I - O vício de nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão reporta-se à contradição lógica entre os fundamentos e a decisão. Tal como ocorre no silogismo em que a conclusão é a consequência necessária das premissas, maior e menor, a decisão tem de ser a consequência lógica dos fundamentos.
II - Quando se invoca que os factos provados não suportam a condenação de algum Réu, estamos perante um erro de julgamento, e não perante contradição entre os fundamentos e a decisão.
III - Os temas de prova integram apenas, de forma mais ou menos genérica, os temas factuais controvertidos, mas não se confundem com os factos alegados nos articulados.
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I – Resenha do processado
1. AA instaurou ação contra BB e CC, pedindo a sua condenação a:
a) Reconhecerem que a autora é dona e legítima proprietária dos prédios urbano e rústico identificados nos artigos 3º, 4º, 5º e 6º, 10º e 11º da presente peça processual;
b) Reconhecerem que o prédio rústico da autora identificado em 3º b) desta peça não tem acesso direto à via pública, designadamente às belgas fundeiras situadas a nascente do prédio urbano identificado em 3º a) desta peça;
c) Reconhecerem que o seu prédio rústico, identificado nos artigos 15º e 16º desta peça processual, se encontra onerado com uma servidão de passagem, constituída por destinação de pai de família, a favor do prédio rústico da autora identificado em 3º b), com as características e extensão indicadas em 19º (depois, já no rústico …) e artigos 27º, 28º, 29º e 30º desta peça processual;
d) Restituírem definitivamente à autora o direito de servidão de passagem descrita precedentemente, desobstruindo ambas as entradas do mesmo, retirando os cadeados colocados nos portões, ou fornecendo uma chave dos mesmos à autora, e retirando ainda todos os objetos e materiais por si colocados, de forma a tornar o caminho transitável em toda a sua extensão e largura, isto é, sem qualquer tipo de obstáculo;
e) Absterem-se, no futuro, de praticar atos que impeçam ou dificultem o direito de passagem;
f) A pagarem, solidariamente, à autora a indemnização/compensação a título de danos patrimoniais e morais que lhes têm causado e continuam a causar, até cessar a perturbação da sua posse e direito de passagem, a liquidar em incidente de liquidação, nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros).
g) Em sanção pecuniária compulsória de € 100,00 (cem euros), por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações determinadas através da sentença que venha a ser proferida nos presentes autos.
Fundamentou tais pedidos alegando, em síntese, ser a Autora e o 1º Réu donos de prédios confrontantes que outrora pertenceram ao mesmo dono; o prédio da Autora não tem comunicação com a via pública, sendo a passagem efetuada pelo terreno do Réu desde o antigo dono comum. Sucede que os Réus realizaram obras no seu prédio, que impedem à Autora o acesso ao caminho.
Em contestação, os Réus suscitaram a ilegitimidade do Réu CC (nunca foi proprietário do terreno), bem como o abuso de direito, e impugnaram motivadamente a factualidade alegada.
Deduziram ainda reconvenção, peticionando:
a) Caso por mera hipótese académica venha a ser reconhecida a existência da servidão sobre o prédio rústico do 1.º réu a favor do prédio rústico da autora, constituída por destinação do pai de família, deve a mesma ser declarada extinta, pelo facto de a autora atuar com abuso do direito e por a sua manutenção se revelar incompatível com o direito de tapagem do dono do prédio onerado com a mesma, designadamente por tal direito se revelar incompatível ou dificultar sobremaneira aquele exercício, sem que daí advenha um prejuízo assinalável para o prédio serviente, com as legais consequências;
b) ou a existência de servidão de passagem por usucapião - deve a merma ser declarada extinta por desnecessidade, ao abrigo do disposto no artigo 1569.º n.º 2 do código civil, deve ser declarada a sua extinção, com as legais consequências.
A Autora replicou, sustentando a improcedência das exceções e da reconvenção.
Os autos prosseguiram os seus termos e, em despacho autónomo foi julgada improcedente a ilegitimidade do Réu CC.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que decidiu:
I.Julgo a ação parcialmente procedente, por provada e, em decorrência, condeno os réus a:
a) Reconhecerem que a autora dos prédios urbano e rústico identificados nos art.º 3, 4, 5, 6, 10 e 11 da petição;
b) Reconhecerem que o prédio rústico da autora identificado no art.º 3 b) da petição não tem acesso direto à via pública, designadamente, às belgas fundeiras, situadas a nascente do prédio urbano identificado no art.º 3 alínea a);
c) Reconhecerem que o prédio rústico dos réus identificado nos art.º 15 e 16 da petição se encontra onerado com uma servidão de passagem constituída por destinação de pai de família, a favor do prédio rústico da autora identificado no art.º 3 alínea b), com as características e extensão indicadas nos art.º 19 e 27 a 30 da petição;
d) A restituírem à autora a passagem, desobstruindo as entradas, retirando os cadeados colocados nos portões ou fornecendo uma chave dos mesmos à autora e retirando todos os objetos e materiais colocados, de forma a tornar o caminho transitável em toda a sua extensão e largura, sem qualquer obstáculo;
e) Absterem-se, no futuro, de praticar atos que impeçam ou dificultem o direito de passagem;
f) A pagarem uma sanção pecuniária compulsória de € 20 (vinte) euros, por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações assinaladas na sentença.
II.Absolvo os réus dos restantes pedidos.
III.Julgo a reconvenção improcedente por não provada e, em consequência, absolvo a autora do pedido reconvencional.
