Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE IN ITINERE
Sumário
1-O artigo 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (LAT) estende o conceito de acidente de trabalho aos acidentes que se verifiquem no trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, que sejam normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador, mesmo que se verifiquem interrupções e desvios, desde que resultantes da satisfação de necessidades atendíveis, de caso fortuito ou de força maior consagrando, assim, como acidente de trabalho os denominados acidentes in itinere. 2-A circunstância de a trabalhadora ter saído de casa 2h10m antes de iniciar o trabalho quando normalmente demorava 1h30m, a fim de ir levantar o cartão de cidadão de uma utente da empregadora, não integra, sem mais, a previsão do artigo 9.º n.º 1 als. b) e h) e n.º 3 da LAT.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:
Relatório AA, … residente em … Lisboa, veio, ao abrigo do disposto no artigo 117.º n.º 1 al. a) do CPT, propor contra GENERALI – COMPANHIA DE SEGUROS S.A., … com sede em … Lisboa e SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA, … com sede em … Lisboa, acção especial emergente de acidente de trabalho na qual pede que esta seja julgada procedente, caracterizando-se o acidente de que foi vítima como acidente de trabalho e que, em consequência, seja condenada a 1.ª Ré a pagar à Autora as seguintes quantias:
i) € 213,93 de reembolso de despesas médicas e medicamentosas suportadas desde 18 de Novembro de 2019;
ii) € 5775,67 de indemnização pela incapacidade temporária absoluta para o trabalho desde 27 de Novembro de 2019 até à data da propositura da acção;
iii) € 2000,00 a título de indemnização por danos morais.
- A suportar a assistência médica futura da Autora até levantamento da incapacidade;
-A pagar à Autora todas as prestações previstas nos artigos 23.º e 48.º n.º 3 al.d) da LAT que se vençam após a propositura da presente acção;
- A pagar à Autora os juros de mora legais, desde a data de vencimento das prestações, à taxa legal de 4%, contabilizados até efectivo e integral pagamento.
Caso assim não se entenda, seja a 2.ª Ré condenada nas identificadas prestações.
Invocou para tanto, em síntese, o seguinte:
-A Autora é trabalhadora da 2.ª Ré desde 05.01.2005 exercendo as funções de Ajudante de Lar e Centro de Dia e executando as tarefas vulgarmente denominadas por “recolhimento”, i.é, apoio domiciliário aos beneficiários da 2.ª Ré;
-No dia 03/05/2019, a Autora iniciaria as suas funções pelas 13h, horário no qual se deveria apresentar na morada da 2.ª Ré sita no Largo Convento da Encarnação 1150-113 Lisboa;
-Não obstante e como é prática na 2.ª Ré, os funcionários adstritos ao serviço de recolhimento executam funções que “extravasam” o apoio domiciliário disponibilizando aos beneficiários outro tipo de suporte, nomeadamente, o levantamento de documentos a favor de pessoas de idade avançada e/ou com mobilidade reduzida;
-Nesse dia, a Autora saiu de casa pelas 10h50 para ir exercer as suas funções profissionais, deslocando-se a pé, pelo passeio, no seu trajecto em direcção ao seu local de trabalho, como habitualmente faz;
-Cerca de vinte metros a contar do número da porta da sua casa existe uma boca de água, onde habitualmente os proprietários das habitações e os turistas depositam o lixo que é recolhido durante a noite, o que faz com que o espaço do passeio e, consequentemente, a passagem dos peões sejam reduzidos;
-Ao desviar-se do lixo depositado no passeio, a Autora tropeçou numa cadeira que ali se encontrava e caiu;
-Aquando da queda, pelas 10h50, a Autora dirigia-se ao Departamento de Identificação Civil-Boa Hora, sito no Chiado, a fim de levantar um Cartão de Cidadão de uma das utentes residentes no Convento, conhecida pela Autora por “Dona BB” a qual faleceu entretanto;
-Razão pela qual, a Autora saiu de casa em direção ao Chiado, 2h15 minutos antes da hora de entrada ao serviço formalmente determinada (13h) e deslocando-se a pé em direção àquele local, aliás, como é seu hábito.
-Deslocações nas quais – de casa para o Convento da Encarnação e daqui para casa – demora cerca de 1h30m;
-Sendo que, naquele dia, ciente de que demoraria cerca de 1h30 de sua casa ao Departamento de Identificação Civil-Boa Hora, sito no Chiado e que demoraria outros 12 m do Departamento Civil até ao Convento da Encarnação, bem como outros tantos minutos ou mais para levantar efectivamente o cartão de cidadão da utente, a Autora saiu de casa 2h15m antes da entrada ao serviço formalmente determinada;
-A Autora deu entrada nos Serviços de Urgência Polivalente do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa às 11h20 desse mesmo dia, tendo sido submetida a vários exames e tendo-lhe sido diagnosticadas varias lesões que lhe determinaram incapacidade para o trabalho que ainda se mantém;
-A 13/11/2019 a Ré seguradora cessou a assistência médica por considerar que o sinistro havia ocorrido durante uma deslocação do foro privativo, pelo que, desde então, é a Autora seguida pela sua médica de família, suportando a suas expensas todas as despesas;
-A 1.ª Ré pagou à Autora o montante de € 3882,98; e
-A Autora vive, por conta das suas debilidades físicas, numa situação de profunda tristeza e angústia devido ao sucedido; e
- As funções que então iria desempenhar integram o conceito de trabalho suplementar e mesmo que assim não se entenda, o acidente sofrido cabe na previsão do artigo 9.º al. b) da LAT já que a recolha do cartão de cidadão de um beneficiário da Santa Casa da Misericórdia, pela Autora, sempre se considera um serviço espontaneamente prestado com proveito económico da 2.ª Ré.
