CITAÇÃO
FALTA ABSOLUTA
SENTENÇA
RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE REVISÃO
Sumário

I - Se a recorrente, sem ter sido citada para a acção, nem de qualquer modo chamada à lide por via de incidente de intervenção de terceiros, viu proferida contra si uma sentença condenatória, condenando-a solidariamente com o seu cônjuge em determinadas prestações pecuniárias, verifica-se o vício da falta absoluta de citação, previsto no art.º 696º, al. e), i), do CPCivil.
II - Ocorrendo fundamento para o recurso extraordinário de revisão, não bastando a simples rectificação da sentença, como de lapso material se tratasse.

Texto Integral

Processo: 1248/20.7T8GDM-A.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Sumário:
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Por apenso aos autos de acção com processo comum para resolução do contrato de arrendamento que AA propôs contra BB e CC, veio DD, com os sinais dos autos, interpor recurso extraordinário de revisão da sentença aí proferida em 13-11-2020 e transitada em julgado contra a autora nessa acção, invocando que nunca foi citada para tal acção, tendo o processo corrido à revelia e com absoluta falta de intervenção da recorrente, pela falta de citação, que assim se viu impedida de exercer o seu direito ao contraditório e/ou defesa. Mais alega que apenas teve conhecimento da existência da acção principal em dia 19 de Dezembro de 2022, por intermédio do seu marido, na pendência de execução instaurada com base na sentença proferida naqueles autos, em que a recorrente viu os seus créditos laborais serem penhorados.
Notificada a recorrida, contestou, no essencial dizendo que propôs a acção com processo somente contra BB (1.a ré) e CC (2.º réu), casado com a ora recorrente, porquanto só estes outorgaram o respectivo contrato, sendo certo que os réus, devidamente citados, não contestaram. Entende que a recorrente não foi nem tinha de ser citada para a acção de despejo, sustentando que a sentença contém um lapso manifesto, na medida em que sentencia a ora recorrente, quando a recorrida não a demandou e nunca foi, parte na acção, o que qualifica de erro material da sentença. Conclui pedindo que seja negado provimento ao recurso.
Findos os articulados, e conhecendo directamente do mérito, foi proferida sentença, julgando totalmente improcedente o recurso de revisão.
Inconformada, interpôs a recorrente recurso de apelação da sentença proferirda, formulando as seguintes conclusões:
NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
1. Analisada a douta decisão em crise, constatamos que a mesma não elencou qualquer factualidade não provada.
2. A douta decisão em crise, não obstante conter o elenco dos factos provados, não apresenta os factos não provados, o que configura nulidade por falta de fundamentação de facto, nos termos do artigo 615º n.º 1 da alínea b) do Código de Processo Civil.
3. Assim, considera-se nulidade da sentença quando o julgador deixe de incluir a decisão sobre a matéria de facto (provada e não provada). Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
4. Há nulidade (no sentido de invalidade, usado na lei) quando falte em absoluto, a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão.
5. POSTO ISTO, deve este Tribunal Superior declarar a nulidade da sentença em causa.
Sem prescindir,
DA APRECIAÇÃO DA PROVA:
6. Neste conspecto dá o Tribunal a quo como provados os factos melhor descritos na douta Sentença, e a aqui recorrente, entende que determinados pontos da factualidade provada deverão ser expurgados por conter matéria não alegada nos presentes autos, outros ainda deverão ser dados como provados.
- QUANTO À MATÉRIA QUE DEVE SER EXPURGADA:
7. Os pontos 1) a 4) dos factos dados como provados não podem elencar os “factos provados/não provados”.
8. Os presentes autos mantêm a sua autonomia e individualidade, quanto aos autos principais. Consequentemente, mantêm-se distintos os pedidos formulados em cada uma das ações.
9. Neste propósito, a questão decidenda trazida, pela ora recorrente, ao Tribunal a quo foi (como aliás o mesmo identificou como “Questões a decidir”) a de apurar se ocorreu falta de citação da recorrente para os termos da acção declarativa, de que os presentes autos constituem apenso.
Ademais,
10. A prova levada a escrutínio desse Tribunal consistiu no articulado de interposição do recurso de revisão (o qual foi admitido) e na resposta apresentadas pela recorrida.