2. Para assim julgar, a sentença considerou a seguinte factualidade:
Factos Provados
Provenientes do Saneador
A - Encontram-se registados a favor da autora AA, que é a dona, 1/2, por compra, pela Ap. ...0 de 16/01/1998 e 1/2, por divisão, pela Ap. ...47 de 13/07/2012, os seguintes prédios sitos no lugar e freguesia ..., concelho ...:
c) Prédio rústico denominado ..., sito em ..., composto de terra de mato e carvalhos, com a área de 430 m2, inscrito na matriz sob o art. ...45 a confrontar do norte com DD, do nascente com estrada, do sul com ribeiro e do poente com EE e descrito sob o n.º ...99- ....
d) Prédio urbano composto de casa do rés-do-chão, andar com anexo para arrumos e logradouro, com a área coberta de 390 m2 e descoberta de 390 m2, inscrito na matriz sob o art. ...48, a confrontar do norte, nascente e poente com herdeiros de FF e do sul com antiga Estrada Nacional n.º ...01 e descrito sob o n.º ...02-....
B - Encontra-se registado a favor do 1.º réu BB, que é o dono, por compra, pela Ap. ...75 de 06/11/2015, o prédio rústico denominado “... e ... ou ...” composto de terra de mato, pinheiro e castanheiro, com a área de 4.900 m2, inscrito na matriz sob o art. ...86, a confrontar do norte com limite de freguesia ..., sul com estrada, nascente com GG e do poente com HH, descrito sob o n.º ...43-....
C - O prédio rústico do 1.º réu referido em B confronta com os prédios da autora referidos em A e com a Rua ..., ....
D - Os prédios referidos em A e B, pertenceram outrora ao mesmo dono, II, não existindo entre eles, qualquer vedação ou muro, ou delimitação, que não fossem os marcos comuns, sendo então o acesso, de e para a via pública, antiga EN ...01, hoje Rua ..., feito através do mesmo portão colocado no logradouro do prédio urbano da autora, junto à via pública e, após esse portão, para se aceder ao prédio do 1.º réu, a pé e de carro de bois, durante todo o ano, era usado o caminho, implantado no logradouro do prédio urbano da autora que deixou de ser utilizado quando o dono II procedeu à abertura de um acesso directo à antiga EN ...01 no prédio do réu, ficando o portão do prédio urbano da autora afecto exclusivamente a este prédio e ao serviço do prédio rústico da autora, uma vez que este não confronta de nenhum lado com a rua.
Provenientes da Audiência de Julgamento
1 - Para acesso do prédio rústico da autora à rua, no tempo do único dono, existia um caminho em terra batida, com a largura de 3 metros com início no logradouro do prédio urbano da autora, na linha divisória dos 2 prédios da autora, com uma extensão de 40 metros, inflectindo depois, já no rústico da autora à esquerda, onde se entrava no prédio do 1.º réu, seguindo em linha recta, no sentido sul/norte, numa extensão de 80 metros, inflectindo em curva à direita, seguindo depois, em linha recta, no sentido poente/nascente, numa extensão de 30 metros, inflectindo depois à esquerda, no sentido norte/sul, até à confrontação do prédio do 1.º réu com o prédio rústico da autora, na parte fundeira deste prédio nas belgas situadas a nascente;
2 - O caminho, sempre foi usado pela autora e pelos únicos donos dos 3 prédios, com carros de bois e tractores, para se aceder à parte fundeira, belgas, situadas a nascente do prédio rústico da autora, durante todo o ano, para cultivo, corte de vegetação e colheitas, devido ao desnível entre os prédios da autora;
3 - O leito do caminho apresenta-se calcado, pisado e despido de vegetação e marcado pelos sulcos dos rodados;
4 - Os réus realizaram obras no prédio rústico do 1.º réu com o intuito de barrar o acesso da autora ao seu prédio rústico, vedando o prédio do réu, na parte em que este confronta com os prédios da autora;
5 - Tapando a passagem com portões de madeira e cadeados e colocando paletes de madeira e caixas de garrafas de vidro a obstruir a mesma;
6 - Os portões de madeira estão fechados à chave;
7 - A autora tem acesso, pedonal apenas, do seu prédio rústico para a rua, pelo interior do seu prédio urbano;
Factos Não Provados
Tema 9 da Prova, parte, isto é, tem apenas acesso pedonal e não carral.
Temas 7 e 8: Ninguém nomeou ou sequer aludiu aos concretos prejuízos morais e perda de réditos da autora, embora se conceda que possam existir, mas não chega alegar.
3. Inconformados com a sentença, dela apelaram os Réus, formulando as seguintes conclusões:
1. Pelo presente recurso, pretendem os RR, nos termos do disposto nos art.º 639.º e 640.º do CPC, ver reapreciada a matéria de facto e de direito que sustentou a decisão recorrida, incluindo a reapreciação da prova gravada, por considerarem incorretamente julgados e considerando a existência de outros meios de prova que impunham decisão diversa da proferida.
2. Discutiu-se a alegada existência de direito de servidão de passagem por destinação de pai de família, constituída a favor de prédio rústico da autora, a reposição do alegado leito de passagem na sua forma originária, retirando os objetos ali colocados, sob cominação de uma sanção pecuniária compulsória, sendo que, em sede de reconvenção, se discutiu o pedido de extinção da servidão de passagem por abuso de direito e por desnecessidade.
NULIDADE DA SENTENÇA - OPOSIÇÃO DOS FUNDAMENTOS COM A DECISÃO:
3. O Tribunal a quo condenou ambos os RR de igual forma:
a) a reconhecer a propriedade da Autora sobre os prédios de que esta se arroga dona;
b) a reconhecerem que o prédio rústico da Autora, identificado no artigo 3b) da PI não tem acesso direto à via pública, designadamente às belgas fundeiras, situadas a nascente do prédio urbano identificado no art. 3 alínea b) da PI;
c) a reconhecer que o prédio rústico “dos réus” se encontra onerado com servidão de passagem constituída por destinação de pais de família;
d) a restituírem, à Autora, a passagem, retirando todos os objetos e materiais colocados, abstendo-se (ambos os Réus), de praticar, no futuro, atos que impeçam ou dificultem o direito de passagem da autora;
e) a pagarem uma sanção pecuniária compulsória de 20€ por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações apostas na sentença.
