EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
FIXAÇÃO DO RENDIMENTO DISPONÍVEL
Sumário

I – A fixação do rendimento disponível no despacho inicial não é imodificável; depois da prolação ou, mesmo, do trânsito em julgado deste despacho pode o juiz, a requerimento do insolvente, excluir desse rendimento o que seja razoavelmente necessário para quaisquer despesas do devedor (cfr. artigo 239.º, n.º 3, iii), do CIRE).
II – Tal não significa que a decisão que fixa o rendimento disponível seja livremente alterável; significa apenas que o trânsito em julgado dessa decisão fica sujeito à cláusula rebus sic standibus, garantindo a imodificabilidade da decisão na estrita medida em que os seus pressupostos não sofram modificações que demandem a alteração do decidido.
III – O mesmo se aplica à decisão que aprecia o pedido de revisão do valor do rendimento indisponível ao abrigo do disposto no artigo 239.º, n.º 3, al. b), subalínea iii), do CIRE, deferindo ou indeferindo esse pedido, a qual é alterável sempre que ocorram circunstâncias supervenientes que o imponham.
IV – Não são supervenientes as circunstâncias que já existiam e eram do conhecimento do devedor quando este solicitou a concessão do benefício de exoneração do passivo restante / a revisão do valor a excluir do rendimento disponível, mas não cuidou de alegar ou não provou e, por isso, não foram consideradas na decisão que fixou esse valor.
V – As circunstâncias supervenientes não podem justificar a alteração retroactiva do valor a excluir do rendimento disponível.

Texto Integral

Processo: 2550/21.6T8STS.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
Nos presentes autos em que foi declarada a insolvência de AA e admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, por requerimento de 02.10.2024 a devedora veio solicitar que o Tribunal se digne:
• Rever o valor da cessão de rendimentos, atendendo à atual situação de incapacidade laboral e financeira da insolvente, fixando um valor compatível com as suas condições de subsistência;
• Considerar a existência de tais despesas motivos suficientes e absolutos que justificam a não devolução dos valores solicitados pelo Exmo. Senhor Fiduciário nos relatórios a que alude o artigo 240.º do CIRE.
Os credores A... e Banco 1..., S.A opuseram-se ao requerido.
Por despacho de 13.11.2024 foi indeferida a pretensão da devedora, «mantendo-se o rendimento indisponível fixado para os 1.º e 2.º ano de cessão e a obrigação da devedora ceder o rendimento disponível apurado nos 1.º e 2.º ano de cessão calculado de acordo com o determinado no despacho liminar, ou seja, considerando como rendimento indisponível 1SMN x 14 meses, indeferindo-se, assim, a dispensa/isenção de entrega de rendimento disponível apurado nos 1.º e 2.º ano de cessão, mantendo-se ainda a alteração do rendimento indisponível determinada para o 3.º ano de cessão (1,5 SMN x 12 meses).

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Inconformada, a insolvente apelou desta decisão, concluindo assim a sua alegação:
«1- A decisão recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação (artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC).
2- As circunstâncias supervenientes apresentadas pela Recorrente satisfazem os requisitos do artigo 240.º do CIRE.
3- A Recorrente comprovou despesas mensais superiores a €1.064,00, incompatíveis com o rendimento indisponível inicialmente fixado (1 SMN x 14 meses). Ao desconsiderar essas provas sem qualquer análise criteriosa, o tribunal deixou de atender ao princípio da prevalência da realidade sobre a forma, previsto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC.
4- A manutenção do rendimento indisponível em 1 SMN x 14 meses, apesar das circunstâncias supervenientes, impõe à Recorrente um sacrifício excessivo, colocando-a em situação de comprometimento de sua subsistência, o que contraria o objetivo da norma.
5- A manutenção do rendimento indisponível desconsidera os princípios da dignidade humana e da proporcionalidade, violando normas constitucionais e do CIRE.
6- Impõe-se a alteração do rendimento indisponível para garantir a subsistência digna da Recorrente, nos termos dos artigos 239.º e 240.º do CIRE.
(…)
Termos em que,
Deve ser dado provimento ao presente recurso pelos motivos supra expostos, e em consequência revogar-se a sentença em crise substituindo-se por outra que determine:
• Reduzir o montante do rendimento disponível a ceder nos 1.º e 2.º anos de cessão, compatibilizando-o com 1,5 SMN, já reconhecido como adequado às condições da Recorrente no 3.º ano;
• Declarar a isenção de entrega dos rendimentos referentes aos períodos em que a Recorrente esteve incapaz de trabalhar, conforme comprovado nos autos».
Não foi apresentada resposta à alegação do recorrente.
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II. Fundamentação
A. Objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, importa decidir:
- Se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação;
- Se deve ser reduzido o rendimento disponível a ceder nos 1.º e 2.º anos do período de cessão, compatibilizando-o com a exclusão de 1,5 SMN já reconhecida como adequada às condições da recorrente no 3.º ano;
- Se deve ser declarada a isenção de entrega dos rendimentos referentes aos períodos em que a recorrente esteve incapaz de trabalhar, conforme comprovado nos autos.
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B. Da nulidade da decisão
A recorrente veio arguir a nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação, ao abrigo do disposto no artigo 615.º, al. b), do CPC, alegando que «o despacho recorrido não especifica os factos provados ou não provados, nem justifica a desconsideração dos documentos apresentados» e não contém, em seu entender, «um mínimo de fundamentação exigível a uma decisão judicial».
Nos termos da norma invocada pela recorrente, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Ao definir o âmbito de aplicação desta norma, a jurisprudência e a doutrina nacionais vêm insistentemente alertando para a necessidade de distinguir entre falta de fundamentação, fundamentação insuficiente e fundamentação errada ou divergente da pretendida. E vêm defendendo uniformemente que a norma do artigo 615.º, n.º 1, al. b), inclui apenas a falta de fundamentação, de facto ou de direito, não se aplicando às situações de insuficiência da fundamentação ou erro de julgamento, que, deste modo, não geram a nulidade da decisão.
