REGRA DA SUBSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO
DISPONIBILIDADE DE ELEMENTOS NO PROCESSO
Sumário

I - É nula, nos termos previstos na al. b) do nº 1 do art. 615º do CPC, a decisão final [que conhece do mérito da causa] que não contém a especificação dos fundamentos de facto [factos provados e não provados] e a respetiva motivação/análise crítica da prova.
II - A mesma decisão é, ainda, nula por omissão de pronúncia, nos termos da 1ª parte da al. d) do nº 1 daquele preceito, por não conhecer de questão essencial para a correta apreciação do pedido formulado pela autora.
III - O art. 665º nºs 1 e 2 do CPC consagra a regra da substituição do tribunal da 1ª instância pelo tribunal da Relação, quando este anula decisão final daquele, regra que, contudo, tem um limite: a disponibilidade dos necessários elementos no processo.
IV - Quando estes não constem dos autos [no caso, determinados elementos de prova essenciais], impõe-se a anulação da decisão recorrida, com o consequente reenvio do processo à 1ª instância para recolha/produção da prova em falta e subsequente fixação, na nova decisão a proferir, da factologia que deles decorrer, relevante para apreciação da questão cujo conhecimento foi omitido.

Texto Integral

Pc. 88606/24.2YIPRT.P1 – 2ª Secção (apelação)

Relator: Des. Pinto dos Santos

Adjuntos: Des. João Proença

Des. Rodrigues Pires


* * *


Acordam nesta secção cível do tribunal da Relação do Porto:


1. Relatório:

Utilizando o formulário legalmente estabelecido, a requerente AA Bv Sucursal em Portugal apresentou, no Balcão Nacional de Injunções, requerimento de injunção de obrigação emergente de transação comercial contra A... – Unipessoal Lda., ambas devidamente identificadas nos autos, no qual alegou e pediu o seguinte:
“1.º Requerente e requerida são sociedades comerciais.
2.º No exercício da sua atividade, a requerente vendeu à requerida, por encomenda desta, que comprou e recebeu, os produtos constantes da faturas, que a seguir se discriminam por número, data e valor, no total de € 20.181,59:
Fatura Data Vencimento Valor
FT 001/107267 19/03/2020 19/05/2020 16.452,48
FT 001/108960 13/05/2020 12/07/2020 3.729,11
3.º Não obstante ter sido instada a fazê-lo, a requerida apenas pagou a quantia de € 3.328,16; remanescendo assim em dívida o valor de € 16.853,43.
4.º São devidos ainda os juros de mora vencidos às taxas aplicáveis para os créditos de que são titulares empresas comerciais, contados nos termos previstos pelo § 5 do art. 102.º do Código Comercial DL 62/2013 de 10 de Maio, desde a data da constituição em mora, até à presente data, no valor de € 5.770,27.
5.º Pelo que, o valor da dívida é de € 22.623,70, ao qual acresce o montante de € 153,00, proveniente da taxa de justiça paga, bem como o montante de € 40,00 a título de indemnização pelos custos de cobrança nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei nº 62/2013, de 10 de Maio, tudo no montante global de € 22.816,70, que ora se peticiona, reclamando-se ainda, nos termos legais, os juros vincendos.
FT 001/107267 no valor de 13 124,32 € + juros entre 19/05/2020 e 04/07/2024 (108,23 € (43 dias a 7,00%) + 463,13 € (184 dias a 7,00%) + 455,58 € (181 dias a 7,00%) + 463,13 € (184 dias a 7,00%) + 455,58 € (181 dias a 7,00%) + 463,13 € (184 dias a 7,00%) + 618,28 € (181 dias a 9,50%) + 727,77 € (184 dias a 11,00%) + 752,58 € (182 dias a 11,50%) + 16,18 € (4 dias a 11,25%)
FT 001/108960 no valor de 3 729,11 € + juros entre 12/07/2020 e 04/07/2024 (123,72 € (173 dias a 7,00%) + 129,45 € (181 dias a 7,00%) + 131,59 € (184 dias a 7,00%) + 129,45 € (181 dias a 7,00%) + 131,59 € (184 dias a 7,00%) + 175,68 € (181 dias a 9,50%) + 206,79 € (184 dias a 11,00%) + 213,84 € (182 dias a 11,50%) + 4,60 € (4 dias a 11,25%)
Capital Inicial: 16 853,43 €
Total de Juro(s): 5 770,27 €
Capital Acumulado: 22 623,70”.