4. Analisada toda a matéria de facto julgada provada (do saneador e da audiência de julgamento) não existe qualquer menção de que o Réu CC seja dono ou que tenha algum domínio, de qualquer natureza, sobre o referido prédio.
5. Pelo contrário, diz o Tribunal a quo (facto B da decisão de facto), que se encontra “registado a favor do 1.º Réu BB, que é o dono, por compra, pela Ap. ...75 de 06/11/2015, o prédio rústico denominado “... e ... ou ...”, composto de terra de mato, pinheiro e castanheiro, com a área de 4.900m2, inscrito na matriz sob o artigo ...86(…)”, repetindo tal menção no facto provado 1 (do julgamento), dizendo “para acesso do prédio rústico da autora à rua (…) infletindo depois, já no prédio rústico da autora à esquerda, onde se entrava no prédio do 1.º réu(…) até à confrontação do prédio do 1.º réu com o prédio rústico da autora (…)” .
6. Mencionando o 2.º RR CC, no facto provado n.º 4, ao afirmar “os réus realizaram obras no prédio rústico do 1.º réu com o intuito de barrar o acesso da autora ao seu prédio rústico, vedando o prédio do réu (…)”
7. Como tal, a condenação decidida pelo Tribunal a quo, nomeadamente as alíneas c), d), e) e f) do dispositivo da sentença, originam uma efetiva impossibilidade prática e jurídica quanto ao RR CC, pois não ficou provado que este tenha o poder de usar, fruir e dispor do prédio rústico, porquanto o Tribunal apenas considera o outro RR, BB, como titular do direito de propriedade.
8. Assim, a condenação do RR CC, nas alíneas c), d), e) e f) encontra-se em clara oposição com os factos considerados provados, o que configura uma nulidade da sentença, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º n.º 1 c) do CPC, o que pelo presente se invoca, com as legais consequências.
MATÉRIA DE FACTO QUE NÃO DEVERIA TER SIDO CONSIDERADA PROVADA – CONFRONTO COM OS DEPOIMENTOS PRESTADOS EM SEDE DE AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO E JULGAMENTO
9. Tal como se retira da ata de audiência de discussão e julgamento de 12 de fevereiro de 2024, foram tomados depoimentos de parte e declarações de parte à autora, tendo ainda sido inquiridas duas testemunhas indicadas por esta [JJ (cujo depoimento se iniciou às 11:42 horas e terminou às 12:05 horas) e KK (cujo depoimento se iniciou pelas 12:06 horas e terminou pelas 12:28 horas)], a que acresceram duas testemunhas indicadas pelos RR [LL (cujo depoimento se iniciou pelas 12:29 horas e terminou pelas 12:31 horas) e que declarou nada saber quanto à matéria do processo), e II, ex-companheiro da autora, cujo depoimento se iniciou pelas 12:32 horas e terminou pelas 12:47 horas).
10. Debruçando-nos, em primeiro lugar, sobre a credibilidade conferida pelo Tribunal a quo a cada uma das testemunhas apresentadas pelas partes, conjugando a fundamentação de facto e análise crítica da prova verificamos que o Tribunal a quo partiu de um preconceito abstrato, considerando que, pelo facto de a testemunha dos RR II ter vivido em união de facto com a autora, ao aceitar prestar depoimento fê-lo com o intuito de a prejudicar, afirmando que o mesmo se encontra “em nítida rota de colisão e animosidade com a autora, embora não o confessasse” (pág. 12).
11. Sucede que a realidade afasta claramente aquele entendimento do Tribunal a quo, o que se pode verificar que no depoimento da testemunha II, a partir do minuto 14:40, quando questionado se está de relações cortadas ou zangado com a autora este nega perentoriamente, ouvindo-se claramente a autora, que se encontrava presente ao fundo da sala, ao minuto 15:25 deste mesmo depoimento, a dizer que é verdade que não estão zangados, nem de relações cortadas, deitando por terra o preconceito que o Tribunal demonstrou, tendo ainda a Mm.ª Juíza ainda respondido, dizendo, no seguimento do minuto 15:25 “tenho de perguntar isto, uma vez que, do seu ponto de vista, não é usual um ex-companheiro aceitar prestar depoimento, ainda por cima do lado contrário ao da sua ex-companheira” (…) “é só porque não é normal, nessas situações a pessoa demarca-se, diz não tenho nada a ver não falo, pronto, acabou… ou pelo menos não vem pelo lado contrário, é aí que eu quero chegar, pronto…”
12. Ainda no que diz respeito às duas testemunhas apresentadas pela Autora, casadas entre si, o Tribunal a quo omite e desvaloriza que as mesmas tenham afirmado que se encontram em litígio com o Réu CC. Na verdade, quanto à testemunha KK, tal facto é mencionado na ata de 12 de fevereiro de 2024, onde se menciona que “aos costumes disse ser amigo da autora e estar de relações cortadas com os réus, mas que tal não o impede de dizer a verdade”, mas não é levado em conta pelo Tribunal na análise crítica da prova produzida.
13. Acresce a isto que a testemunha JJ, já acima mencionada, no decorrer do minuto 21:00 afirma ser proprietária “do terreno onde está o barraco“, informando (minuto 21:20) que tem um processo a decorrer contra o Réu CC, que já foi obrigado a indemnizá-la (minuto 21:38), dizendo ainda que que o prédio referido em B dos factos provados é seu (minuto 22:30 do seu depoimento).