Citadas, as Rés contestaram invocando, em resumo:
A Ré Santa Casa da Misericórdia de Lisboa:
-Transferiu a responsabilidade decorrente de qualquer acidente de trabalho para a Generali – Companhia de Seguros, S.A., sendo parte ilegítima na presente acção, pelo que deve ser absolvida da instância.
A Ré Generali Seguros, S.A.:
-Por excepção, invocou a inexistência de acidente de trabalho posto que no dia 05 de Maio a Autora saiu de casa com o intuito de se deslocar aos registos civis da Baixa-Chiado, a fim de recolher o seu cartão de cidadão, sendo que quando a Autora falou com o perito averiguador, no dia 09.10.2019, nunca mencionou que no dia do alegado sinistro, ia levantar o cartão de cidadão de uma Utente do Convento da Encarnação, seu local de trabalho, nem a empregadora confirmou que estaria em execução de tarefas por si determinadas;
-Da nota de alta do Hospital não consta a menção de acidente de trabalho e dos certificados de incapacidade temporária consta como causa da baixa “doença natural”;
-Entre a hora em que ocorreu o acidente e a hora de início da jornada de trabalho da Autora medeiam 2h10m e mesmo admitindo que a Autora faz o percurso entre a sua casa e o seu local de trabalho a pé, os registos civis da Baixa-Chiado não ficam em caminho para o seu local de trabalho, sendo certo que a Autora não alega factos que fundamentem o conceito de desvio atendível, previsto no art. 9.º, nº 3 da LAT, nem se trata de trabalho suplementar e os cartões de cidadão de outras pessoas que não o seu próprio titular, só podem ser levantados por terceiros em certas situações legalmente previstas, que não foram alegadas pela Autora.
Concluiu que a queda sofrida pela Autora não se enquadra no conceito de acidente in itinere previsto no artigo 9º da LAT uma vez que o acidente não se deu no trajecto utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto entre o local de residência e o local de trabalho, não podendo o desvio previsto considerar-se atendível, nem o acidente se verificou no local de trabalho, nem no tempo de trabalho;
Por impugnação invocou que não pode a Ré ser responsabilizada por uma patologia preexistente, não sendo devidas todas as despesas médicas e medicamentosas decorrentes da patologia psiquiátrica de que a Autora já padecia, como não são devidas as despesas médicas posteriores à data da alta que vier a ser considerada em sede de junta médica a requerer, que o contrato de seguro dos autos não cobre danos de natureza não patrimonial nem estão preenchidos os pressupostos de eventual responsabilidade civil extracontratual da Ré.
Finalizou pedindo a sua absolvição do pedido.
Foi proferido despacho saneador que absolveu da instância a Ré Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, fixou os factos assentes e os factos sujeitos a prova, bem como determinou o desdobramento do processo para fixação da incapacidade.
Procedeu-se a julgamento.
Após, foi proferida a sentença que finalizou com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto e nos termos das disposições legais citadas, julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência: a) - Condeno a ré, “GENERALI SEGUROS, S.A.”, a pagar à autora o capital de remição da pensão anual de € 324,07, devida desde 04/05/2020, acrescido de juros de mora, à taxa legal, sobre o montante do dito capital, desde aquela data e até efectivo pagamento; b) - Condeno a ré, “GENERALI SEGUROS, S.A.”, a pagar à autora a quantia de € 522,98, a título de diferenças de indemnização por incapacidades temporárias, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do respectivo vencimento e até efectivo pagamento; c) – Absolvo a ré, “GENERALI SEGUROS, S.A.”, do pedido de pagamento à autora da quantia de € 213,93, a título de despesas médicas e medicamentosas; d) - Absolvo a ré, “GENERALI SEGUROS, S.A.”, do pedido de pagamento à autora da quantia de € 2.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais. Custas e despesas pela ré. Valor da acção: € 4.417,01 - art. 120º do CPT. Registe e notifique.”
Inconformada, a Ré recorreu e em 01.03.2023 foi proferido Acórdão que anulou a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância e ordenou a repetição do julgamento para ampliação da decisão que recaiu sobre a matéria de facto, com vista a apurar se a Ré Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tinha conhecimento da realização das tarefas acima mencionadas por parte dos seus funcionários e, em especial, por parte da Autora, inclusive daquela que a Autora iria realizar no dia em que ocorreu o evento.
Tendo os autos baixado ao Tribunal de 1.ª instância, foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre a ampliação da matéria de facto, a que respondeu a Ré seguradora, bem como requereu diligências de prova.
Foi proferido despacho que aditou os três seguintes quesitos: “25º Em 03/05/2019, as funções, referidas em O) dos factos provados da sentença, executadas pelos funcionários, incluindo a autora, da entidade patronal, referida em A), eram do conhecimento desta? 26º E por ela consentidos? 27º Inclusive daquela que a autora iria realizar no dia em que ocorreu o evento, referida em P) dos factos provados da sentença?