A requerida, notificada, deduziu oposição, na qual alegou que:
- correu termos no Juiz 4 do Juízo do Comércio de ..., sob o nº ..., um processo especial de revitalização da empresa requerida, no qual, por sentença de 20.10.2021, transitada em julgado, foi homologado o plano por ela apresentado;
- a aqui requerente não reclamou ali o seu crédito junto do AJP, nem impugnou a lista provisória de créditos reconhecidos;
- por via disso, não pode reclamar agora o seu crédito;
- devia, assim, ter notificado a requerida com vista a dar a conhecer o seu crédito, para que ela, quanto a este, desse cumprimento ao que consta do plano de recuperação, o que a requerente não fez.
Pugnou, por isso, pela improcedência da ação, com a sua consequente absolvição do pedido.

Remetidos os autos a tribunal e feita a sua distribuição como ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato [AECOPEC], foi proferido despacho a ordenar a notificação da requerente para, querendo, se pronunciar «sobre a exceção perentória da existência de PER homologado, nos termos do art. 17-F n.º 11 do CIRE, impeditiva da instauração desta ação».

Na sequência, a requerente apresentou articulado em que:
- refere que a requerida não contestou, no articulado de oposição, a existência da dívida peticionada, nem o montante do respetivo capital;
- aceita que a decisão homologatória do plano de revitalização a requerida relativamente aos créditos constituídos à data em que aquela foi proferida – art. 17º-C nº 5 do CIRE;
- apesar da requerida ter conhecimento da dívida e do IBAN da requerente, esta nunca recebeu qualquer pagamento efetuado por aquela, daí decorrendo o incumprimento do dito plano por parte da mesma, com os efeitos previstos no art. 218º do CIRE, desde que foi notificada, no âmbito do procedimento de injunção, do pedido da requerente;
- tal incumprimento tem como efeitos a ineficácia, quanto a ela, requerente, das moratórias e dos perdões contemplados no plano de revitalização;
- a requerida não pode ignorar a existência do crédito da requerente e que não procedeu ao seu pagamento, importando a sua atuação processual uma litigância de má fé.
Concluiu, pugnando pela improcedência da dita exceção perentória e pela condenação da requerida, como litigante de má fé, no pagamento de multa condigna, bem como nas custas do processo e, ainda, a pagar uma indemnização à requerente que consistirá no pagamento das despesas e honorários de advogado, a liquidar em momento posterior à sentença.

De seguida, foi proferida decisão final que, depois de declarar, quanto à apelidada exceção perentória da existência de PER homologado, impeditiva da instauração desta ação, que “(…) não pode/não deve ser declarada extinta, ao abrigo do art. 17º-E, nº 1, a ação onde é peticionado um crédito que – como acontece no caso ‘sub judice’ – não foi reclamado no PER, não foi aí reconhecido e tão pouco foi objeto de apreciação de mérito”, concluiu com o seguinte dispositivo:
“Nesta decorrência, tudo visto e ponderado, julgo a ação parcialmente procedente, por provada em face da confissão da ré e da homologação do plano, sem necessidade de produção de prova e nessa medida:
Declaro que a ré, conforme o plano de recuperação prevê, quanto aos credores comuns, vai condenada ao pagamento integral da dívida de capital no valor de €16.853,43 (dezasseis mil oitocentos e cinquenta e três euros e quarenta e três cêntimos), iniciando-se o cumprimento das prestações 12 meses após o trânsito em julgado da decisão homologatória do PER e não se contabilizando os juros, tal como se prevê no plano.
Absolvo a ré do restante peticionado, incluindo outras quantias e juros, por não estarem abarcados no plano.
A taxa de justiça será suportada de acordo com o decaimento de ambas as partes.
Custas na proporção do decaimento.
Registe e notifique.”.