14. Também o marido daquela, KK, afirmou no seu depoimento, já acima identificado, (minuto 20:05) que se encontra em litígio com o Réu CC, tendo inclusivamente (minuto 20:42) dito que o Réu CC lhe tentou bater e que está de relações cortadas com os RR, dizendo que o terreno onde foi feito o caminho de acesso da via pública ao “barraco” existente no prédio do 1.º RR era seu e que lhe foi tirado contra a sua vontade, sendo esse o fundamento do litígio que mantém com os RR.
15. Como tal, não é concebível que o Tribunal a quo tenha desvalorizado o depoimento da testemunha apresentada pelos RR, II, ao mesmo tempo em que valorizou sobremaneira os depoimentos das duas únicas testemunhas indicadas pelos Autores, que confessaram claramente que estão em litígio com os RR, sob pena de se confundir o princípio da livre apreciação da prova com a existência de preconceitos abstratos e, aqui no caso, facilmente afastados pela prova efetivamente produzida.
16. Assim, deveriam ter sido considerados não provados os seguintes factos (dados como provados pelo Tribunal a quo):
“1-Para acesso do prédio rústico da autora à rua, no tempo do único dono, existia um caminho em terra batida, com a largura de 3 metros com início no logradouro do prédio urbano da autora, na linha divisória dos 2 prédios da autora, com uma extensão de 40 metros, inflectindo depois, já no rústico da autora à esquerda, onde se entrava no prédio do 1.º réu, seguindo em linha recta, no sentido sul/norte, numa extensão de 80 metros, inflectindo em curva à direita, seguindo depois, em linha recta, no sentido poente/nascente, numa extensão de 30 metros, inflectindo depois à esquerda, no sentido norte/sul, até à confrontação do prédio do 1.º réu com o prédio rústico da autora, na parte fundeira deste prédio nas belgas situadas a nascente; (por acordo das partes).
2-O caminho, sempre foi usado pela autora e pelos únicos donos dos 3 prédios, com carros de bois e tractores, para se aceder à parte fundeira, belgas, situadas a nascente do prédio rústico da autora, durante todo o ano, para cultivo, corte de vegetação e colheitas, devido ao desnível entre os prédios da autora;
3-O leito do caminho apresenta-se calcado, pisado e despido de vegetação e marcado pelos sulcos dos rodados;
4-Os réus realizaram obras no prédio rústico do 1.º réu com o intuito de barrar o acesso da autora ao seu prédio rústico, vedando o prédio do réu, na parte em que este confronta com os prédios da autora;
5-Tapando a passagem com portões de madeira e cadeados colocando paletes de madeira e caixas de garrafas de vidro a obstruir a mesma;
7-A autora tem acesso, pedonal apenas, do seu prédio rústico para a rua, pelo interior do seu prédio urbano;”
17. Quanto ao facto 1, em específico, não corresponde à verdade que as partes tenham acordado no seu teor, designadamente na parte “inflectindo depois, já no rústico da autora à esquerda, onde se entrava no prédio do 1.º réu, seguindo em linha recta, no sentido sul/norte, numa extensão de 80 metros, inflectindo em curva à direita, seguindo depois, em linha recta, no sentido poente/nascente, numa extensão de 30 metros, inflectindo depois à esquerda, no sentido norte/sul, até à confrontação do prédio do 1.º réu com o prédio rústico da autora, na parte fundeira deste prédio nas belgas situadas a nascente; (por acordo das partes).” Na verdade, os RR sempre defenderam, do início ao fim dos autos, que o acesso ao prédio rústico da Autora sempre foi através do prédio Urbano da mesma, sem que a passagem para as belgas fundeiras desse prédio rústico da Autora se desse por dentro do prédio rústico do RR.
18. Acresce que, do depoimento da testemunha II resulta claramente que este nega que tal seja verdade (audiência de discussão e julgamento de 12 de fevereiro de 2024, cujo depoimento se realizou entre as 12:32 horas e as 12:47 horas):
a) minuto 2:35: “havia um caminho de consortes e o MM (que vendeu o prédio rústico a si e à Autora) tinha a entrada própria para ele”
b) minuto 04:44: está um marco na estrema, a passagem que havia (a passagem da autora) não foi nada afetada.
c) minuto 05:36: Depois que fizeram a partilha (ano 2008), o caminho da autora era sempre “pelo terreno do MM”, sempre dentro do terreno que era de ambos quando eram proprietários em comum;
d) minuto 07:43: quando comprou “aquilo tudo” tinha de passar pelo terreno do MM, não ia pelo terreno que agora é propriedade do 1.º RR.
e) Minuto 8:10: quando fez a divisão, em processo judicial de divisão de coisa comum (ano 2008) a autora, para descer para a parte de baixo do seu terreno rústico (belgas), servia-se por dentro do seu próprio terreno. A entrada que ela tem agora está desviada 30 metros da estrema inicial.
f) Minuto 9:10: quando fazem a partilha (em 2008), a autora tem passagem própria para as belgas fundeiras (pelo prédio do MM, comprado pela testemunha e pela autora e que, em 2008, ficou por partilha para a autora) A Autora não tem caminho pelo que é do 1.º RR.
g) Minuto 13:55: a testemunha fez a estrada (o caminho aqui em causa), naquilo que não é da AA (autora), fez no seu terreno para não ter de passar elo terreno que era da Autora.
19. A testemunha II afastou claramente a versão da autora, ao esclarecer de forma cabal que o caminho existente no prédio do 1.º RR nunca serviu para uso dos prédios da Autora, muito menos para passar para as belgas fundeiras do prédio rústico, pois que esse prédio sempre teve, para seu uso, um caminho próprio, pelo que devem os factos provados n.ºs 1, 2, 3, 4, 5 e 7 (provenientes da audiência de julgamento) serem dados como não provados, pois que se encontram em clara contradição com a prova produzida, nomeadamente com a prova testemunhal.
