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LIBERDADE CONDICIONAL
MEIO DA PENA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PREVENÇÃO GERAL
ORDEM PÚBLICA
Sumário
I. Para a concessão de liberdade condicional ao meio da pena é necessária verificação cumulativa dos requisitos materiais previstos nas duas alíneas do nº 2 do artº 61º do Código Penal, que no essencial se reconduzem, os da alínea a) a finalidades de prevenção especial, e os da alínea b) a finalidades de prevenção geral. II. Assim, a concessão de liberdade condicional ao meio da pena tem caráter excecional e está fortemente limitada pelas finalidades das penas em cada caso, sendo que, conflituando necessidades de prevenção especial com necessidades de prevenção geral, deve ser dado o primado à prevenção geral. III. Com efeito, não se verificando, no caso, exigências de prevenção especial pela evolução positiva do condenado, só deve ter lugar a sua libertação, em momento tão precoce da cumprimento da pena, quando essa libertação não ponha em causa a defesa da ordem e da paz social, ou seja, quando não prejudique o efeito dissuasor da condenação nem o sentimento de justiça e confiança da comunidade na validade da norma violada. Para o efeito releva, de modo significativo a natureza e gravidade concreta do crime praticado e o sentimento pelo mesmo gerado na comunidade. IV. Atentas as circunstâncias concretas do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº 21º do D.L. 15/93, pelo qual a arguida foi condenada, que revelam a sua participação numa atividade de tráfico internacional de estupefacientes de grande dimensão e o seu grau de comprometimento com aquela atividade e organização, concluímos que se trata um crime de grande gravidade absoluta (em comparação com outros tipos de crime), mas também relativa (em comparação com outros crimes ainda compreendidos no mesmo tipo legal previsto), que provoca graves malefícios e gera elevado sentimento de insegurança e intranquilidade públicas. V. Assim, a libertação da arguida é incompatível com a manutenção da ordem e da paz social. Pois, de outro modo, a mensagem que se estaria à passar à comunidade seria a de que o cometimento, pela arguida, deste crime, compensou largamente face às suas diminutas consequências penais, o que seria manifestamente contrário às necessidades de prevenção geral que no caso se fazem sentir, com particular acuidade.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
No processo de liberdade condicional nº 413/23.0TXLSB-E, do Juízo de Execução das Penas de Lisboa - Juiz 4, por sentença proferida a 29/10/2024, à condenada AA foi negada a concessão de liberdade condicional ao meio da pena que se encontra a cumprir.
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Inconformada, a condenada interpôs o presente recurso, concluindo:
«1) A Recorrente encontra-se atualmente a cumprir pena de prisão efetiva de 3 (três) anos e 3 (três) meses, pela prática em coautoria material de um crime de tráfico de estupefaciente, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 e conjugação com os artigos 31.º do DL 15/93, de 22 de janeiro e 73.º n.º 1, al. a) e b) do Código Penal;
2) A … foi ouvida a Recorrente para efeitos de apreciação da liberdade condicional com requisitos referenciados ao meio da pena, nos termos dos artigos 155.º, n.º 1 e 173.º e seguintes do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL), sendo que a mesma não foi concedida;
3) Para o efeito e nos termos de lei, foi elaborado relatório no âmbito dos serviços de reinserção social – sendo que o mesmo foi favorável à concessão da medida de liberdade condicional;
4) Foi elaborado relatório no âmbito dos serviços prisionais – sendo que o mesmo foi favorável à concessão da medida de liberdade condicional;
5) Foi reunido o conselho técnico – sendo que o mesmo foi favorável, por unanimidade, à concessão da medida de liberdade condicional;
6) Foi emitido parecer pelo mui Digno Ministério Público - sendo que o mesmo foi favorável à concessão da medida de liberdade condicional;
7) A Recorrente não tem quaisquer antecedentes criminais, para além dos que decorrem da acusação que levou à reclusão da mesma;
8) A Recorrente não tem qualquer registo ou antecedente disciplinar no âmbito prisional;
9) O Tribunal a quo entende que “AA não deixa de adotar uma atitude tendencialmente desculpabilizante em relação à sua conduta, que procura justificar com dificuldades económicas, com a sua imaturidade, com o seu orgulho, com a sua irresponsabilidade, com o facto de não ter querido recorrer aos pais, com o facto de ter tido vergonha, denotando défices ao nível da capacidade de responsabilização e do pensamento alternativo”;
10) Tal arguição, por um lado, aparenta ser contraditória àqueles factos dados como provados por esse mesmo Tribunal, e por outro, demonstram-se manifestamente infundados e descarecidos de qualquer fundamento técnico, e consequentemente contrários aos vários relatórios constantes nos autos;
11) Refere o mui Digno Tribunal a quo que a ausência de medidas de flexibilização da pena – ergo, licenças de saída jurisdicional – impedem esse mesmo Tribunal de fazer com segurança um juízo de prognose positivo;
12) A existência de licenças de saída jurisdicionais não é um requisito legal para a atribuição da liberdade condicional;
13) O Tribunal de Execução de Penas deve basear-se em razões consistentes com os objetivos da decisão condenatória e fazer uma avaliação razoável à luz desse objetivo. Pois as circunstâncias do caso, a vida anterior do condenado, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão funcionam como índice de re(socialização) e de um comportamento futuro sem o cometimento de crimes;
14) É manifestamente esclarecedor nos presentes autos que todos intervenientes institucionais concordam com a atribuição da concessão da liberdade condicional da Recorrente;
15) Entende ainda o Tribunal a quo que o “facto de se encontrar sozinha em Portugal e de ter toda a sua família no ...” e a “ausência de colocação laboral” são fatores de igual forma decisivos para a não concessão da liberdade condicional;
16) Igualmente se refira que referir que a Recorrente se encontra sozinha em Portugal é uma expressão infeliz, e manifestamente contraditória, sendo que ficou devidamente esclarecido, na matéria de facto dada como provada, que a Recorrente tem apoio social da sua amiga, e bem assim casa para habitar em caso de concessão da liberdade condicional;
17) Quanto à questão laboral, como referido na matéria dada como provada, “em termos laborais, a reclusa refere a possibilidade de trabalhar um restaurante na área da ..., mas irá inscrever-se também no Centro de Emprego”.
