

Texto Integral

Acordam as juízas da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,

I - Relatório
1. Por sentença proferida em 08.04.2024 na ação declarativa nº2470/23.0T8SNT-A, confirmada por acórdão de 19.12.2024 desta Relação e secção, já transitado, foi decidido:
“a) Condenar a Ré Figura Favorável, Lda. no pagamento ao Autor do valor das remunerações de gerência:
1. correspondentes ao período de Junho de 2022 a Janeiro de 2023, incluindo subsídio de férias e subsídio de Natal, no montante de 7.653,00 € (sete mil, seiscentos e cinquenta e três euros) – valor líquido, após impostos e contribuições para a segurança social, acrescidos de juros de mora desde a data da citação para a presente acção e até efectivo e integral pagamento; e
2. correspondentes à remuneração mensal de 1.000,00 € (mil euros), sobre a qual incidirão os descontos legalmente previstos e devidos, a titulo de remuneração de gerência, correspondentes aos meses de Fevereiro de 2023 e subsequentes, até redução ou extinção das referidas obrigações nos termos do artigo 255.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, ou até que o Autor deixe de ser gerente da sociedade 1.ª Ré;
(…).
2. Por requerimento de 28.05.2024 o autor A. apresentou a sentença à execução contra a ali ré, Figura Favorável, Ldª para pagamento de quantia certa que liquidou no montante de €26.432,13 e justificou com as seguintes operações:
VALOR LÍQUIDO:
€7.653,00 + € 18.000,00 (fevereiro de 2023 a maio de 2024 + subsídio férias 2023 + subsídio Natal 2023)
JUROS VENCIDOS:
capital=€7.653,00
desde a data da citação (24.02.2023) até 23.05.2024
taxa= 4%
valor= €380,76
JUROS (ART.º 703.º, N.º 2 CPC):
capital=€1.000,00/mês desde fevereiro de 2023 a maio de 2024
taxa= 4%
valor= €398,37
(€49,75+€46,68+€43,29+€40,00+€36,60+€33,32+€29,92+€26,52+€23,23+€19,84+€16,55+€13,15+€9,75+€6,58+€3,18)
3. Notificada para os termos da execução (com a notificação da realização de penhora sobre saldo existente em conta bancária titulada pela executada), por requerimento de 06.09.2024 esta veio deduzir embargos à execução invocando a “inexigibilidade da quantia exequenda, nos termos do disposto no artigo 729.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil, e com fundamento na existência de facto extintivo ou modificativo da obrigação, posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e provado por documento, nos termos do disposto no artigo 729.º, n.º1, alínea g), do Código de Processo Civil” e pediu seja absolvida do pedido.
Em fundamento alegou que no dia 05.07.2024 a assembleia geral de sócios da embargante deliberou pela primeira vez sobre a remuneração de gerência, e deliberou no sentido de os gerentes B. e C. auferirem remuneração no montante mensal de €2.400,00 a partir do mês de julho de 2024 e de o embargado não auferir qualquer remuneração de gerência, e destes factos concluiu que o valor peticionado pelo embargado não é devido pela embargante. Mais alegou, para a hipótese de o recurso que interpôs daquela sentença vir a ser julgada improcedente ou de o tribunal considerar que a deliberação de 05.07.2024 opera ex nunc, que o valor peticionado pelo embargado referente aos meses de julho de 2024 em diante não é devido.
4. Sobre o requerimento de embargos recaiu despacho de indeferimento liminar, com os seguintes fundamentos:
Quanto à inexigibilidade da obrigação, citando José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes (CPC Anotado, 2003, Vol. 3.º, pág 243), «A prestação é exigível quando a obrigação se encontra vencida ou o seu vencimento depende, de acordo com estipulação expressa ou com a norma geral supletiva do art.º 777-1 CC, de simples interpelação ao devedor.»
A sentença exequenda condena a Embargante no pagamento de obrigações aí qualificadas como remunerações de gerência, sendo o primeiro segmento reportado às vencidas e o segundo segmento às vincendas até redução ou extinção da obrigação.
No requerimento executivo liquidam-se as remunerações vencidas até Maio de 2024, e respectivos juros.
Não se verifica, face ao título executivo e ao requerimento executivo, qualquer inexigibilidade das obrigações exequendas.
Sendo de referir que a discordância da Embargante acerca da qualificação das obrigações exequendas como remunerações de gerência não constitui fundamento de embargos enquadrável na previsão do art.º 729.º, do CPC.
Relativamente ao invocado facto extintivo ou modificativo da obrigação, é de assinalar que o facto extintivo invocado é uma deliberação da assembleia geral, de 05.07.2024. Essa deliberação poderia ser oponível à execução se as obrigações exequendas fossem posteriores à referida data.
 Porém, como se viu, as obrigações objecto da acção executiva são as remunerações vencidas até Maio de 2024, por conseguinte não sendo passíveis de ser afectadas pela deliberação invocada.
Conclui-se assim que, ainda que a Embargante prove toda a matéria de facto que alega, daí não pode resultar a procedência dos Embargos, o que reconduz a uma situação de manifesta improcedência.
5. Inconformada a embargante interpôs o presente recurso de apelação, requerendo que a decisão seja declarada nula com fundamento em excesso de pronúncia ou, assim não se entendendo, seja revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos embargos. Formulou as seguintes conclusões:
1. (…).
