I – O cumprimento do princípio do inquisitório que impende sobre o juiz em sede de instrução da causa não é um poder discricionário, mas um autêntico poder dever que lhe é legalmente imposto com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio.
II – O requerimento das partes para a realização de diligências/produção de meios de prova, ainda que não formulado em momento processual adequado para o efeito, deverá ser admitido se o juiz concluir que, no caso concreto, a diligência de prova intempestivamente requerida é necessária para o apuramento de um facto controvertido.
III – Contudo, os princípios do dispositivo, do inquisitório e da autorresponsabilidade das partes, poderão ditar a inobservância desta regra nas situações em que a intempestividade da apresentação do requerimento de prova decorre de conduta grosseira e indesculpavelmente negligente da parte.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Requerente/Recorrente: AA
Requeridos/recorridos: BB, CC e DD.
A cabeça de casal justificou a inclusão na relação de bens dos certificados de aforro integrados na mencionada verba 7 com a circunstância de, apesar de titulados em nome da interessada BB, os mesmos pertencerem ao de cuius, por terem sido por ele constituídos.
Apreciando a reclamação contra a relação de bens, a Srª Notária, em 26/04/2018 proferiu decisão que determinou retirar da relação de bens a verba n.º 7, decisão essa que, na sequência de impugnação judicial, foi anulada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/6/2023 (apenso A).
1º
Com referência aos extractos da conta da Banco 1... de que é/era titular a interessada BB, pese a muita tinta de que já foram causa, um único ponto, até ao momento, não oferece dúvidas, ou interpretação divergente:
O acordo das partes e especial autorização da referida interessada, na solicitação à Banco 1... de elementos respeitantes a tal e sua conta bancária
2º
Reiterando a posição que sempre adoptou nos autos nesta matéria, a cabeça-de-casal continua a entender que essa informação é essencial para decidir a única questão que, há 10 anos, separa as partes da resolução da partilha.
3º
Motivo pelo qual, requer a V.ª Ex.ª, em via alternativa e por tais informações documentais se revelarem essenciais para a boa decisão da causa:
a) Ordene à interessada BB a junção aos autos dos extractos da sua conta bancária junto da Banco 1..., respeitantes aos períodos, entre 1997 e 2006, em que a interessada diz ter adquirido os certificados de aforro (e dois meses antecedentes para o efeito da verificação se entrou na sua conta quantia que possa ter tido tal específico destino);
b) Obtendo da mesma interessada autorização para que seja o Tribunal a solicitar tais elementos junto da Banco 1..., indicando para tal fim, o número da sua conta bancária, ordene a esta instituição bancária a prestação da informação.
A requerente nos autos em epígrafe, notificada do requerimento apresentado pela cabeça de casal AA, com adesão do interessado CC, diz:
1. O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra declarou a nulidade processual arguida pela cabeça de casal com fundamento na omissão de inquirição das testemunhas arroladas no incidente de reclamação contra a relação de bens e, em sua consequência, determinou a inquirição das duas testemunhas tempestivamente arroladas.
2. O requerimento agora apresentado pela cabeça de casal, no sentido de ser ordenada prova que não foi requerida tempestivamente, não tem acolhimento no processo, porquanto toda a prova a produzir no âmbito do incidente de reclamação sobre a relação de bens deve ser requerida com o respectivo articulado (de reclamação ou de resposta/oposição), nos termos dos artigos 1105.º, n.º 2 e 293.º, n.º 1 do Código do Processo Civil.
3. Posto isto, deve ser indeferido o requerido pela cabeça de casal e pelo interessado CC (requerimento com a referência citius 47359171)
Pelos motivos constantes do requerimento que antecede, indefiro o requerido em 24-11-2023.
Notifique.
A cabeça-de-casal efectua agora a junção de 2 documentos respeitantes às verbas 7 e 58 (cfr. docs. 1 e 2 que se juntam).
2º
Constituem os mesmos a capa da pasta respeitante aos certificados de aforro de 1998 (e 1999), assim como os extractos e anotações organizadas e efectuadas pelo autor da herança com referência aos certificados de aforro que constituiu, nominalmente, com titularidade na sua filha BB,
3º
Documentação essa que, desde a sua morte, havia desaparecido,
4º
E que foi acidentalmente encontrada (apenas a respeitante a 1998/1999), já no decorrer do corrente ano de 2024, pela cabeça-de-casal, no decurso de arrumações que efectuou.
5º
Documentos estes que constituem os extractos de certificados de aforro que os serviços financeiros postais enviavam e que, para além da guarda efectuada pelo falecido marido da cabeça-de-casal, apresenta capa e contas manuscritas operadas por este e que, claramente, se destinam a quantificar o ganho anual em cada uma das subscrições (docs. 1 e 2).
6º
Rectius, as marcas a tinta fluorescente nas páginas 1 e 3 do documento (2) respeitante ao extracto, impressas pelo autor da herança identificam e separam, no extracto, os certificados doados (verba 58 da relação de bens) dos adquiridos pelo autor da herança com titularidade aparente na interessada BB (verba 7) (doc. 2),
7º
O sublinhado e separação (a traço vermelho - pág. 2) dos dois primeiros certificados (doados – verba 58), assim como o apuramento do seu valor (a tinta preta), por contraponto aos demais (não sublinhados) e cujo apuramento é efectuado a tinta azul e que correspondem aos adquiridos para si e que se encontram (em parte) identificados e discriminados na verba 7 (doc. 2),
8º
Permite provar o acerto da cabeça-de-casal com referência aos certificados de aforro aí identificados (elencados nas verbas 7 e 58 da relação de bens) e tornar altamente provável que o demais indicado tenha igual grau de acerto.
9º
São, pois, os documentos indispensáveis para prova da existência no acervo hereditário das verbas 7 e 58 da relação de bens,
10º
Do mesmo modo como, pelo facto da cessação do seu muito prolongado desaparecimento só ter ocorrido no corrente ano, se conclui que foi à cabeça-de-casal impossível efectuar a sua junção em momento anterior.
Posto isto, e à semelhança do anterior despacho, não deve tal prova ser admitida (…) -conforme consta da ata da mencionada audiência.