18) Desde o primeiro momento da sua reclusão, a Recorrente trabalha sem qualquer interrupção no Estabelecimento Prisional de …;
19) A Recorrente sempre demonstrou uma postura profissionalmente responsável, e não será certamente num momento de liberdade que deixará de a ter, e se o mui Digno Tribunal a quo entende o contrário, então que o prove – o que não o fez;
20) Entende também o Tribunal a quo que “são, assim, muito relevantes as necessidades de prevenção geral, impondo-se a confirmação da validade da norma e a devolução do sentimento de confiança e proteção que tem de ser assegurado pelo sistema judicial, sendo que muito dificilmente um cidadão comum compreenderia a libertação perante este quadro” – referindo-se ao crime em apreço, ou seja, ao crime de tráfico de estupefaciente;
21) A este respeito sempre se dirá que não podemos considerar que a gravidade em abstrato de certo tipo de crimes (incluindo o de tráfico de estupefacientes), obsta, por si só, à concessão de liberdade condicional a meio da pena, não sendo isso o que decorre da Lei;
22) Negar neste caso a liberdade condicional com base nessas exigências de prevenção geral, que são comuns a qualquer crime de tráfico de estupefacientes, significaria, em termos práticos, decidir como se a concessão de liberdade condicional a meio da pena relativamente a crimes de tráfico de estupefacientes estivesse legalmente vedada - e não é isso que, manifestamente, decorre da lei;
23) Assim, a Recorrente não se conforma com a decisão a que ora se recorre, sendo que a mesma, salvo o devido respeito e melhor opinião, assume uma natureza e um conteúdo de manifesta injustiça e contrária àqueles que devem ser os objetivos de reabilitação social da Reclusa, não podendo haver outra opção senão a concessão da liberdade condicional da Recorrente – o que se arguiu para os devidos e legais efeitos;
24) Nos termos do artigo 61.º, n.º 2, al. a) do Código Penal (CP) o tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se for fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes;
25) Na al. b) desse mesmo preceito, refere-se ainda que a libertação se deve revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social;
26) Salvo o devido respeito e melhor opinião – e atenta toda a matéria que foi dada como provada –, ambas as alíneas supra referidas estão amplamente preenchidas;
27) Desta forma, e considerando que a efetiva imagem global da Recorrente retratada a partir do acervo fáctico apurado é amplamente positiva e, por isso, permite suportar o estatuído juízo de prognose favorável, assim impondo o dever de determinar a libertação condicional da Recorrente, o tribunal a quo ao decidir como decidiu violou flagrantemente o estatuído no artigo 61.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal, devendo tal decisão ser revogada e substituída por outra que lhe conceda a liberdade condicional;
28) Conclui-se que o sistema prisional cumpriu a sua função e é o momento de a reclusa demonstrar que já consolidou os valores necessários à convivência em sociedade, através do instituto da liberdade condicional, mostrando-se, pois, verificados os pressupostos indicados na alínea a) e b) do nº 2 do art. 61º do CP;
29) O douto Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou amplamente o artigo 61.º, n.º 2, al. a) e b) do CP – o que desde já se arguiu para os devidos e legais efeitos.»
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O recurso foi admitido com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
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O Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:
«a) A decisão recorrida, apreciando a adaptação à liberdade condicional com referência ao marco do meio do cumprimento das penas, concluiu no sentido de um ajuizamento de prognose desfavorável sobre o comportamento futuro da ora recorrente (prevenção especial positiva ou de ressocialização) tendo, para o efeito, a Mm.ª Juiz que a prolatou ponderado, de forma concreta, as circunstâncias fácticas que se lhe depararam.
b) O Tribunal a quo baseou-se em elementos fácticos/probatórios para decidir pela não concessão da liberdade condicional, sendo que a sua convicção se mostra motivada, alicerçando-se em razões objetivas, impregnadas de lógica e racionalidade e destituídas de quaisquer presunções.
c) O processo de formação da sua convicção está nitidamente apontado na sentença, baseando-se, fundamentalmente, quanto à inexistência de um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro da reclusa, na incerteza de que esta vai, em liberdade, comportar-se fiel ao direito, já que subsistem a nível pessoal necessidades de reinserção social relacionadas com apreciações mais egocêntricas acerca da causalidade e consequência dos seus comportamentos criminais, que potenciam a legitimação dos mesmos, remetendo, caso não se alterem, para a probabilidade de reincidência criminal. Donde considerar que não se mostra concluído o trabalho a efetuar em ambiente prisional havendo que assegurar que a reclusa melhore a sua capacidade crítica sobre a gravidade das suas ações e o dano e impacto para as vítimas prováveis e para a sociedade em geral.
d) A recorrente pretende fazer valer a sua própria apreciação da prova, desprezando, nitidamente, o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
e) Não se descortina qualquer violação do disposto no artigo 61.º, n.º 2, alíneas a) do Código Penal, já que não se verificam ainda as necessárias condições excecionais suscetíveis de revelar patentemente a compatibilidade da medida com a aptidão da reclusa conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.
f) Nem tão pouco se vislumbra qualquer violação do disposto no artigo 61.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal, ou de qualquer outro preceito legal, uma vez que o fenómeno criminoso em que parte da conduta delituosa da condenada se insere atinge a comunidade portuguesa de forma muito intensa, sendo as necessidades de prevenção geral acentuadas atenta a frequência da prática do tipo de crime em causa e as suas repercussões ao nível da comunidade em geral, pela sua danosidade social, pelo que é fundamental dissuadir este tipo de condutas e a reposição da confiança dos cidadãos no efeito tutelar das normas violadas. O cidadão comum não compreenderia o benefício tão cedo da libertação, ainda que condicionada,
g) Assim, a sentença que denegou a liberdade condicional é de manter, nos seus precisos termos, negando-se provimento ao presente recurso.»
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Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
A condenada respondeu, reafirmando a posição que já anteriormente tinha expressado no seu requerimento de interposição de recurso.
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Foi proferido despacho a efetuar o exame preliminar, mantendo o efeito e regime de subida do recurso.
Após os vistos, foram os autos à conferência.
Nada obsta à prolação de acórdão.
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II. OBJETO DO RECURSO
Em conformidade com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J. de 19/10/1995 (in D.R., série I-A, de 28/12/1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que a recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Atendendo às conclusões apresentadas, a única questão que importa apreciar é se estão verificados os requisitos materiais de que depende a concessão, à condenada, de liberdade condicional reportada ao meio do cumprimento da pena.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
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A) DECISÃO RECORRIDA
A sentença recorrida estabeleceu os seguintes factos provados:
«1. No Processo 92/23.4JELSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 7, a reclusa AA foi condenada pela prática em coautoria material de um crime de tráfico de estupefaciente, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 e conjugação com os artigos 31.º do DL 15/93, de 22 de janeiro e 73.º n.º 1, al. a) e b) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão.
2. A pena foi liquidada nos seguintes termos:
- Início: 27.02.23
- 1/2 da pena: 12.10.24
- 2/3 da pena: 27.04.25
- Termo da pena: 27.05.26.
3. Não tem antecedentes criminais e cumpre a primeira reclusão.
4. Encontra-se em regime comum desde 28.02.23.
5. Do seu registo disciplinar não consta qualquer sanção.
6. Não usufruiu até à data de qualquer medida de flexibilização da pena, sendo que, de acordo com a reclusa nunca apresentou qualquer pedido de licença porque “não quer incomodar a amiga, que vive com o marido e a filha de ambos, uma bebé que tem agora seis meses”.
7. AA. nasceu no município ..., capital do estado do …, localizado na região sul do ....
8. O seu processo de socialização decorreu num agregado de mediana condição socioeconómico, fruto da atividade laboral de sua mãe, como ... e o seu pai trabalha como ...