Realizou-se a audiência de julgamento e, após, foi proferida nova sentença que respondeu “não provados” aos quesitos aditados e finalizou com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto e nos termos das disposições legais citadas, julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência: a) - Condeno a ré, “GENERALI SEGUROS, S.A.”, a pagar à autora o capital de remição da pensão anual de € 324,07, devida desde 04/05/2020, acrescido de juros de mora, à taxa legal, sobre o montante do dito capital, desde aquela data e até efectivo pagamento; b) - Condeno a ré, “GENERALI SEGUROS, S.A.”, a pagar à autora a quantia de € 522,98, a título de diferenças de indemnização por incapacidades temporárias, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do respectivo vencimento e até efectivo pagamento; c) – Absolvo a ré, “GENERALI SEGUROS, S.A.”, do pedido de pagamento à autora da quantia de € 213,93, a título de despesas médicas e medicamentosas; d) - Absolvo a ré, “GENERALI SEGUROS, S.A.”, do pedido de pagamento à autora da quantia de € 2.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais. Custas e despesas pela ré. Valor da acção: € 4.417,01 - art. 120º do CPT. Registe e notifique. D.N.”
Inconformada com a sentença, a Ré recorreu e formulou as seguintes conclusões:
“1 – A sentença recorrida é violadora dos artigos 8º, nº 1 e 2, als. a) e b) e 9º da LAT, 349º do C. Civil e 607º, nº 4 do Código de Processo Civil;
2 – Conforme consta dos autos, o presente processo já teve Sentença anteriormente proferida, em 06.09.2022, que condenou a ora Recorrente nos exactos termos da Sentença recorrida;
3 - Dessa sentença, foi interposto recurso, tendo o Tribunal ad quem decidido, por Acórdão de 01.03.2023, “Anular a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância e ordenar a repetição do julgamento para ampliação da decisão que recaiu sobre a matéria de facto, com vista a apurar se a Ré, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, tinha conhecimento da realização das tarefas acima mencionadas por parte dos seus funcionários e, em especial, por parte da Autora, inclusive daquela que a Autora iria realizar no dia em que ocorreu o evento.”;
4 - Considerou, o douto Acórdão assim proferido que era essencial à decisão da causa apurar se a realização das tarefas elencadas sob a al. O) dos factos assentes e concretamente, a tarefa discriminada na al. P), eram do conhecimento da empregadora, porquanto o acidente poderia ser enquadrado no disposto na al. h) do artigo 9º da LAT;
5 - Devolvido o processo à 1ª instância em conformidade com o determinado, por despacho de 22.05.2023, foram aditados três quesitos com o seguinte teor:
- Em 03/05/2019, as funções, referidas em O) dos factos provados da sentença, executadas pelos funcionários, incluindo a autora, da entidade patronal, referida em A), eram do conhecimento desta?
- E por ela consentidos?
- Inclusive daquela que a autora iria realizar no dia em que ocorreu o evento, referida em P) dos factos provados da sentença?
6 - Realizado o julgamento e produzida prova documental e testemunhal, todos os referidos quesitos foram dados como NÃO PROVADOS, conforme consta da Sentença recorrida; 7 - Todavia, o Tribunal a quo, enquadrando novamente o acidente na alínea b) do nº 1 do art. 9º da LAT ou, eventualmente, na previsão do nº 3 do citado art. 9º da LAT, ignorou em absoluto os factos que o Tribunal ad quem reputou essenciais para a decisão da causa e, manteve a decisão anterior; 8 - Ora, salvo melhor entendimento, a ora Recorrente não pode aceitar este enquadramento, primeiro, porque se o Tribunal ad quem anulou a decisão mandando repetir o julgamento para apurar factos que poderiam enquadrar o acidente ocorrido na al. h), do nº 1 do artigo 9º da LAT considerando-os essenciais para a decisão da causa, foi porque revogou a Sentença recorrida, também no seu enquadramento jurídico, ou seja, considerou improcedente a configuração do acidente como de trabalho ao abrigo da al. b) do nº 1 do art. 9º da LAT e do nº 3 do citado art. 9º da LAT. Se assim não fosse, não se justificaria a anulação da sentença e manter-se-ia a decisão;
9 - E em segundo lugar porque, mesmo que assim não se entenda, o que se alega sem nunca conceder, não resultaram provados, nem tão pouco alegados, quaisquer factos que permitam concluir que, da situação poderia resultar proveito económico para o empregador ou que a mesma consubstancia motivo de força maior;
10 - Com efeito, a empregadora não tinha conhecimento das funções executadas pelos funcionários, referidas na al. O) dos factos assentes, não tinha conhecimento da concreta tarefa que a Autora iria realizar no dia do acidente e não consentiu na realização dessa mesma tarefa, nem na realização das funções elencadas na referida al. O);
11 - Não há um único facto, por instrumental que seja, que permita concluir que a empregadora poderia ter, directa ou indirectamente, qualquer benefício económico com a tarefa que a Autora iria executar;
12 - As presunções judiciais são situações em que, num quadro de conexão entre factos provados e não provados, à luz da experiência comum, da lógica corrente e por via da própria intuição humana, a existência dos primeiros, em termos de alta probabilidade, justifica a existência dos últimos;
13 - A circunstância de a sinistrada ter pretendido executar uma tarefa fora das suas funções e do tempo e local de trabalho, a pedido de uma utente do lar onde trabalhava, sem consentimento ou, sequer, conhecimento, da sua entidade empregadora, não permite retirar, sem mais, a ilação de que poderia para esta resultar proveito económico;
14 - Nem sabemos, sequer, se a sinistrada não teria, ela sim, algum proveito económico com a tarefa que se propôs executar. Poderemos admitir em abstracto, que seria economicamente recompensada pela utente que lhe solicitou a tarefa, à margem do marco de actuação da empregadora;
15 - Uma ilação é tão (in)verosímil como a outra, à luz da factualidade dada como provada, ou seja, do que se provou, jamais se pode retirar a ilação adoptada pela Sentença recorrida, pois não há um encadeamento lógico que, com base nos factos provados, se possa concluir como fez o Tribunal a quo, de acordo com um juízo de “alta probabilidade”;
16 - Termos em que não poderá o acidente dos autos ser enquadrado como acidente de trabalho, ao abrigo da al. b) do artigo 9º da LAT;
17 - Por outro lado, também não foram provados ou sequer alegados factos que permitam concluir pela existência de um motivo de força maior;
18 - Não sabemos se a utente do lar para quem a sinistrada ia levantar o cartão de cidadão era sequer “idosa”, pelo que não sabemos se se tratava de “pessoa de idade avançada” como é referido na sentença recorrida para fundamentar este enquadramento. Na verdade, quanto a isto nada sabemos, nada foi alegado e nada se provou;
19 - Pelo que, por tudo o exposto, deve a Sentença recorrida ser revogada em conformidade, absolvendo-se a ora Recorrente do pedido, porquanto a Recorrida não fez prova de que o acidente que sofreu foi um acidente de trabalho.