Rege quanto ao momento da apresentação dos documentos, o disposto no artigo 423.º do CPC.
O regime da apresentação da prova documental em processo civil mostra-se estruturado em três patamares temporais:
- o regime-regra previsto no n.º 1 do artigo 423.º do Código de Processo Civil, de acordo com o qual, “Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado respetivo em que se aleguem os factos correspondentes”;
- num, segundo nível, de exceção, o n.º 2, permite que “Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado”;-
- e num terceiro nível, o n.º 3, acrescenta que, “Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior”,
Conforme se refere no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-7-2021, a ratio deste regime conjuga economia processual, autorresponsabilidade das partes, com uma cláusula geral de adequação, visando obstar à ocorrência de surpresas no julgamento, decorrentes da junção inesperada de documentos, com consequentes arrastamento ou adiamento de audiências, assim se promovendo um maior lisura e cooperação processual na definição das estratégias probatórias – Processo n.º 10866/19.5T8LSB-A.L1-7, publicado em www.dgsi.pt.
Após os referidos 20 dias (anteriores à data da audiência final), a parte pode ainda apresentar o documento na 1.ª instância, mas só em caso de superveniência (objectiva ou subjectiva) do documento (que foi impossível apresentar antes) ou em caso de ocorrência posterior que tenha tornado necessária a apresentação do documento cf. Lebre de Freitas, C.P.C., Anotado, Vol. 2.º, 3. ª Edição, Almedina, Julho de 2017, a pág. 239.
A superveniência objetiva ou subjetiva tem necessariamente de se relacionar com um facto atendível, relevante, que a parte não domina, que demonstre cabalmente que só no momento em que requereu a junção da prova documental, por razões que são alheias ao interveniente processual, foi possível a junção do documento.
A apreciação dos requisitos referidos deve ser feita considerando um padrão de comportamento de normal diligência por parte do/a apresentante, ou seja, a parte tem de alegar e provar os requisitos necessários à pretendida junção de documentos, só devendo ser relevadas , como se decidiu no Acórdão da Relação de Coimbra de 24/03/2015, “razões das quais resulte a impossibilidade do requerente, num quadro de normal diligência, ter tido conhecimento anterior da situação ou da existência do documento” (Processo n.º 4398/11.7T2OVR-A.P1.C1) tudo apreciado,, portanto segundo critérios objetivos e de acordo com padrões de normal diligência” (Relação de Lisboa 11/07/2021 supra citado.
No que concerne aos específicos documentos cuja junção foi requerida, os mesmos são três extratos de certificados de aforro, datados, respetivamente, de 22-1-1998, 7-4-1998 e de 1-10-1999.
A cabeça-de-casal invocou que esta documentação foi por si acidentalmente encontrada, já no decorrer do corrente ano de 2024, no decurso de arrumações que efectuou.
Vejamos.
Conforme refere Rui Pinto, a propósito da junção de documentos com as alegações de recurso do documento depois do encerramento da discussão em 1.ª instância, já que isso abria de par em par a porta a todas as incúrias e imprevidências das partes: a parte deve alegar e provar a impossibilidade da sua junção naquele momento e, portanto, que o desconhecimento da existência do documento não deriva de culpa sua. Realmente, a superveniência subjectiva pressupõe o in Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Coimbra, Almedina, 2018, página 314.
Nos presentes autos, a cabeça-de-casal alega que, afinal, sempre esteve na posse da documentação que ora pretende juntar, a qual foi por si encontrada no decurso de arrumações que efectuou. Desde a reclamação da interessada BB à relação de bens, em 15-5-2014, que a de-casal está ciente da relevância dos extractos dos certificados de aforro que eventualmente tivesse arquivado, impondo-se-lhe uma procura aturada no sentido de reunir toda a documentação pertinente.
Com efeito, desde a abertura do incidente de reclamação c ontra a relação de bens que a cabeça-de-casal sabe que a questão da propriedade dos certificados de aforro é uma questão controversa s obre a qual incide a instrução do processo, não devendo ter deixado de fazer uma busca exaustiva de todo o acervo documental que o casal constituído por si e pelo Inventariado tivessem na sua posse.
Ou seja, mesmo que se aceitasse que a cabeça-de-casal apenas encontrou esta documentação no decorrer do corrente ano de 2024, no decurso de arrumações que efectuou (alegação para a qual não ofereceu qualquer meio de prova), não se pode considerar que o desconhecimento da existência do documento não deriva de culpa sua.
Consequentemente, a cabeça-de-casal não logrou demonstrar que a apresentação dos documentos não foi possível antes da data de ontem (superveniência objetiva ou subjetiva).
Pelo exposto, entende-se que a junção pretendida é intempestiva, motivo pela qual não se admitem os documentos apresentados e se determina o seu oportuno desentranhamento.
Finaliza as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…).
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
No seguimento desta orientação, no presente recurso importa apreciar:
A) Quanto à decisão de 9 de janeiro de 2024:
- A nulidade da mesma por omissão de pronuncia, nos termos da al. d) do art. 615º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil;
- Se deve ser ordenada a prestação das informações bancárias requeridas pela apelante;
B) Quanto à decisão de 23 de janeiro de 2024:
- A nulidade processual decorrente da circunstância de a mesma ter sido proferida sem a prévia notificação do requerimento para junção de documentos ao interessado DD;
- Se deve ser admitida a junção aos autos dos documentos anexos ao requerimento da recorrente de 22 de janeiro de 2024;
Para além dos factos que resultam do relatório supra, importa ainda levar em linha de conta os seguintes que resultam da tramitação processual:
1. Os presentes autos de inventário foram instaurados em 2014 no Cartório Notarial ... – Notária FF, para partilha da herança aberta por óbito de EE, sendo requerente BB, filha do inventariado.
2. Foi nomeada como cabeça de casal AA, viúva do inventariado.
3. Em 8-06-2016, e após ter sido notificada para apresentar relação de bens corrigida, apresentou a cabeça de casal a relação de bens corrigida, relacionado, ademais, sob a verba nº 7, “19 certificados de aforro que apresentam como titular aparente a interessada BB, mas pertencente ao casal composto pelo inventariado e cabeça de casal, com o valor nominal de €36.210,22, correspondentes às seguintes subscrições (…)”.