11. Sendo certo, que o Tribunal a quo, nenhuma diligência realizou que entendesse ser indispensável ao julgamento do recurso, como aliás lhe permitia o n.º 1 do artigo 700 º do Código de Processo Civil.
Assim,
12. Não poderia o Tribunal a quo dar como provada factualidade que não foi alegada nos presentes autos e que, nem tampouco, resulta de qualquer prova carreada para os mesmos.
13. O ponto 1), 2) e 3) da factualidade dada como provada, resulta do articulado de petição inicial apresentado nos autos principais a que este processo se encontra apenso e o ponto 4) advém da tramitação dos autos principais.
14. Aliás, é o próprio Tribunal a quo que fundamenta a factualidade dada como provada (indicada na motivação da douta sentença) indicando que a sua convicção advém do teor do “formulário de apresentação da petição inicial, e seu articulado, junto aos autos principais, em conjugação com o teor das cartas de citação e avisos de recepção e sentença aí proferida.”
15. POSTO ISTO, impõe-se, pois, expurgar a matéria de facto dada como provada os pontos 1) a 4), uma vez que a mesma encerra exclusivamente matéria não provada, nem tampouco alegada nos presentes autos, conforme o artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.
- QUANTO À MATÉRIA QUE DEVE DADA COMO PROVADA:
16. Tendo em conta que a factualidade alegada pela recorrente e que se consubstancia no objecto do presente recurso - apurar se ocorreu falta de citação da recorrente para os termos da acção declarativa, de que os presentes autos constituem apenso -, foi confirmada pela recorrida no seu articulado de resposta e, bem ainda, que a sentença alvo do recurso de revisão é peremptória a qualificar a recorrente como ré, em tal acção e assim a condenando,
17. Duvidas não podem restar, de que a ora recorrente não foi citada para a ação que correu os seus termos sob o n.º de processo 1248/20.7T8GDM, na Comarca do Porto, sob o Juízo Local Cível de Gondomar - Juiz 3.
18. Bem como que, por via da omissão de tal citação, o processo correu à revelia e com absoluta falta de intervenção da ora recorrente.
19. Bem ainda, que a douta sentença, proferida em tal processo, considerou e condenou, a ora recorrente, na qualidade processual de ré.
Neste propósito,
Deve ser aditado a factualidade dada como provada, os seguintes pontos:
1. A recorrente, DD, não foi citada para os autos principais, a que esta ação se encontra apensa.
2. Todo o processo (autos principais) correu à revelia e com absoluta falta de intervenção da ora recorrente.
3. A recorrente, foi condenada, nos autos principais, na qualidade de ré, nos seguintes termos: “(...)
II) condeno a Ré BB e os Réus CC e DD (estes solidariamente) a pagarem à Autora AA:
a) a quantia de € 4 200,00 (quatro mil e duzentos euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal para as operações civis contados, quanto à primeira Ré, desde o dia um de cada um dos meses em que se venceram e, quanto aos segundos Réus, da data de citação, até efectivo e integral pagamento;
b) o valor mensal de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) desde a data de interposição da acção até efectivam entrega do arrendado a qual deve ocorrer no prazo de um mês após o trânsito em julgado da presente sentença, e, a partir dessa data, a título de indemnização, no pagamento mensal da quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) até efectiva entrega do arrendado, sendo estas quantias acrescidas de juros de mora à taxa legal para as operações civis contados desde o dia um de cada um dos meses em que se venceram e vencerão até efectivo e integral pagamento.
Custas pelos Réus.”
DO ERRO DE JULGAMENTO:
20. Na opinião da recorrente e ainda que V.as Ex.as não entendam, conforme acima se requereu, expurgar e ampliar a factualidade dada como provada, ainda assim, é convicção da recorrente que a sentença em crise se encontra em ERRO DE JULGAMENTO, uma vez que atenta a matéria factual fixada e a prova produzida, existem erros consubstanciados numa má e/ou errada avaliação das provas obtidas que conduzem a uma deficiente apreciação da matéria de facto e de direito.
Vejamos,
21. É convicção da ora recorrente que o Tribunal a quo, contrariamente ao que lhe era exigido, efectuou uma “nova” apreciação da factualidade e da prova existente nos autos principais, quando, neste momento o que lhe era exigido era apenas a apreciação dos argumentos invocados com o recuso de revisão (fase rescindente).