Inconformada com esta decisão, interpôs a requerente o presente recurso de apelação, cujas alegações culminou com as seguintes conclusões:
“1.ª A elaboração da Sentença deve obedecer aos normativos legalmente previstos, nomeadamente o constante do art. 607.º CPC, que a decisão recorrida omitiu, pois, verifica-se que inexiste qualquer fundamentação de facto, o que torna a sentença ininteligível, não permitindo às partes analisar os fundamentos da mesma, não se assegurando assim o exercício esclarecido do contraditório, nomeadamente por via de recurso.
2.ª A sentença recorrida apenas identifica as partes e o valor da ação, não identificado o objeto do litigio ou enunciando as questões que cumpre ao tribunal solucionar, nem tão pouco os factos que considera provados ou não provados e naturalmente, as razões que presidiriam à resposta de uns e doutros.
3.ª É assim total a ausência de fundamentação de facto a determinar a nulidade da sentença, tal como consagrado no art. 615.º n.º 1 b) do Código de Processo Civil.
4.ª Por outro lado, a recorrente alegou que não recebeu qualquer prestação prevista no PER da recorrida, tendo o seu crédito sido reconhecido por esta, tendo a mesma conhecimento do IBAN da recorrente que deveria utilizar para efetuar os pagamentos devidos.
5ª O crédito da recorrente não foi impugnado pela recorrida nem foi alegado ter sido efetuado qualquer pagamento que nos termos do PER a que a recorrida foi submetida, deveria ter início em Dezembro de 2022.
6.ª Face ao óbvio incumprimento do plano de revitalização pela recorrida, os créditos recuperam a sua situação originária, pois só o cumprimento do plano exonera o devedor da totalidade das dívidas remanescente, nos termos do disposto no artigo 218.º do CIRE.
7.ª Na verdade, aqueles efeitos decorrentes do incumprimento produzem-se desde que o credor interpele por escrito o devedor que se tenha constituído em mora e a prestação, sendo certo que, caso não seja alegada tal interpelação, este deve considerar-se interpelado para pagamento na data da notificação efetuada para a injunção.
8.ª Pelo que, é entendimento da recorrente que o seu crédito não deve ser pago nos termos do plano, já que o mesmo foi incumprido, devendo por isso recuperar a sua situação originária, nomeadamente quanto ao pagamento integral imediato, incluindo os respetivos juros vencidos e vincendos.
9.ª A douta sentença recorrida não se pronunciou sobre a questão suscitada ao arrepio do disposto no artigo 608.º n.º 2 do Código de Processo Civil, gerando a sua nulidade nos termos do artigo 615.º n.º 1 al. d) do mesmo diploma legal.
10.ª Para além disso, a recorrente pediu a condenação da recorrida como litigante de má-fé, e respetiva condenação em multa condigna e indemnização a ser fixada em execução de sentença, não tendo a douta sentença em crise pronunciado sobre essa questão que também devia ter resolvido nos termos do art. 608.º n.º 2 CPC, determinando a respetiva nulidade por omissão de pronúncia, nos termos previstos no art. 615.º n.º 1 d) CPC.
11.ª Não se pode manter, assim, a sentença recorrida que violou o disposto no art. 218.º do CIRE, arts. 154.º, 607.º e 608.º todos do CPC e art. 205.º CRP, já que não se pronunciou acerca de questões que devia apreciar nem procedeu à fundamentação de facto da decisão tomada, sendo por isso nula, nos termos previstos no art. 615.º n.º 1 b) e d) do CPC, motivos pelos quais deve ser revogada.
Pelo exposto, e pelo muito que doutamente será suprido por Vossas Excelências, deverá ser dado provimento ao presente recurso, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, com o que se fará inteira Justiça.”.

A requerida não apresentou contra-alegações.