4. Em 25.08.2017, apresentou a interessada BB reclamação contra a relação de bens, onde alega, ademais, que os certificados de aforro relacionado na verba nº 7, “são bens próprios da reclamante, adquiridos com o fruto do seu trabalho, pelo que devem ser retirados da relação de bens”.
5. Com a reclamação apresentou como meios probatórios as cópias dos certificados de aforro (que anteriormente havia junto aos autos), e arrolou uma testemunha.
6. Em 9-11-2017, apresentou a cabeça de casal resposta à reclamação contra a relação de bens, alegando, quanto aos certificados de aforro, reiterar o por si alegado.
7. Com a resposta como meios probatórios, requereu o depoimento de parte dos interessados DD, e CC, e arrolou uma testemunha.
8. Em 25-01-2018, a Exma. Notária proferiu despacho, decidindo parcialmente a reclamação contra a relação de bens, relegando apenas para conhecimento, após produção de prova, a verba nº 7
9. Em 06 de Março de 2018 teve lugar a diligência de audição dos interessados, tendo-lhes sido tomadas declarações.
10. Tal diligência foi gravada, conforme gravação inserida na plataforma informática de apoio aos inventários www.invetários.pt sob o nº ...33.
11. Tal diligência não foi documentada em auto/ata.
12. É do seguinte teor a gravação dessa diligência entre 1h01m05s e a 1h02m24s:
Advogado da cabeça de casal – E como é que fez para adquirir esses certificados?
Interessada BB – Como é que fiz?
Advogado da cabeça de casal – Sim.
Interessada BB – Trabalhei...
Advogado da cabeça de casal – Não, não, não. Estou-lhe a perguntar mecanicamente.
Como é que fez?
Interessada BB – Como é que eu faço para?...
Advogado da cabeça de casal – Sim.
Interessada BB – Eu tenho o meu dinheiro na minha conta bancária...
Advogado da cabeça de casal – Pronto. É isso mesmo. Em que Banco é que estava esse dinheiro?
Interessada BB – Banco 1....
Advogado da cabeça de casal – E certamente não se importa de eventualmente a
Banco 1... poder vir a esclarecer e juntar esses elementos.
Interessada BB – Claro que não. Claro que não.
Advogado da cabeça de casal – Se porventura eles ainda existirem.
Interessada BB – Claro que não.
Advogada da Interessada BB – A Senhora autoriza a quebra do sigilo
Advogado da cabeça de casal – Óptimo.
Advogada da Interessada BB – Autoriza.
Advogado da cabeça de casal – Óptimo. E os outros também foi da mesma maneira?
Interessada BB – Todos os certificados de aforro que estão constituídos, entre 1997, em meu nome...
Advogado da cabeça de casal – Certo.
Interessada BB - ... até 2006, os montantes vieram sempre da minha conta da Banco 1...
Advogado da cabeça de casal – hm, hm.
Interessada BB – E também posso esclarecer, Doutor, que na minha conta da Banco 1... só entra dinheiro do Ministério da Educação, através das escolas em que eu leccionei até hoje.
Advogado da cabeça de casal – Podemos ter como certo que do dinheiro que foi
empregue foi da sua conta na Banco 1...
Interessada BB – Banco 1...
Advogado da cabeça de casal – Certo. E que nessa conta só entra dinheiro do
Ministério da Educação. É isto?
Interessada BB – Precisamente.
14. É do seguinte teor a gravação dessa diligência entre os 1h21m00s a 1h23m20s:
Advogada da Requerente - ... E autoriza, fica a constar que autoriza a quebra do sigilo bancário para estes efeitos ... ?
Advogado da cabeça de casal- Dando a indicação de qual a conta.
Requerente - Sim.
Advogada da Requerente- Tem que prestar toda a colaboração que a Sr.ª Notária ou entidade bancária vier a considerar necessária.
Requerente- Claro, com certeza.
Advogada da Requerente - Certo, muito bem.
Advogado da cabeça de casal- Sr.ª Dr.ª, quer fazer um Requerimento nesse sentido ou..
Advogada da Requerente - Não, fica na Acta. A Sr.ª Dr.ª resolve
NOTÁRIA -Sim.
Advogado da cabeça de casal- Está bem. E quando dá a indicação da chave...
Advogada da Requerente - É já!
NOTÁRIA- Tem aí a conta? Pronto, é isso... A conta é para enviar, o número de conta para...
Advogada da Requerente - A Sr.ª Dr.ª notifica já ... Que eu estou cá, eu recebo a notificação, e dá-nos o prazo de 5 ou 10 dias para vir informar...
Requerente- Sim, eu também não trago isso aqui comigo agora, obviamente.
Advogada da Requerente- Claro, também eu não tenho, nunca me deu. Mas pronto. Já tínhamos dito que íamos referir isso.
Requerente - Sim, com certeza.
Advogado da cabeça de casal- Resta saber, se o Banco dá, enfim. Em princípio terá de...
Advogada da Requerente- Então, vamos ver aqui uma coisa... Se o Banco não der, Sr. Dr. Não tem os seus registos, não guarda, o que tiver guardado, eu também não tenho há vinte anos, mas é normal que alguém tenha, se tiver...
Requerente- Mas, eu creio que o Banco ainda tenha essa informação.
NOTÁRIA- E se for a senhora a dirigir-se ao banco e pedir essa informação e juntar aos autos?
Advogada da Requerente - Sr.ª Dr.ª, é caríssimo!
NOTÁRIA - Ai é?
Advogada da Requerente- Caríssimo!
NOTÁRIA- Pronto.
Advogada da Requerente- Já lhe disse isso à Srª, mas adverti-lhe é caríssimo.
NOTÁRIA- Pronto
Advogado da cabeça de casal- Eles cobram e a questão é que por esta via tem limitação de custo.
Advogada da Requerente- Pois tem.
Advogado da cabeça de casal- Pela via...