22. Aliás, é a própria julgadora que menciona na decisão sob recurso a sua apreciação de questões próprias apenas da ação declarativa, de que estes autos constituem apenso, concretamente quando indica que:
“Nessa medida, não se vê como pode rever-se a sentença com fundamento na falta de citação, quando é manifestamente evidente - tendo sido assumido, inclusive pela Autora, aqui recorrida -, que a recorrente nunca assumiu a qualidade de parte, por não ter outorgado qualquer contrato de arrendamento.” (...)
“O mesmo se diga, por maioria de razão, quanto aos termos a seguir em caso de procedência da revisão, sendo certo que uma eventual anulação dos termos do processo posteriores à citação do réu não produziria qualquer efeito prático, na medida em que não pode ordenar-se a citação de quem não é parte na causa.”
23. Tal apreciação apenas pode ser efectuada na fase rescisória do recurso de revisão, onde a acção (autos principais) é retomada e segue os tramites da acção declarativa, mesmo que com tramitação própria - ex. vi artigo 701.º do Código de Processo Civil.
24. A decisão sob censura não apreciou os argumentos levados ao escrutínio do Tribunal, por via do recurso de revisão, mas sim,
25. E contrariamente, ao que lhe competia, o Tribunal a quo fez uma nova apreciação das provas existentes nos autos principais, concretamente, formulário Citius de entrega da petição e factualidade indicada na própria petição inicial e concluiu que:
- A ora recorrente nunca assumiu a qualidade de parte (nos autos principais), tendo por base o assumido pela Autora, ora recorrida, na sua petição inicial.
26. Ademais, o Tribunal a quo, entendeu (também) que não há qualquer efeito prático na procedência da revisão, uma vez que a “(...) anulação dos termos do processo posteriores à citação do réu não produziria qualquer efeito prático, na medida em que não pode ordenar-se a citação de quem não é parte na causa.”
27. Na opinião da recorrente, a decisão proferida radica de uma total confusão entre procedência do recurso de revisão e efeitos/consequências dessa procedência, nomeadamente, revogação da sentença - artigo 701.º Código de processo Civil.
28. A juiz do Tribunal a quo é peremptória a afirmar que não se pode ordenar a citação de quem não é parta na causa!
29. Andou mal o Tribunal a quo, quando decidiu que a recorrente não é ré nos autos principais, quando os mesmos ainda não foram retomados e a instância ainda não retomou a sua fase declarativa.
30. A sentença em escrutínio não é o momento nem a forma de se efectuar a apreciação de tal matéria, ou seja, de julgar se a recorrente é ou não ré nos autos principais).
31. A verdade é que a decisão em crise padece de erro de julgamento, uma vez que é manifesta uma desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo e adjectivo) aplicável.
32. A sentença sob recurso determina (e bem) como questão a decidir o facto de apurar se ocorreu falta de citação da recorrente para os termos da ação declarativa, de que os presentes autos constituem apenso.
33. Sucede que, não obstante o Tribunal a quo fundamentar a decisão, decide mal, pois resolveu num certo sentido a questão colocada porque interpretou e/ou aplicou mal o direito.
34. A Julgadora do Tribunal a quo, por via do erro de julgamento em que enveredou a sua decisão, acabou por não se pronunciar sobre a questão decidenda, porquanto, não disse se a recorrente foi ou não citada para os termos da ação declarativa, de que os presentes autos constituem apenso!
35. A solução apresentada na sentença é que a improcedência do recurso de revisão se deve, não ao facto de a recorrente ter sido citada, mas sim pelo facto de a recorrente (supostamente) não ser parte nos autos principais.
36. Porém, conforma acima se explicou, a procedência do recurso de revisão, atento o direito substantivo aplicável ao caso, apenas impõe e determina que, nesta fase do recurso de revisão (fase rescindente), se aprecie os fundamente levados pela recorrente a decisão, que, no caso concreto, se restringe apenas a um facto:
- apurar se ocorreu falta de citação da recorrente para os termos da acção declarativa, de que os presentes autos constituem apenso.
37. A apreciação da figura processual que a recorrente apresenta na acção declarativa, de que os presentes autos constituem apenso e a sua citação (ou não) não PODE ser apreciada agora, mas apenas na acção própria, onde processualmente existe a tramitação própria e necessária a apreciar tais questões.