9. O percurso de vida da condenada decorreu numa ambiência familiar pautada por funcionalidades relacionais e por uma função parental investida, por parte dos progenitores e com cooperação com seus avós paternos.
10. A condenada é a filha mais nova de uma fratria de três membros, sendo suas irmãs de … e …anos de idade.
11. AA, refere ter frequentado o ensino no ... e ter concluído o equivalente ao ensino secundário Português.
12. O seu percurso profissional iniciado por volta dos 14 anos de idade, revestiu-se pela necessidade de adquirir experiência e apoiar sua mãe, quando trabalhava aos fins de semana, na atividade de ….
13. Entre ...1...-15, trabalhou como empregada no setor da ..., em ..., em ..., na cidade de CCC…, dos 17 aos 18 anos de idade.
14. A atividade profissional, foi sendo exercida de modo regular, mas por períodos sazonais e em áreas distintas: trabalhou na ..., como ..., pelo período de um ano, dos 18 aos 19 anos de idade, no ...….
15. As funções laborais exercidas na área comercial como ... dos 19 aos 20 anos, denotaram dedicação e empenho, com enfoque significativo do atendimento ao público.
16. Mais tarde, por volta 23-24 anos de idade, a reclusa trabalhou ainda no município de …, como ..., num serviço de ... de uma ..., de empresa de renome do município referido.
17. Uma vez em Portugal, conseguiu alojamento e trabalho no concelho de …, respetivamente nos municípios de …, … e ....
18. À data dos factos AA encontrava-se a viver na ....
19. Nesse período, trabalhou numa ... à entrada da …, em AA….
20. Conseguiu este trabalho em resultado de ter contactado pessoalmente a entidade patronal.
21. Em meio prisional trabalha na oficina da ... desde ....
22. A reclusa recebe salário da atividade desempenhada, quantias que gere conscientemente de acordo com as suas necessidades.
23. Não tem visitas desde ... e tem toda a sua família no ....
24. De acordo com a reclusa, veio para Portugal para começar uma vida nova.
25. Assume a prática do crime e declarou que na altura não tinha consciência da gravidade dos factos, mas hoje tem noção da gravidade do crime que cometeu e das suas consequências (destruição de famílias).
26. Declarou estar arrependida.
27. Justifica o crime alegando que à data dos factos “estava a passar por dificuldades económicas, mas foi imatura, orgulhosa e irresponsável e não quis recorrer aos pais”, porque estes não concordaram com a sua vinda para Portugal e ela “teve vergonha”, queria mostrar-lhes que “tinha conseguido”.
28. A condenada reconhece os danos provocados, a gravidade e a ilicitude da conduta, demonstrando progressiva capacidade autocrítica.
29. A reclusa refere que amadureceu e que se atualmente estiver a enfrentar algum problema pedirá ajuda aos pais.
30. Relativamente às vinculações afetivas, a condenada destacou os laços coesos mantidos com seus pais, avós paternos e irmãs.
31. Presentemente tem mantido contato com a amiga, ..., que a vem apoiando emocional e afetivamente, inclusive no contacto telefónico que vai mantendo.
32. De acordo com a informação disponibilizada pelo pai da reclusa, o relacionamento familiar pauta-se pelo respeito, coesão, cooperação, tendo referido o apoio incondicional em termos afetivos, na saúde e de lhe proporcionar e garantir as condições necessárias no processo de reinserção social, em termos do alojamento e da inserção laboral.
33. A família da reclusa tem uma vida financeira estável e casa própria.
34. Pese embora os pais da condenada tenham ficado surpreendidos e preocupados com o que ocorreu, estão sempre atentos e disponíveis para prestar à filha apoio no período da sua detenção e na fase da sua reinserção social.
35. Indo em liberdade, a reclusa quer regressar ao ..., mas primeiro quer organizar a vida dela aqui em Portugal.
36. Caso saia em liberdade condicional, irá viver para a casa da amiga ... no ..., a qual vive com o marido e com a bebé de ambos, de 6 meses de idade.
37. O casal mostra-se disponível para apoiar e acolher a condenada, dispondo a casa de condições para a acolher.
38. Os amigos da reclusa trabalham os dois numa empresa …o em ..., ela no horário da manhã e ele no horário da noite.
39. Em termos laborais, a reclusa refere a possibilidade de trabalhar num … na área da ..., mas irá inscrever-se também no Centro de Emprego.
40. Até se autonomizar pela via laboral, contará com o apoio económico dos pais: a mãe tem uma ... e trabalha no ramo ...e o pai é ....
41. AA declarou aceitar a liberdade condicional.»
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A sentença recorrida fundamentou de direito (quanto aos requisitos materiais) a decisão tomada, da seguinte forma:
«Requisitos materiais cumulativos (estamos a apreciar com referência ao ½ da pena (art. 61º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Penal):
A) Defesa da ordem e paz social, ou seja, prevenção geral entendida como proteção dos bens jurídicos e da expectativa da comunidade no funcionamento do sistema penal. Este requisito funciona como travão, isto é, se não estiver assegurado não poderá ser concedida liberdade condicional ainda que o condenado revele bom prognóstico de recuperação.
B) A expectativa de que o condenado/a em liberdade, conduzirá a sua vida responsavelmente sem cometer crimes, ou seja, prevenção especial, na perspetiva de ressocialização e prevenção da reincidência.
No fundo resumem-se estes requisitos às finalidades das penas, em especial a de prisão, de defesa da confiança do cidadão em bens tidos como essenciais e de prevenção da prática de crimes, por um lado, e de ajuda ao recluso na mudança e regeneração (ressocialização), por outro lado (arts. 40º e 42º do Cód. Penal).
Na avaliação da prevenção especial terá o julgador de elaborar um juízo da prognose possível sobre o que irá ser a conduta do recluso no que respeita a reiteração criminosa e seu bom comportamento futuro, a aferir pelas circunstâncias do caso, antecedentes, personalidade e evolução durante o cumprimento da pena.
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No caso concreto desta reclusa
Razões de prevenção geral:
A reclusa cumpre uma pena de 3 anos e 3 meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes.
No que toca ao bem jurídico protegido, como é consabido, para além de estarmos perante um crime de perigo abstrato, noutra perspetiva, estamos face a um crime pluriofensivo.
Trata-se de um crime de perigo comum, dado a sua incriminação visar proteger uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente, de carácter pessoal e ainda um de carácter mais geral, a saber, a saúde pública.
E é um crime de perigo abstrato ou presumido, pois que à verificação e punição do crime de tráfico basta tão só a ocorrência de qualquer uma das atividades previstas no referido artigo, sendo que a punição decorre do seu perigo potencial, não sendo necessária a verificação de qualquer perigo em concreto.
O tráfico de estupefacientes é um crime de consequências gravíssimas para a sociedade e por isso o legislador o sancionou com penas pesadas.