Advogada da Requerente- Particular
Advogado da cabeça de casal- Pela via particular...
NOTÁRIA - Está bem.
Advogada da Requerente - É caríssimo. Exacto Sr.ª Dr.ª...
NOTÁRIA - Está bem.
Advogada da Requerente- Porque são muitas páginas de muitos anos, muitas folhas...
Advogado da cabeça de casal- Eles cobram...
15. Em 26.04.2018 a Srª Notária proferiu o seguinte despacho:
“Tendo as partes prestado declarações no dia 06.03.2018 pelas 9.30 nas instalações deste Cartório Notarial quanto à questão controvertida referente à verba SETE da Relação de bens, conforme gravação inserida na plataforma informática de apoio aos inventários www.invetários.pt sob o nº ...33.
DETERMINA-SE
a) Retirar da relação de bens a verba SETE.
(…)
16. Por decisão da Srª Notária de 14/09/2020, foi ordenada a remessa do processo para o tribunal, nos termos art.º 13.º, n.º 1, da Lei n.º 117/2019;
17. Em 15/09/2020, a cabeça de casal deduziu impugnação judicial, além do mais, da decisão proferida no item anterior, nos termos do disposto no art.º 13.º, n.º 2, da Lei n.º 117/2019.
18. Tal impugnação foi objeto de decisão pelo Tribunal a quo, datada de 04/01/2023, contendo o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo parcialmente procedente o recurso de impugnação judicial, e consequentemente, decido:
1. Declaro nula a conferência preparatória da conferência de interessados que teve lugar no dia 20.03.2019 e, consequentemente, nula é a decisão nela proferida de condenação em multa dos interessados faltosos.
2. Declarada a nulidade de tal acto processual, que assim é juridicamente inexistente, e não tendo a cabeça de casal procedido ao pagamento dos honorários nos termos em que foi decidido pela Srª Notária, nada há a decidir quanto a esta questão.
3. Quanto ao demais, julgo improcedente o recurso de impugnação judicial.».
19. Desta decisão recorreu a cabeça de casal, na sequência do qual foi proferido, no apenso A), o supramencionado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/06/2023, que decidiu nos seguintes termos:
a) Declara-se a nulidade processual, arguida pela Cabeça de casal/Recorrente, por omissão de inquirição das testemunhas arroladas no âmbito do incidente de reclamação contra a relação de bens;
b) Obrigando à anulação da decisão notarial de 26/04/2018 – onde foi determinado «Retirar da relação de bens a verba SETE» e se considerou «Saneadas todas as questões suscitadas suscetíveis de influir na partilha e estando determinados os bens a partilhar» –, bem como de todos os demais atos subsequentes dependentes e
c) Determinou a inquirição das duas testemunhas tempestivamente arroladas.
d) Mantendo-se, no mais, a decisão recorrida;
A) Recurso da decisão de 9 de janeiro de 2024
Principia a recorrente por defender que esta decisão é nula por omissão de pronúncia, nos termos previstos no art.º 615º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil, porquanto o tribunal não apreciou a anterior pretensão formulada pela recorrente, perante a Srª Notária, durante a diligência de 6 de março de 2018, para que fossem solicitadas os extratos da conta bancária da interessada BB, referentes aos períodos em que foram subscritos os certificados de aforro em causa.
É sabido que a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, aplicável aos despachos por via do preceituado no art.º 613º, n.º 3 do mesmo Código, como vício estrutural ou intrínseco da decisão, que não se confunde com o erro de julgamento, apenas ocorre quando o julgador deixe de resolver questões que tenham sido submetidas à sua apreciação pelas partes, a não ser que esse conhecimento fique prejudicado pela solução a outras questões antes apreciadas. E é também entendimento generalizado que o “conceito de “questão” deve ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, dele sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes”[1].
Isto posto, em nosso entender, a invocada nulidade desta decisão, por omissão de pronuncia, deve ser liminarmente arredada.
Desde logo, tal como se concluiu no acórdão desta Relação proferido no apenso A, das transcrições plasmadas nas alegações de recurso da recorrente, relativas à diligência que decorreu perante a Srª Notária, em 6 de junho de 2028 (cujas gravações foram também ouvidas por este tribunal) não decorre que as partes tenham formulado, perante a Srª Notária, qualquer requerimento para obtenção oficiosa de prova documental bancária.
Por outro lado, a “questão” colocada ao tribunal, através do requerimento apresentado pela recorrente em 24 de novembro de 2023, pelo qual se pretendia que a interessada BB juntasse aqueles elementos bancários ou, em alternativa, que o tribunal determinasse a sua junção à entidade bancária, foi objeto de apreciação pelo despacho recorrido, que indeferiu tal requerimento, por o considerar intempestivo.
Não se verifica, assim, a apontada nulidade da decisão por omissão de pronúncia.
A decisão recorrida, de 9 de janeiro de 2024, indeferiu o requerimento apresentado pela cabeça de casal para que o tribunal, em alternativa:
- ordenasse à interessada BB a junção aos autos dos extratos da sua conta bancária junto da Banco 1..., respeitantes aos períodos, entre 1997 e 2006, ou
- ordenasse à Banco 1... a junção de tais elementos, obtendo prévia autorização da dita interessada para quebra do sigilo bancário;
Tal indeferimento teve por fundamento a intempestividade do requerimento de prova em causa, por não ter sido apresentado com a resposta da cabeça de casal à reclamação contra a relação de bens, conforme preceitua o art.º 1.105º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
A título de questão prévia, cumpre notar que processo de inventário a que este recurso diz respeito, foi instaurado no ano de 2014 e, portanto, ao abrigo do regime jurídico do processo de inventário (RJPI) aprovado em anexo à Lei n.º 23/2013, de 5.03 (arts 1º, 2º e 8º).
Este diploma foi revogado pela Lei 117/2019 de 13.9 (que vigora desde 1/01/2020 – art.º 15º), mantendo-se, no entanto, aplicável aos processos de inventário pendentes em cartório notarial à data da sua entrada em vigor, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do art.º 11º da referida Lei.