38. Ao efectuar o julgamento, na sentença sob recurso, da qualidade processual da recorrente na acção declarativa, de que os presentes autos constituem apenso, o Tribunal a quo violou o direito adjectivo aplicável (artigo 701º do Código de processo Civil), porquanto, essa matéria é restrita a apreciação na acção própria.
39. Ao cometer o erro de julgamento elencado, a Tribunal a quo proferiu uma decisão que não corresponde à realidade ontológica.
40. O erro de julgamento em causa começou na interpretação e subsunção dos factos ao direito, situação que afectou e viciou a decisão proferida, por via de uma desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjectivo) aplicável.

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Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas (artigos 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, todos do C.P.C.), as questões a decidir consistem em saber se a sentença recorrida enferma de nulidade por falta de motivação, se deve ser alterada a matéria de facto considerada provada pela 1.ª instância, e se ocorre fundamento para o recurso extraordinário de revisão.
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A 1.a instância considerou provados e não provados os seguintes factos:
A) Factos provados:
1. Em 7 de Maio de 2020, a recorrida AA intentou acção declarativa de condenação contra BB e CC, casado com DD, aqui recorrida.
2. Na petição inicial apresentada, a aí Autora alegou o seguinte:
«1º Por contrato de arrendamento celebrado em 01 de Julho de 2016, - Doc. 1
2º A Autora, na qualidade de proprietária, deu de arrendamento à Ré, o 4º andar do prédio urbano constituído em propriedade total, sito na Rua ..., n.º ..., 4º Dto Traseiras, ... ... GDM, inscrito na matriz predial urbana sob o artº ... da união de freguesias ... (...), ... e ... e descrito na Conservatória do Registo de Gondomar sob o n.º ... – Doc. 2
3º Pelo prazo de um ano, com início em 01 de Junho de 2016 e a terminar em 31 de Maio de 2017, considerando-se prorrogado por igual período, na ausência de denúncia pelas partes.
4º Com a renda anual de 3.000,00 (três mil euros), pagável em duodécimos de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros).
5º Foi estipulado, na cláusula segunda que a renda se vence no primeiro dia um do mês anterior a que respeitar.
6º O locado destina-se exclusivamente à habitação da arrendatária, não podendo ser-lhe dado outro destino sem consentimento do senhorio.
7º A Ré não pagou a renda que se venceu no dia 1 do mês de Abril, referente ao mês de Maio do ano de 2019, nem as que se venceram posteriormente, até à que se venceu no p.p. dia 1 de Maio, relativa ao mês de Junho do ano de 2020.
8º Encontra-se em mora desde o dia 1 de Abril de 2019, o que dá causa à presente acção de despejo por falta de pagamento de renda.
9º Encontra-se em dívida o valor total de 4.200€ (quatro mil e duzentos euros) acrescido dos juros legais de mora vencidos, à taxa legal de 4% ao ano, sobre cada uma das rendas vencidas e não pagas.
(…)
17º Confrontado o Contrato de Arrendamento junto aos autos sob Doc. 1, de acordo com a cláusula decima quarta, o segundo Réu, figura no mesmo na qualidade de fiador, logo tendo assumido a obrigação do pagamento das rendas, com renúncia ao benefício da excussão prévia.»
3. No formulário Citius foram identificados como Réus BB e CC.
4. Em 08-05-2020, foram expedidas cartas de citação, por carta registada com AR, sendo que o Réus CC e BB assinaram os correspondentes avisos de recepção em 13-05-2020 e 15-05-2020, respectivamente.
5. Em 13-11-2020 foi proferida sentença, que decidiu o seguinte:
«Pelo exposto, decido julgar a presente ação procedente e, em conformidade:
I) declaro resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre a Autora AA e os Réus BB, CC e DD, e, em consequência, condeno a Ré BB a entregar o locado à Autora, imediatamente, livre e desocupado de pessoas e bens;
II) condeno a Ré BB e os Réus CC e DD (estes solidariamente) a pagarem à Autora AA:
a) a quantia de € 4 200,00 (quatro mil e duzentos euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal para as operações civis contados, quanto à primeira Ré, desde o dia um de cada um dos meses em que se venceram e, quanto aos segundos Réus, da data de citação, até efectivo e integral pagamento;
b) o valor mensal de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) desde a data de interposição da acção até efectiva entrega do arrendado a qual deve ocorrer no prazo de um mês após o trânsito em julgado da presente sentença, e, a partir dessa data, a título de indemnização, no pagamento mensal da quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) até efectiva entrega do arrendado sendo estas quantias acrescidas de juros de mora à taxa legal para as operações civis contados desde o dia um de cada um dos meses em que se venceram e vencerão até efectivo e integral pagamento.