Com efeito, o normativo incriminador do tráfico de estupefacientes tutela uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal - a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores – visando ainda a proteção da vida em sociedade, o bem-estar da sociedade, a saúde da comunidade (na medida em que o tráfico dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos), embora todos eles se possam reconduzir a um bem geral - a saúde pública - pressupondo apenas a perigosidade da ação para tais bens, não se exigindo a verificação concreta desse perigo - ver acórdão do Tribunal Constitucional n.º 426/91, de 6 de Novembro de 1991, publicado no Diário da República, II Série, n.º 78, de 2 de Abril de 1992 e no BMJ n.º 411, pág. 56 (seguido de perto pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 441/94, de 7 de Junho de 1994, publicado no Diário da República, II Série, n.º 249, de 27 de Outubro de 1994), onde se afirma: “O escopo do legislador é evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que o respetivo tráfico indiscutivelmente potencia”.
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, que efetuou a adaptação do direito interno ao constante da Convenção Única de 1961 e da Convenção sobre as Substâncias Psicotrópicas de 1971, fazia-se referência a um relatório recente de um organismo especializado das Nações Unidas, onde se dizia: “A luta contra o abuso de drogas é antes de mais e sobretudo um combate contra a degradação e a destruição de seres humanos. A toxicomania priva ainda a sociedade do contributo que os consumidores de drogas poderiam trazer à comunidade de que fazem parte. O custo social e económico do abuso das drogas é, pois, exorbitante, em particular se se atentar nos crimes e violências que origina e na erosão de valores que provoca”.
E no mesmo preâmbulo assinalava-se ainda que “Na verdade, também pelo lado do consumo, isto é, da prática cada vez mais frequente de delitos por consumidores de droga, se vem notando outro elo de ligação com a criminalidade em geral”.
De acordo com o acórdão de 15-09-2010, proferido no processo n.º 1977/09.6JAPRT.S1-3.ª Secção “Os bens jurídicos a acautelar com a incriminação pelo tráfico de estupefacientes são a proteção da saúde individual, da liberdade individual do consumidor, da economia do Estado, porque o tráfico propicia economias paralelas, subterrâneas, de complexa sindicância, fazendo do tráfico um negócio temível e comunitariamente repugnante, fundamentalmente pela devastação física e psíquica do consumidor, geralmente as camadas mais jovens do tecido social, instabilidade e, na maior parte dos casos, a desgraça total do seu agregado familiar, censurável em alto grau no plano ético-jurídico, até pelos custos sociais a que conduz, relacionados com o absentismo laboral e a contração de doenças transmissíveis”.
Assim, neste tipo de crime, “são prementes as exigências de prevenção geral, por os crimes de tráfico de estupefacientes constituírem um dos mais graves flagelos sociais do mundo atual, pelos efeitos contagiantes e alastramento devastador de vidas e mentes humanas, para além da onda de criminalidade que arrastam atrás de si (nesse sentido cfr. Ac. STJ de 03/07/96, in CJSTJ, II, t. 2, pp. 211).
Dificilmente seria, pois, aceite que o agente de ilícitos desta índole fosse libertado por referência ao meio da pena.
Tal libertação não salvaguardaria o sentimento geral de vigência da norma penal violada com a prática dos crimes, banalizaria tal prática, atacaria a paz jurídica entre o cidadão e o seu sentimento de que as normas em questão foram suficientemente defendidas através da pena já cumprida, transmitiria um enfraquecimento da ordem jurídica potenciador de delitos desta natureza, debilitando o efeito dissuasor pretendido, defraudaria, em suma, a confiança da comunidade no funcionamento do sistema penal e faria tábua rasa da tutela dos bens jurídicos visados pelas incriminações em causa.
São, assim, muito relevantes as necessidades de prevenção geral, impondo-se a confirmação da validade da norma e a devolução do sentimento de confiança e proteção que tem de ser assegurado pelo sistema judicial, sendo que muito dificilmente um cidadão comum compreenderia a libertação perante este quadro.
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Razões de prevenção especial:
A reclusa foi condenada pela prática em coautoria material de um crime de tráfico de estupefaciente, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 e conjugação com os artigos 31.º do DL 15/93, de 22 de janeiro e 73.º n.º 1, al. a) e b) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão.
Não tem antecedentes criminais e cumpre a primeira reclusão.
Encontra-se em regime comum desde 28.02.23.
Do seu registo disciplinar não consta qualquer sanção, o que, embora sendo positivo, não deixa de lhe ser exigível.
Não usufruiu até à data de qualquer medida de flexibilização da pena, sendo que, de acordo com a reclusa nunca apresentou qualquer pedido de licença porque “não quer incomodar a amiga, que vive com o marido e a filha de ambos, uma bebé que tem agora seis meses”.
As licenças de saída e o cumprimento de pena em regimes abertos constituem etapas indispensáveis para que o/a recluso/a possa ser testado/a através de contactos e solicitações vindas do exterior, pelo que necessita de iniciar o gozo de medidas de flexibilização da pena. Só assim se saberá se a reclusa adquiriu a mínima preparação para o reingresso na sociedade.
Em meio prisional trabalha na oficina da ... desde ....
A reclusa recebe salário da atividade desempenhada, quantias que gere conscientemente de acordo com as suas necessidades.
Não tem visitas desde ... e tem toda a sua família no ....
De acordo com a reclusa, veio para Portugal para começar uma vida nova.
Assume a prática do crime e declarou que na altura não tinha consciência da gravidade dos factos, revelando défices ao nível do pensamento consequencial, mas hoje tem noção da gravidade do crime que cometeu e das suas consequências (destruição de famílias).
Declarou estar arrependida.
AA não deixa de adotar uma atitude tendencialmente desculpabilizante em relação à sua conduta, que procura justificar com dificuldades económicas, com a sua imaturidade, com o seu orgulho, com a sua irresponsabilidade, com o facto de não ter querido recorrer aos pais, com o facto de ter tido vergonha, denotando défices ao nível da capacidade de responsabilização e do pensamento alternativo.
A condenada reconhece os danos provocados, a gravidade e a ilicitude da conduta, demonstrando progressiva capacidade autocrítica.
A reclusa refere que amadureceu e que se atualmente estiver a enfrentar algum problema pedirá ajuda aos pais.
Presentemente tem mantido contato com a amiga, ..., que a vem apoiando emocional e afetivamente, inclusive no contacto telefónico que vai mantendo.
De acordo com a informação disponibilizada pelo pai da reclusa, o relacionamento familiar pauta-se pelo respeito, coesão, cooperação, tendo referido o apoio incondicional em termos afetivos, na saúde e de lhe proporcionar e garantir as condições necessárias no processo de reinserção social, em termos do alojamento e da inserção laboral.
A família da reclusa tem uma vida financeira estável e casa própria.
Pese embora os pais da condenada tenham ficado surpreendidos e preocupados com o que ocorreu, estão sempre atentos e disponíveis para prestar à filha apoio no período da sua detenção e na fase da sua reinserção social.
Indo em liberdade, a reclusa quer regressar ao ..., mas primeiro quer organizar a vida dela aqui em Portugal.