Nestes termos, nos mais de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao recurso apresentado e ser a douta sentença revogada, assim se fazendo como sempre
JUSTIÇA”
Não consta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.
Foi proferido despacho que admitiu o recurso na espécie, modo de subida e efeito adequados.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.
Não foi apresentada resposta ao Parecer.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635.º n.º 4 e 639.º do CPC, ex vi do n.º 1 do artigo 87.º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608.º nº 2 do CPC).
No presente recurso cumpre apreciar se a sentença errou ao qualificar o acidente dos autos como acidente de trabalho ao abrigo da al. b) do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 9.º da LAT.
Fundamentação de facto
Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:
A) – No dia 03/05/2019, a autora prestava o seu trabalho de ajudante de lar ao serviço da entidade patronal “Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”, em execução de contrato de trabalho com esta celebrado – alínea A) dos factos assentes.
B) - Na data referida em A), a autora auferia a retribuição anual bruta de € 10.288,08 – alínea B) dos factos assentes.
C) - A entidade patronal, referida em A), tinha a responsabilidade civil, emergente de acidente de trabalho, relativamente à autora, transferida para a seguradora ré, “Generalli Seguros, S.A.”, por contrato de seguro titulado pela apólice nº …000, em função da retribuição referida em B) – alínea C) dos factos assentes.
D) - No exame médico realizado no INML, cujo relatório consta de fls. 96 a 98 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido, a Sr.ª Perita Médica atribuiu à autora uma IPP de 4,5% desde 03/05/2020 (data da alta) – alínea D) dos factos assentes.
E) - Mais lhe reconheceu os seguintes períodos de incapacidades temporárias:
- Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) de 04/05/2019 a 26/11/2019, no total de 207 dias;
- Incapacidade Temporária Parcial (ITP – 10%) de 27/11/2019 a 02/05/2020, no total de 158 dias – alínea E) dos factos assentes.
F) - A ré, “Generalli Seguros, S.A.”, pagou à autora, a título de indemnizações por incapacidades temporárias, a quantia global de € 3.882,98 – alínea F) dos factos assentes.
G) - Por carta de 13/11/2019, a ré, “Generalli Seguros, S.A.”, informou a autora, e a “Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”, de que não continuaria a assegurar-lhe assistência médica – alínea G) dos factos assentes.
H) - No passado dia 03/05/2019, pelas 10h50m, a autora saiu de casa, deslocando-se a pé, pelo passeio – resposta ao quesito 1º.
I) - Cerca de vinte metros a contar da porta da sua casa, ao desviar-se do lixo depositado no passeio, a autora tropeçou numa cadeira que ali se encontrava e caiu – resposta ao quesito 2º.
J) - A autora ficou imediatamente imobilizada, sem se conseguir mexer, beneficiando da ajuda de dois rapazes que a auxiliaram e transportaram para o interior de sua casa – resposta ao quesito 3º.
K) - Tendo permanecido no chão de sua casa, cheia de dores, sem se conseguir mexer– resposta ao quesito 4º.
L) - A irmã, que veio a casa da autora, chamou imediatamente o INEM – resposta ao quesito 5º.
M) - A autora deu entrada nos Serviços de Urgência Polivalente do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa às 11h20m desse mesmo dia, tendo sido transportada até lá de ambulância – resposta ao quesito 6º.
N) - No dia 03/05/2019, a autora iniciaria as suas funções pelas 13,00h, hora a que se deveria apresentar na morada da entidade patronal, referida em A), sita no Largo Convento da Encarnação 1150-113 Lisboa – resposta ao quesito 7º.
O) - Os funcionários da entidade patronal, referida em A), adstritos ao serviço de recolhimento, executam, por iniciativa própria, funções que “extravasam” o apoio domiciliário, disponibilizando aos beneficiários outro tipo de suporte, nomeadamente, o levantamento de documentos de pessoas de idade avançada e/ou com mobilidade reduzida - resposta ao quesito 8º.
P) - Aquando da queda, referida em I), a autora dirigia-se ao Departamento de Identificação Civil-Boa Hora, sito no Chiado, a fim de levantar um Cartão de Cidadão de uma das utentes residentes no Convento – resposta ao quesito 9º.
Q) - Por essa razão, a autora saiu de casa, em direcção ao Chiado, à hora referida em H) – resposta ao quesito 10º.
R) - A autora, de casa para o Convento da Encarnação e daqui para casa, demora cerca de 1h30m – resposta ao quesito 11º.