Só a absoluta falta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito da decisão pode gerar a nulidade da sentença, na medida em que, traduzindo a inobservância das regras de elaboração desta peça, configura um vício formal, um error in procedendo que afecta a validade formal da sentença.
Neste sentido, a título de mero exemplo, vide, na doutrina, Alberto os Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra 1981, Vol. V, p. 140; A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, p. 687; Tomé Gomes, Da Sentença Cível, in O novo processo civil, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jan. 2014, pág. 370; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, pp. 736 a 738; Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª ed., Coimbra 2014, pp. 602 e s, esclarecendo estes últimos que a própria falta absoluta de motivação da decisão sobre a matéria de facto não se inclui na previsão da al. b), desde que da sentença constem os factos que sustentam a decisão e os respectivos fundamentos de direito (admitindo que aquela falta de motivação pode enquadrar-se na previsão da alínea c), nos casos limite em que gere a ininteligibilidade da sentença).
Na jurisprudência, igualmente a título de mero exemplo, vide o acórdão do STJ, de 03.03.2021 (proferido no proc. n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar a demais jurisprudência citada sem indicação da origem), em cujo sumário se escreve o seguinte: «I. Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual – nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma – ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma. II. Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil». No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos do TRG, de o2.11.2017 (proc. n.º 42/14.9TBMDB.G1), do TRL, de 07.12.2021 (proc. n.º 8513/09.2YYLSB-B.L2-7) e do TRP, de 24.09.2020 (proc. n.º 173/20.6YRPRT).
Perante esta uniformidade, não deixa de surpreender a frequência com que este vício formal é invocado com base na insuficiência ou no erro da fundamentação, de facto e/ou de direito.
No caso vertente, embora invoque uma razão consentânea com o vício formal que argui – a não especificação dos factos provados ou não provados –, a argumentação da recorrente não pode ser aceite, pois não corresponde à verdade. O despacho recorrido, depois de um breve relatório, discrimina os factos que considera provados, numerando-os, bem como os factos que julga não provados, após que descreve a motivação desta decisão sobre a matéria facto, analisando criticamente a prova carreada para os autos. Não ocorre, portanto, a alegada falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão.
Alega ainda a recorrente que o despacho recorrido não justifica a desconsideração dos documentos apresentados. Mas esta argumentação não traduz qualquer vício formal gerador de nulidade, designadamente a falta de fundamentação de facto ou de direito da decisão (não traduzindo sequer a falta de motivação da decisão de facto), sugerindo apenas um erro na apreciação da prova, ou seja, no julgamento da matéria de facto.
Pelo exposto, conclui-se pela manifesta improcedência da nulidade da sentença por falta de fundamentação.
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C. Os Factos
1. Factos provados
O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
1. A devedora apresentou-se à insolvência a 28.09.2021, tendo sido declarada em situação de insolvência a 11.10.2021.
2. Por despacho de 07.03.2022, foi deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela devedora, ficando obrigada a ceder ao fiduciário os rendimentos que excedam o valor equivalente a um salário mínimo nacional x 14 meses.
3. No relatório a que alude o art. 240.º CIRE junto a 19.03.2024, fora apurado um rendimento disponível a ceder pela devedora, no montante de €3.209,60 referente ao 2.º ano de cessão.
4. Por requerimento de 26.03.2024, a devedora vem alegar o seguinte: “a Insolvente necessita fazer face às suas despesas para a sua sobrevivência. A insolvente, apesar de não ter um contrato de arrendamento, tem o custo mensal pela ocupação da habitação onde reside, de 350,00€. Tem ainda o custo medio mensal com a eletricidade, de 80,00€. De consumo de água, o valor médio mensal ascende a 20,00€. Acresce que a Insolvente está a ser seguida em reumatologia no Hospital ..., tendo de ser operada à mão direita devido à rizartrose. Foi ainda detetada anemia a ser tratada antes da operação. Para tal, a medicação que a Insolvente tem de tomar, tem um custo por caixa, de 33,00€, apesar da comparticipação. Assim, as despesas mensais fixas da Insolvente, são de 483,00€. Acresce ainda, o valor necessário para fazer face às despesas de alimentação da Insolvente, assim como o combustível para se deslocar para o trabalho, que tendo em conta o atual custo de vida, facilmente se pode analisar que se houver lugar à sessão mencionada no relatório anual, a Insolvente não poderá fazer face às despesas mensais desta.” A devedora requer, então, que seja revisto o seu rendimento disponível, a fim de garantir à Insolvente, uma vida digna e com as mínimas condições, até porque, tem de fazer face às despesas para com a medicação, sendo que é necessário garantir no mínimo, um smn e ½ à Insolvente.
5. Por despacho de 15.04.2024, fora a devedora notificada para “proceder à regularização dos montantes que deveriam ter sido objeto de cessão no 2.º ano (€ 3.209,60), sob pena da sua omissão ser suscetível de determinar a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante (já requerida a 10.04.2024), nos termos do art. 243.º CIRE ou o indeferimento da exoneração, a ponderar a final.”
6. Também por despacho de 15.04.2024, fora decidido o seguinte:
“Veio a devedora requerer, por requerimento de 26.03.2024, a alteração de rendimento indisponível para cessão para o valor correspondente um smn e ½ tendo em conta que a Insolvente necessita fazer face às suas despesas mensais e ainda, tratar a sua doença recentemente detetada.
Atento o exposto pela devedora, doença que veio agora demonstrar, e ponderando ainda a não oposição dos credores e Fiduciário, defere-se a requerida alteração do rendimento indisponível para cessação para o valor de 1,5 SMN, mas apenas com efeitos no 3.º ano de cessão em curso.
Com efeito, o rendimento indisponível no 1.º e 2.º ano de cessão deve manter-se no valor já fixado, não existindo fundamentos de facto e direito que justifiquem essa alteração, sendo certo que apenas a 26.03.2024 a devedora requereu esta alteração.” (sublinha nosso).