No despacho em que admitiu o recurso [e fixou o modo de subida e os efeitos], a Mma. Juíza a quo, apreciando as nulidades de sentença/decisão invocadas pela recorrente, consignou o seguinte:
“Nos termos do art. 617 n.º 2 do CPC, consigna-se que, como o tribunal optou por proferir saneador-sentença, sem qualquer outra produção de prova que não seja documental, não existem nos autos sinalética de má-fé.
Como assim, reafirma-se e percute-se que os autos não prosseguiram para audiência julgamento nem interessa, face ao teor do saneador-sentença, perquirir dos factos invocados pela autora, no âmbito da lide dolosa, uma vez que a posição da ré é juridicamente defensável, o que deflui da jurisprudência citada, razão pela qual, nos termos dos arts. 617n.º 2 e 608 n.º 2 do CPC, fica prejudicada a apreciação dos factos alegadamente substractizadores da litigância de má-fé, a qual não se mostra sequer indiciada.

*
Da nulidade da sentença por falta de fundamentação da decisão – art. 615 n.º 1 alínea b) do CPC.
A autora veio arguir a nulidade da sentença por ausência de fundamentação da decisão.
Cumpre apreciar e decidir.
De acordo com o previsto no artigo 615º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando não contenha os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
No atual quadro constitucional (artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas, de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do ato decisório.
Importa salientar que a vinculação do tribunal às concretas questões ou problemas suscitados pelas partes é compatível com a sua liberdade de qualificação jurídica (artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Por isso, o tribunal pode, sem violação da sua vinculação à problemática invocada pelas partes, qualificar juridicamente de forma diferente essas questões.
Entrando na análise da patologia invocada pela autora, relativamente a esta decisão, e pese embora sejamos suspeitos, é ostensivo que a mesma não enferma de falta de fundamentação, que no caso é exclusivamente relativa à questão de Direito e à prova por documentos.
Numa palavra e como aí se exarou, a presente ação, por reunião de condições para o conhecimento de mérito foi logo julgada sem audiência de julgamento, como se impõe, por força do princípio mais abrangente da proibição de atos inúteis – cfr. art. 130 do CPC.
Não obstante e sem contemporização ou concessão, mesmo uma decisão judicial insuficiente ou medíocre, só por o ser, não é necessariamente nula do ponto de vista processual, pois que essa falta de qualidade projeta-se necessariamente na sua valia enquanto ato decisório, nomeadamente no seu poder persuasivo junto dos destinatários da mesma. De facto, quer as razões de facto, quer as razões direito indicadas numa decisão desse quilate podem ser erradas, improcedentes ou até impertinentes, realidades bem diversas das que integram a nulidade decisória por falta de fundamentação de facto ou de direito.
No caso em apreço, a decisão proferida separa os dados de facto e de direito, e traça a qualificação jurídica e os fundamentos em consonância com a decisão de indeferimento, com a necessária concisão que esta espécie de questões, pressupostos processuais e seu tratamento jurisprudencial, mais do que consente, postula.
Além disso, os fundamentos de facto e de direito mencionados pelo tribunal habilitam os destinatários da decisão a perceber as razões de facto e de direito sobre as quais a mesma assentou e a criticá-las.
Assim, não procede a arguição da autora de nulidade da sentença por falta de fundamentação, o que implica a improcedência da arguição de nulidade dessa decisão.
Pelo exposto, indefiro a arguição de nulidade da sentença atravessada pelo autor.
Sem custas, pela simplicidade da temática.
(…)”.
* * *

2. Questões a apreciar e decidir:

Em atenção à delimitação constante das conclusões das alegações da recorrente – que fixam o thema decidendum deste recurso [arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 als. a) a c) do CPC], a não ser que se imponha o conhecimento oficioso de outras [que não é o caso] –, as questões a apreciar e decidir consistem em saber:
- Se a decisão recorrida padece das nulidades previstas nas als. b) e d) do nº 1 do art. 615º do CPC;
- Se, no processo especial de revitalização relativo à recorrida, houve incumprimento do plano de revitalização no que concerne ao crédito da requerente e se tal implica que o crédito seja pago por inteiro [e não nos termos fixados no plano], incluindo os juros e demais despesas;
- Se a decisão recorrida devia ter condenado a requerida como litigante de má fé.
* * *

3. Apreciação das questões indicadas no ponto anterior:

- Se a decisão recorrida padece das nulidades previstas nas als. b) e d) do nº 1 do art. 615º do CPC.