Por conseguinte, à tramitação dos presentes autos aplicou-se (e aplica-se) primeiro, o regime jurídico do processo de inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05.3 (à tramitação anterior à sua remessa a juízo, que ocorreu em 20 de outubro de 2020) e, depois, o preceituado no atual Código de Processo Civil (na redação conferida pela Lei n.º 117/2019, de 13.9 - cf. arts. 11º a 13º).
No caso, a reclamação contra a relação de bens, e a resposta à mesma, foram apresentadas quando o processo se encontrava ainda pendente no Cartório Notarial (e ainda antes da entrada em vigor da Lei n.º 117/2019).
À luz do regime legal então aplicável, a reclamação da relação de bens assumia-se, ela própria, como um incidente da instância do inventário, pelo que há que ter em consideração o disposto no art.º 14º, n.º 1 Lei n.º 23/2013, segundo o qual os meios de prova deveriam ser apresentados/requeridos pelas partes com o requerimento em que se suscite o incidente e na oposição que lhe for deduzida.
Não obstante, a verdade é que, no decurso no decurso da diligência de audição dos interessados, realizada perante a Sr.ª Notária no dia 6 de março de 2018, a própria recorrida BB declarou que os montantes utilizados para constituir os certificados de aforo em causa provieram de uma conta da sua exclusiva titularidade e que, nessa mesma conta, apenas eram depositados valores provenientes do seu vencimento mensal.
Esta informação, atinente ao objeto da reclamação contra a relação de bens que então se discutia, consubstancia uma circunstância justificativa da necessidade de requerer as informações bancárias em causa, da qual a cabeça de casal, ora recorrente, não podia conhecer no momento em que apresentou a sua resposta à reclamação contra a relação de bens, mesmo que tivesse usado de toda a diligência exigível.
Parece-nos assim evidente que a decisão recorrida não poderia ter indeferido o requerimento em causa com fundamento em que o mesmo deveria ter sido formulado com a resposta da cabeça de casal à reclamação contra a relação de bens apresentada pela interessada BB.
Por outro lado, como é sabido, assiste ao tribunal o poder/dever de requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objetos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade, nos termos do art.º 436º, do mesmo diploma.
Trata-se de uma das concretizações do princípio do inquisitório consagrado no art.º 411º do Código de Processo Civil que estipula que «Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer».
O cumprimento do princípio do inquisitório que impende sobre o juiz em sede de instrução da causa não é um poder discricionário do juiz, mas um autêntico poder dever que lhe é legalmente imposto, com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio, pretendendo-se que “nenhum facto relevante para a decisão da causa fique por esclarecer”[2]
E é na fase da instrução do processo que o aludido princípio do inquisitório assume plena eficácia, ao impor ao tribunal o ónus de realizar ou ordenar, ainda que oficiosamente, todas as diligências probatórias que entenda necessárias ao apuramento dos factos essenciais, complementares e instrumentais e que se justifiquem pela necessidade de evitar que, pela falta de prova, a decisão da causa seja imposta pelo non liquet probatório e não pela realidade das coisas averiguadas em juízo[3].
O referido art.º 436º, com a epígrafe “Requisição de documentos”, prescreve:
1 - Incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objetos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade.
2 - A requisição pode ser feita aos organismos oficiais, às partes ou a terceiros.
Cabe assinalar que a faculdade que é atribuída ao tribunal de requisitar, por sua iniciativa, informações ou quaisquer um dos documentos enunciados na norma, a organismos oficiais, às partes ou a terceiros, só deve ser exercida quando se considere que são “necessários ao esclarecimento da verdade”. O mesmo pressuposto é válido quando o tribunal for confrontado por requerimento de qualquer das partes visando aquele propósito.
Como se lê no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.09.2019[4] “(…) O juiz quando faz a requisição, por sua iniciativa ou a requerimento de uma das partes, tem em vista esclarecer determinado facto necessário à descoberta da verdade, que é o mesmo que dizer, à boa decisão da causa. A diligência é feita em proveito da parte que tiver alegado o facto e sobre quem recai o ónus de prova, nos termos gerais do art.º 342.º do CC”.
Em anotação ao mencionado art.º 436º do Código de Processo Civil, referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa[5], “1. Apesar das condicionantes colocadas às partes relativamente à oportunidade da prática dos atos afetada pelas regras preclusivas, a latitude dos poderes inquisitórios do tribunal permite que este tome iniciativas em sede probatória, as quais serão justificadas desde que não impliquem a total desconsideração do princípio da autorresponsabilidade das partes ou do dispositivo, merecendo especial destaque as situações em que a atividade inquisitória se apresenta com natureza complementar relativamente à que foi empreendida pelas partes. Assim também em sede de recurso de apelação, nos termos do art. 662º n.º2, al. b). 2. Neste contexto, apesar dos poderes oficiosos de que dispõe, a intervenção do tribunal deve ser entendida em termos subsidiários relativamente à iniciativa das partes, tornando-se já exigível tal intervenção quando a parte demonstre que fez as diligências ao seu alcance para conseguir as informações e/ou documentos, mas não os logrou obter, por facto que não lhe é imputável - cf. art. 7°, nº 4, e STJ 1-6-04, 04A993. (…)
Vejamos, então, se estão verificados os pressupostos para a admissibilidade das diligências de prova requeridas pela cabeça de casal, através do requerimento de 24 de novembro de 2023, com fundamento no mencionado art.º 436º do Código de Processo Civil.
No caso em apreciação, em sede de reclamação contra a relação de bens da herança a partilhar, a interessada BB requereu a exclusão da mesma da atual verba n.º 7, correspondente a 19 (dezanove) certificados de aforro, dizendo serem seus bens próprios, por terem sido por ela subscritos com o fruto do seu trabalho, para tanto indicando prova testemunhal.
Por seu turno, a cabeça de casal veio responder a esta reclamação, reiterando o que já havia afirmado na relação de bens, ou seja, que pese embora tais certificados de aforro tenham como titular aparente a interessada reclamante, os mesmos pertenciam ao inventariado, requerendo, com esta resposta, inquirição de testemunhas e a tomada de declarações a dois cointeressados.