7. No relatório complementar referente ao 1.º ano de cessão, junto a 10.05.2024, fora apurado o valor de rendimento disponível a ceder no 1.º ano no montante de € 2.350,45.
8. A 23.05.2024, a devedora requer o pagamento em prestações mensais do rendimento disponível apurado até março de 2026, salientando novamente o seu problema de saúde, que a impede muitas vezes de comparecer ao trabalho.
9. Por despacho de 28.05.2024, fora a devedora autorizada a proceder ao pagamento do rendimento objeto de cessão em falta (€ 5.560,05) em doze prestações mensais (no valor de € 463,34 cada), a pagar até ao último dia de cada mês, começando a primeira prestação no mês de junho de 2024.
10. A 18.09.2024, a devedora juntou procuração aos autos, cessando o patrocínio do patrono oficioso nomeado, vindo a 02.10.2024 a formular o requerimento em análise.
11. Conforme já considerado no despacho de 15.04.2024, a insolvente padece de problemas de saúde, diagnosticada com artroses, tendinites e calcificações na coluna vertebral, que têm limitado a sua capacidade laboral.
12. A insolvente esteve de baixa médica quatro vezes no ano de 2023, e desde janeiro até maio de 2024 também esteve afastada do trabalho.
13. Em setembro de 2024, fora realizada intervenção cirúrgica à mão no Hospital 1..., tendo a devedora tido alta clínica.
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2. Factos não provados
O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:
- A insolvente enfrenta despesas fixas mensais de €1.064,00, relativas a habitação, alimentação, tratamentos médicos e despesas de subsistência essenciais. Estas despesas, combinadas com a redução significativa dos seus rendimentos devido à incapacidade temporária para o trabalho, tornam impossível proceder à cessão dos montantes exigidos sem comprometer a sua subsistência digna.
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3. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Alega a recorrente que «comprovou despesas mensais superiores a €1.064,00, incompatíveis com o rendimento indisponível inicialmente fixado (1 SMN x 14 meses). Ao desconsiderar essas provas sem qualquer análise criteriosa, o tribunal deixou de atender ao princípio da prevalência da realidade sobre a forma, previsto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC» (cfr. conclusão 3). Mais alega que «a manutenção do rendimento indisponível em 1 SMN x 14 meses, apesar das circunstâncias supervenientes, impõe à Recorrente um sacrifício excessivo, colocando-a em situação de comprometimento de sua subsistência, o que contraria o objetivo da norma» (cfr. conclusão 4).
Depreende-se desta alegação que a recorrente pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, mais concretamente sobre a factualidade julgada não provada.
Nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Todavia, é jurisprudência pacífica que a Relação não deve reapreciar a matéria de facto se a alteração pretendida não tiver qualquer relevância jurídica, isto é, se for inócua para a decisão da causa, se for insusceptível de fundamentar a sua alteração, sob pena de levar a cabo uma actividade processual inútil que, por isso, lhe está vedada pela lei (artigo 130.º do CPC).
Neste sentido, afirma-se o seguinte no ac. do TRC, de 16.02.2017 (proc. n.º 52/12.0TBMBR.C1): «Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente».
No mesmo sentido, afirma-se no ac. do TRG, de 11.11.2021 (proc. 671/20.1T8BGC.G1) que «[n]ão se deve proceder à reapreciação da matéria de facto quando a alteração nos termos pretendidos pelos Recorrentes, tendo em conta as específicas circunstâncias em causa, não tenha qualquer relevância jurídica, sob pena de, assim não sendo, se estarem a praticar atos inúteis, que a lei não permite».
Ainda no mesmo sentido se pronunciou o TRL, no seu ac. de 26.09.2019 (proc. n.º 144/15.4T8MTJ.L1-2).
Também o STJ sufraga esta jurisprudência, afirmando o seguinte no seu ac. de 14.07.2021 (proc. 65/18.9T8EPS.G1.S1): «Se o facto que se pretende impugnar for irrelevante para a decisão, segundo as várias soluções plausíveis, não há qualquer utilidade naquela impugnação da matéria de facto, pois o resultado a que se chegar (provado ou não provado) é sempre o mesmo: absolutamente inócuo. O mesmo é dizer que só se justifica que a Relação faça uso dos poderes de controlo da matéria de facto da 1ª instância quando essa actividade da Relação recaia sobre factos que tenham interesse para a decisão da causa, ut artº 130º do CPC. Quando assim não ocorre, a Relação deve abster-se de apreciar tal impugnação».
É, precisamente, o que ocorre no caso vertente pois, como melhor decorrerá da exposição subsequente, ainda que se julgasse totalmente procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e, por conseguinte, se julgassem provados os factos que a primeira instância julgou não provados, sempre se concluiria pela improcedência da apelação.
Pelo exposto, o Tribunal abstém-se de apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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D. O Direito
1. O instituto da exoneração do passivo restante – inspirado na discharge britânica e norte-americana, mas que chega a nós por influência do direito alemão e que tem paralelo em quase todas as leis de insolvência europeias – foi introduzido no nosso ordenamento jurídico pelo CIRE, que entrou em vigor em 2004.
Como ensina Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra, 2021, p. 610), à semelhança do alemão, «o regime português consiste, em traços gerais, na afectação, durante certo período após a conclusão do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos créditos remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção daqueles que não tenha sido possível cumprir, por essa via, durante esse período».
A lei portuguesa não seguiu, portanto, um modelo puro de fresh start, em que a liquidação do património e o pagamento das dívidas têm lugar no processo de insolvência, findo o qual o devedor é libertado das dívidas que não tiverem sido satisfeitas.