Caso saia em liberdade condicional, irá viver para a casa da amiga ... no ..., a qual vive com o marido e com a bebé de ambos, de 6 meses de idade.
O casal mostra-se disponível para apoiar e acolher a condenada, dispondo a casa de condições para a acolher.
Os amigos da reclusa trabalham os dois numa … em ..., ela no horário da manhã e ele no horário da noite.
Em termos laborais, a reclusa refere a possibilidade de trabalhar num …e na área da ..., mas irá inscrever-se também no Centro de Emprego.
Até se autonomizar pela via laboral, contará com o apoio económico dos pais: a mãe tem uma … e o pai é ….
É certo que a reclusa não tem antecedentes criminais, cumpre a primeira reclusão e tem tido um comportamento normativo.
Dispõe de apoio familiar, o qual se reputa afetivo, mas não se afigura contentor, uma vez que este apoio sempre existiu e não impediu a reclusa de cometer os crimes.
Dispõe de apoio económico dos pais e dispõe de enquadramento habitacional.
Porém, permanece em regime comum e ainda não usufruiu de medidas de flexibilização da pena, alegando que nunca apresentou qualquer pedido de licença porque “não quer incomodar a amiga, que vive com o marido e a filha de ambos, uma bebé que tem agora seis meses”.
Ora, se nunca usufruiu de uma licença para não incomodar a família que a vai acolher, desconhece os hábitos e rotinas destes, pelo que a sua adaptação à dinâmica familiar poderá vir a revelar-se complicada.
Possui hábitos de trabalho e rotinas laborais e irá inscrever-se no Centro de Emprego, mas não possui colocação laboral assegurada, existindo apenas a possibilidade de trabalhar num …na área da ...
Da factualidade dada como assente decorre que a condenada tem vindo a evoluir ao nível das atitudes face aos crimes e à pena aplicada.
Porém, não basta a reclusa afirmar que tem consciência da gravidade dos crimes que cometeu, que se mostra arrependida, que interiorizou o desvalor e a gravidade da sua conduta e que tem já capacidade para se readaptar à vida social e vontade séria de o fazer, que está a ser proativa, investindo no seu percurso prisional e criando as condições para uma vida em conformidade com o Direito quando em liberdade.
Estes factos devem ser valorados e vistos numa perspetiva de uma evolução normal da reclusa em cumprimento de pena. É o expetável e o desejável.
Assim, atendendo à fase de execução da pena, à natureza e gravidade do crime, à atitude tendencialmente desculpabilizante em relação à sua conduta, que procura justificar com dificuldades económicas, com a sua imaturidade, com o seu orgulho, com a sua irresponsabilidade, com o facto de não ter querido recorrer aos pais, com o facto de ter tido vergonha, denotando défices ao nível da capacidade de responsabilização e do pensamento alternativo, ao facto de na altura não ter consciência da gravidade dos factos, revelando défices ao nível do pensamento consequencial, ao facto de se encontrar sozinha em Portugal e de ter toda a sua família no ..., à ausência de colocação laboral, à ausência de gozo de medidas de flexibilização da pena e à necessidade de consolidar a evolução positiva do seu percurso prisional, de modo a ser atingido o patamar de segurança que permita ao Tribunal fazer o juízo de prognose favorável à liberdade condicional da reclusa e confiar que a mesma não voltará a cometer crimes, ainda não é possível formular quanto à reclusa e à sua conduta futura um juízo de prognose favorável, não lhe podendo ser concedida a liberdade condicional.»
***
B) APRECIAÇÃO DO RECURSO
Conforme acima enunciado, face às conclusões da recorrente, a única questão que importa decidir é se estão preenchidos os requisitos materiais para a conceção à condenada da liberdade condicional ao meio da execução da pena que se encontra a cumprir.
Vejamos.
A liberdade condicional, consistindo num incidente da execução da pena de prisão, visa facilitar o regresso, de forma integrada, do condenado ao seio da comunidade, criando “um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recuperar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão” (ponto 9 do Preambulo do Código Penal – 1982).
Para a sua concessão torna-se necessária a verificação de um conjunto de requisitos de ordem formal e de ordem substancial ou material.
Uma vez que o presente recurso não tem por objeto a apreciação dos requisitos de ordem formal, avancemos para os de ordem material.
Nos termos do artº 61º, nº 2 do Código Penal, “o tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social”.
Para a concessão da liberdade condicional ao meio da pena é, pois, necessária verificação cumulativa dos requisitos materiais (ou também denominados como substanciais) previstos nas duas alíneas do nº 2 do artº 61º do Código Penal, que no essencial se reconduzem, os da alínea a) a finalidades de prevenção especial, e os da alínea b) a finalidades de prevenção geral.
Assim, a concessão de liberdade condicional ao meio da pena “reveste-se sempre de um caráter excecional e não automático, estando condicionada à evolução da personalidade do condenado e fortemente limitada pelas finalidades das penas, em cada caso concreto” (cfr Acórdão do. Tribunal da Relação de Lisboa de 27/01/2022, proferido no processo nº 2093/15.7TXLSB-K.L1-9, relatado por Francisco Sousa Pereira, acessível em dgsi.pt).
Como se explica no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/07/2022 (acessível em dgsi.pt e também citado no acórdão referido no parágrafo anterior), “na análise dos pressupostos da aplicação da liberdade condicional quando se encontra cumprida metade da pena, a avaliação da compatibilidade da libertação do condenado com a defesa da ordem e da paz social remete para elementos como a neutralização do efeito negativo do crime na comunidade, a dissuasão e fortalecimento do seu sentimento de justiça e de confiança na validade da norma jurídica violada e, portanto, para a natureza e gravidade do crime praticado; em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e de prevenção especial, o primado pertence à prevenção geral”.
Entende a recorrente que se verificam ambos os requisitos substanciais, insurgindo-se contra a decisão recorrida, que entendeu não se verificar qualquer deles.
Vejamos se assim é.
Para a verificação do requisito previsto na alínea a), do nº 2 do artº 61º do Código Penal, atinente às necessidades de prevenção especial, é necessário que seja possível formular um juízo de prognose no sentido de que o condenado, quando estiver em liberdade, “conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”. Tal juízo de prognose favorável, por expressa imposição legal, tem de ser sólido e bem ancorado nas “circunstâncias do caso”, na “vida anterior do agente”, na “sua personalidade” e na “evolução desta durante a execução da pena de prisão”.
Assim, importa ter em conta a gravidade do crime, atentas as suas circunstâncias (tráfico internacional, de grande quantidade de estupefaciente, em que a arguida fez a ligação entre quem o introduziu em Portugal e o seu destinatário). Mas também que a condenada, para além da pena de cumpre, não tem (outros) antecedentes criminais, aquando da sua reclusão estava laboralmente inserida, mostra-se arrependida do crime cometido, regista bom comportamento em meio prisional, onde até trabalha. Revela uma personalidade que tem evoluído claramente no sentido do cumprimento das regras da vida em sociedade e da interiorização da gravidade do crime cometido, sendo que esta evolução, francamente positiva, encontra-se ainda em fase de consolidação, atento o reduzido período que a condenada ainda leva de reclusão. Vale por dizer que, a manter-se o percurso até agora registado pela condenada, será possível, a breve trecho, formular-se um juízo sólido e seguro de que, uma vez em liberdade, manterá uma conduta consentânea com as regras sociais e não voltará a cometer crimes.