Custas pelos Réus.»
B) Factos não provados
Inexistem.
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Invoca a recorrente a nulidade da decisão recorrida, nos termos do disposto no artº. 615º, nº. 1, al. b) do CPC, sustentando que não elencou qualquer factualidade não provada. Em face do preceituado naquele artigo 615º, n.º 1, al. b), do CPC é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. A previsão desta nulidade articula-se com o disposto no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que exige que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente sejam fundamentadas na forma prevista na lei, dever de fundamentação igualmente consagrado no artigo 154.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, de acordo com o qual as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. A fundamentação consiste na indicação dos motivos pelos quais se decide de determinada forma, com vista a permitir aos destinatários sindicar a motivação do julgador, explicitando as razões, quer de facto, quer de direito, em que assenta a decisão. A doutrina e a jurisprudência têm vindo a entender que só a falta absoluta de motivação, que não a meramente deficiente ou medíocre, conduz àquela nulidade aí cominada. Alberto dos Reis salientava já a respeito de tal nulidade: “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade” (CPC Anotado, volume V, página 140, em anotação ao artigo 668.º).
Ora, o que a sentença recorrida faz é mencionar que Inexistem factos não provados, o que equivale a proclamar que não há factos alegados com interesse para a solução da causa que não tenham resultado provados. O que não é o mesmo que a absoluta omissão quanto a fundamentos de facto, mas antes o ajuizar que, para a solução a dar às questões suscitadas no processo, não há outros factos relevantes senão aqueles que agora se elencou. Na hipótese afirmativa, da insuficiência dos factos considerados provados, haverá erro de julgamento, e caso se considere que do processo não constam todos os elementos probatórios adequados a suprir aquela omissão pela Relação, vale a previsão do art. 662º nº 2 c) do CPC, devendo ser anulada a decisão proferida na 1ª instância com vista à ampliação da matéria de facto, não ocorrendo nulidade da sentença nos termos do disposto no artº. 615º, nº. 1, al. b) do CPC.
Mal se entende ainda que a recorrente pretenda ver expurgados da matéria provada os pontos 1) a 4), porquanto respeitam a matéria assente, que se limita a reproduzir o processo principal, e como infra se verá, até aproveita à posição da recorrente. Nada a alterar, por isso, à matéria que vem provada da 1.ª instância.
Em sede de questão de mérito, a de saber se os factos alegados pela recorrente constituem fundamento do recurso de revisão da sentença proferida em 13-11-2020, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Cfr. António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª edição, 2017, Almedina, p. 109). O recurso de revisão constitui um recurso extraordinário na medida em que visa atingir decisões já transitadas em julgado. Só pressupostos de manifesta gravidade justificam o afastamento da regra da segurança jurídica inerente ao caso julgado. Como muito bem aí se nota, sobre a questão rege o art.º 696.º do Código de Processo Civil, com a epígrafe “Fundamentos do recurso” que preceitua que a decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão quando:
a) Outra sentença transitada em julgado tenha dado como provado que a decisão resulta de crime praticado pelo juiz no exercício das suas funções;
b) Se verifique a falsidade de documento ou ato judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever, não tendo a matéria sido objecto de discussão no processo em que foi proferida;
c) Se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida;
d) Se verifique nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transacção em que a decisão se fundou;
e) Tendo corrido o processo à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que:
i) Faltou a citação ou que é nula a citação feita;
ii) O réu não teve conhecimento da citação por facto que não lhe é imputável;
iii) O réu não pode apresentar a contestação por motivo de força maior;
f) Seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português;
g) O litígio assente sobre ato simulado das partes e o tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o artigo 612.º, por se não ter apercebido da fraude.
h) Seja susceptível de originar a responsabilidade civil do Estado por danos emergentes do exercício da função jurisdicional, verificando-se o disposto no artigo seguinte”.