2. A decisão recorrida, ao ter indeferido liminarmente os presentes embargos de executado, por, segundo entendeu, se estar perante situação de manifesta improcedência, com fundamento na qual indeferiu liminarmente os presentes embargos de executado nos termos do disposto no artigo 732.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, sem que o Tribunal a quo tivesse concedido à Recorrente a possibilidade de se pronunciar previamente quanto à mencionada questão, violou o disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, constitui uma verdadeira «decisão-surpresa» e é nula, nos termos previstos no artigo 615.º n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, podendo esta nulidade ser arguida no âmbito do presente recurso, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
3. Considerando o teor (letra) da deliberação tomada na Assembleia Geral da Recorrente de 05 de Julho de 2024, (onde foi, pela primeira vez, deliberada a fixação de uma remuneração aos gerentes da Recorrente; foi, pela primeira vez, deliberada a concreta componente da remuneração, isto é, o direito de os sócios e gerentes da Recorrente, B. e C., receberem, a título de remuneração de gerência, certa importância em dinheiro em cada mês; e foi, pela primeira vez, deliberado que o sócio e gerente Recorrido, face ao seu voluntário afastamento da vida societária da Recorrente, não auferiria, face à desproporção ao trabalho (não) prestado e à situação da sociedade, qualquer remuneração de gerência), então resulta por demais evidente que os assuntos ali discutidos foram objecto de deliberação, pela primeira vez, nessa aludida Assembleia Geral; e considerando o teor (letra) da deliberação tomada na Assembleia Geral da Recorrente de 05 de Julho de 2024, de onde resulta por demais evidente que os assuntos ali discutidos foram objecto de deliberação, pela primeira vez, nessa aludida Assembleia Geral, então a mencionada deliberação é oponível à execução, uma vez que a mesma constitui facto que impedem, modifica ou extingue o efeito jurídico dos factos articulados pelo Recorrido.
4. A decisão recorrida, ao considerar que o invocado facto extintivo ou modificativo da obrigação só pode ser oponível à execução se as obrigações exequendas fossem posteriores a 05 de Julho de 2024, padece de erro de julgamento da matéria de direito por violação do disposto nos artigos 576.º, n.º 2, e 732.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.
5. A sentença que serve de título executivo à execução embargada decidiu condenar a Recorrente no pagamento das remunerações de gerência correspondentes ao período de Junho de 2022 a Janeiro de 2023, incluindo subsídio de férias e de Natal, no montante de 7.653,00 €, bem como o valor das remunerações de gerência correspondentes à remuneração mensal de 1.000,00 €, correspondente aos meses de Fevereiro de 2023 e subsequentes, até redução ou extinção das referidas obrigações, ou até que o Recorrido deixe de ser gerente da Recorrente.
6. A deliberação tomada na Assembleia Geral da Recorrente realizada no dia 05 de Julho de 2024, consubstancia a invocação de factos que, uma vez provados, permitem concluir que a quantia liquidada não é devida, e que, portanto, a quantia exequenda não é devida ou é quantitativamente inferior, razão pela qual tais factos, a serem provados, terão como consequência a extinção total ou parcial da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência total ou parcial do direito exequendo, sendo certo que a Recorrente tem interesse na extinção total ou parcial da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência total ou parcial do direito exequendo.
7. A decisão recorrida, ao considerar que apenas estão em causa nos autos obrigações exequendas anteriores a 05 de Julho de 2024, padece, também por esta via, de erro de julgamento da matéria de direito por violação do disposto nos artigos 576.º, n.º 2, e 732.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.
6. O exequente apresentou contra-alegações, que concluiu requerendo a manutenção da decisão recorrida.
7. Previamente à admissão do recurso o tribunal recorrido pronunciou-se sobre a invocada nulidade da sentença e concluiu pela extemporaneidade da sua arguição, mais acrescentando que da decisão não resulta excesso de pronúncia nem outra nulidade.

II – Objeto do recurso
Nos termos dos arts. 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da decisão recorrida, é balizado pelo objeto desta e é definido pelas conclusões das alegações, não estando o tribunal adstrito a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações, mas apenas as questões de facto e/ou de direito suscitadas nelas, sem prejuízo das questões que ex officio se imponha conhecer.
Nestes moldes, o objeto do presente recurso restringe-se à verificação dos pressupostos legais do indeferimento liminar da petição de embargos com fundamento na sua manifesta improcedência nos termos previstos pelo art. 732º, nº 1, al. c) do CPC, apreciação que se analisa nas seguintes questões:
A) nulidade da decisão arguida com fundamento em vício de excesso de pronúncia e, este, com fundamento na prolação de despacho de indeferimento liminar sem prévia notificação da embargante para a respeito se pronunciar;
B) erro do julgamento de direito sobre o mérito dos embargos, que passa por aferir se a deliberação social invocada pela embargante integra os fundamentos legais de oposição à execução de sentença previstos pelo art. 729º, als. e) e g) do CPC.

III – Fundamentos do recurso
A) Da nulidade da decisão
1. O tribunal a quo indeferiu liminarmente os embargos de executado apresentados pela recorrente com fundamento na manifesta improcedência dos mesmos. Pelo presente recurso a recorrente defende e requer a revogação dessa decisão e a sua substituição por outra que determine o prosseguimento dos embargos. Com esse desiderato, num repetitivo enunciado de considerações a respeito do princípio do contraditório, a recorrente arguiu a nulidade da decisão, que qualificou de ‘surpresa’, imputando-lhe o vício de excesso de pronúncia, arguição que, nos termos em que vem alegado, tem como primeiro pressuposto a proibição legal de prolação de decisão de indeferimento liminar da petição de embargos sem a prévia notificação do embargante para lhe conceder “a possibilidade de se pronunciar previamente quanto à mencionada questão, com fundamento na qual indeferiu liminarmente os presentes embargos de executado nos termos do disposto no artigo 732.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil. Nestes termos, em última análise a nulidade vem arguida com fundamento em preterição de formalidade processual essencial à sua validade por necessária e devida ao cumprimento do contraditório nos termos gerais previstos pelo art. 3º, nº 3 do CPC. 