A recorrente começa por arguir a nulidade da decisão recorrida, por entender que a mesma padece, respetivamente, de falta de indicação dos fundamentos de facto em que a decisão de direito se estribou [inexistência de factos provados e não provados e respetiva fundamentação/motivação] e de omissão de pronúncia quanto a duas questões suscitadas pelo requerente nos seus articulados: o incumprimento do plano de revitalização relativamente ao crédito peticionado, com a consequente não aplicação do respetivo regime ao caso sub judice e a litigância de má fé por parte da requerida.

Dispõe o art. 615º do CPC que:

“1 - É nula a sentença quando:

a) (…);

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) (…);

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) (…)” .

Sem curar de saber [por ser questão meramente académica, sem relevância para a solução do recurso] se nos casos das als. b) a e) estamos perante verdadeiras nulidades de sentença ou se apenas face a situações geradoras de anulabilidade [no caso da al. a), que aqui não está em questão, há unanimidade de que se trata de verdadeira nulidade], importa começar por dizer que a deficiência da al. b) diz respeito à estrutura da decisão, ao passo que a da al. d) se reporta aos limites da mesma, por omissão ou excesso de pronúncia.

Antes de mais, importa referir que as nulidades de sentença/decisão não se confundem com os erros de julgamento. As primeiras [errores in procedendo] são vícios de formação ou atividade, referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão, ou seja, são vícios que afetam a regularidade do silogismo judiciário nela plasmado. Já os segundos [errores in iudicando] ocorrem quando existe errada valoração da prova produzida, errada qualificação jurídica da factualidade provada ou errada determinação ou interpretação das normas legais aplicáveis seja em matéria de facto seja em matéria de direito.

Começando pela nulidade prevista na al. b), vem de longe o entendimento – que perfilhamos – de que só existe nulidade de decisão quando nesta falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou dos de direito [falta absoluta de fundamentação] e não já quando uns e/ou os outros sejam meramente deficientes [Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimb. Edit., 1984, pg. 140, ensina que “[o] que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, mas não produz nulidade”; Antunes Varela, José Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, Coimb. Edit., 1985, pg. 687, referem que “[p]ara que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”; Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimb. Edit., 2001, pg. 669, consideram que “[h]á nulidade (no sentido lato de invalidade, usado pela lei) quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão”; e Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualiz., Almedina, 2022, pg. 214, adverte que “[a] falta de especificação dos fundamentos de facto jamais pode ser confundida com a falta de prova ou mesmo com a falta de consideração de determinados factos”], embora recentemente venha tentando fazer caminho uma outra tese, mais ampla [mas, claramente, muito minoritária], que equipara à falta absoluta de fundamentação a mera fundamentação insuficiente, com o argumento de que “no atual quadro constitucional (art. 205, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, (…), de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a perceção das (respetivas) razões de facto e de direito (…), deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do ato decisório” [neste sentido mais amplo, Acórdão desta Relação do Porto de 08.09.2020 (proc. 15756/17.5T8PRT-A.P1) e Acórdão do STJ de 02.03.2011 (proc. 161/05.2TBPRD.P1.S1), disponíveis in www.dgsi.pt/jtrp e jstj, respetivamente].

No caso sub judice basta uma rápida leitura da decisão recorrida para se constatar que esta omite em absoluto a descriminação dos factos provados e/ou não provados e a respetiva fundamentação e motivação/análise crítica das provas, não contendo nenhuma referência a estes elementos obrigatórios na estrutura de qualquer sentença ou decisão final.

Com efeito, após a identificação das partes e indicação do valor da causa, a decisão recorrida passa de imediato à apreciação de questões jurídicas, sem enunciar sequer previamente que questões iriam ser analisadas.