O recurso extraordinário de revisão, que se encontra regulamentado nos artigos 696º a 702º, do CPC, possibilita, em determinadas circunstâncias, taxativamente fixadas no citado artigo 696º, ultrapassar a normal intangibilidade do caso julgado. Miguel Teixeira de Sousa (cfr. blogippc.blogspot.com/2017/05/jurisprudencia-630.html), em anotação ao acórdão de 19.01.2017 do Supremo (Processo n.º 39/16.4YFLSB.L1.S1, in dgsi.pt) refere que “conforme se colhe do ensinamento de ALBERTO DOS REIS (…) o recurso de revisão apresenta, à primeira vista, o aspecto de uma aberração judicial: o aspecto de atentado contra a autoridade do caso julgado. (…).
Bem consideradas as coisas estamos perante uma das revelações do conflito entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança ou da certeza. Em princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, se feche a porta a qualquer pretensão tendente a inutilizar o benefício que a decisão atribuiu à parte vencedora.
Mas pode haver circunstâncias que induzam a quebrar a rigidez do princípio. A sentença pode ter sido consequência de vícios de tal modo corrosivos, que se imponha a revisão como recurso extraordinário para um mal que demanda consideração e remédio. Quer dizer, pode a sentença ter sido obtida em condições tão estranhas e anómalas, que seja de aconselhar fazer prevalecer o princípio da justiça sobre o princípio da segurança. Por outras palavras, pode dar-se o caso de os inconvenientes e as perturbações resultantes da quebra do caso julgado serem muito inferiores aos que derivariam da intangibilidade da sentença.
De igual modo e seguindo a mesma linha de raciocínio, também FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA (Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 324 e 325) refere que o princípio da autoridade do caso julgado não é absoluto posto que a lei lhe abre excepções, qualificando o recurso de revisão como o último remédio contra os erros que atingem uma decisão judicial, já insusceptível de impugnação por força dos recursos ordinários. O prestígio do Estado, na vertente da função jurisdicional, seria fortemente afectado se uma decisão judicial, só por ter transitado em julgado, não pudesse jamais ser reformada, apesar de ser patente que ele se obteve de modo fraudulento, flagrantemente contrário ao Direito.”
Pode, assim, afirmar-se, em suma e citando PINTO FURTADO (Recursos em Processo Civil (de acordo com o CPC de 2013), Quid Juris, Lisboa, p. 155), que se a ideia de justiça e a de certeza andam geralmente associadas, em certas circunstâncias excepcionais entram as duas em conflito, impondo-se então que a certeza abra as suas portas para deixar entrar a justiça. E a chave para o efeito é o recurso extraordinário.”
A recorrente invocou como fundamento do recurso de revisão a falta de citação da recorrente para os termos da acção declarativa, de que os presentes autos constituem apenso, o disposto na alínea e), i) e ii) do artigo 696º do CPC -Tendo corrido o processo à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que:
i) Faltou a citação ou que é nula a citação feita;
ii) O réu não teve conhecimento da citação por facto que não lhe é imputável.
A sentença recorrida negou o invocado fundamento pela seguinte ordem de considerações:
“Apesar de, no articulado da petição inicial, constar o nome da esposa do Réu, resulta do formulário Citius que a acção apenas foi interposta contra o Réu e da alegação contida no art.º 17º daquele articulado resulta que apenas se pretendeu demandar o Réu e não também a sua esposa, aqui recorrente.
Com efeito, a recorrente não foi demandada na acção, como a própria recorrida reconhece nas suas alegações, motivo pelo qual esta nunca poderia ter sido citada para os termos da mesma, tendo sido regularmente citados os Réus BB e CC, únicos Réus nos autos principais.
Nos termos do art.º 219º, n.º 1 do Código de Processo Civil, “A citação é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender; emprega-se ainda para chamar, pela primeira vez, ao processo alguma pessoa interessada na causa.”
Já o art.º 188º, n.º 1 do Código de Processo Civil, estabelece que há falta de citação:
“a) Quando o ato tenha sido completamente omitido;
b) Quando tenha havido erro de identidade do citado;
c) Quando se tenha empregado indevidamente a citação edital;
d) Quando se mostre que foi efectuada depois do falecimento do citando ou da extinção deste, tratando-se de pessoa colectiva ou sociedade;
e) Quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável.”