20. Na verdade, faltando prova documental que comprovasse a versão da autora, esta era foi a única testemunha capaz de esclarecer o Tribunal, pois que, sendo a única pessoa de onde poderia emanar a constituição da servidão por destinação de pai de família, pois que apenas ele foi proprietário, ao mesmo tempo, dos prédios da Autora e do 1.º RR, negou que a existência de “sinais visíveis e permanentes passíveis de revelar a serventia”, no ano 2008, à “data da separação” dos prédios rústicos da Autora e do 1.º RR, uma vez que estas servidões só se constituem no momento da separação (Pires de Lima e Antunes Varela, sufragados pelos entendimentos dos Acórdãos 1.ª Secção Cível da Relação de Guimarães, de 12/0472012, processo 438/10.5TBAMR.G1 ou Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16/1072012, processo 2764/08.6TBPBL.C1).
DO PEDIDO RECONVENCIONAL FORMULADO PELOS RR – EXTINÇÃO DA SERVIDÃO POR ABUSO DO DIREITO E/OU POR DESNECESSIDADE
21. Admitindo, por mera cautela de patrocínio, o que nem se concede, que os fundamentos supra possam não ser acolhidos, mantendo-se a decisão de reconhecimento da servidão invocada, sempre deve ser declarada a extinção da respetiva servidão, pelo facto de a Autora atuar com abuso do direito e por a sua manutenção se revelar incompatível com o direito de tapagem do dono do prédio onerado com a mesma, uma vez que tal direito se revela incompatível ou dificulta sobremaneira aquele exercício, sem que daí advenha um prejuízo assinalável para o prédio da autora, ou por desnecessidade, ao abrigo do disposto no artigo 1569.º n.º 2 do CC.
22. É verdade que até meados do ano 2008, a Autora e a testemunha II viveram em união de facto, tendo ambos sido comproprietários dos prédios urbano e rústico identificados na alínea A dos factos provados provenientes do saneador (terreno do “MM”), tendo a testemunha II também sido único proprietário, naquele tempo, do terreno identificado na alínea B) dos factos provados no saneador, contíguo aos prédios da autora, prédio este que agora pertence ao 1.º RR, tendo nessa data, por ação de divisão de coisa comum, sido separada a respetiva propriedade, mantendo aquele II a propriedade do prédio que agora é do 1.º RR, tendo-o vendido em data posterior.
23. Nos próprios dizeres do Tribunal a quo reconhece-se que o caminho aqui em causa, ainda que represente uma utilidade para a Autora melhor aceder às belgas fundeiras, comporta uma restrição ao direito de propriedade do RR sobre o seu prédio demasiado elevada quando comparada com a referida utilidade, pois que a Autora consegue agora ter acesso fácil e cómodo por outra via, pelo interior do seu prédio urbano.
24. Na reconvenção, defenderam os RR, sufragados por uma parte da Jurisprudência, nomeadamente daquela que se encontra sufragada pelo Acórdão da Relação de Coimbra de 13/11/2012, que a eventual servidão por destinação de pai de família, a ser reconhecida, deveria ser extinta, tanto por desnecessidade como pelo abuso do direito da banda da Autora.
25. Comprovada a desnecessidade, inclusivamente na decisão proferida pelo Tribunal a quo, acresce a questão do abuso de direito, que se encontra não no facto de a autora tem por onde se servir pelo que é dela mas no facto de, em 2008 quando fez a partilha com o seu ex-companheiro, a Autora não mais se ter servido por ali, tentando agora aproveitar-se de nada ter ficado escrito quanto aos efetivos limites de cada um dos prédios para obter um direito que sabe que não lhe assiste, pois que é abusivo.
26. Parece-nos evidente que, quando a Autora interpôs a ação de divisão de coisa comum contra o seu companheiro em 2008, tinha a intenção de separar, de uma vez, aquilo que era seu daquilo que era do seu ex-companheiro, pelo que quando ambos acordaram na efetiva divisão de coisa comum e nada referiram quanto à eventual existência de servidões naqueles prédios pretenderam cortar, de vez, tudo aquilo que tinham em comum até àquela data, onde obviamente se incluíam os acessos aos seus próprios prédios por dentro daquilo que era seu.
27. Como tal, aliado ao fundamento da desnecessidade, o fundamento relacionado com o abuso do direito ganha uma força ainda maior, cremos que passível de obstar à manutenção da servidão invocada pela Autora pelo que, por esta conjugação, e por se verificar ilegítimo o exercício que a Autora pretende fazer do direito, que é manifestamente excessivo, sempre deve ser declarada a extinção da dita servidão, desonerando o prédio do 1.º R, com as legais consequências.
28. A sentença de que ora se recorre viola, entre outros, o disposto no artigo 607.º n.º 4 e 615.º n.º 1 c), todos do Código de Processo Civil e 1305.º e 1569.º n.º 2, todos do Código Civil.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V/ Exas. seguramente não deixarão de suprir, soçobrando a fundamentação que levou o Tribunal recorrido a decidir a ação parcialmente procedente, deverá revogar-se a sentença recorrida:
a) Declare nula a sentença pelo fundamento supra invocado;
b) Caso assim se não entenda, substituindo-se por outra que julgue improcedente os pedidos formulados pela Autora, ora recorrida e absolvendo os RR;
c) Caso assim se não entenda, considerando procedente a reconvenção formulada pelos RR.
Assim fazendo Vªs Exªs, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA
4. A Autora contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as questões a decidir:
· Nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão
· Reapreciação da matéria de facto
· Em função do que se decidir, se é de alterar a subsunção dos factos ao direito
5.1. Nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão
A questão vem suscitada relativamente à condenação do Réu CC no tocante ao dispositivo das alíneas c), d), e) e f) da sentença.
Entendem os Apelantes que tal Réu não devia ter sido condenado, dado que dos factos provados “não existe qualquer menção de que o Réu CC seja dono ou que tenha algum domínio, de qualquer natureza, sobre o referido prédio”.