Na apreciação jurídica, analisa com algum desenvolvimento, mas sem necessidade, duas questões irrelevantes para o que está em causa nos autos: se a nomeação do administrador judicial provisório [AJP] no PER intentado pela aqui requerida implicava, nos termos do nº 1 do art. 17º-E do CIRE, a suspensão da instância nas ações declarativas e se, após a prolação da sentença homologatória de tal plano, as ações declarativas suspensas retomavam a sua tramitação normal ou se eram declaradas extintas e em que circunstâncias [isto não obstante resultar de documentação junta aos autos que a presente ação foi instaurada, ainda como injunção, em 04.07.2024 e que a sentença homologatória do plano de revitalização foi proferida, naquele PER, em 29.10.2021]. Além de se tratar de questões irrelevantes para a solução do pleito – na medida em que a presente ação nunca esteve suspensa por causa da nomeação do AJP no dito PER, não se colocando, por isso, também a questão da sua extinção ou não após a prolação da referida sentença homologatória daquele plano [o que tinha que ser apreciado era se a requerente podia instaurar esta ação depois do proferimento de tal sentença, tendo em conta que, como alega a requerente, o crédito que aqui peticiona não foi ali reclamado (por desconhecimento atempado daquele processo), nem reconhecido, nem tido em conta no plano de revitalização] –, a Mma. Julgadora perdeu tempo a discorrer sobre assuntos que dividiram a doutrina e a jurisprudência antes das alterações introduzidas no CIRE, incluindo no nº 1 do citado art. 17º-E, pela Lei nº 9/2022, de 11.01, mas que agora se mostram resolvidos, na medida em que essas alterações puseram termo à referida querela com a inequívoca afirmação de que com a prolação do despacho de nomeação do AJP no PER só se suspendem as ações executivas [e não também as ações declarativas para cobrança de dívidas contra a empresa que recorreu ao PER] e que só estas não podem ser instauradas depois de proferido esse mesmo despacho [neste sentido, Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, 8ª edição, Almedina, 2022, pgs. 455-456, refere que “[p]or força da alteração introduzida pelo art. 2º da Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro (em concerto com a transposição da Diretiva sobre reestruturação e insolvência), desde logo e em primeiro lugar, apenas as ações executivas são abrangidas por este efeito inibitório/suspensivo, assim se pondo termo à divergência doutrinal e jurisprudencial acerca da afetação das ações declarativas, as quais deverão seguir o seu curso”; idem, Alexandre Soveral Martins, in Um Curso de Direito da Insolvência, 3ª edição reimpressão, Almedina, 2023, pgs. 160-167, que diz que “[a]o fazer agora apenas menção às ações executivas, a nova redação do (art. 17º-E nº 1) do CIRE veio resolver muitas dúvidas que anteriormente se colocavam”, acrescentando depois que “[d]discutiu-se longamente o que se deveria entender por ‘ações para cobrança de dívidas’ e, nomeadamente, se estas abrangiam ações declarativas. Esse problema ficou resolvido”].

Depois, mostra-se analisada a questão que se relacionava com a defesa por exceção perentória da requerida: se a requerente, cujo crédito, repete-se, não foi reclamado, nem reconhecido, nem tido em conta no plano homologado no referido PER, podia ter instaurado a presente ação para cobrança do mesmo. Questão que mereceu resposta afirmativa da Mma. Julgadora.

E finalmente, num curto parágrafo, imediatamente antes do dispositivo [segmento decisório, atrás transcrito], proclama que «[n]ão obstante e que, como tal, se configura ser um crédito cuja existência se configura como incontrovertida – por ser reconhecido pela ré e por ser devido nos termos do capital sem juros, conforme estatuído no PER – e que, como tal, não carece de mais reconhecimento para o efeito de poder ser exigido à devedora nos termos e condições resultantes do plano, em conformidade com o disposto no citado artigo 17º-F, n.º 11.».

Retratados, sucintamente, os termos em que se desenvolve a decisão recorrida, surge com cristalina clareza que a mesma inobservou totalmente as exigências estabelecidas nos nºs 3, parte inicial, e 4 do art. 607º do CPC, segundo os quais, após a identificação das partes e do objeto do litígio, com enunciação das questões a decidir, a sentença deve conter a discriminação dos factos provados e não provados, a análise crítica das provas e, quando for o caso, a indicação das ilações tiradas dos factos instrumentais e a especificação dos demais fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção do julgador - esta obrigatoriedade da fundamentação fáctica decorre, aliás, em primeira linha, do que prescreve o nº 1 do art. 205º da CRP, segundo o qual «[a]s decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».