Revertendo para a situação concreta, constata-se que não pode ser posta em crise a sentença por falta de citação da Recorrente, pois esta não é, nem nunca foi parte na acção.
Nessa medida, não se vê como pode rever-se a sentença com fundamento na falta de citação, quando é manifestamente evidente – tendo sido assumido, inclusive pela Autora, aqui recorrida –, que a recorrente nunca assumiu a qualidade de parte, por não ter outorgado qualquer contrato de arrendamento.
Dito de outro modo, a finalidade da citação, contida no art.º 219º, n.º 1 do Código de Processo Civil, fica totalmente esvaziada de sentido. O mesmo se diga, por maioria de razão, quanto aos termos a seguir em caso de procedência da revisão, sendo certo que uma eventual anulação dos termos do processo posteriores à citação do réu não produziria qualquer efeito prático, na medida em que não pode ordenar-se a citação de quem não é parte na causa.
Ora, conforme assumido no processo, foi determinada a rectificação da sentença em conformidade, a qual foi objecto de recurso, tendo o Venerando Tribunal da Relação do Porto considerado que dos autos não ocorre erro de cálculo ou de escrita, que seja manifesto da sentença em causa, que só por via de recurso poderá ser modificada, quando a lei processual o admita; por via do incidente de reforma ou arguição de nulidade da sentença – artigo 615.º, n.º 4 e 616.º do Código de Processo Civil.
Ocorre que, para o presente recurso obter provimento seria necessário que se verificasse o circunstancialismo contido na al. e) do art.º 696º do Código de Processo Civil, o que, como se disse, não ocorre”.
Constata-se que efectivamente a recorrente não foi parte nos autos de processo comum n.º 1248/20.7T8GDM, por não ter sido demandada como parte primitiva nem de qualquer modo ter sido chamada à lide por via de qualquer incidente de intervenção de terceiros. Não obstante, foi aí proferida sentença condenatória contra a recorrente, condenando-a solidariamente com a ré BB no pagamento da quantia de € 4 200,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal para as operações civis contados, quanto à primeira Ré, desde o dia um de cada um dos meses em que se venceram e, desde a data de citação, até efectivo e integral pagamento, e no valor mensal de € 250,00 desde a data de interposição da acção até efectiva entrega do arrendado, a qual deve ocorrer no prazo de um mês após o trânsito em julgado da sentença, e, a partir dessa data, a título de indemnização, no pagamento mensal da quantia de € 250,00 até efectivam entrega do arrendado, quantias estas acrescidas de juros de mora à taxa legal para as operações civis contados desde o dia um de cada um dos meses em que se venceram e vencerão até efectivo e integral pagamento. Um dos efeitos da sentença condenatória transitada em julgado é o de poder ser vir de base à execução – art.ºs 703.º, n.º 1, al. a), e 704.º, n.º 1, ambos do CPC. Em sede de processo de execução a legitimidade, por regra, determina-se pela mera inspecção do título, nos termos do art. 53º do CPC, A determinação da pessoa jurídica, que em face do título figura como credor ou devedor, passa pela apreciação jurídica dos direitos e deveres que emanam do título. Devendo, consequentemente a execução ser promovida contra quem na sentença condenatória figure como devedor das prestações objecto da condenação ou contra os seus sucessores habilitados.
Ora, a recorrente, sem ter sido citada para a acção, viu contra si formar-se um título executivo de natureza judicial, que lhe impõe determinadas prestações pecuniárias, parte das quais imediatamente exigíveis, sem tomar como referencial temporal a data da citação. Nesse conspecto, é manifesto que lhe assiste razão, por se verificar em relação à recorrente o vício genético estrutural da falta absoluta de citação, ocorrendo fundamento para o recurso extraordinário de revisão, não bastando a simples rectificação da sentença, como de lapso material se tratasse.
Em conformidade, procedem o recurso e a presente apelação, impondo-se a eliminação do dispositivo da sentença condenatória proferida em 13-11-2020 todas as referências à condenação da recorrente.

Decisão.
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação interposta, em consequência do que revogam a sentença recorrida, julgando procedente o recurso extraordinário de revisão e determinando a eliminação do dispositivo da sentença condenatória proferida em 13-11-2020 todas as referências à condenação da recorrente.
Custas pela apelada.

Porto, 11/03/2025
João Proença
Márcia Portela
João Diogo Rodrigues