Em 25 de janeiro de 2018, na sequência desta reclamação, a Exma. Notária proferiu despacho, decidindo parcialmente a reclamação contra a relação de bens, relegando apenas para conhecimento, após produção de prova, da reclamação quanto à mencionada verba nº 7 da relação de bens.
Em 6 de março de 2018, teve lugar a diligência de audição dos interessados, tendo-lhes sido tomadas declarações.
Como vimos, no decurso desta diligência, a ora recorrida afirmou que os montantes utilizados para constituir os certificados de aforro em causa provieram de uma conta da sua exclusiva titularidade e que nessa mesma conta apenas eram depositados valores provenientes do seu vencimento mensal. Também manifestou a sua disponibilidade para autorizar quebra do sigilo bancário para que fosse solicitado ao banco em causa a disponibilização dos extratos bancários que comprovassem aquela sua afirmação.
Face ao exposto, parece-nos evidente o potencial interesse das informações bancárias para o esclarecimento questão da propriedade dos certificados de aforro, que constitui o cerne da reclamação, tanto mais que a demonstração da proveniência do dinheiro utilizado para a subscrição dos mesmos dificilmente se fará por outro meio que não seja a prova documental.
Em recurso da decisão que, em primeira instância, se pronunciou sobre a sobre a impugnação judicial da decisão da Sr.ª Notária que recaiu sobre reclamação contra a relação de bens, o acórdão desta Relação de 13/06/2023 (proferido no apenso A) anulou parcialmente aquela decisão notarial que havia determinado retirar da relação de bens a verba n.º 7 e determinou a inquirição de testemunhas oportunamente indicadas pela cabeça de casal.
Após a designação da data para inquirição de tais testemunhas, mas antes do início da mesma, a ora recorrente veio solicitar que o tribunal ordenasse à interessada BB a junção aos autos dos extratos da sua conta bancária junto da Banco 1..., respeitantes aos períodos, entre 1997 e 2006 ou, em alternativa, que, mediante autorização expressa da mesma, o Tribunal solicitasse tais elementos junto da Banco 1....
Tem-se, assim, por verificado o juízo contido no art.º 436º, do Código de Processo Civil.
Com efeito, é evidente a impossibilidade da obtenção direta desses documentos/informações pela parte que deles se pretende aproveitar, face ao sigilo bancário a que qualquer instituição de crédito está obrigada.
Por outro lado, pelas razões já expostas, mostra-se indiciado o pressuposto da necessidade da realização das diligências probatórias em causa para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio, mais concretamente para definição dos bens a partilhar no processo de inventário.
Dir-se-á também que, na medida em que o requerimento da recorrente foi apresentado ainda antes da data designada para a inquirição das testemunhas, a fase processual em que o presente processo se encontrava nesse momento nada obstava ao uso dos poderes deveres instrutórios que se impunham ao tribunal recorrido.
Em conclusão, não pode manter-se a decisão de 9 de janeiro de 2024, impondo-se que o tribunal a quo determine à Banco 1... a remessa dos extratos da conta bancária da recorrida solicitados pela recorrente[6].
A recorrente principia por defender que a decisão exarada na ata de 23 de janeiro de 2024, que indeferiu o seu requerimento, de 22 de janeiro, para junção de documentos, foi proferida sem que o interessado GG tivesse sido notificado da junção de tais documentos e, por isso, em clara violação do princípio do contraditório consagrado no art.º 3, n.º 3 do Código de Processo Civil, o que, em seu entender, conduz à nulidade prevista no art.º 195º do Código de Processo Civil, “por a omissão ter direta influência na decisão da causa”.
Ainda que entendamos que a eventual nulidade (processual), consistente na violação do princípio do contraditório, porque não assume autonomia face à decisão que rejeitou o meio de prova, é passível de ser invocada em sede de recurso daquela decisão[7], a verdade é que, tratando-se de uma nulidade secundária (art.º 196º, a contrario, e n.º 1 do art.º 197º do Código de Processo Civil), a mesma só poderia ser invocada pelo próprio interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do ato, no caso, o interessado GG, parte em relação à qual o contraditório não terá sido observado[8].
Concluímos, assim, que a recorrente carece de legitimidade para invocar a nulidade em causa, pelo que a mesma não será objeto de conhecimento por parte deste tribunal.
Antes de mais, cabe notar que, como se diz no Acórdão desta Relação de 12/11/2024[9],«(n)o actual modelo de processo de inventário[10], a dedução de reclamação à relação de bens insere-se na tramitação normal deste processo, não constituindo já um incidente da instância, a processar de acordo com as regras específicas previstas nos artºs 1105 e 1109 do C.P.C. e as constantes dos artºs 292 e 293, ex vi do artº 1091 do C.P.C., mas antes pelas regras próprias do inventário e pelas regras gerais do processo comum em tudo o que não estiver estabelecido naquelas (ex vi do artº 549, nº1 do C.P.C.)»
Assim, ainda que a indicação das provas deva ser feita com os requerimentos e respostas (art.º 1105º, n.º 2 do Código de Processo Civil)[11], nos casos, como o vertente, em que o processo comporta uma fase instrutória (art.º 1109, n.º 3 do Código de Processo Civil) a junção posterior de documentos é admissível, devendo ter como limite, não a apresentação do articulado respetivo, mas sim a data fixada para tal inquirição, sendo aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no art.º 423º do Código de Processo Civil[12]
Ora, estatui o artigo 423.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe, momento da apresentação:
“1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2 - Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.”
Daqui resulta que, não tendo junto os documentos em causa com o seu articulado de resposta à reclamação contra a relação de bens, poderia a recorrente tê-los apresentado até 20 dias antes da diligência de inquirição de testemunhas que teve o seu início no dia 23 de janeiro de 2024 (eventualmente com multa, salvo demonstração de que não os pôde oferecer com aquele articulado), o que manifestamente não sucedeu.
Como nos dizem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, “Ultrapassado esse limite, apenas são admitidos documentos cuja junção não tenha sido possível, atenta a verificação de um impedimento que não pôde ser ultrapassado em devido tempo, ou quando se trate de documentos objetiva ou subjetivamente supervenientes, isto é, que apenas foram produzidos ou vieram ao conhecimento da parte depois daquele momento (…) Cabe à parte que pretende a junção de documento alegar e demonstrar que a sua apresentação não foi possível até àquele momento, ou que a sua apresentação só se tornou possível em virtude de ocorrência posterior[13].