O regime legal português aproxima-se mais do modelo do earned start, em que o devedor, findo o processo de insolvência, passa ainda por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afectada ao pagamento das dívidas remanescentes, só então podendo beneficiar de um fresh start, se ficar demonstrado que o merece. Na súmula de Pedro Pidwell (Insolvência das Pessoas Singulares. O “Fresh Start” – será mesmo começar de novo? O Fiduciário. Algumas Notas, in Revista de Direito da Insolvência, n.º 0, 2016, p. 197), a exoneração do passivo restante «vigente no nosso ordenamento jurídico tem como finalidade precípua facilitar a recuperação/integração socioeconómica do insolvente de boa fé (“honest but unfortunate debtor”), através de um procedimento que, em primeiro lugar, passa pela liquidação do seu acervo patrimonial (art. 156.º e ss), e em segundo lugar pressupõe a cessão ao fiduciário (art. 240.º) da parte considerada disponível do seu rendimento (art. 239.º) e, a final, se o insolvente tiver cumprido com as obrigações de conduta a que está adstrito [art. 239.º, n.º 4, alíneas a) a e)], é-lhe perdoado o remanescente da dívida que ainda subsistir (art. 245.º, n.º 1)». Nas palavras de Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra 2022, p. 401), «[a] exoneração do passivo restante é aplicável exclusivamente aos devedores pessoas singulares (titulares de empresa ou não, titulares de uma grande ou de uma pequena empresa) que se tenham “portado bem”, desde que não tenha sido aprovado e homologado um plano de insolvência».
O aludido período de prova, que a nossa lei designa como período de cessão, tem início com a prolação do despacho inicial, isto é, o despacho em que, por não haver motivos para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o juiz declara que esta será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º do CIRE (cfr. artigo 237.º, al. b), do mesmo código).
2. De harmonia com o disposto neste artigo 239.º do CIRE, o despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a um fiduciário escolhido pelo tribunal.
Nos termos do disposto no n.º 3, deste artigo 239.º, o rendimento disponível para cessão engloba todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
A respeito da subalínea i), da al. b), do n.º 3, deste artigo 239.º, alguns autores defenderam que o legislador adoptou um critério objectivo na determinação do valor necessário para o sustento minimamente digno do devedor o do seu agregado familiar, fazendo-o coincidir com o triplo do salário mínimo nacional, sem prejuízo de este valor poder ser excedido por decisão fundamentada do juiz. Nesse sentido vide Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. II, Lisboa, 2005, p. 194, onde se pode ler o seguinte: «O legislador adopta um critério objectivo na determinação do que deve entender-se por sustento minimamente digno: 3 vezes o salário mínimo nacional. Merece, pois, aplauso esta solução, que tem ainda a vantagem de assegurar a actualização automática da exclusão».
Contudo, como refere Catarina Serra (cit., p. 620), a jurisprudência propende «para interpretar o critério do “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” como um limite mínimo e o valor correspondente a três vezes o salário mínimo nacional como um limite máximo – que pode ser excedido, mas só em casos excepcionais, por decisão (especialmente) fundamentada do juiz. Não obstante isto – ou por isto mesmo –, o apuramento do montante a excluir envolve sempre uma ponderação casuística por parte do juiz».
Cremos ser mais consentâneo com a letra e com o espírito da norma em apreço afirmar que a mesma se limita a estabelecer um tecto máximo, correspondente a três vezes o SMN, que apenas pode ser ultrapassado por decisão fundamentada do juiz, apelando a uma apreciação casuística do que seja o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, o qual não representa, assim, um limite mínimo abstracto, mas antes o valor razoável a fixar pelo tribunal para aquele caso concreto. De resto, cremos ser este o entendimento subjacente à jurisprudência maioritária que, como veremos melhor infra, acaba por fazer corresponder aquele limite mínimo abstracto ao valor do SMN, por considerar que abaixo deste valor nunca estará assegurado o sustento minimamente digno do devedor, ainda que, em concreto, o valor razoavelmente necessário para esse sustento minimamente digno possa ser superior.
Na determinação do valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor deve atender-se às condições pessoais e de vida do insolvente e do seu agregado, designadamente a sua idade, situação profissional, estado de saúde, rendimentos, composição do seu agregado familiar, encargos essenciais com o seu sustento, habitação, vestuário e despesas de saúde (cfr. ac. do TRL de 12.12.2013, relatado por Vítor Amaral, citado na breve recensão jurisprudencial efectuada por Maria do Rosário Epifânio, Manuel de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra, 2022, p. 409, nota 1303).
Mas, como se afirma no ac. do TRG, de 19.03.1013, relatado por António Santos, igualmente citado por Maria do Rosário Epifânio, tal «não significa que o devedor deva manter “o nível de vida que tinha anteriormente, antes pode/deve mesmo baixá-lo, ainda que tendo sempre como limite o quantum necessário para a salvaguarda de uma sua existência condigna”».
Esta salvaguarda de uma vida condigna assenta directamente no princípio da dignidade humana plasmado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), igualmente aludido no artigo 59.º, n.º 1, al. a), da mesma lei fundamental, cujo reconhecimento exige ao legislador o estabelecimento de normas que salvaguardem a todas as pessoas o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna. Neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda (cit., p. 194) escrevem que «[a]s exclusões previstas nas subalíneas i) e ii) [da al. b), do n.º 3, do artigo 239, do CIRE] decorrem da chamada função interna do património, enquanto suporte da vida económica do seu titular», que prevalece sobre a sua função externa, enquanto garantia geral dos credores.
Mas o sacrifício desta garantia dos credores deve cingir-se à justa medida do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, para o exercício condigno da sua actividade profissional e para outras despesas que se integrem nesse conceito.
A expressa alusão ao valor razoavelmente necessário para os apontados fins realça, assim, a imprescindibilidade da ponderação dos interesses e dos valores constitucionais em conflito no instituto da exoneração do passivo restante.