Quanto à verificação do requisito previsto na alínea b), do nº 2 do artº 61º do Código Penal, atinente às necessidades de prevenção geral, ou seja, para se apurar se a libertação da condenada se revela ou não “compatível com a defesa da ordem e da paz social”, importa atender ao sentimento geral que se geraria na comunidade com a libertação antecipada da condenada, face às concretas circunstâncias e aos concretos contornos do concreto crime cometido.
Como bem se refere no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/10/2023 (relatado por Paulo Costa, proferido no processo nº 288/15.2TXPRT-X.P1 e acessível em dgsi.pt) “na decisão sobre a concessão da liberdade condicional, tem de se atender ao sentimento que toda a comunidade possui ao ser confrontada com a libertação do condenado e aos crimes que fizeram com que estivesse em cumprimento de pena de prisão”.
No caso em apreço, estamos perante a prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artº 21º do D.L. nº 15/93, de cujas circunstâncias concretas resulta que está inserido no âmbito de tráfico internacional de cocaína, de grandes quantidades de estupefaciente, em que a arguida fez a ligação entre quem, vindo do ..., introduziu, de uma assentada, mais de 5 (cinco) Kg em Portugal, e o seu destinatário (no caso a condenada recebeu os mais de 5 Kg cocaína de quem os transportou para Portugal, para os ir entregar a quem o referido estupefacientes se destinava), o que revela a participação numa atividade de tráfico de estupefacientes de grande dimensão, bem como o grau de comprometimento da arguida com aquela atividade e organização.
Estamos, assim, não só perante um crime de grande gravidade absoluta (em comparação com outros tipos de crime), mas também relativa (em comparação com outros crimes ainda compreendidos no tipo legal previsto pelo artº 21º, nº 1 do D.L. 15/93), que provoca graves malefícios (não só para a saúde, mas também por corroer os alicerces de qualquer sociedade) e gera elevado sentimento de insegurança na comunidade e intranquilidade pública.
Não se trata de entender que determinados tipos de crime, em abstrato, não comportam a concessão de liberdade condicional ao meio da pena, como simplisticamente a recorrente parece defender. Trata-se, na realidade, de concluir que, atenta a dimensão e gravidade do tráfico em que a arguida tomou parte, neste caso concreto (mas não necessariamente noutros crimes de tráfico previstos no artº 21º, nº 1 do D.L. nº 15/93, em que seja menor a sua dimensão e, consequentemente, a sua danosidade social e bem assim o menor o grau de participação do respetivo agente) a libertação da arguida é incompatível com a manutenção da ordem e da paz social. Pois, de outro modo, a mensagem que este Tribunal estaria à passar à comunidade seria a de que o cometimento, pela arguida, deste crime, compensou largamente face às suas diminutas consequências penais, o que seria manifestamente contrário às necessidades de prevenção geral que no caso se fazem sentir, com particular acuidade.
É, assim, evidente, que, a libertação da condenada, ao meio da pena, é completamente incompatível com a defesa da ordem e da paz social, porquanto, atenta a gravidade do crime por si cometido, em concreto e face às suas circunstâncias específicas (e sua maior gravidade relativa, em comparação com crimes concretos igualmente previsto e punidos nos termos da mesma norma penal incriminadora), geraria seguramente na comunidade um sentimento de insegurança e de completa falta de confiança na validade e eficácia da norma jurídica violada pela condenada.
É quanto basta para se concluir pela improcedência do recurso, com a consequente confirmação da douta decisão recorrida.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordamos em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, a douta decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) U.C.
Comunique de imediato à 1ª Instância.
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Lisboa, 6 de março de 2025
Os Juízes Desembargadores, Eduardo de Sousa Paiva Manuela Trocado Ana Marisa Arnêdo – Vencida conforme declaração de voto que segue.
DECLARAÇÃO DE VOTO DE VENCIDA
Está em causa, a concessão ou não, ao meio da pena, da liberdade condicional.
Em abreviada síntese, foi aplicada à ora recorrente uma pena, especialmente atenuada, de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º do D.L. n.º 15/93, de 22/1, com referência aos art. 30º, n.º 1 do citado diploma legal e 73º, n.º 1, al. a) e b) do C.P.
Dispõe o n.º 2 do artigo 61º, do C.P. que «O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social»
«(…) a liberdade condicional constitui «uma modificação substancial da forma de execução da reação detentiva», assumindo «não um caráter gracioso, mas a natureza de um incidente da execução da prisão dirigido à ressocialização dos condenados», o que impõe que também o período de liberdade condicional seja computado na pena a cumprir.
A liberdade condicional, última fase de execução da pena, visa promover a «ressocialização social dos delinquentes condenados a penas de prisão de média ou de longa duração através da sua libertação antecipada — uma vez cumprida, naturalmente, uma parte substancial daquelas — e, deste modo, de uma sua gradual preparação para o reingresso na vida livre»1
Como refere Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, pág. 528, «(…) foi uma finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização que conformou a intenção político-criminal básica da liberdade condicional desde o seu surgimento», ademais ressaltando que, no juízo de prognose a levar para efeitos de concessão da liberdade condicional «decisivo deveria ser, na verdade, não o bom comportamento prisional em si – no sentido da obediência aos (e do conformismo com) os regulamentos prisionais – mas o comportamento prisional na sua evolução, como índice de (re) socialização e de um futuro comportamento responsável em liberdade».
Não oferecendo controvérsia a verificação, in casu, do pressuposto objectivo de que se mostra cumprida metade da pena de prisão aplicada à recorrente, cumpre, então, indagar se estão ou não verificados, também, os supostos subjectivos para a concessão da reclamada liberdade condicional.