A respeito da tempestividade da apresentação dos documentos em causa, alega a ora recorrente, no requerimento também subscrito pelo interessado CC, que:
1º
A cabeça-de-casal efectua agora a junção de 2 documentos respeitantes às verbas 7 e 58 (cfr. docs. 1 e 2 que se juntam).
2º
Constituem os mesmos a capa da pasta respeitante aos certificados de aforro de 1998 (e 1999), assim como os extractos e anotações organizadas e efectuadas pelo autor da herança com referência aos certificados de aforro que constituiu, nominalmente, com titularidade na sua filha BB,
3º
Documentação essa que, desde a sua morte, havia desaparecido,
4º
E que foi acidentalmente encontrada (apenas a respeitante a 1998/1999), já no decorrer do corrente ano de 2024, pela cabeça-de-casal, no decurso de arrumações que efectuou.
(…).
Ao contrário do que a recorrente sustenta nas suas alegações de recurso, todo este circunstancialismo deve-se considerar impugnado pela recorrida BB, atento o teor do requerimento, acima transcrito, que ficou exarado na ata da audiência de inquirição de testemunhas, pelo qual se pronunciou contra a requerida junção de documentos.
Não colhe, assim, a tese da recorrente segundo a qual o facto mencionado no artigo 3º daquele seu requerimento – o alegado desaparecimento da documentação em causa desde a morte do inventariado – deve considerar-se confessado, nos termos do art.º 574º, n.º 3 do Código de Processo Civil, por constituir um facto pessoal da recorrida e por esta se ter limitado a declarar que não sabe se o mesmo é ou não verdadeiro.
Tal como vem salientando a jurisprudência dos Tribunais Superiores, para efeitos da aferição da impossibilidade da junção tempestiva dos documentos, só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade do requerente, num quadro de normal diligência, ter tido conhecimento anterior da situação ou da existência do documento.
Ou seja, a impossibilidade da prévia apresentação haverá de ser apreciada segundo critérios objetivos e de acordo com padrões de normal diligência[14].
No caso dos autos, a interessada, ora apelante, alega tão somente que tal documentação estava desaparecida desde a morte do inventariado e foi por ela acidentalmente encontrada, já no decorrer no ano de 2024, no decurso de arrumações que efetuou. Não junta/requer qualquer prova que suporte esta sua alegação
Acresce, em nosso entender, que, por si só, tal factualidade – ainda que se considerasse demonstrada – sempre seria insuficiente para concluir que o desconhecimento da existência do documento e/ou a sua tardia obtenção não deriva de culpa da recorrente.
Face à exiguidade da alegação factual relativa às circunstâncias em que tais documentos chegaram ao conhecimento e à posse da recorrente, se não se pode concluir, como faz a decisão recorrida, que eles sempre estiveram na sua posse, também não se pode inferir o contrário.
Deste modo, centrando-se objeto do litígio – que perdura desde o ano de 2014 - na titularidade daqueles certificados de aforro, parece-nos correta a fundamentação da decisão recorrida, quando afirma que: Desde a reclamação da interessada BB à relação de bens, em 15-5-2014, que a de-casal está ciente da relevância dos extractos dos certificados de aforro que eventualmente tivesse arquivado, impondo-se-lhe uma procura aturada no sentido de reunir toda a documentação pertinente.
Com efeito, desde a abertura do incidente de reclamação contra a relação de bens que a cabeça-de-casal sabe que a questão da propriedade dos certificados de aforro é uma questão controversa sobre a qual incide a instrução do processo, não devendo ter deixado de fazer uma busca exaustiva de todo o acervo documental que o casal constituído por si e pelo Inventariado tivessem na sua posse.
Ou seja, mesmo que se aceitasse que a cabeça-de-casal apenas encontrou esta documentação no decorrer do corrente ano de 2024, no decurso de arrumações que efectuou (alegação para a qual não ofereceu qualquer meio de prova), não se pode considerar que o desconhecimento da existência do documento não deriva de culpa sua.
Entendemos, por conseguinte, que das razões invocadas pela recorrente não resulta a impossibilidade, num quadro de normal diligência, de ter tido conhecimento e acesso aos mencionados do documento em momento processualmente oportuno para a sua junção aos autos.
Isto posto e porque nos parece liminarmente afastada a aplicação da hipótese prevista na segunda parte do n.º 3 do art.º 423º do Código de Processo Civil, dado que, face ao objeto do litígio e aos factos alegados pelas partes, não podemos afirmar que a junção de tais documentos se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior, temos de concluir, como fez a decisão recorrida, que a apresentação dos mesmos, através do requerimento de 22 de janeiro de 2024, foi intempestiva.
Acontece que, numa outra linha argumentativa, a recorrente defende que a documentação em causa deveria ter sido admitida, ao abrigo dos poderes inquisitórios do tribunal, com fundamento na utilidade da mesma para a justa solução da causa.
É facto que, após a Reforma de 1995-1996, o juiz passou a ter uma intervenção mais ativa na instrução do processo, devendo fazer uso dos seus poderes instrutórios sempre que as circunstâncias e a boa instrução do processo o aconselhem, visando, em última instância obter um melhor apuramento da verdade material e justa composição do litígio. O Código de Processo Civil de 2013 acentuou a tendência para a ampliação dos poderes oficiosos do juiz e simultaneamente comprimiu o princípio do dispositivo, fazendo prevalecer as garantias processuais fundamentais do cidadão de busca da verdade material, que são reflexo da natureza pública da função jurisdicional civil.
Já acima nos referimos ao poder dever do juiz realizar ou ordenar, ainda que oficiosamente, todas as diligências probatórias que entenda necessárias ao apuramento necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, que está consagrado genericamente no art.º 411º do Código de Processo Civil.