Como se afirma no ac. do STJ, de 23.03.2021 (proc. n.º 1155/14.2TBPRD.P2.S1, rel. Ricardo Costa), «a exoneração do passivo restante, na perspectiva do devedor, serve a realização de valores constitucionalmente consagrados, como a liberdade económica (ou, em rigor, a recuperação dessa liberdade) e o direito ao desenvolvimento da personalidade, desde que o devedor não tenha incorrido em condutas culposas e recorrentes relacionadas com a insolvência. Essa tutela, agora na perspectiva do credor, colide naturalmente (ou pode colidir), ao aspirar à liberação, objectiva e subjectiva, das dívidas restantes do devedor, com a tutela constitucional da titularidade dos direitos de crédito de natureza patrimonial, protegidos pela via do art. 62º, 1, da CRP (direito à propriedade privada). Ora, no perímetro da liberdade de conformação do legislador, deve considerar-se que essa conciliação entre valores e direitos constitucionalmente protegidos corresponde a uma ponderação equilibrada de interesses, que não deixa de ter em conta os interesses dos credores (…), ainda que os interesses do devedor insolvente não culposo prevaleçam, tendo em conta o peso do interesse na reintegração na vida económica (e social) e da protecção social do mais fraco (como princípio do Estado Social de Direito)».
A previsão legal da cessão do rendimento disponível a um fiduciário, assim como a própria definição desse rendimento a ceder, traduzem o resultado desta ponderação equilibrada dos interesses em conflito, levada a cabo pelo legislador ordinário no âmbito dos seus poderes de conformação legal. A este respeito vide Paulo Mota Pinto, Exoneração do Passivo Restante: Fundamento e Constitucionalidade, in III Congresso de Direito da Insolvência, Coord. Catarina Serra, Coimbra, 2015, pp. 175 a 195, que a dada altura afirma o seguinte: «No procedimento conducente à exoneração do passivo restante são também tidos em conta os interesses dos credores, designadamente com a cessão a um fiduciário do rendimento disponível do devedor nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (artigo 239.º, n.º 2, do CIRE), incluindo todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão apenas dos créditos futuros cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz, do que “seja razoavelmente necessário” para o “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”, para o exercício pelo devedor da sua actividade profissional, e para outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor» (p. 190).
Tal não significa, porém, que a exoneração esteja condicionada à satisfação, ainda que parcial, dos créditos, tendo em conta a já referida prevalência dos interesses do devedor não culposo. Mas significa que esta prevalência não é absoluta, impondo-se sacrifícios também ao devedor não culposo para que possa beneficiar da exoneração do passivo restante, nomeadamente uma diminuição do seu nível de vida. A exoneração do passivo restante não se traduz na desresponsabilização do devedor, antes implicando o seu empenho e sacrifício no sentido de comprimir ao máximo as suas despesas, como contrapartida do sacrifício imposto aos credores, tendo em vista o equilíbrio entre dois interesses contrapostos.
Por isso mesmo, a lei não impõe uma correspondência entre o valor a fixar e o montante global das despesas demonstradas pelo devedor insolvente, antes pressupondo um maior rigor no orçamento familiar e uma redução destas despesas ao mínimo indispensável (neste sentido vide Cláudia Oliveira Martins, O procedimento de exoneração do passivo restante, in Revista de Direito da Insolvência, n.º 0, Abril de 2016, p. 222, onde se citam aos acórdão do TRC de 31.01.2012 e do TRP de 16.09.2014). Dito de outro modo, a lei tem pressuposto que, no período de cessão, o devedor se esforçará por se adequar à especial situação em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos e o seu nível de vida à nova realidade que enfrenta, como é desde logo evidenciado pela modéstia do valor máximo de 3 SMN fixado na lei (cfr. ac. do TRP, de 07.10.2021, proc. n.º 1112/21.2T8VNG-A.P1, rel. Judite Pires).
Cláudia Oliveira Martins, no artigo anteriormente citado, afirma que «[d]e entre os vários critérios possíveis, assentou a jurisprudência base na fixação de um ordenado mínimo nacional (Ac. da R.P. de 15.09.2015), ponderando a composição do agregado familiar, nomeadamente o número de dependentes menores ou em idade escolar (acrescendo àquele montante, em média, ½ ordenado mínimo nacional por cada um dos dependentes), e apenas admitindo que integre o rendimento indisponível despesas de natureza excepcional, nomeadamente, relacionadas com problemas de saúde crónicas».
A mesma autora aplaude esta opção, por dispensar o tribunal de proceder à análise e à ponderação da necessidade de todas despesas do devedor, o que poderia mesmo configurar uma intromissão na vida privada deste. Mas não nega a possibilidade de alterações pontuais, devidas a despesas excepcionais, ou permanentes, devidas ao surgimento de novas despesas, como sucederá no caso de aumento do agregado familiar.
Afigura-se inegável o valor referencial do salário mínimo nacional, assim como do rendimento social de inserção, do subsídio de desemprego e de outras prestações sociais com finalidades similares, que o ac. deste TRP, de 15.05.2015, relatado por José Igreja Matos, igualmente citado por Maria do Rosário Epifânio, considera «noções consolidadas e que reflectem o nosso estado civilizacional relativamente a conceitos como os da dignidade do trabalho».
Também não podemos perder de vista o regime processual civil das impenhorabilidades – que fixa a impenhorabilidade dos «vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado» entre o mínimo de 1 e o máximo de 3 SMN (cfr. artigo 738.º, n.ºs 1 e 3, do CPC) –, cujo paralelismo com a realidade que subjaz à insolvência, enquanto execução universal, é absolutamente inegável e que, por isso mesmo, não pode deixar de ser aí respeitado.
O próprio Tribunal Constitucional já afirmou que «o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos” não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo» (cfr. ac. n.º 177/2002, de 23 de Abril).
De todo o modo, dentro destes limites, cremos que só em concreto se poderá discernir o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, pois é essa avaliação que, em rigor, a lei impõe ao julgador. Aquele valor deverá ser, assim, encontrado em face da situação concreta de cada devedor e respectivo agregado familiar, não obstante as dificuldades que essa ponderação possa encerrar, sem perder de vista que, de harmonia com o disposto no artigo 8.º, n.º 3, do CC, deverão ter-se em devida conta os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, no respeito do principio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP.