E, assim sendo, relembremos, antes de mais, as razões aduzidas pela Sra. Juíza para a não concessão, in casu, da liberdade condicional: «(…) neste tipo de crime, “são prementes as exigências de prevenção geral, por os crimes de tráfico de estupefacientes constituírem um dos mais graves flagelos sociais do mundo atual, pelos efeitos contagiantes e alastramento devastador de vidas e mentes humanas, para além da onda de criminalidade que arrastam atrás de si (nesse sentido cfr. Ac. STJ de 03/07/96, in CJSTJ, II, t. 2, pp. 211). Dificilmente seria, pois, aceite que o agente de ilícitos desta índole fosse libertado por referência ao meio da pena. Tal libertação não salvaguardaria o sentimento geral de vigência da norma penal violada com a prática dos crimes, banalizaria tal prática, atacaria a paz jurídica entre o cidadão e o seu sentimento de que as normas em questão foram suficientemente defendidas através da pena já cumprida, transmitiria um enfraquecimento da ordem jurídica potenciador de delitos desta natureza, debilitando o efeito dissuasor pretendido, defraudaria, em suma, a confiança da comunidade no funcionamento do sistema penal e faria tábua rasa da tutela dos bens jurídicos visados pelas incriminações em causa. São, assim, muito relevantes as necessidades de prevenção geral, impondo-se a confirmação da validade da norma e a devolução do sentimento de confiança e proteção que tem de ser assegurado pelo sistema judicial, sendo que muito dificilmente um cidadão comum compreenderia a libertação perante este quadro. (…) Atendendo à fase de execução da pena, à natureza e gravidade do crime, à atitude tendencialmente desculpabilizante em relação à sua conduta, que procura justificar com dificuldades económicas, com a sua imaturidade, com o seu orgulho, com a sua irresponsabilidade, com o facto de não ter querido recorrer aos pais, com o facto de ter tido vergonha, denotando défices ao nível da capacidade de responsabilização e do pensamento alternativo, ao facto de na altura não ter consciência da gravidade dos factos, revelando défices ao nível do pensamento consequencial, ao facto de se encontrar sozinha em Portugal e de ter toda a sua família no ..., à ausência de colocação laboral, à ausência de gozo de medidas de flexibilização da pena e à necessidade de consolidar a evolução positiva do seu percurso prisional, de modo a ser atingido o patamar de segurança que permita ao Tribunal fazer o juízo de prognose favorável à liberdade condicional da reclusa e confiar que a mesma não voltará a cometer crimes, ainda não é possível formular quanto à reclusa e à sua conduta futura um juízo de prognose favorável, não lhe podendo ser concedida a liberdade condicional.»
Como resulta dos trechos transcritos, a decisão revidenda, agora confirmada pela maioria que fez vencimento, conclui, por um lado, que as razões de prevenção geral obstam à concessão da liberdade condicional e, por outro, que, por referência às de prevenção especial, sempre se figuraria, ainda, prematura.
Porém, as circunstâncias concretas do caso (com referência ao acórdão condenatório) e a factualidade dada por assente na decisão recorrida impeliriam, estou convicta, desfecho diverso.
Preliminarmente, dir-se-á que, pese embora seja indiscutível que o tráfico de estupefacientes reclama veementes razões de prevenção geral, não tendo o legislador excluído a possibilidade de concessão da liberdade condicional no marco do meio da pena a concretos tipos criminais, designadamente aos crimes de tráfico de estupefacientes, afigura-se que, sob pena de violação do princípio da legalidade, ao julgador não assiste a faculdade de automaticamente, sem avaliação do concreto circunstancialismo delituoso, excluir tal possibilidade2.
Ora, no caso, constata-se que a Sra. Juíza do Tribunal a quo, ante a objectiva circunstância de estar em crise um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º do D.L. n.º 15/93, de 22/1, arredou, desde logo e mecanicamente, a possibilidade de a libertação da recorrente, a meio da pena. Ou seja, do trecho transcrito, pode deduzir-se que, na óptica da decisão recorrida, sempre que esteja em causa um crime de tráfico de estupefacientes, independentemente das específicas circunstâncias do seu cometimento, por razões de prevenção geral, será de negar a liberdade condicional ao meio da pena, o que, de todo em todo, não se pode corroborar.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Setembro de 2019, processo n.º 30/16.0PEGMR.G1. S1, in www.dgsi.pt.: «(…) no tráfico, o que existe de eticamente muito censurável não é tanto o facto de ele ser um elo de uma cadeia de riscos, tal como também a venda de álcool pode ser encarada – isso não seria bastante para tão grave censura -, mas antes o facto de revelar uma específica relação de exploração de outros seres humanos (a utilização da sua saúde física e psíquica para fins económicos). É essa ideia que torna a imagem do traficante diferente da do agente que meramente viola a ordenação social. Todavia, tal relação não é devidamente valorizada pelos modos concretos de proibição legal do tráfico na maioria das legislações”.
É, porém, de adotar as precauções necessárias para que desse juízo crítico se não parta, como adverte Maia Costa, para uma retórica celebratória, hiperbólica e apocalíptica, colada a uma perspectiva conservadora e autoritária. É que, enfatizando a questão ética em detrimento do significado do tráfico como elo da cadeia de riscos, corremos o risco de falhar naquilo que a pena tem de finalidade primária, que é a protecção dos bens jurídicos.
(…) o paradigma do tráfico de estupefacientes no nosso país alterou-se profundamente a partir de meados dos anos 90, com a disseminação do tráfico pelas rotas atlânticas, o surgimento de narcoestados na costa ocidental africana e depois com o envolvimento progressivo dos países da Europa de Leste e do Norte de África no comércio de opiáceos. Já mais recentemente associou-se a este incremento da oferta o comércio electrónico, principalmente através da chamada darknet, tendo primariamente por objecto opiáceos sintéticos, havendo ainda a acrescentar o impressionante volume de tráfego aéreo entre Portugal e muitos dos países exportadores de produtos estupefacientes. Sobre esta evolução são bem elucidativos os relatórios do OEDT e do SICAD bem como os relatórios anuais de segurança interna. No contexto desta evolução Portugal transformou-se nos últimos 20 anos num importante entreposto de trânsito, principalmente de cocaína e haxixe, tornando-se também destino de uma maior oferta de opiáceos.
Significa isto que no novo contexto do comércio de estupefacientes é necessário considerar a alteração de paradigma, que em boa verdade a legislação existente não tem ainda na devida atenção, sob pena de se gerar uma satisfação anestesiante baseada na aparência de combate às verdadeiras redes de tráfico e de ser quebrada a proporcionalidade (…), pela vastíssima amplitude do tipo e da gravidade dos comportamentos puníveis ao abrigo da lei da droga3»
É que no concreto, pese embora a actividade criminosa da ora recorrente se insira no âmbito daquilo que se pode denominar como tráfico de estupefacientes de âmbito internacional, não é possível olvidar, em sentido claramente apaziguador, que se cingiu a um único acto, no qual aquela se prefigurou como mera intermediária - recebeu de quem, vindo do ..., introduziu cerca de 5 (cinco) kg de cocaína em território nacional, para os entregar ao seu destinatário4 e que, o estupefaciente em causa foi logo apreendido, sem qualquer disseminação.
No que concerne às razões de prevenção especial e às reservas ínsitas na decisão recorrida que, parcialmente, mereceram acolhimento na posição que fez vencimento, cumpre aditar o seguinte:
Como é pacífico, a condenada, para além da pena que cumpre, não tem (outros) antecedentes criminais, aquando da sua reclusão estava laboralmente inserida, mostra-se arrependida do crime cometido, regista bom comportamento em meio prisional, onde até trabalha.