Com efeito, contrariamente ao que a recorrente defendeu na petição de embargos - que o facto que alegou suporta os efeitos e pedidos que deduziu -, o tribunal recorrido, apreciando e julgando de mérito, concluiu em sentido contrário, ou seja que o alegado nos embargos não integra os fundamentos legais de oposição à execução invocados pela recorrente e, implicitamente, concluiu pela desnecessidade de sujeitar o pedido ao contraditório do exequente-embargado e pela desnecessidade de instrução dos factos alegados. Ou seja, concluiu pela inutilidade do prosseguimento do incidente e, expressamente, pela manifesta improcedência do mesmo, com o que fundamentou a decisão de liminar indeferimento do requerimento nos termos previstos pela norma citada, apreciação que, adianta-se, o tribunal limitou à valoração jurídica do fundamento alegado na petição de embargos, ao qual não reconheceu qualquer um dos efeitos jurídicos que a recorrente dele pretendia fossem extraídos – extinção ou modificação/redução da obrigação reconhecida pela sentença apresentada à execução.
As causas de nulidade da sentença constam taxativamente previstas no art. 615º do CPC, nos termos do qual É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Importa relembrar que as nulidades da sentença reportam à violação de regras de estrutura, conteúdo e limites do poder-dever de pronúncia do julgador, consubstanciando defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, vícios formais da sentença ou vícios relativos à extensão ou limites (negativo e positivo) do poder jurisdicional por referência ao caso submetido a apreciação e decisão. Vícios que não contendem com o mérito da decisão e, por isso, não consubstanciam nem se confundem com um qualquer erro de julgamento, quer na apreciação da matéria de facto quer na atividade silogística de aplicação do direito.[1] Os primeiros – vícios formais ou de limites - dão lugar à anulação da sentença/acórdão. Os segundos – vícios materiais -, passíveis apenas de censura por via de recurso, determinam a revogação da decisão. Querendo reagir contra a nulidade cometida, a parte interessada tem de a arguir em sede de recurso, caso seja admissível ou, não sendo, requerer o seu suprimento ao tribunal que a cometeu. Se o juiz ‘a quo’ desatendeu a arguição, o apelante procurará convencer o tribunal superior de que o seu requerimento foi indeferido indevidamente. A Relação, se entender que o apelante tem razão, corrigirá então a nulidade existente na sentença.[2]
A recorrente alegou que a decisão foi proferida com preterição do princípio do contraditório previsto pelo art. 3º, nº 3 do CPC e, com esse fundamento, imputou à sentença recorrida vício de limite por excesso de pronúncia previsto no art. 615º, nº 1, al. d) do CPC.
A jurisprudência não é unânime na qualificação, enquadramento, e efeitos processuais da violação do principio do contraditório sobre a decisão que vem a ser proferida. Divide-se entre a sua valoração e consideração tão só e exclusivamente como nulidade secundária prevista pelo art. 195º do CPC, e a sua valoração e consideração como causa do vício de excesso de pronúncia da decisão e nulidade desta nos termos previstos pelo art. 615º do CPC. Posição que tem repercussão sobre a questão da admissibilidade da arguição (da nulidade processual ou da nulidade da sentença) e conhecimento da mesma em sede de recurso atenta a diferenciação das vias e regimes de impugnação previstos para uma e para outra nos termos dos arts. 199º e 630º, nº 2, e dos arts. 615º, nº 4 e 617º do CPC, respetivamente.
De acordo com a segunda tese, quando a sentença dá ‘cobertura’ a violação do princípio do contraditório apta a influir na apreciação da causa, a nulidade processual a que corresponde a preterição do contraditório transfere-se e passa a consubstanciar vício intrínseco da própria decisão porque nesta se reflete enquanto produto da omissão de um ato prévio devido praticar, correspondendo esta omissão à causa do vício da decisão mas não ao vício em si mesmo. É nesse sentido, entre outros, o acórdão do STJ de 13.10.2020 – “A violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC, que origina a anulação do acórdão, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma.” Nesta tese a inobservância do contraditório dá origem à designada ‘decisão-surpresa’, assim designada por caracterizada pela imprevisibilidade quando, por efeito da preterição do contraditório, o tribunal profere decisão convocando fundamentos e/ou abraçando solução jurídica que não foram previamente submetidos à discussão da parte por ela afetada[3], traduzindo-se o excesso de pronúncia no facto de ter sido proferida sem que os autos se mostrassem processualmente preparados ou aptos para o efeito por não ter sido dada às partes a possibilidade de previamente se pronunciarem sobre elementos de prova, elementos de facto, questão, ou enquadramento jurídico (ainda) não submetidos à discussão nos autos, quer porque foram oficiosamente trazidos ou suscitados nos autos, quer porque foram invocados no ultimo articulado admissível ou outro admitido pelo tribunal.