Neste sentido se pronunciaram, a título de mero exemplo, os acórdãos: do TRP, de 07.10.2021, já antes citado, do TRG, de 02.03.2023 (proc. n.º 2148/22.1T8GMR.G1, rel. José Carlos Pereira Duarte), do TRC, de 12.03.2013 (proc. n.º 1254/12.5TBLRA-F.C1, rel. Sílvia Pires) e do TRL, de 21.03.2023 (proc. n.º 4479/22.1T8FNC-C.L1-1, rel. Fátima Reis Silva), afirmando-se neste último que «[o] limite mínimo, que não foi objetivado no preceito [do artigo 239.º do CIRE], deve situar-se no montante equivalente a um salário mínimo nacional, valor de referência em sede de penhora, nos termos do art. 738.º, nº3 do CPC, por similitude de razões, sem que isso signifique ser esse valor o critério base de aferição do que seja a quantia razoavelmente necessária para o sustento minimamente digno do devedor».
Tendo em conta tudo quanto ficou exposto, cremos poder afirmar, em síntese conclusiva, que o artigo 239.º, n.º 3, al. b), subalínea i), do CIRE determina que se exclua do rendimento disponível a ceder ao fiduciário o valor que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, o qual terá sempre como limite mínimo o valor correspondente a um SMN e como limite máximo o valor correspondente a 3 vezes o SMN (sem prejuízo deste poder ser excedido, por decisão fundamentada do juiz), devendo aquele valor concreto ser fixado neste intervalo tendo em conta a singularidade da concreta situação do devedor e do seu agregado familiar, sem perder de vista o equilíbrio dos interesses, constitucionalmente garantidos, em conflito.
Nesta operação, é frequente o recurso a uma escala para determinar a capitação dos rendimentos do agregado familiar, nomeadamente a conhecida escala da OCDE ou escala de Oxford, de acordo com a qual se atribui o índice 100 ao 1.º adulto, o índice 0,7 ao 2.º adulto e o índice 0,5 por cada criança, correspondendo o índice 100 ao SMN.
3. A fixação, no despacho inicial, do valor a excluir do rendimento disponível para cessão não é imodificável. Como se refere no ac. do TRC, de 03.06.2014 (proc. n.º 747/11.6TBTNV-J.C1, rel. Henrique Antunes), «mesmo depois do seu proferimento – e mesmo depois do seu trânsito em julgado – o juiz pode excluir desse rendimento, a requerimento do insolvente, do que seja razoavelmente necessário para quaisquer despesas do devedor», ao abrigo do disposto no artigo 239.º, n.º 3, al. b), subalínea iii), do CIRE.
No mesmo sentido, Cláudia Oliveira Martins (cit., p. 223) afirma que o rendimento indisponível «é susceptível de ser alterado, de forma pontual (por exemplo, pela necessidade de pagamento de despesas relacionadas com o cumprimento de obrigações tributárias do devedor, etc.) ou, mesmo, de forma permanente (nomeadamente pelo aumento do agregado familiar)».
Mas isto não significa que a decisão que fixa o rendimento disponível seja livremente alterável.
Nos temos do artigo 628.º do CPC, a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação. Como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, p. 751), «[q]uando a decisão é susceptível de recurso ordinário, tal efeito consuma-se no momento em que se encontram esgotadas as possibilidades de interposição de recurso. Nas demais situações, ocorre no fim do prazo (que é o geral, de 10 dias – art. 149.º) para a eventual arguição de nulidades ou da reforma da sentença, nos termos dos artigos 615.º, n.º 4, e 616.º, n.º 3» do CPC.
Os efeitos do caso julgado estão regulados nos artigos 619.º e seguintes do CPC, preceituando assim a primeira dessas disposições legais:
«1 – Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º.
2 – Mas se o réu tiver sido condenado a prestar alimentos ou a satisfazer outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou à sua duração, pode a sentença ser alterada desde que se modifiquem as circunstâncias que determinaram a condenação».
A norma do artigo 239.º, n.º 3, al. b), subalínea iii), na parte em que permite ao juiz alterar o valor a excluir do rendimento disponível em momento posterior ao trânsito em julgado do despacho inicial, constitui uma manifestação da regra consagrada naquele artigo 619.º, n.º 2, do CPC, relativa às denominadas decisões instáveis, de que também são exemplo as resoluções proferidas no âmbito de processos de jurisdição voluntária (as quais «podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração», conforme dispõe o artigo 988.º, n.º 1, do CPC). Como escreve Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra, 1984, pp. 167-168), «[h]á decisões que pela sua própria índole são instáveis; assentam sobre determinado condicionalismo susceptível de oscilação; produzida a modificação desse condicionalismo, a sentença pode, lògicamente, ser alterada, embora tenha transitado em julgado».
Nestes termos, o trânsito em julgado da decisão que determina o valor a excluir do rendimento disponível para cessão à fidúcia fica sujeito à cláusula rebus sic standibus, isto é, «o caso julgado que sobre ela incide é temporalmente limitado, apenas garantindo a incontestabilidade e a imodificabilidade do nela decido na estrita medida em que os pressupostos da decisão proferida não sofra alterações/modificações que demandem a alteração do decidido» (ac. do TRG, de 22.06.2023, proc. n.º 1824/20.8T8GMR.G1, rel. José Alberto Martins Moreira Dias).
Como se escreve no ac. do TRP, de 21.02.2022 (proc. n.º 2083/15.0T8VNG-G.P1, rel. Manuel Domingos Fernandes), «do que se trata não é de o condenado poder a qualquer altura forçar a reapreciação da situação e a prolação de uma nova decisão, mas de, havendo uma nova realidade, lhe ser permitido confrontar o tribunal com novas circunstâncias de facto com influência sobre o conteúdo da prestação fixada e requerer que o tribunal reaprecie a decisão em função dessa alteração dos fundamentos que presidiram à anterior decisão».
O que dissemos aplica-se, naturalmente, à decisão que aprecia o pedido de revisão do valor do rendimento indisponível ao abrigo do disposto no artigo 239.º, n.º 3, al. b), subalínea iii), do CIRE, deferindo ou indeferindo esse pedido. Também esta decisão transita em julgado a partir do momento em que se torna insusceptível de recurso ordinário ou reclamação. Mas o trânsito em julgado desta nova decisão fica igualmente sujeito à cláusula rebus sic standibus, sendo esta alterável sempre que ocorram circunstâncias supervenientes que o imponham, nomeadamente se surgirem novas despesas ou se as despesas que foram ali consideradas sofrerem alterações que imponham nova revisão do rendimento indisponível.