S) - Naquele dia, contando que demoraria cerca de 45m de sua casa ao Departamento de Identificação Civil- Boa Hora, sito no Chiado e que demoraria 30m do Departamento Civil até ao Convento da Encarnação, bem como o tempo necessário para levantar o cartão de cidadão da utente, a autora saiu de casa à hora referida em H) – resposta ao quesito 12º.
T) - A autora teve mau estar físico provocado pelas dores sofridas, vindo a ser seguida em Psiquiatria – resposta ao quesito 15º.
U) - A autora ficou com mobilidade reduzida – resposta ao quesito 16º.
V) - A autora perdeu a possibilidade de desempenhar as tarefas domésticas a que estava habituada – resposta ao quesito 17º.
W) - A autora vive, por conta das suas debilidades físicas, numa situação de profunda tristeza e angústia devido ao sucedido – resposta ao quesito 18º.
X) - As lesões descritas no relatório do exame médico realizado no I.N.M.L., referido em D), e os períodos de ITA e ITP, referidos em E), foram consequência do acidente, referido em I) – resposta ao quesito 19º.
Y) - Na sequência da participação do acidente em causa nos autos, a autora foi acompanhada nos serviços clínicos da ré, desde 06/05/2019 a 18/11/2019, tendo-lhe sido diagnosticada fractura de D12 – resposta ao quesito 20º.
Z) - A autora foi medicada, foi-lhe prescrita fisioterapia e foi operada à referida fractura – resposta ao quesito 21º.
AA) - Por decisão de fls. 30 do apenso de fixação da incapacidade para o trabalho (apenso A), proferida em 06/07/2021, foi fixada em 4,5% a I.P.P. que afecta a autora.
Fundamentação de direito
Apreciemos, então, se a sentença errou ao qualificar o acidente dos autos como acidente de trabalho ao abrigo da al. b) do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 9.º da LAT.
Numa primeira linha de argumentação invocou a Recorrente que o Tribunal a quonão podia proferir sentença com igual enquadramento jurídico da sentença anulada, ignorando os factos que o Acórdão reputou essenciais para a decisão da causa, isto porque se o Tribunal ad quem anulou a decisão mandando repetir o julgamento para apurar factos que poderiam enquadrar o acidente ocorrido na al. h), do nº 1 do artigo 9º da LAT, considerando-os essenciais para a decisão da causa, foi porque revogou a sentença recorrida, também no seu enquadramento jurídico, ou seja, considerou improcedente a configuração do acidente como de trabalho ao abrigo da al. b) do nº 1 do art. 9º da LAT e do nº 3 do citado art. 9º da LAT e que, se assim não fosse, não se justificaria a anulação da sentença e manter-se-ia a decisão.
Vejamos:
No Acórdão proferido em 01.03.2023, acordou-se anular a sentença recorrida com base nos seguintes fundamentos: “No artigo 44.º da petição inicial a Autora invocou:” 44.º Factos estes que são sobejamente conhecidos pela sua entidade empregadora.” Os factos a que se reporta a Autora incluem, além de outros, o alegado no artigo 36.º-A da petição inicial e que passou a constar, em parte, da al.O) dos factos provados com a seguinte redacção: “O) - Os funcionários da entidade patronal, referida em A), adstritos ao serviço de recolhimento, executam, por iniciativa própria, funções que “extravasam” o apoio domiciliário, disponibilizando aos beneficiários outro tipo de suporte, nomeadamente, o levantamento de documentos de pessoas de idade avançada e/ou com mobilidade reduzida – resposta ao quesito 8º.” O facto do artigo 44.º da petição inicial relativo ao alegado conhecimento da empregadora sobre a realização daquelas tarefas pelos seus funcionários, incluindo a Autora, não foi quesitado, nem sobre ele recaiu pronúncia do Tribunal a quo. Tal facto revela-se essencial à decisão da causa, posto que considera-se também acidente de trabalho o ocorrido fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos (artigo 9.º n.º 1 al.h) da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro), pelo que entendemos indispensável a repetição do julgamento para ampliação da decisão que recaiu sobre a matéria de facto, com vista a apurar se a Ré, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, tinha conhecimento da realização daquelas tarefas por parte dos seus funcionários e, em especial, por parte da Autora, inclusive da tarefa que esta iria realizar no dia em que ocorreu o evento. Nos termos do artigo 662.º n.º 2 al.c) do CPC, a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância quando considere indispensável a ampliação da decisão que recaiu sobre a matéria de facto, o que se determinará.” Sendo determinada a ampliação da matéria de facto, a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições (art.662.º n.º 3 al.c).”
Ora, conforme decorre do Acórdão, a própria Autora tinha alegado o conhecimento, por parte da empregadora, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, de que os seus funcionário, incluindo a Autora, realizavam outras tarefas, como as que esta iria realizar no dia em que ocorreu o evento. E tal alegação, a provar-se, era susceptível de enquadrar-se na alínea h) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.
Assim, embora a Autora tivesse enquadrado juridicamente o evento apenas na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º da LAT, o certo é que também tinha estribado a acção num segundo fundamento (conhecimento pela empregadora da sua actuação), pelo que nada obstava a que o Tribunal pudesse efectuar um enquadramento jurídico distinto, pois, como se sabe, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º n.º 3 do CPC). E tendo sido alegado o conhecimento pela empregadora, como foi, facto essencial a um eventual enquadramento do evento na alínea h) do n.º 1 do artigo 9.º e que não fora considerado pela sentença no elenco dos factos provados, nem nos factos não provados, determinou-se a anulação da decisão nos termos do artigo 662.º n.º 2 al. c) do CPC.