Não contendo a decisão a especificação dos fundamentos de facto, apresenta-se inequívoca a ocorrência da nulidade prevista na al. b) do nº 1 do art. 615º do CPC.

Coloca-se então a questão do reenvio ou não do processo para o tribunal a quo para que seja suprida tal nulidade de sentença.

O art. 665º do CPC constitui a pedra angular para resolução desta problemática. Afirma ele que:

«1 - Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.

2 - Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.

3 – (…)».

Consagra este preceito a regra da substituição do tribunal da 1ª instância pelo tribunal da Relação, quando este anula decisão final daquele. Esta regra, porém, não é absoluta; contém um limite: a disponibilidade dos necessários elementos no processo.

Na verdade, como ensina Abrantes Geraldes [obra citada, pg. 387], “ainda que a Relação confirme a arguição de alguma das referidas nulidades de sentença, não se limita a reenviar o processo para o tribunal ‘a quo’. Ao invés, deve prosseguir com a apreciação das demais questões que tenham sido suscitadas, conhecendo do mérito da apelação, (…)” e, bem assim, que “a anulação da decisão (v.g. por contradição de fundamentos ou por omissão de pronúncia) não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal ‘a quo’, devendo a Relação proceder à apreciação do objeto do recurso, salvo se não dispuser dos elementos necessários. Só nesta eventualidade se justifica a devolução do processo para o tribunal ‘a quo’.”.

Como veremos de seguida, na apreciação da segunda causa de nulidade da sentença invocada pela recorrente, os autos não dispõem de todos os elementos necessários ao conhecimento e decisão das questões que a requerente suscitou no articulado que apresentou após a distribuição dos mesmos como AECOPEC.

Passando à nulidade prevista na al. d) do nº 1 do citado art. 615º.

Como mencionado atrás, a recorrente sustenta que a decisão recorrida incorre também em omissão de pronúncia, por não ter apreciado duas questões que havia suscitado no referido articulado: o incumprimento do plano de revitalização relativamente ao crédito peticionado, com a consequente não aplicação do respetivo regime ao caso sub judice e a litigância de má fé por parte da requerida.

O juiz, na sentença, deve “conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer”, pois, não o fazendo e não estando o conhecimento de algum deles prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, incorre na nulidade prevista na referida alínea; e, como contraponto, não pode “conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções na exclusiva disponibilidade das partes (…)”, sendo, em ambas as situações, “nula a sentença em que o faça” [assim, Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pg. 670, anotação ao antigo art. 668º do CPC, cuja al. d) do nº 1 era, em tudo, igual à al. d) do nº 1 do atual art. 615º].

A nulidade a que se reporta a 1ª parte desta al. d) tem de ser total/absoluta, pois se a questão é conhecida/apreciada pelo juiz, ainda que incorretamente, não haverá omissão, mas sim um conhecimento deficiente/errado da questão, que se situa já fora da problemática das nulidades de sentença/decisão.

Começando pelo pedido de condenação da requerida como litigante de má fé, é ostensivo que a decisão recorrida não se pronunciou, omitindo-lhe qualquer referência, como decorre da súmula dos termos daquela atrás efetuada.

Porém, no despacho de admissão do recurso interposto pela recorrente, a Mma. Julgadora a quo, apreciando a nulidade decorrente de tal omissão, declarou o seguinte [transcreve-se o segmento relevante]: “(…) reafirma-se e percute-se que os autos não prosseguiram para audiência julgamento nem interessa, face ao teor do saneador-sentença, perquirir dos factos invocados pela autora, no âmbito da lide dolosa, uma vez que a posição da ré é juridicamente defensável, o que deflui da jurisprudência citada, razão pela qual, nos termos dos arts. 617 n.º 2 e 608 n.º 2 do CPC, fica prejudicada a apreciação dos factos alegadamente substractizadores da litigância de má-fé, a qual não se mostra sequer indiciada”. Ou seja, declarou que a litigância de má fé por parte da requerida não se mostra indiciada e que, por isso, ficou prejudicada a sua apreciação.