No caso concreto, por despacho de 07.03.2022, o tribunal começou por fixar o valor a excluir do rendimento disponível para cessão em 1 SMN x 14 meses (cfr. ponto 2 dos factos provados).
Por requerimento de 26.03.2024 a devedora pediu a alteração do rendimento indisponível para, no mínimo, 1,5 SMN, alegando as despesas com o custo mensal de ocupação da habitação onde reside, electricidade, água, alimentação e deslocações para o trabalho, bem como as despesas de saúde, esclarecendo que está a ser seguida em reumatologia no Hospital ..., tendo de ser operada à mão direita devido à rizartrose, e que lhe foi detetada anemia, a ser tratada antes da operação (cfr. ponto 4 dos factos provados).
Por despacho de 15.04.2024, atento o exposto pela devedora e a demonstração da doença invocada por esta, foi deferida a alteração do rendimento indisponível para cessão para o valor de 1,5 SMN, mas apenas com efeitos no 3.º ano de cessão em curso (cfr. ponto 6 dos factos provados).
A devedora não impugnou este despacho.
Em 23.05.2024, requereu o pagamento do valor de 2.350,45 € que havia de ter cedido em prestações mensais iguais e sucessivas até ao final do período de cessão, previsto para Março de 2026, salientando novamente o seu problema de saúde, que a impede muitas vezes de comparecer ao trabalho (cfr. ponto 8 dos factos provados e o teor do requerimento de 23.05. 2024 aí citado).
Por despacho de 28.05.2024, depois de assinalar que, para além do valor de 2.350,45 € a ceder no primeiro ano do período de cessão (decorrido entre Março de 2022 e Fevereiro de 2023), a devedora tem a ceder a quantia de 3.209,60 € relativa ao segundo ano desse período (decorrido entre Março de 2023 e Fevereiro de 2024), em consonância com o relatório referido no ponto 3 dos factos provados, num total de 5.560,05 €, o Tribunal a quo autorizou a devedora a pagar esta quantia em doze prestações mensais, no valor de 463,34 € cada, com início em Junho de 2024 (cfr. ponto 9 dos factos provados).
A devedora também não impugnou este despacho.
Do exposto decorre que a decisão proferida pelo Tribunal a quo em 15.04.2024 – que deferiu o pedido de alteração do valor a excluir do rendimento disponível para 1,5 SMN, com fundamento nas despesas alegadas pela devedora como necessárias para o seu sustento e para tratamento dos problemas de saúde de que passou a padecer, mas apenas relativamente ao 3.º ano do período de cessão, recusando expressamente qualquer alteração relativamente aos dois primeiros aos anos, assim mantendo o valor a excluir do rendimento disponível para cessão nesses dois anos em 1 SMN x 14 meses – transitou em julgado (o mesmo tendo sucedido como a decisão proferida pelo mesmo Tribunal em 28.05.2024, que autorizou a devedora a pagar o valor a ceder naqueles dois anos em 12 prestações mensais).
Na verdade, aquela decisão era recorrível (cfr. artigo 629.º, n.º 1, do CPC) e admitia apelação autónoma (cfr. artigo 644.º, n.º 1, al. g), do CPC), pelo que o prazo para interpor recurso da mesma era de 15 dias (dada a natureza urgente do processo) contados desde a sua notificação, nos termos previstos no artigo 638.º do CPC, o qual se esgotou muito antes da interposição do presente recurso de apelação e da própria prolação do despacho aqui impugnado.
Nestes termos, o pedido de alteração do valor a excluir do rendimento disponível para cessão com fundamento no surgimento de novas despesas durante os dois primeiros anos do período de cessão, designadamente com a saúde da devedora, já foi definitivamente julgado, não podendo essa decisão ser alterada pelo tribunal que a proferiu ou por um tribunal de recurso, ainda que por via do recurso da decisão que indeferiu o pedido de alteração da decisão transitada.
É certo que o artigo 239.º, n.º 3, al. b), subalínea iii), do CIRE, permite a alteração do valor do rendimento indisponível fixado por decisão transitada em julgado, com fundamento em circunstâncias supervenientes, nos termos já antes expostos. Contudo, os factos que sustentam este novo pedido de revisão do rendimento indisponível não configuram circunstâncias supervenientes, para os efeitos daquela norma.
Em primeiro lugar, como está implícito na exposição antecedente, este segundo pedido de revisão fundamenta-se no surgimento de novas despesas durante os dois primeiros anos do período de cessão, designadamente com a saúde da devedora, já apreciadas na decisão transitada em julgado e que a ora recorrente se limitou a reiterar e concretizar melhor. A própria circunstância, ínsita na alegação em apreço, de que aquele quadro factual persistiu para além dos dois primeiros anos do período de cessão, já foi apreciada na decisão de 15.04.2024, tendo justificado a alteração do valor do rendimento a excluir do rendimento disponível para cessão no 3.º ano, mas já não nos dois primeiros anos do período de cessão. Mesmo quando quantifica as suas despesas fixas mensais com habitação, alimentação, tratamentos médicos e despesas de subsistência essenciais em 1.064,00 €, a recorrente não alega de forma explícita que se trata de um facto novo, parecendo antes querer complementar o que alegou no seu requerimento de 26.03.2024, onde quantificou os gastos com habitação, electricidade, água e medicação, mas não adoptou igual procedimento relativamente às despesas com alimentação e transportes.
Em segundo lugar, admitindo que a recorrente também fundamentou o seu novo pedido de revisão noutros factos que não havia alegado anteriormente e que, por isso, não foram apreciados na decisão transitada em julgado, designadamente nos períodos de baixa médica e a inerente diminuição dos seus rendimentos laborais, apenas referidos expressamente no pedido de pagamento em prestações que deduziu em 23.05.2024, estes “factos novos” continuam a não configurar circunstâncias supervenientes, pois já eram do conhecimento da recorrente – que naturalmente não os podia ignorar – quando deduziu o primeiro pedido de revisão.