O princípio do inquisitório autoriza que o tribunal atue oficiosamente, fora das condições previstas no artigo 423.º da lei processual, quando designadamente se torna necessário requisitar documentos ao abrigo do disposto do acima citado artigo 436.º do Código de Processo Civil,
No comentário ao artigo 411.º do Código de Processo Civil, Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta e Pires de Sousa[15] adiantam que “cumpre ao juiz exercitar a inquisitoriedade, preservando o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objectividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade”
Com efeito, o princípio do inquisitório coexiste com outros princípios fundamentais do direito processual, designadamente o princípio do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, de modo que não pode ser invocado para superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meios de prova[16].
Assim, a possibilidade de o juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, não pode servir como forma de suprir as omissões da parte na indicação dos seus meios probatórios. É que o juiz não pode, nem deve, em princípio, substituir-se à parte, atento o princípio do dispositivo. Como nos recorda Lopes do Rego[17], “o exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste - não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes”.
Mas o certo é que, como refere o Ac. desta Relação de 26/10/2021[18], «Tal poder-dever emerge e justifica-se independentemente da vontade das partes na realização das diligências/produção de meios de prova (e/ou da tempestividade dessa iniciativa ou de uma qualquer pretensão nesse sentido). O critério firmado no art.º 411º coloca a questão ao nível da necessidade das diligências probatórias para o apuramento da verdade e para a justa composição do litigo; verificado o pressuposto da necessidade (baseado na fundada convicção de que a diligência a promover é necessária ao esclarecimento dos factos), o juiz, nos termos da lei, tem o dever de agir.[19]
Na situação em análise, como vimos, está causa determinar se os certificados de aforro identificados sob a verba n.º 7 da relação de bens integram ou não a herança a partilhar.
Os documentos apresentados consistem num conjunto extratos da conta-aforro à qual estão associados pelo menos parte dos certificados de aforro em discussão, alegando a recorrente que tais documentos estariam na posse do autor da herança e apresentam contas e anotações manuscritas por este último.
Afigura-se-nos, assim, evidente o potencial interesse destes documentos para o esclarecimento da referida questão central em discussão na reclamação contra a relação de bens, tanto mais que, como se disse, a demonstração da origem do o dinheiro utilizado para a subscrição dos ditos certificados dificilmente poderá fazer-se através de testemunhas ou declarações de parte. .
Por conseguinte, não obstante a extemporaneidade do requerimento de junção de documentos apresentado em 22 de janeiro de 2024, está claramente indiciado o pressuposto da importância/pertinência/necessidade daqueles meios de prova para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio.
Por outro lado, ainda que não se tenha por demonstrado que a junção tardia dos mesmos não é imputável à recorrente cabeça de casal, o certo é que dos autos não resultam elementos suficientes para se concluir que tal apresentação tardia se deveu a uma “conduta grosseira e indesculpavelmente negligente” da ora recorrente, em violação do princípio da auto responsabilidade das partes.
Concluímos, assim, que deve ser admitida a junção aos autos dos mencionados documentos.
Custas pela recorrida BB
[1] Acórdão do STJ de 11 de janeiro de 2022, processo 602/15.0T8AGH.L1-A.S1 (Relator Isaías Pádua), in www.dgsi.pt
[2] Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex 1997, p. 323
[3] Teixeira de Sousa, ob. cit., pags. 322 e 323.
[4] Processo n.º 10830/17.9T8PRT-A.P2 (Relator Desembargador Jerónimo Freitas, in www.dgsi.pt
[5] Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, pag. 507.
[6] Entendemos não dever considerar a primeira das pretensões alternativas formuladas pela recorrente naquele seu requerimento, na medida decorre da análise do processo que a recorrida BB já esclareceu não ter tais extratos na sua posse.
[7] Conforme explica ALBERTO DOS REIS (Comentário ao Código de Processo Civil, 2º Vol., p. 507), «a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente.». É este, segundo cremos, o entendimento prevalecente na jurisprudência. Confronte-se, neste sentido, entre outros, o Ac. do STJ de 16/12/2021, processo n.º 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1 (Luís Espírito Santo), in www.dgsi.pt
[8] E tanto quanto sabemos através da consulta do processo, tal nulidade foi por este invocada e objeto de decisão de indeferimento datada de 22 de fevereiro de 2024, a qual, por sua vez, foi objeto de recurso interposto interporto pelo mencionado interessado GG, que não foi admitido com fundamento em intempestividade (estando pendente reclamação contra o indeferimento de tal recurso, nos termos do art.º 647º do CPC).
[9] Processo 1231/23.0T8FIG-A.C1 (Cristina Neves), in www.dgsi.pt.
[10] Decorrente da lei n.º 117/2019 de 13.09, que, como vimos, se aplica aos presentes autos desde a remessa dos mesmos para o tribunal.
[11] Assim também o era ao abrigo do regime anterior aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5.3 (cf. art. 14º, n.º 1), aplicável à data da instauração dos presentes autos e no momento em que foi apresentada a reclamação contra a relação de bens e respetiva respostas.
[12] Ac. do TRG de 23-11-2023, processo n.º 695/22.4T8VVD-A.G1 (Conceição Sampaio), in www.dgsi.pt
[13] Op. cit, vol. I, pag. 500
[14] Cf. entre outros, o Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra, de 24/03/2015, processo 4398/11.7T2OVR-A.P1.C1 (Relator Fonte Ramos), in www.dgsi.pt.
[15] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 524
[16] Neste sentido, entre outros, cf. o A TRP de 27/01/2022, processo n.º 1513/20.3T8PNF.P1 Relatora Judite Pires), in www.dgsi.pt
[17] Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª edição, 2004, Almedina.
[18] Processo n.º 852/20.8T8FIG-A.C1 (Fonte Ramos), in www,dgsi.pt.
[19] No mesmo sentido, da necessidade de o tribunal apreciar se, no caso concreto, a diligência de prova intempestivamente requerida é necessária para o apuramento de um facto controvertido, confronte-se o comentário do Prof. Teixeira de Sousa, no dia 15.5.2019, no blogue do IPPC, ao acórdão da RL de 30.01.2019-processo 639/18.8T8FNC-A.L1-4.