Porém, tal não significa, como pretende a Recorrente, que o Acórdão tenha revogado o enquadramento jurídico plasmado na sentença. Aliás, o Acórdão nenhuma análise fez relativamente à qualificação do evento que vitimou a Autora, pelo que nada obstava a que o Tribunal a quo proferisse sentença nos termos em que o fez. O Tribunal a quo, em conformidade com o que dispõem os artigos 152.º n.º 1 do CPC e 4.º da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais), cumpriu a decisão do Tribunal da Relação-repetição do julgamento para ampliação da matéria de facto-, nada havendo a censurar, nesta parte.
Numa segunda linha de pensamento alega a Recorrente, em suma, que não resultaram provados, nem foram alegados, quaisquer factos que permitam concluir que, da situação poderia resultar, directa ou indirectamente, proveito económico para o empregador, posto que a circunstância de a sinistrada ter pretendido executar uma tarefa fora das suas funções e do tempo e local de trabalho, a pedido de uma utente do lar onde trabalhava, sem consentimento ou, sequer, conhecimento, da sua entidade empregadora, não permite retirar, sem mais, a ilação de que poderia para esta resultar proveito económico ou que a situação consubstancia motivo de força maior. Acrescentou que a empregadora não tinha conhecimento das funções executadas pelos funcionários, referidas na al. O) dos factos assentes, não tinha conhecimento da concreta tarefa que a Autora iria realizar no dia do acidente e não consentiu na realização dessa mesma tarefa, nem na realização das funções elencadas na referida alínea e que nem foi alegado nem está provado que a utente era pessoa de avançada idade, pelo que o acidente dos autos não pode ser enquadrado como acidente de trabalho, ao abrigo da al. b) do artigo 9º da LAT.
Sobre o acidente e após aludir aos artigos 8.º e 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, aplicável ao caso atenta a data do evento, pronunciou-se a sentença recorrida nos seguintes termos: “Estamos perante um acidente de trabalho desde logo quando ocorre um acontecimento ou evento súbito, violento, inesperado e de ordem exterior ao próprio lesado. - Ac. TRL de 24/10/2018, Proc. 2200/14.7TTLSB-4. Como resulta da factualidade apurada, nomeadamente da referida nas alíneas H) a K), a autora sofreu um acidente em 03/05/2019. A questão está em saber se tal acidente poderá ser considerado como acidente de trabalho. Dos factos provados retira-se que: – No dia 03/05/2019, a autora prestava o seu trabalho de ajudante de lar ao serviço da entidade patronal “Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”, em execução de contrato de trabalho com esta celebrado; – No dia 03/05/2019, pelas 10h50m, a autora saiu de casa, deslocando-se a pé, pelo passeio; – Cerca de vinte metros a contar da porta da sua casa, ao desviar-se do lixo depositado no passeio, a autora tropeçou numa cadeira que ali se encontrava e caiu; – A autora ficou imediatamente imobilizada, sem se conseguir mexer, beneficiando da ajuda de dois rapazes que a auxiliaram e transportaram para o interior de sua casa; – Tendo permanecido no chão de sua casa, cheia de dores, sem se conseguir mexer; – No dia 03/05/2019, a autora iniciaria as suas funções pelas 13,00h, hora a que se deveria apresentar na morada da entidade patronal, referida em A), sita no Largo Convento da Encarnação 1150-113 Lisboa; – Os funcionários da entidade patronal, referida em A), adstritos ao serviço de recolhimento, executam, por iniciativa própria, funções que “extravasam” o apoio domiciliário, disponibilizando aos beneficiários outro tipo de suporte, nomeadamente, o levantamento de documentos de pessoas de idade avançada e/ou com mobilidade reduzida; – Aquando da queda, referida em I), a autora dirigia-se ao Departamento de Identificação Civil-Boa Hora, sito no Chiado, a fim de levantar um Cartão de Cidadão de uma das utentes residentes no Convento; – Por essa razão, a autora saiu de casa, em direcção ao Chiado, à hora referida em H). Cfr. alíneas A), H), I), J), K), N), O), P) e Q). Dúvidas não se levantam em como, na altura do acidente, a autora não se dirigia, directamente, da sua casa para o seu local de trabalho, tendo o seu trajecto sofrido um desvio. No entanto, perante os factos acima transcritos, sempre a situação dos autos, salvo melhor entendimento, poderá ser enquadrada na previsão da alínea b) do nº 1 do art. 9º da LAT, já que, o acidente em causa ocorreu na execução de serviços espontaneamente prestados pela autora, sendo que, o “outro tipo de suporte” disponibilizado aos beneficiários da empregadora, referido em O) dos factos provados, e concretamente o referido em P) dos mesmos factos, que a autora iria executar se não fosse o acidente, sempre se traduziria numa melhoria das condições do atendimento da residente em causa e, como tal, num proveito económico, ainda que indirecto ou mediato, para a mesma empregadora. Na verdade, a melhoria no tratamento dos beneficiários trará, necessariamente, uma maior procura dos serviços da empregadora, com tradução monetária, como é do senso comum. Mas, ainda que assim não se entenda, sempre a situação em apreço será subsumível na previsão do nº 3 do citado art. 9º da LAT. É que a satisfação das necessidades dos beneficiários referidas em O), enquanto pessoas de idade avançada e/ou com mobilidade reduzida, sempre poderá ser reconduzida ao conceito de “motivo de força maior”. Assim, em vista dos factos provados, concluímos que o acidente sofrido pela autora 03/05/2019, deverá ser qualificado como acidente de trabalho, nos termos do que o definem os arts. 8º e 9º da Lei nº 98/2009 de 04/09 (LAT), acima transcritos.”