Como se afirma no ac. do TRG de 22.06.2023, já antes ciado, «[e]ssas circunstâncias supervenientes não são naturalmente circunstâncias que já existiam quando o devedor solicitou que lhe fosse concedido o benefício de exoneração do passivo restante, mas que o mesmo não cuidou em alegar, ou que tendo alegado, não provou e, que, por isso, não foram consideradas na decisão antes proferida que lhe fixou o rendimento indisponível. As circunstância supervenientes que fundamentam a alteração da decisão antes proferida e transitada em julgado, que fixou o rendimento indisponível ao devedor, terão de ser necessariamente factos ocorridos historicamente após a prolação dessa anterior decisão e que, por isso, nela não podiam ser considerados, como é o caso de uma alteração da composição do agregado familiar do devedor (…), da alteração das necessidades do agregado familiar (…), o surgimento de novas necessidades do devedor ou do seu agregado familiar (…) ou de necessidade já consideradas na anterior decisão mas cuja satisfação demandem agora um custo acrescido ao antes considerado». No mesmo sentido, escreve-se o seguinte no ac. do TRP, de 09.04.2024 (proc. n.º 2632/23.0T8STS.P2, rel. Alberto Taveira): «É pacífico que é ónus do insolvente alegar no requerimento inicial a factualidade atinente a todo o circunstancialismo, que diga respeito aos requisitos da fixação do rendimento disponível, factualidade à data da apresentação da pretensão. Não tendo a insolvente alegado a factualidade que à data existia no momento próprio, precludiu o direito de a alegar posteriormente». Ainda no mesmo sentido, vide o ac. do TRG, de 07.12.2023 (proc. n.º 5365/19.8T8VNF.G1, rel. Alexandra Viana Lopes).
Por igualdade – senão mesmo por maioria – de razão, o mesmo ocorre relativamente à factualidade existente e conhecida do devedor no momento em que deduz o pedido de revisão do valor do rendimento indisponível já fixado. Não sendo aí alegada, não poderá fundamentar um posterior pedido de revisão do valor do rendimento indisponível.
Em terceiro lugar, admitindo que a recorrente também alegou factos novos posteriores ao termo dos dois primeiros anos do período de cessão e ao seu requerimento de 26.03.2024, designadamente o prolongamento do último período de baixa até Maio de 2024, estas circunstâncias nunca poderiam justificar a alteração retroactiva do valor a excluir do rendimento disponível para cessão, ou seja, nunca poderiam sustentar o pedido de redução ou de dispensa do valor fixado para os dois primeiros anos do período de cessão, já decorridos aquando da formulação do pedido agora em apreço.
A jurisprudência vem afirmando que, em princípio, a alteração do rendimento indisponível produz efeitos jurídicos a partir da data da decisão que determina essa alteração por considerar preenchidos os respectivos pressupostos de facto e de direito. Neste sentido vide o ac. do TRP, de 21.02.2022, o ac. do TRG, de 22.06.2022, já antes citados, e o ac. do TRL, de 11.02.2025 (proc. n.º 11172/19.0T8SNT-A.L1-1, rel. Susana Santos Silva).
Como se escreve nestes acórdãos, sob pena de se violar o trânsito em julgado que cobre a decisão que fixou (ou que alterou) o rendimento indisponível (e independentemente do nela decidido garantir ou não um sustento minimamente digno ao devedor, o que não mais pode ser questionado e sindicado), a (nova) «alteração do rendimento indisponível apenas pode operar efeitos jurídicos, em princípio, a partir do momento em que o tribunal profere decisão determinando essa alteração, ou seja, o momento da prolação da decisão em que conclui encontrarem-se preenchidos os pressupostos fácticos e jurídicos que permitem a alteração do rendimento indisponível e em que, consequentemente, se altera a anterior decisão transitada em julgado.
Mas, segundo o ac. do TRP antes citado, «se por causas as imputáveis ao Tribunal, essa decisão for muito dilatada no tempo, há que atender, em prudente arbítrio, à data em que a decisão poderia/deveria ter sido prolatada, considerando os prazos legalmente prescritos».
O ac. do TRG vai mais longe, afirmando que o princípio geral antes enunciado «carece de ser conjugado com o facto do rendimento indisponível, em sede de incidente de exoneração, corresponder à quantia necessária para garantir o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, pelo que sempre que seja requerida a alteração do rendimento indisponível antes fixado, por decisão transitada em julgado, com os fundamentos fácticos e jurídicos explanados no requerimento para tanto apresentado e se venha a constatar judicialmente que esses fundamentos se mostram procedentes, alterando-se o rendimento indisponível antes fixado, à medida necessária a garantir ao devedor e ao seu agregado familiar um sustento minimamente digno, essa decisão que altera o rendimento indisponível tem de produzir efeitos jurídicos desde a data em que foi apresentado o requerimento de alteração, sob pena de se violar o princípio da dignidade da pessoa humana tutelados pelos arts. 1º, 13º, n.º 1 e 63º, n.ºs 1 e 3 da CRP, 25º da Declaração dos Direitos do Homem e 239º, n.º 3, al. b), i), do CIRE».
O que nenhuma jurisprudência defende é que estes efeitos possam retroagir a um momento anterior ao próprio pedido de revisão, nomeadamente ao início do período de cessão, erigindo-se em causa de extinção total ou parcial da obrigação de cessão do rendimento disponível apurado.
Pelas razões expostas, improcedem totalmente as pretensões formuladas pela devedora no seu requerimento de 02.10.2024 e reformuladas na alegação deste recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Na total improcedência da apelação, as respectivas custas serão suportadas pela recorrente, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente (art. 527.º do CPC), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Registe e notifique.
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Porto, 11 de Março de 2025
Artur Dionísio Oliveira
Maria da Luz Seabra
Márcia Portela