No sentido da primeira tese, e na esteira de anterior acórdão de 29.02.2024, o acórdão de 04.04.2024 do Supremo Tribunal de Justiça concluiu que “A decisão proferida sem observância do princípio do contraditório é nula por aplicação do n.º 1 do art. 195.º do CPC, sendo que o meio processual próprio para arguir a nulidade é a reclamação para o tribunal onde ela foi cometida, salvo na hipótese prevista no n.º 3 do art. 199.º do CPC.” Afastou a tese de que a indevida preterição do contraditório dá causa a vício de excesso de pronúncia por considerar que “quando o tribunal profere uma decisão sem observância do contraditório, em contravenção com o disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, não está a conhecer de uma questão de que não pudesse tomar conhecimento. Ao invés, tratando-se de uma situação que não é regulada por norma especial, deverá ser-lhe aplicada a regra geral do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na parte em que dispõe que a omissão de uma formalidade que a lei prescreve produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir na decisão da questão. Neste caso, a eventual nulidade da decisão decorre de um efeito consequencial, obtido por via do n.º 2 do art. 195.º do CPC, e não da subsunção às causas autónomas de nulidade das decisões previstas no art. 615.º do mesmo diploma (assim, cfr. o referido acórdão de 12-07-2011).”[4] E concluiu que “o meio processual próprio para a arguição da nulidade (processual) decorrente da violação do contraditório devido é a reclamação perante o tribunal que proferiu a decisão, no prazo de dez dias (arts. 149.º e 199.º, n.º 1, do CPC), podendo ser interposto recurso da decisão que incida sobre a mesma reclamação.”
Sem prejuízo da assinalada discussão jurisprudencial sobre a qualificação do vício em que se consubstancia ou a que dá causa a alegada falta de notificação prévia à prolação de decisão (como nulidade secundária prevista pelo art. 195º, ou como causa de nulidade da decisão nos termos previstos pelo art. 615º, nº 1, al. d), ambos do CPC), no caso a adoção de uma ou outra tese sempre produziria o mesmo resultado prático na esfera jurídica das partes posto que nem uma nem outra abonariam à pretensão da recorrente, de anulação da decisão recorrida: seja pela inadmissibilidade do recurso como meio legal de reação à nulidade processual por violação do contraditório alegadamente cometida pela 1ª instância, e consequente rejeição do seu conhecimento no âmbito deste recurso, seja porque, contrariamente ao que a recorrente alega, não ocorre violação do contraditório porque a decisão recorrida não enquadra na figura da ‘decisão surpresa’ pressuposta pela tese que a acolhe como causa de nulidade por vício de excesso de pronúncia.
Com efeito, esta tese assenta num elemento essencial: a novidade/imprevisibilidade da questão apreciada e que fundamenta o sentido da decisão face às questões de facto e de direito discutidas nos autos e/ou conhecidas pela parte contra a qual a decisão é proferida. A designada decisão surpresa que a recorrente invoca corresponde a decisão com a qual as partes não poderiam minimamente contar por conhecer de questão não alegada ou não equacionada pelas partes nos respetivos articulados e relativamente à qual o tribunal não deu às partes a possibilidade de sobre ela previamente se pronunciarem.[5] Contraditório que, para além da regular tramitação dos autos, apenas  se impõe quanto as questões que as partes venham a suscitar no ultimo articulado ou em articulado superveniente ou anómalo, e [q]uando se trate de apreciar questões de conhecimento oficioso que não foram objeto de discussão (…), e para (…) evitar decisões que surjam contra a corrente do processo ou contra as expectativas que legitimamente foram criadas quanto à sua evolução no sentido da prolação de uma decisão de mérito[6]. A designada decisão surpresa que, só o é, quando a decisão confronta as partes com enquadramento e soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes por não terem sido objeto de qualquer discussão.
Sem surpresa, de todo o exposto, e com o conforto dos acórdãos citados pela própria recorrente, se retira a manifesta falta de fundamento da preterição do contraditório que invoca. Com efeito, como a própria recorrente reconhece, o art. 3º, nº 3 do CPC só proíbe ao tribunal a decisão sobre questões de facto ou de direito “sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”, situação que manifestamente não ocorre no caso.
À cabeça, a manifesta falta de razão na alegada prolação de ‘decisão surpresa’ pela impossibilidade lógica de ausência de audição da recorrente sobre questão – de facto e de direito - que por ela foi introduzida e submetida a juízo por expressamente alegada nos embargos que deduziu. Com efeito, a recorrente opôs à (obrigação objeto da) execução a deliberação por ela tomada em assembleia geral realizada no dia 05.07.2024, que entendeu constituir causa da inexigibilidade, ou da modificação, ou da extinção da obrigação objeto da execução e, com fundameno legal nas als. e) e g) do art. 729º do CPC, pediu ao tribunal a extinção da execução ou a redução do seu valor. Pedidos que, no exercício do dever jurisdicional, de valoração jurídica dos factos alegados à luz da fattispecie prevista na hipótese das normas convocadas pela recorrente, o tribunal recorrido conheceu, e fê-lo única e exclusivamente por referência à questão de facto e fundamento jurídico invocados pela recorrente. Ora, o facto de deles o tribunal ter extraído efeito jurídico – improcedência dos embargos – em sentido oposto ao preconizado pela recorrente – extinção da execução ou redução do valor da mesma -, daí não decorre, como é óbvio, que o tribunal proferiu decisão surpresa. É facto que o sentido da decisão não coincide com o pretendido pela recorrente, mas só com um grande poder de ficção processual pode afirmar que não foi ouvida sobre a questão de facto e de direito sobre a qual incidiu. Ou pretenderia a recorrente que o tribunal, suportado nas questões de facto e de direito que a recorrente submeteu a juízo, elaborasse um projeto de decisão e a auscultasse sobre o sentido da mesma antes de a proferir(?)