Acresce que: «Indo em liberdade, a reclusa quer regressar ao ..., mas primeiro quer organizar a vida dela aqui em Portugal. Caso saia em liberdade condicional, irá viver para a casa da amiga BB no ..., a qual vive com o marido e com a bebé de ambos, de 6 meses de idade. O casal mostra-se disponível para apoiar e acolher a condenada, dispondo a casa de condições para a acolher. Os amigos da reclusa trabalham os dois numa … em ..., ela no horário da manhã e ele no horário da noite. Em termos laborais, a reclusa refere a possibilidade de trabalhar um restaurante na área da ..., mas irá inscrever-se também no Centro de Emprego. Até se autonomizar pela via laboral, contará com o apoio económico dos pais: a mãe tem uma … e o pai é …».
Não obstante, a Sra. Juíza do Tribunal a quo afirma, em desabono, que a agora recorrente tem um discurso tendencialmente desculpabilizante, denota défices ao nível da capacidade de responsabilização e do pensamento alternativo e faz alusão conclusiva à necessidade de aquela consolidar a evolução positiva do seu percurso prisional.
Todavia, bastará atentar que, de permeio às dificuldades económicas, a reclusa, no âmago, funda o seu comportamento na imaturidade, no orgulho, na irresponsabilidade, no facto de não ter querido recorrer aos pais e de ter tido vergonha para se concluir diversamente. Ou seja, em consonância com a denominada teoria da atribuição5 estamos perante alguém que, apesar da sua juventude, regista uma assinalável capacidade de atribuição interna6, a par das capacidades de auto critica, análise e compreensão do seu próprio comportamento.
No sentido sufragado, em situação idêntica7, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Abril de 2018, processo n.º 678/14.8TXPRT-K.P1, in www.dgsi.pt., decidiu-se assim: «(…) sem deixarmos de concordar que o crime de tráfico de droga é em abstracto muito grave, frequente e gerador de sentimentos sociais negativos, também não podemos ignorar que no caso em apreço o crime cometido não tem esse sinal de gravidade extrema que parece ter sido considerada na decisão recorrida.
A gravidade do crime é um elemento de ponderação relevante para a concessão de liberdade condicional, por razões que têm a ver com os fins de prevenção especial e geral. Actos criminosos mais ilícitos e praticados com maior grau de culpa exigem maiores cuidados na fase de execução da pena para garantir que o seu agente não incorrerá em novo acto criminoso e também para garantir que outras pessoas, através desse exemplo, serão positivamente influenciadas a respeitarem esses bens jurídicos. Quanto mais grave é o crime mais intensa é a necessidade de garantir o êxito das finalidades da prevenção geral e especial, precisamente porque o que está em causa nestes casos é a protecção de bens jurídicos mais valiosos.
As razões de prevenção geral que devem ser ponderadas no momento da decisão de conceder ou não a liberdade condicional têm a ver sobretudo com a preservação da ordem e paz social. A libertação só pode ocorrer num momento em que já se tenham esbatido na sociedade os efeitos negativos do crime e a necessidade da execução da pena. A validade das normas jurídicas, essencial para o sistema de protecção dos valores comunitários garantidos pela tutela penal, assenta numa relação de confiança. A imperatividade da norma é garantida pela confiança social na efectividade da consequência prevista para a sua violação.
O que está em causa é, portanto, saber se num crime de tráfico como este, que não se pode considerar de extrema ilicitude, a libertação é socialmente sustentável. Se a ordem e paz social são adequadamente defendidas, com a libertação a meio da pena de um condenado que, como vimos, interiorizou de forma suficiente a responsabilidade pelo ilícito e já operou uma mudança de personalidade e modo de vida compatível com o respeito pelos bens jurídicos ofendidos e em relação ao qual, em consequência, se pode razoavelmente afastar uma previsão de reincidência.
A nossa resposta é positiva.
O tribunal recorrido referiu em abstracto factores de prevenção geral associados à punição dos crimes de tráfico de estupefacientes, sem referência decisiva às circunstâncias do crime cometido. Mas, como vimos, o juízo sobre a garantia da prevenção geral, muito embora deva ter em conta a gravidade do tipo de crime, não pode deixar de assentar em factos individualizados. De outro modo o legislador teria criado um catálogo de crimes insusceptíveis de concessão de liberdade condicional ou com requisitos acrescidos. Não o fez e por isso o crime de tráfico não se distingue neste plano de qualquer outro. Obviamente que aceitamos a gravidade do crime de tráfico, o impacto das suas consequências na saúde pública e na segurança e a representação social muito negativa que sobre ele impende. Contudo, essa censura social não é unívoca. Não podemos comparar, neste plano, o tráfico de larga escala, em que o criminoso obtém lucros elevados e dissemina a droga por um conjunto vasto de pessoas, com um tráfico como aquele pelo qual o recorrente foi condenado, em que toda a droga foi apreendida imediatamente. A ilicitude expressa na lei, que nos dá a medida da gravidade do crime, é muito diferente numa e noutra situação. A censura social e as necessidades de prevenção geral também»8.
Por último, até pela rareza, particularmente ao meio da pena, em jeito de amparo e de nota lateral, realça-se que in casu:
- O relatório elaborado no âmbito dos serviços prisionais foi favorável à concessão da medida de liberdade condicional;
- O conselho técnico foi favorável, por unanimidade, à concessão da medida de liberdade condicional;
- O Ministério Público emitiu parecer favorável à concessão da medida de liberdade condicional.
Por todo o exposto, teria julgado procedente o recurso e, por conseguinte, concedido a liberdade condicional à recorrente.
Ana Marisa Arnêdo
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1. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24/1/2023, processo n.º 357/16.1TXEVR-J.E1, in www.dgsi.pt.
2. À semelhança do que se verifica quanto à suspensão ou não da execução da pena relativamente aos crimes de tráfico de estupefacientes. A este respeito, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9/3/2023, processo n.º 244/21.1PQLSB.L1-9, in www.dgsi.pt.
3. Sublinhado nosso.
4. Tal qual objectivamente ficou consignado no acórdão.
5. «A teoria da atribuição deve-se a Fritz Heider, que a desenvolyeu na década dos anos 50. Segundo Welner (1972) o seu trabalho consistiu em procurar conhecer o que o homem comum pensa em matéria de causalidade. Parte do pressuposto de que ninguém se satisfaz apenas em registar os factos que ocorrem à sua volta. Mais do que isso, procura sempre achar as causas dos diversos acontecimentos. Estas dão um significado ao que experimenta que, uma vez percebido, levam o indivíduo a reagir perante o ambiente onde se encontra», Atribuição e Auto-Conceito, Adriano Vaz Serra, disponível em https://www.uc.pt/site/assets/files/701244/atribuicao_e_auto-conceito_-_adriano_vaz_serra.pdf.
6. Quando alguém atribui a si próprio um resultado está a efectuar uma atribuição interna, do passo que se esse resultado for atribuído a outras pessoas ou circunstâncias a atribuição é externa.
7. Na qual, aliás, estava em causa uma quantidade de cocaína cerca de quatro vezes superior à ora em apreço.
8. Sublinhado nosso.