Vejamos:
Dispõe o artigo 8º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro: “ 1. É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou morte. 2. Para efeitos do presente capítulo entende-se por: a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador; b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.”
No caso, é manifesto que o evento não ocorreu nem no tempo, nem no local de trabalho.
Estendendo o conceito de acidente de trabalho a outras situações, estatui o artigo 9º LAT: “1-Considera -se também acidente de trabalho o ocorrido: a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte; b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador; c) No local de trabalho e fora deste, quando no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos trabalhadores, nos termos previstos no Código do Trabalho; d) No local de trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização expressa do empregador para tal frequência; e) No local de pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito; f) No local onde o trabalhador deva receber qualquer forma de assistência ou tratamento em virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esse efeito; g) Em actividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação do contrato de trabalho em curso; h) Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos. 2- A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador: a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego; b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho; c) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e o local do pagamento da retribuição; d) Entre qualquer dos locais referidos na alínea b) e o local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente; e) Entre o local de trabalho e o local da refeição; f) Entre o local onde por determinação do empregador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual ou a sua residência habitual ou ocasional. 3- Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito. 4- No caso previsto na alínea a) do n.º 2, é responsável pelo acidente o empregador para cujo local de trabalho o trabalhador se dirige.”
Desta norma decorre que o legislador estendeu o conceito de acidente de trabalho aos acidentes que se verifiquem no trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, que sejam normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador e mesmo que se verifiquem interrupções e desvios, desde que resultantes da satisfação de necessidades atendíveis, de caso fortuito ou de força maior consagrando, assim, como acidente de trabalho os denominados acidentes in itinere.
Sobre os acidentes in itinere escreve-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.6.2014, Proc. 743/09.3TTALM.L1-4 consultável em www.dgsi.pt: “No que aos acidentes in itinere toca ainda se pode discutir se tem alguma especificidade ou, no fundo, não é mais do que um acidente de trabalho como qualquer outro, com a única particularidade de se dar no caminho. A verdade, porém, é que o acidente in itinere se caracteriza precisamente por ter lugar fora do tempo e do lugar de trabalho que carateriza o acidente de trabalho propriamente dito. Estas diferenças levam-nos a concluir, porém, que são diversas as noções de acidente de trabalho (em sentido estrito [14]) e de acidente in itinere. Tendo em comum a conexão trabalho – lesão [15], não partilham os demais elementos “tempo e local de trabalho”[16] [17]. Em suma: os acidentes in itinere são acidentes de trabalho em sentido amplo [18]: têm conexão com o trabalho e a própria lei os designa como tal [19] [20], traduzindo uma extensão da noção de acidente de trabalho (em sentido estrito, isto é, ocorridos no tempo e no local de trabalho e relacionados com ele), abrangendo também situações que não estariam formalmente [21], compreendidos no conceito indeterminado do art.º 8, n.º 1, da Lei 98/2009, de 4.9 [22]. Deste modo, o acidente no percurso ocorre fora do local e do tempo de trabalho, continuando a ser relevante para o direito infortunístico pela sua relação com o trabalho, já que foi a necessidade de se deslocar por motivos laborais que expôs o trabalhador ao risco do sinistro.”
Como escreve o Exmo. Conselheiro Júlio Manuel Vieira Gomes, na obra “ O Acidente de Trabalho o acidente in itinere e a sua descaracterização”, Coimbra Editora, pág. 162: “Como se vê, a Lei portuguesa optou, à semelhança do que fazem as legislações francesa e italiana, mas diferentemente das legislações alemã e espanhola, por definir-embora como veremos, seja duvidoso se o elenco do n.º 2 do art.9.º é taxativo – o ponto de partida e o ponto de destino de trajectos protegidos.” Resta, contudo, saber quando é que o acidente “se dá no caminho” e quando se inicia esse “caminho”, o que equivale a questionar onde se inicia o trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto para o percorrer, para que o acidente possa ser considerado como acidente de trabalho.”
Sobre o trajecto tutelado escreve o mesmo autor, na pag.177 da obra citada: “A circunstância de hoje o acidente in itinere ser tutelado mesmo que o trajecto não acarrete qualquer agravamento do risco permite, quanto a nós uma visão um pouco mais lassa do elemento temporal ou cronológico. No fundo este elemento temporal indicia o elemento teleológico que parece ser, ele sim, o essencial; o trajeto tutelado é, em princípio, aquele que o trabalhador empreende ao sair da sua residência habitual ou ocasional com a intenção de se deslocar para o seu local de trabalho e aqueloutro, de regresso a essa mesma residência habitual ou ocasional, a partir do seu local de trabalho, uma vez terminada a sua prestação.”
Entendeu a sentença recorrida que o acidente ocorreu na execução de serviços espontaneamente prestados e de que podia resultar proveito económico para o empregador.
Ora, não tendo resultado provado que foi a empregadora quem determinou a execução da tarefa em causa e tendo resultado provado que os funcionários da entidade patronal, referida em A), adstritos ao serviço de recolhimento, executam, por iniciativa própria, funções que “extravasam” o apoio domiciliário, disponibilizando aos beneficiários outro tipo de suporte, nomeadamente, o levantamento de documentos de pessoas de idade avançada e/ou com mobilidade reduzida (facto provado sob O) e que, aquando da queda, referida em I), a autora dirigia-se ao Departamento de Identificação Civil-Boa Hora, sito no Chiado, a fim de levantar um Cartão de Cidadão de uma das utentes residentes no Convento (facto provado P), teremos de concordar com a sentença quando considera que se tratou de um serviço espontaneamente prestado.