Conforme acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2015 e 19.05.2016, “o princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão surpresa, não determina ao tribunal de recurso que, antes de decidir a questão proposta pelo recorrente e/ou recorrido, o alerte para a eventualidade de o fazer com base num quadro normativo distinto do por si invocado, desde que as normas concretamente aplicadas não exorbitem da esfera da alegação jurídica efetuada”, e “[h]á decisão surpresa se o Juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta e atinada decisão do litígio. Ou seja, apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever.” Situação que não ocorre no caso posto que, contrariamente ao que a recorrente alega, o tribunal recorrido não decidiu questão nova nem decidiu a questão que a recorrente alegou com recurso a enquadramento jurídico distinto do por ela invocado; com o que não se confunde a liberdade do julgador na valoração dos factos alegados pelas partes e na interpretação das normas legais por elas convocadas nos termos do art. 5º, nº 3 o CPC, que não está de forma alguma condicionada à submissão da mesma a prévia pronúncia das partes posto que as partes já se pronunciaram ou tiveram a oportunidade de o fazer através do articulado legalmente previsto na regular tramitação dos autos; no caso, na petição de embargos apresentada pela recorrente.
A posição da recorrente é tanto mais ilógica se atentarmos no sentido dos acórdãos que cita nas alegações[7], designadamente, o da Relação de Lisboa de 18.01.2023: «Justifica-se, excecionalmente, o exercício prévio do princípio do contraditório, nos moldes previstos no n.º 3 do art.º 3.º do CPC/2013, quando da proferição de despacho judiciais de indeferimento liminar, caso os motivos ou problemáticas que justificam os mesmos não resultem dos elementos constantes do articulado inicial e dos documentos que o complementam ou quando, sendo de conhecimento oficioso, sejam inesperadas, imprevisíveis, «surpreendentes» para a parte demandante.” Salienta-se que em sede de fundamentação mais constam ali citados vários acórdãos das Relações e do Supremo Tribunal de Justiça que, precisamente, decidiram pela validade de decisão de indeferimento liminar sem prévia audição do autor ou requerente e, na sequência dessa referência e por referência ao art. 3º, n 3 do CPC, mais ali consta “[i]mporia tal disposição legal, como defende o recorrente, a sua prévia notificação para se pronunciar sobre o «projeto» de despacho de indeferimento liminar, conforme veio a ser prolatado pelo tribunal recorrido, a fim de evitar que o Autor fosse surpreendido com tal decisão judicial?//Pensamos que não, face ao que já acima deixámos exposto quanto ao regime dos artigos 54.º do CPT e 590.º do NCPC, que, clara e expressamente, preveem a possibilidade de qualquer Petição Inicial, desde que reúna para tal efeito os requisitos legais acima elencados, poder vir a ser objeto de um despacho de indeferimento liminar, sendo certo que o despacho recorrido que se acha elaborado nos autos se radica na matéria de facto e de direito que se mostra alegada na Petição Inicial apresentada pelo trabalhador e nos documentos que os complementam, ou seja é forjado sobre um cenário adjetivo e substantivo que era e é conhecido do recorrente e que, nessa medida, não pode ferir as expetativas legítimas e expetáveis de um qualquer demandante colocado na posição do aqui Autor.//Logo, entendemos não ter havido por parte do Juízo do trabalho de Almada, com a proferição do despacho de indeferimento liminar que aqui se acha em apreciação, qualquer violação do princípio do contraditório, por o mesmo não poder ser configurado juridicamente como uma «decisão surpresa».     
2. Acresce que, para além de a decisão recorrida não configurar ‘decisão surpresa’, é a própria lei que no art. 732º nº 1 do CPC estabelece que Os embargos, que devem ser autuados por apenso, são liminarmente indeferidos quando: a) Tiverem sido deduzidos fora do prazo;//b) O fundamento não se ajustar ao disposto nos artigos 729.º a 731.º;//c) Forem manifestamente improcedentes.