Assim colocada a questão resulta manifesto para nós que a mesma não pode proceder.
É que, o vício de nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão reporta-se à contradição lógica entre os fundamentos e a decisão. Tal como ocorre no silogismo em que a conclusão é a consequência necessária das premissas, maior e menor, a decisão tem de ser a consequência lógica dos fundamentos.
Nos termos do art.º 607º nº 3 do CPC, o juiz, após descriminação dos factos provados, inicia a subsunção desses factos às normas de direito que considera aplicáveis ao caso, para terminar por concluir/decidir se ao Autor assiste ou não razão.
Coisa diferente da concordância lógica entre os fundamentos e a decisão é o erro de julgamento.
Trata-se, portanto, de uma questão de lógica de raciocínio, ou seja, «Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.» [[1]]
No mesmo sentido, a jurisprudência: «As nulidades de sentença apenas sancionam vícios formais, de procedimento, e não patologias que eventualmente possam ocorrer no plano do mérito da causa». [[2]]
Ora, a argumentação dos Apelantes remete-nos para um problema de erro de julgamento na aplicação do direito aos factos (saber se os factos provados permitem a responsabilização/condenação do Réu), e não para a contradição entre os fundamentos e a decisão.
Assim, conclui-se pela inexistência da nulidade, devendo esta questão vir a ser apreciada em sede própria, ou seja, na subsunção dos factos ao direito.
5.2. Reapreciação da matéria de facto
Consideram os Recorrentes que os factos provados 1 a 7 devem passar a ser considerados não provados.
Impor-se-ia então analisar os pontos de facto questionados pela Recorrente. Porém, afigura-se-nos que a solução do presente caso passa pela anulação do julgamento, determinando-se o reenvio dos autos à 1ª instância para ampliação da matéria de facto, em conformidade com o art.º 662º nº 2 al. c) do CPC.
§ 1º - Para melhor se entender o que se dirá de seguida, impõe-se uma prévia e breve abordagem de conceitos jurídicos relacionados com o tema do litígio.
A causa de pedir na presente ação é complexa. No essencial, invocou-se a existência de uma servidão constituída por destinação de pai de família e pede-se a condenação dos Réus a tal reconhecer. [[3]]
Por outro lado, não se pede a constituição da servidão, mas o reconhecimento daquela que se alegou já existente. Nessa medida, a ação é de condenação, e não constitutiva.
O direito de propriedade é a forma mais plena e absoluta de domínio sobre os bens, que a todos se impõe e vincula, a plena in re potestas.
São, porém, admitidas restrições, mas apenas “nos casos previstos na lei”: art.º 1306º nº 1 do Código Civil (de futuro, apenas CC).
As servidões, sendo um encargo imposto a um prédio, constituem uma dessas restrições na medida em que restringem a possibilidade de uso e/ou fruição plena do prédio serviente pelo seu titular.
Contraponto dum encargo é a existência de um proveito.
As servidões são também direitos reais de gozo e, de acordo com o art.º 1544º nº 1 do CC, podem ter por conteúdo “quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, suscetíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor”.
Depois, há que ter em atenção que a servição respeita sempre e em primeira linha a uma relação predial.
Daí decorre que as “utilidades” são perspetivadas em função dos proveitos que trazem ao prédio dominante, e não em função da pessoa que em cada momento seja o seu proprietário. Pese embora este possa disfrutar da “utilidade” proporcionada, a trave mestra da servidão implica sempre que o proveito é constituído de forma imediata ao prédio e só de forma mediata ao seu proprietário.
As servidões por destinação do pai de família exigem os seguintes requisitos para se terem por verificadas (artº1549º do CC):
· Existência de dois prédios, ou frações de um só prédio, que tenham pertencido ao mesmo dono;
· Separação posterior dos prédios relativamente ao direito de propriedade e que ao tempo da separação outra coisa se não tenha declarado no respetivo documento relativamente à destinação.
· Pré-existência, à data da separação do domínio, de sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro (destinação);
Num outro ângulo, quando duas pessoas são titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa, diz-se que são comproprietários; na falta de indicação no título constitutivo, presume-se que cada um tem uma quota de 50%: art.º 1403º nº 1 e 2 do CC.
E, nos termos do art.º 1408º nº 1 e 2 do CC, o comproprietário não pode, sem consentimento dos restantes consortes, alienar nem onerar parte especificada da coisa comum e, se o fizer, tal será considerado disposição ou oneração de coisa alheia.
Porém, ninguém é obrigado a permanecer na indivisão (art.º 1412º nº 1 CC), sendo que a divisão por ser feita por acordo ou em ação instaurada para o efeito (art.º 1413º CC).
§ 2º - O direito probatório material
São duas as regras básicas em termos de direito probatório material: ao Autor compete a prova dos factos constitutivos do seu direito e ao Réu a dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do Autor: art.º 342º nº 1 e 2 do CC.
No caso, à Autora competia alegar e provar os pressupostos da servidão invocada e da responsabilidade civil; aos Réus, a alegação e prova das exceções da desnecessidade da servidão e do abuso de direito.
No domínio da prova, mostra-se consagrado entre nós o princípio da livre apreciação (art.º 607º nº 5 CPC), significando que, à partida e como regra, todos os meios de prova têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração.
Porém, nem sempre é assim, e daí a ressalva da 2ª parte do nº 5 do art.º 607º do CPC: a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Trata-se da denominada prova vinculada, em que a lei vincula (passe o pleonasmo) o julgador a determinados aspetos ou resultados dos meios de prova. São os casos, por exemplo dos artigos 371º e 377º CC (valor probatório dos documentos autênticos e autenticados) ou do art.º 358º CC (confissão).