Porém, já não podemos acompanhar o juízo de que da execução desse serviço pode resultar proveito económico para a empregadora. Com efeito, dos factos provados não se consegue retirar que a circunstância de a Autora ir levantar o cartão de cidadão de uma utente da empregadora acarreta um benefício para esta última, seja directo, seja indirecto, tanto mais que nem se provou que a empregadora, de qualquer forma, “patrocinou” essa actividade.
E, por outro lado, “a melhoria no tratamento dos beneficiários” não significa que “trará, necessariamente, uma maior procura dos serviços da empregadora, com tradução monetária, como é do senso comum”, como refere a sentença recorrida. E, no caso, não ficaram provados elementos que nos permitam, sequer, afirmar que da actuação da Autora possa resultar proveito económico para a empregadora.
Consequentemente, arredada está a qualificação do evento como acidente de trabalho nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º da LAT.
E excluída também está a qualificação do evento à luz da alínea h) do n.º 1 do artigo 9.º da LAT, posto que, contrariamente ao invocado pela Autora, não se provou que a empregadora tinha conhecimento da execução dessas tarefas. E se não tinha conhecimento, naturalmente que não podia ter consentido.
Mas ainda entendeu o Tribunal a quo que a situação em apreço sempre será subsumível na previsão do nº 3 do artigo 9º da LAT uma vez que a satisfação das necessidades dos beneficiários referidas em O), enquanto pessoas de idade avançada e/ou com mobilidade reduzida, sempre poderá ser reconduzida ao conceito de “motivo de força maior”.
Sobre o n.º 3 do artigo 9.º atente-se no que escreve o citado autor, na pag.184 da mesma obra: “ O nº 3 prevê a possibilidade de existir um acidente de trabalho, mesmo “quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito. Note-se em primeiro lugar, que a norma não esclarece se, tendo o trajecto normal sofrido interrupções ou desvios “injustificados” tal acarreta – como parece ser o entendimento dominante entre nós – que, a partir do momento do desvio ou da interrupção, qualquer acidente já não poderá ser considerado acidente de trabalho, ou se, terminada a interrupção ou terminado o desvio “injustificados”, e retomando o trabalhador o trajecto normal, um acidente neste percurso voltaria a ser considerado acidente de trabalho.”
E sobre a interrupção ou desvio do trajecto determinados por caso fortuito ou de força maior ou por necessidades atendíveis do trabalhador refere o mesmo autor, nas pags.188 e 189: “ Em primeiro lugar o trabalhador pode ver o seu trajecto interrompido ou ter que se desviar da rota planeada por motivos estranhos ou alheios à sua vontade, os quais podem ou não ser de força maior ou caso fortuito: uma ponte levada pela enxurrada, uma via cortada pelas autoridades públicas na sequência de uma manifestação, de uma prova desportiva ou de uma procissão, uma estrada submersa, são, obviamente, motivos independentes da vontade do trabalhador. Mas também pode tratar-se, por exemplo, do cumprimento do dever legal de socorro a sinistrados que implicou que o trabalhador teve que fazer um desvio e levar o referido sinistrado ao hospital, antes de se poder dirigir para o emprego. Quanto às necessidades atendíveis, parece-nos claro que serão, desde logo, necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador em que a nossa Lei, não exige sequer que sejam urgentes ou de satisfação imprescindível. Podem tratar-se de necessidades fisiológicas, de tomar um café ou um pequeno- almoço no caminho para o trabalho ou de almoçar findo o trabalho e antes de regressar a casa, de comprar medicamentos numa farmácia ou enviar uma carta registada, de levar ou ir buscar os filhos à escola ou ao jardim infância.”
Do quadro factual não se extrai que se tratou de um caso de força maior pois não ficaram provadas as razões que levaram a Autora a ir levantar o cartão de cidadão da utente da empregadora, nem se esta era de avançada idade ou de mobilidade reduzida, como parece entender a sentença, ou se estava impossibilitada de o fazer por outras razões.
Por outro lado, também não resulta dos factos provados que se tratou de satisfazer uma necessidade da vida pessoal ou familiar da Autora, ou que existiu outra razão atendível que justificasse o desvio do trajecto e que a Autora tivesse saído de casa 2h e 10m antes de iniciar o seu trabalho, embora se tenha provado que, normalmente, de casa ao local de trabalho demorava, a pé, 1h30m, o que significa que o desvio importaria 40minutos.
Resta, pois, concluir que o evento também não se enquadra no n.º 3 do artigo 9.º da LAT, pelo que procede o recurso, com a consequente revogação das alíneas a) e b) do dispositivo da sentença e absolvição da Ré de tais pedidos.
Considerando o disposto no artigo 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, as custas da acção e do recurso são da responsabilidade da Recorrida, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Decisão
Face ao exposto, acordam as Juízas da Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa em:
-Julgar procedente o recurso e, em consequência, revogar as alíneas a) e b) do dispositivo da sentença recorrida e absolver a Ré, Generali Companhia de Seguros, S.A, dos pedidos a que se referem.
-Manter, no mais, a sentença recorrida.
Custas da acção e do recurso pela Recorrida, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique e registe.
Lisboa, 12 de Março de 2025
Maria Celina de Jesus de Nóbrega
Paula de Jesus Jorge dos Santos
Alexandra Lage