O fundamento do indeferimento liminar previsto na al. c) corresponde ipsis verbis a fundamento de indeferimento liminar da petição que no art. 590º, nº1[8] do CPC e sob a epígrafe “Gestão processual consta previsto para o processo comum, disposição que, na ausência de norma a respeito especialmente prevista nos incidentes declarativos da execução, sempre se lhes aplicaria por força do art. 551º do CPC. Fundamento que se reconduz a vício de conteúdo ou de mérito que resulta do confronto entre o pedido e os fundamentos de facto e de direito concretamente alegados na petição inicial e os pressupostos legais da pretensão formulada. Como se refere no acórdão de 22.03.2022 desta Relação, “Em ambas as hipóteses estamos perante um critério normativo de evidência, sendo esse o comando que o legislador dá ao aplicador, daí que o despacho deva ser proferido em face da simples inspeção da petição inicial; está em causa, fundamentalmente, a salvaguarda do princípio da economia processual, não se justificando o dispêndio dos recursos que o funcionamento da justiça implica nas hipóteses em que, seja por razões de forma, seja por razões de fundo, o processo está votado ao insucesso.[9]
Sobre a evolução histórica e ratio legis subjacente à previsão legal do despacho de indeferimento liminar, consta do esclarecedor acórdão desta Relação de 15.07.2011[10] que “o indeferimento liminar[1], na generalidade das acções[2], foi introduzido pelo Decreto nº 12.353 de 22-9-1926, com vista a permitir que o juiz rejeitasse a petição inicial, logo no início da causa, nos casos de vícios processuais insupríveis ou de pretensão manifestamente inviável[3].//Desse modo se procurava pôr cobro à permissividade do CPC de 1876 que, dominado pelo princípio da inércia do juiz, aliás em sintonia com o pensamento liberal da época, não lhe permitia qualquer intervenção inicial ou interlocutória[4] por forma a evitar o prosseguimento de causas irremediavelmente votadas ao insucesso, fosse por falta de pressupostos processuais, fosse por manifesta falta de fundamentos da acção, fazendo com que o processo chegasse à sentença, após prolongado percurso e demoradas diligências probatórias, para afinal o réu ser absolvido da instância ou a acção ser julgada improcedente sem que a prova produzida tivesse, para o efeito, qualquer utilidade[5]. (…). (…) Prof. Alberto dos Reis que salientou o dispêndio inútil de actividade judicial que se poupava com o indeferimento liminar de petições claramente votadas ao fracasso e os maiores prejuízos que o próprio autor evitaria com isso. Por outro lado, o dever de apreciação liminar imposto ao juiz forçá-lo-ia a inteirar-se desde logo dos termos do litígio.//Depois das reformulações legislativas introduzidas em 1927 e 1932[7], veio o Código de Processo Civil de 1939 manter o despacho de indeferimento liminar com alguns melhoramentos, bem como o regime especial de agravo que lhe estava associado[8].//(…).//Finalmente, a Revisão do CPC de 95/96, que introduziu a regra da oficiosidade da citação, tornou assim excepcional a ocorrência do despacho de citação, e consequentemente do despacho de indeferimento liminar, nos termos do artigo 234.º, nº 1 e 4, mantendo o regime especial do recurso de agravo do despacho de indeferimento liminar, em moldes semelhantes ao regime pregresso, nos termos do artigo 234.º-A, a que foi dada a seguinte redacção: 1. Nos casos referidos nas alíneas a) e b) do número 4 do artigo anterior, pode o juiz, em vez de ordenar a citação, indeferir liminarmente a petição, quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 476.º.  
Com efeito, a semântica do vocábulo ‘liminarmente’ remete para o princípio ou início de algo, para o que é introdutório, preliminar ou prévio. No contexto em que nos movemos, remete para o início do processo que é instaurado pela apresentação da petição em juízo, no sentido de circunscrever a prolação do despacho liminar a essa fase do processo pela mera inspeção da petição ou requerimento inicial, antes de desencadear o cumprimento da tramitação processual que a mesma é abstratamente apta a desencadear, no caso, a notificação do exequente-embargado para constituição da relação processual subjetiva da instância dos embargos nos termos do art. 732º, nº 2 do CPC. Conforme referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, [o]s casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal modo graves que permitem antever, logo nessa fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor (…).//Assim acontece quando seja manifesto que a ação nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação que se faça dos preceitos legais aplicáveis à situação configurada pelo autor (…).[11] Interpretação que é conforme ao art. 3º, nº 3 do CPC posto que também este dispensa o cumprimento do contraditório em caso de manifesta desnecessidade, como ocorre suceder nos casos de manifesta improcedência da pretensão do autor ou do requerente, sendo que foi com esse fundamento que o tribunal recorrido, apreciando do mérito dos fundamentos dos embargos, decidiu liminarmente pelo seu indeferimento.
Termos em que se conclui pela improcedência da nulidade arguida.

B) Do erro do julgamento de direito sobre o mérito dos embargos (a manifesta improcedência)
Trata-se aqui de aferir se os factos alegados na petição de embargos permitem antecipar o conhecimento de mérito (e no sentido da sua improcedência) independentemente da confirmação dos mesmos em sede de instrução e da posição que, em sede de contraditório, viesse a ser adotada pelo exequente-embargado, ao que desde já se responde pela positiva e, assim, pelo acerto do julgamento operado pelo tribunal recorrido, que é tão manifesto como a improcedência dos embargos posto que, à luz do brocardo das “várias soluções possíveis de direito[12]”, outra solução não se vislumbra (sequer equacionar).
Conforme supra se relatou, por sentença de 19.04.2024 a recorrente foi condenada no pagamento ao recorrido da quantia líquida de €7.653,00 a título de remunerações por esta devidas pelo cargo de gerente referentes aos meses de junho de 2022 a janeiro de 2023 (incluindo os legais subsídios de férias e natal), das remunerações vencidas de e desde fevereiro de 2023 até à data da prolação da sentença à razão mensal de €1.000,00 (sobre o qual incidirão os descontos legalmente previstos e devidos), e das remunerações vincendas de igual valor “até redução ou extinção das referidas obrigações nos termos do artigo 255.º, n.º 2[13], do Código das Sociedades Comerciais, ou até que o Autor deixe de ser gerente da sociedade 1.ª Ré.” Esta decisão foi objeto de recurso pela aqui recorrente, foi apresentada à execução pelo aqui recorrido e, entretanto, na pendência dos presentes embargos, foi confirmada por acórdão desta secção proferido em 19.12.2024 e já transitado.