Quando ocorre erro na apreciação da matéria de facto, por violação das regras probatórias de direito material, incumbe ao Tribunal da Relação a respetiva reapreciação nos termos dos artigos 607º nº 5, 662º e 663º nº 2 do CPC, ainda que tal não tenha sido invocado.
«Regras que igualmente justificam que, mesmo oficiosamente, tanto a Relação como o Supremo Tribunal de Justiça, devam interferir na matéria de facto provada e não provada quando, no âmbito da apelação ou da revista, se verificar que a mesma está afetada por erro de direito probatório material, quer na vertente da atribuição de força probatória plena a meios que dela destituídos, quer na vertente do desrespeito dessa força probatória.» [[4]]
§ 3º - Visto isto, verifica-se que a sentença padece de várias irregularidades na valoração/fixação da matéria de facto, que se passam a elencar.
a) - Resulta de documentos autênticos juntos aos autos (escrituras públicas elaboradas notarialmente, bem como as certidões da Conservatória de Registo Predial):
· que a Autora e o seu unido de facto, II, adquiriram os prédios referidos no facto provado A em 09/07/1997, em compropriedade, portanto;
· depois de cessada a união de facto, é que a Autora passou a proprietária exclusiva desses prédios, por transação efetuada em 24/10/2008 em ação de divisão de coisa comum;
· no que toca ao prédio do Réu (facto provado B) mostra a escritura pública que foi adquirido em 29/10/2015 a LL, o qual, por sua vez, o havia adquirido a II em 16/12/2008.
Os factos provados A a D, inclusive, não dão nota desses tratos sucessivos, sendo que importam à constituição da servidão invocada, na medida em que, constituindo ela um encargo dos prédios, a servidão não podia ser validamente constituída apenas pelo comproprietário II e era essa a sua qualidade.
Ou seja, até 2008, II não era o “mesmo e único dono” dos prédios hoje da Autora. A partir de 2008, deixou de ser comproprietário dos prédios hoje da Autora, bem como do do Réu.
Acresce que a situação de serventia de um dos prédios em relação ao outro tem de existir e ser conservada até ao momento da divisão dos prédios e, bem assim, que no documento que tenha oficializado a separação dos prédios nada se tenha declarado, contrariando a existência do encargo. [[5]]
Os autos também nada referem quanto ao sucedido durante o tempo em que LL foi proprietário (2008-2015) do prédio hoje do Réu, sendo que aí se terá operado (também) uma “separação”.
b) Outras incongruências/omissões de factualidade relevante:
No facto provado 1 faz-se alusão ao caminho “no tempo do único dono”, sem que vislumbremos saber quem foi esse “único dono” (nos termos referidos anteriormente, tratar-se-ia de um comproprietário) e nem sequer se dá uma data aproximada em que começou a existir esse caminho. Não obstante, ela vem indiciada no ponto 18 da PI, cujo conteúdo aqui se mostra omisso.
No facto provado 3 dá-se nota dos “sinais visíveis e permanentes”, mas sem qualquer referência a datas, designadamente se já existiam ao tempo da separação dos prédios, antes se aludindo ao presente.
Como acima se viu (ponto 2. deste acórdão), no elenco dos factos não provados apenas se referem temas de prova.
Os factos provados, ou não provados, não se confundem com temas de prova, até porque um tema de prova pode integrar vários factos.
«Diversamente da prova, que tem como objeto factos, dos articulados, que cumprem a função de alegação de factos, e da decisão de facto, que inclui todos os factos relevantes para a decisão da causa, a enunciação dos temas de prova não tem em vista (embora também não vede) uma listagem de factos, ainda que principais, mas de questões formuladas de modo abrangente, que orientem a posterior produção de prova, sem todavia a condicionar ou restringir.» [[6]]
Daí que seja irregular consignar-se no elenco dos factos provados “temas de prova”, sem qualquer outra referência, designadamente aos números dos artigos dos articulados ou se estão contidos na petição ou na contestação (o que releva também em sede de reapreciação da matéria de facto pelas Relações e para se apurar os ónus de prova).
«Quando não contenham factos concretos, é evidente que não serão os “temas de prova” a ser julgados provados ou não provados na sentença, «já [que] a decisão sobre a matéria de facto nunca se poderá bastar com tais formulações genéricas, de direito ou conclusivas, exigindo-se que o tribunal se pronuncie sobre os factos essenciais e instrumentais (que devem transitar para a sentença) pertinentes à questão enunciada». [[7]]
Sem dúvida que os factos admitidos por acordo podem ser obtidos no decurso da audiência de julgamento; porém, nesse caso há que atender que «Sem necessidade de então se proceder logo à sua transcrição, basta a identificação de tais factos, por referência aos articulados, para tornar evidente e incontroversa a desnecessidade de outras diligências probatórias e para simplificar e abreviar a audiência final.» [[8]]
E nessa mesma PI se dá nota de outros factos com relevância para a decisão, mas que se mostram omissos. Assim:
- a anterior existência de uma servidão, desta feita a favor do prédio do Réu, que teria sido extinta (pontos 20 a 23 da PI)
- inexistência entre os prédios qualquer vedação, muro ou outra obra que não fosse os comuns marcos (ponto 17 da PI)
- nos pontos 32 e 43 da PI alegam-se factos importantes — “a parte fundeira/belgas a nascente do prédio rústico da autora, à qual de veículo não se consegue aceder pelo mesmo, atento o seu relevo, em declive/acidentado, como se disse, também dá acesso aos prédios que se situam a nascente do prédio rústico da autora que marginam, o ribeiro/rio, propriedade de outros tantos proprietários” + “o sítio mais adequado, exequível e indicado para servir de acesso à via pública de e para parte fundeira do prédio/belgas da autora é através daquela servidão de passagem” —, designadamente em face da desnecessidade invocada na reconvenção
- omissão de factos que suportem a condenação do Réu CC, e que se mostram alegados no ponto 37 e 42 (in fine)
Também omissão no tocante a factos relevantes da contestação, designadamente para efeitos da invocada desnecessidade [[9]] e abuso de direito, que não constam dos factos provados nem dos não provados. Assim:
- A parte final do ponto 28 da contestação, “depois de 2008, a Autora não mais entrou no prédio do ora 1.º Réu, porque acedia diretamente do seu prédio urbano para o rústico, por onde tem fácil acesso”.