Este despacho considera-se complemento e parte integrante da decisão recorrida, conforme estatui o nº 2 do art. 617º do CPC.

E, sendo assim, por via dele, mostra-se agora suprida a nulidade por omissão de pronúncia reportada à questão da [eventual] litigância de má fé da requerida, o que significa que, nesta parte, o recurso improcede.

Quanto à primeira questão que, segundo a recorrente, foi omitida, resulta evidente que a decisão recorrida não a abordou, pois em parte alguma da mesma se indaga se houve ou não incumprimento do plano de revitalização [homologado por sentença] que havia sido fixado para a requerida, relativamente à requerente, ora recorrente – que alegou que a requerida tinha, necessariamente, conhecimento da dívida aqui peticionada e que comunicou ao PER o seu IBAN para que a mesma lhe fosse paga –, nem, consequentemente, se, por tal motivo e em função do que decorre do art. 218º nº 1 al. a), aplicável ao PER ex vi dos arts. 17º-A nº 3 e 17º-F nº 13, todos do CIRE, a requerente deixou de estar vinculada aquele plano, quer quanto ao recebimento do crédito [que, por via disso, teria deixado de estar sujeito ao pagamento em prestações], quer relativamente aos juros e outras despesas, que não foram contemplados na decisão recorrida por, segundo aí se diz, não serem devidos face ao determinado na sentença que homologou o plano de revitalização no PER.

E esta omissão mantem-se, já que no despacho de admissão do recurso [supra transcrito] se considerou a mesma inexistente.

Ora, é precisamente quanto ao conhecimento desta questão [omitida, repete-se, na decisão recorrida] que surge a impossibilidade deste tribunal da Relação se substituir ao tribunal a quo, nos termos anteriormente assinalados.

Com efeito, para apreciação de tal questão mostra-se necessário, além do mais:

- saber os exatos termos do plano de revitalização que foi homologado no PER que teve como destinatária a aqui requerida;

- saber que destino foi dado ao requerimento que a aqui requerente juntou ao dito PER em 03.04.2023 [requerimento cuja cópia foi junta aos presentes autos com o requerimento daquela de 01.10.2024], particularmente, se teve alguma resposta da requerida e qual, na sequência da notificação que lhe foi feita;

- e saber, ainda, os exatos termos do requerimento que a requerente ali apresentou em 26.03.2023 [particularmente, se fez alusão ao seu crédito], no qual estava associada a outra credora [B..., SA.], esta, ao que parece, com crédito reconhecido pelo AJP na lista provisória de créditos [face à cópia desta lista junta aos autos].

E nenhum destes elementos consta dos autos [processo eletrónico], havendo, por isso, necessidade de lhes ser junta certidão judicial que os contenha, já que só por esta via [prova documental autêntica] será possível a fixação dos factos necessários ao conhecimento da referenciada questão.

Há, assim, que anular a decisão recorrida e determinar o reenvio dos autos à 1ª instância para recolha/produção da indicada prova e subsequente fixação, na nova decisão que terá de ser proferida, da factologia que deles decorrer, relevante para apreciação da questão cujo conhecimento foi ali omitido [que também deverá ser decidida].

As custas do recurso ficam a cargo da parte que vier a ficar vencida a final, já que a anulação da decisão recorrida não é imputável a nenhuma das partes.

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Síntese conclusiva:

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4. Decisão:

Nesta conformidade, os Juízes desta secção cível do tribunal da Relação do Porto acordam em:

1º. Julgar o recurso parcialmente procedente e anular a decisão recorrida nos termos e pelos fundamentos exarados neste acórdão, determinando-se o reenvio do processo à 1ª instância para que aí se recolha/produza a apontada prova em falta e seja proferida nova decisão em conformidade com o assinalado.

2º. Condenar nas custas deste recurso a parte que vier a ficar vencida a final.

Porto, 2025/3/11.

Pinto dos Santos

João Proença

Rodrigues Pires