Em sede de recurso a recorrente deixou ‘cair’ o fundamento da inexigibilidade[14] da quantia exequenda, fundamento que, diga-se, invocou sem qualquer nexo ou correspondência lógica-normativa com o facto fundamento dos embargos – deliberação social tomada em 05.07.2024 tendo por objeto a atribuição de remuneração a cada um dos gerentes, com exclusão do gerente A., aqui recorrido - por destituído de qualquer significação jurídica na perspetiva do conceito jurídico de exigibilidade e em confronto com o título executivo e o período temporal ao qual o exequente reportou a liquidação da quantia exequenda, que está perfeitamente determinada na sua qualidade e quantidade. Persistiu porém na alegação de que a deliberação social que tomou em assembleia geral de 05.07.2024 constitui facto que impede, modifica ou extingue a obrigação reconhecida por sentença e objeto da execução porque, como alega, a questão da qualificação da quantia exequenda como remunerações da gerência continua em discussão e tem relevância nestes autos e, por outro lado, contrariamente ao entendimento do tribunal recorrido, o título executivo abarca as alegadas obrigações vencidas depois de maio de 2024. Conclui que “a deliberação tomada na Assembleia Geral da Recorrente realizada no dia 05 de Julho de 2024, consubstancia a invocação de factos que, uma vez provados, permitem concluir que a quantia liquidada não é devida, e que, portanto, a quantia exequenda não é devida ou é quantitativamente inferior.//Tais factos, a serem provados, terão como consequência a extinção total ou parcial da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência total ou parcial do direito exequendo.
Ao fundamento dos embargos a decisão recorrida opôs que aquela deliberação social não é oponível e não afeta as obrigações exequendas porque estas correspondem às remunerações vencidas até maio de 2024, portanto, anteriores à data em que aquela foi tomada, e concluiu pela manifesta improcedência dos embargos.
Conforme prevê o art. 10º, nº 5 do CPC - Toda a execução tem por base um título pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva -, na ação executiva o pedido formulado tem de harmonizar-se com o título, confinando-se aos limites deste. Do disposto no art. 713º resulta que o objeto da execução haverá de corresponder a uma obrigação certa, exigível e líquida. Tratando-se de execução fundada em sentença condenatória pendente de recurso com efeito devolutivo e, por isso, não transitada, sob a epígrafe Requisitos da exequibilidade da sentença prevê o art. 704º do CPC que: (…).//2 - A execução iniciada na pendência de recurso extingue-se ou modifica-se em conformidade com a decisão definitiva comprovada por certidão; (…).//3 – Enquanto a sentença estiver pendente de recurso, não pode o exequente ou qualquer credor ser pago sem prestar caução.
Em sede de oposição à execução a lei regula os fundamentos que o executado pode invocar para deduzir embargos, que prevê e distingue em função da natureza do título executivo, e do que depende a sua admissibilidade. Tratando-se de execução baseada em sentença o art. 729º do CPC especifica vários fundamentos que, conforme se retira do respetivo proémio – “…a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes…”  -, são taxativos e restritos. O que se compreende na medida em que a execução foi precedida de um processo declarativo “em que as partes tiveram a possibilidade e a oportunidade de discutir, com toda a amplitude, o mérito da causa[15] pelo que, tudo aquilo que na ação declarativa foi (ou podia ter sido) matéria de oposição, fica excluído dos fundamentos dos embargos de executado. Tal exigência da lei explica-se porque o caso julgado cobre toda a matéria fáctica em que se baseia a sentença, impossibilitando assim o embargante de vir alegar, na acção executiva, factos que podia e devia ter alegado na acção declarativa, até àquele momento do encerramento da discussão, mas não os supervenientes a esse momento.[16] Muito menos se admite a discussão em sede de embargos das questões de facto e de direito já discutidas e decididas no processo declarativo onde foi proferida a sentença que reconheceu o direito exequendo. Assim, e contrariamente ao que a recorrente alega, a questão da qualificação da quantia exequenda como remunerações da gerência, que foi objeto de discussão na ação declarativa e culminou com o seu reconhecimento em benefício do recorrido, não continua nem é aqui objeto de discussão; e assim é independentemente da natureza provisória (enquanto pendente de recurso) ou definitiva (com trânsito em julgado) do título executivo que, além do mais, entretanto, se consolidou na ordem jurídica com o trânsito em julgado do acórdão que o confirmou.
Por referência ao fundamento legal invocado pela recorrente, prevê a al. g) do citado art. 729º que a oposição só pode ter como fundamento facto extintivo ou modificativo da obrigação que se prove por documento. Considerando que o art. 611º do CPC determina que na sentença o julgador deve tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da ação (de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão), o facto extintivo ou modificativo cronologicamente posterior[17] ao encerramento da discussão no processo de declaração constitui sempre fundamento de embargos[18]. Mas, como expressamente ali se prevê, a superveniência suscetível de relevar na ação executiva abrange e reporta apenas a factos aos quais a lei reconhece valor e eficácia extintiva das obrigações, “designadamente, o pagamento, a dação em cumprimento, a consignação em depósito, a compensação, a remissão e a confusão (art. 837 CC e ss.), bem como aquelas que as modificam (designadamente por substituição do seu objecto, extinção parcial ou alteração de garantias), (…).[19]
No rol das causas legais de extinção ou modificação de direitos não se inclui, como é óbvio, uma qualquer declaração de vontade da própria executada (no que se consubstancia a deliberação social que invoca) de não reconhecimento ou não atribuição ao exequente do direito que a este foi reconhecido pela sentença que executa[20]. “Seria modo fácil de destruir o caso julgado.” Mas, ainda que assim fosse (que, manifestamente, não é), obstava à sua eficácia ou oponibilidade o âmbito objetivo do comando fixado pela sentença por não corresponder a qualquer um dos factos que nesta foram fixados como extintivos ou modificativos do direito de crédito que reconheceu ao recorrido a título de remunerações pelo cargo de gerente da recorrente; a saber, a perda dessa qualidade ou a redução judicial da remuneração nos termos do art. 255º, nº 2 do CSC para o qual a sentença expressamente remeteu.