- O teor da transação efetuada na divisão de coisa comum, bem como a vontade das partes no estabelecimento da cláusula 4ª
- Que é pelo seu prédio urbano que a Autora se tem servido durante todos estes anos para aceder ou cultivar o seu prédio rústico (pontos 34 a 36)
§ 4º - Consequências ou procedimento subsequente à constatação dessa omissão factual
São hoje da maior amplitude os poderes conferidos aos Tribunais da Relação para proceder à alteração/modificação da matéria de facto, provada ou não provada, tida em conta na 1ª instância (cf. art.º 662º do CPC).
Na verdade, permite-se-lhe agora que no processo de formação da sua própria convicção, o Tribunal da Relação possa, não só reapreciar os meios probatórios produzidos em 1ª instância, mas inclusive proceder à renovação desses meios de prova e até ordenar a produção de novos meios de prova.
Contudo, sempre que dos autos não constem todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, ou se mostre indispensável a respetiva ampliação, o Tribunal da Relação deve anular a decisão proferida em 1ª instância: al. c) do nº 2 do art.º 662º do CPC.
Entendemos que no presente caso se impõe essa solução.
Na verdade, existem factos alegados na petição inicial e na contestação que se mostram essenciais/complementares/instrumentais para uma correta decisão da causa, perspetivando as várias soluções possíveis do litígio, como no § anterior se deixou consignado.
Trata-se de matéria de toda a relevância, e atinente também à solução jurídica do pleito, pelo que, mostrando-se possível uma melhor investigação, a ela se deve proceder, na procura do “apuramento da verdade e da justa composição do litígio” (art.º 411º CPC).
Na pronúncia/fixação desses factos não pode este Tribunal substituir-se à 1ª instância, sob pena de violação do duplo grau de jurisdição, sabido como é que, em matéria de facto, e como regra, os Tribunais da Relação julgam em última instância.
Assim, anulada a sentença, incumbe como procedimento subsequente ordenar o reenvio dos autos à 1ª instância, a fim de se colmatar as deficiências apontadas em sede factual, com reabertura da audiência de julgamento.
Isto sem prejuízo de, caso o Tribunal assim o entenda, se venha a convidar as partes ao aperfeiçoamento dos seus articulados (petição, contestação-reconvenção, réplica) no tocante a uma melhor articulação dos factos (não conclusões) respetivos.
Face ao exposto, fica prejudicado o conhecimento da questão da matéria de direito.
6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo exposto, acorda-se nesta secção da Relação do Porto em anular parcialmente o julgamento (e consequente sentença), determinando-se o reenvio dos autos à 1ª instância para se proceder à produção dos meios de prova tidos por pertinentes relativamente a todos os factos alegados nos articulados, designadamente os aqui apontados.
A responsabilidade pelas custas será determinada a final, em conformidade com o vencimento.
Porto, 06 de março de 2025
Relatora: Isabel Silva
1º Adjunto: Álvaro Monteiro
2º Adjunto: Paulo Dias da Silva
____________________________
[[1]] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 704.
[[2]] Acórdão do STJ de 06/11/2024, processo nº 13176/21.4T8LSB.L2.S2, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[[3]] É certo que se começa por pedir a condenação ao reconhecimento do direito de propriedade da Autora sobre os 2 prédios e que um deles não tem acesso à via pública. Porém, por pedido não deve entender-se tudo aquilo que formalmente é expresso como tal, exigindo-se, antes, que ele traduza ou consubstancie a substancialidade jurídica que a causa de pedir lhe atribui.
Concatenados tais pedidos com a causa de pedir que fundamenta a ação, resulta claro que a qualidade de proprietário ou o reconhecimento do correspondente direito, funciona como “pressuposto” da ação, como “antecedente lógico” ou “premissa” daquelas que são as verdadeiras pretensões da Autora: os pedidos subsequentes de reconhecimento da servidão, a reposição do caminho ao estado anterior e o pagamento da indemnização pretendida.
Tal pedido é, assim, meramente aparente, «A acção de reivindicação é uma acção de condenação; mas toda a condenação pressupõe uma apreciação prévia, de natureza declarativa. De maneira que, ao pedir-se o reconhecimento do direito de propriedade (efeito declarativo) e a condenação na entrega efectiva (efeito executivo), não se formulam dois pedidos substancialmente distintos, únicamente se indicam as duas operações ou as duas espécies de actividade que o tribunal tem de desenvolver para atingir o fim último da acção» - Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. III, pág. 148; no mesmo sentido, Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, III, pág. 16; acórdãos da RP de 18.07.978 (C.J., ano III, 4º, 1213) e da RC de 04.01.983 (B.M.J. nº325, pág.610).
[[4]] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2014, 2ª edição, Almedina, pág. 262.
[[5]] Conferir acórdão do STJ de 03/07/2008, processo nº 08B1265.
[[6]] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 669-670.
[[7]] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), de 29/05/2014, processo nº 444/12.5TVLSB.L1-6.
[[8]] Abrantes Geraldes, “Sentença Cível”, intervenção nas “Jornadas de Processo Civil” organizadas pelo CEJ, em 23 e 24 de janeiro de 2014, pág. 19, nota 24.
[[9]] É entendimento unânime que, independentemente da solução jurídica do julgador, os factos devem refletir as várias soluções de direito.