Com o que se conclui que a deliberação social invocada pela embargante não tem a virtualidade de destruir ou extinguir a força executiva da sentença apresentada à execução por não enquadrar em qualquer alínea do art. 729º do CPC, sendo ademais certo que, ainda que a sentença apresentada à execução abranja remunerações posteriores a maio de 2024, no requerimento executivo o recorrido só liquidou e peticionou a cobrança das vencidas até esse mês.

IV – Decisão
Em conformidade com o exposto, acordam as juízas desta secção em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, manter a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da apelante (art. 527º, nº 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 11.03.2025
Amélia Sofia Rebelo
Fátima Reis Silva
Manuela Espadaneira Lopes
_______________________________________________________
[1]  Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Ed., 2ª ed., p. 684 e ss.
[2] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 150.
[3] Nesse sentido, comentários de Miguel Teixeira de Sousa ao acórdão da RP de 07.10.2019, proc. nº 400/19.2T8AMT-D.P1, ao acórdão do STJ de 02.06.2020, proc. nº 496/13.0TVLSB.L1.S1, e ao acórdão da RL de 18.01.2023, proc. nº8095/21.7T8ALM.L1 (invocado pela recorrente), todos disponíveis em blogippc.blogspot.com
[4] No mesmo sentido, acórdão da RL de 16.01.2025.
[5] Nesse sentido, entre outros, comentário de Miguel Teixeira de Sousa ao acórdão da Relação do Porto de 07.10.2019, proc. nº 400/19.2T8AMT-D.P1, disponível em blogippc.blogspot.com.
[6] CPC Anotado, GPS, Vol. I, 2ª ed. P. 22.
[7] O acórdão da RC de 29.01.2018 incidiu sobre decisão que declarou a incompetência do tribunal no despacho liminar, portanto, sem audição prévia do exequente sobre essa questão que, por natureza, corresponde a questão nova e de conhecimento oficioso.
O acórdão da RL de 26.09.2023 incidiu sobre decisão de rejeição de execução nos termos previstos no art. 734º do CPC - que é proferida em momento subsequente à citação do executado ou ato equivalente e, por isso, não é liminar - e com fundamento em vício que nenhuma das partes invocou e sobre a qual não teve oportunidade de se pronunciar, sendo que em desabono da tese da recorrente da sua fundamentação consta que “a dispensa da observância do princípio do contraditório em sede de despacho liminar reside nas circunstâncias de o mesmo se consubstanciar num momento de apreciação judicial situado a montante da citação e de a lei processual propiciar às partes um contraditório diferido, em sede de recurso, prevendo-se expressamente a citação do executado para os termos da causa e do recurso (art. 641º, nº 7 do CPC).
[8] No qual se prevê que “Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º
[9] Processo nº 11437/21.1T8LSB-B. L1, subscrito pela aqui relatora na qualidade de adjunta.
[10] Processo nº 2473/08.4TBALM-A.L1-7, disponível em jurisprudência.pt.
[11] Obra cit., p. 699.
[12] Segmento que integrava o art. 511º, nº 1 do CPC na versão introduzida pelo DL nº329-A/95 de 12.12 que, sob a epígrafe Selecção da matéria de facto, previa que O juiz, ao fixar a base instrutória, selecciona a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida., mas que se sedimentou na doutrina e na jurisprudência, onde continua a ser replicada pela sua atualidade  pertinência à luz do CPC em vigor (na aplicação/cumprimento do art. 596º, nº1 – enunciação dos temas de prova – e do art. 607º, nº 3 – seleção dos factos a conduzir à decisão de facto).
[13] Esta norma estabelece que As remunerações dos sócios gerentes podem ser reduzidas pelo tribunal, a requerimento de qualquer sócio, em processo de inquérito judicial, quando forem gravemente desproporcionadas quer ao trabalho prestado quer à situação da sociedade.
[14] A exigibilidade depende antes de mais do vencimento da obrigação, sendo que a inexigibilidade pode prender-se com as obrigações sujeitas a condição suspensiva, o que ocorre quando as partes subordinam a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico, do que resulta que a obrigação só é exigível depois de a condição se verificar.
[15] Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, Almedina, 5ª ed., 2022, p. 267.
[16] José João Baptista, Acção Executiva, 5ª ed., Univ. Lusíada, 1993, p. 94.
[17] O facto extintivo ou modificativo que ocorreu antes do encerramento da discussão, mas que de que a parte não teve conhecimento ou não dispôs do documento necessário para o provar, não pode servir de fundamento de oposição, mas apenas de recurso de revisão nos termos do art. 696º do CPC (vd. Alberto dos Reis, RLJ, 76º, p. 162). No mesmo sentido, Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, p. 509. Em sentido contrário, Castro Mendes e Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. II, AAFDL Editora, 2022, p. 649 e s.).
[18] Castro Mendes e Teixeira de Sousa excluem da exigência da superveniência (excetiva) os direitos potestativos que não sejam contraditórios com a decisão que constitui título executivo, como por exemplo, a compensação que, precisamente, pressupõe o reconhecimento do direito de crédito que é objeto de execução (ob. cit., p. 651). Em sentido contrário, Rui Pinto, ob. cit., p. 508 e s.
[19] Lebre de Freitas, A Acção Executiva à luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2ª ed., 1997, p. 145 e s.
[20] Além de que a lei apenas prevê e reconhece eficácia retroativa às deliberações sociais renovatórias, nos termos do art. 62º, nº 1 do CSC.