NULIDADE DA SENTENÇA
QUESTÕES A RESOLVER NA SENTENÇA
ENTREGA DO BEM
Sumário

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
I-O conceito de “questão”, deve ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes.
II- O conceito de “entrega no sentido jurídico” ou reconhecimento da falta de fundamento para a detenção com o inerente reconhecimento do direito à devolução não se confunde com a entrega no sentido estritamente material.

Texto Integral

Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

"AA, Lda.". intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB e CC, pedindo que os Réus sejam condenados:

«a) A PAGAR À A. A QUANTIA DE €4.353,77 (QUATRO MIL, TREZENTOS E CINQUENTA E TRÊS EUROS E SETENTA E SETE CÊNTIMOS) ACRESCIDA DOS JUROS DE MORA VENCIDOS CONTADOS DESDE A DATA DE VENCIMENTO DA FATURA FAC B21/2416, DE 24/10/2022, COM VENCIMENTO EM 23/11/2022 ÀS TAXAS SUPLETIVAS LEGAIS SUCESSIVAMENTE APLICÁVEIS AOS CRÉDITOS EMERGENTES DE TRANSAÇÕES COMERCIAIS ABRANGIDAS, COMO É O CASO, PELO DEC.-LEI 62/2013 DE 10 DE MAIO [8%, 10,5% (DESDE 01/01/2023) E 12% (DESDE 01/07/2023)] ATÉ EFETIVO E INTEGRAL PAGAMENTO, TUDO PERFAZENDO O MONTANTE GLOBAL DE 4.701,67 (QUATRO MIL, SETECENTOS E UM EUROS E SESSENTA E SETE CÊNTIMOS), APURADO ATÉ À PRESENTE DATA, BEM COMO, JUROS VINCENDOS ÀS TAXAS SUPLETIVAS LEGAIS SUCESSIVAMENTE APLICÁVEIS, SOBRE A QUANTIA DE €4.353,77 (QUATRO MIL, TREZENTOS E CINQUENTA E TRÊS EUROS E SETENTA E SETE CÊNTIMOS) ATÉ INTEGRAL PAGAMENTO;

b) A RESTITUIR, DE IMEDIATO, À A. VEÍCULO DE SUA PROPRIEDADE, DE MARCA “FORD”, MODELO “TRANSIT”, MATRÍCULA “..-..-NQ”, RESPETIVAS CHAVES E DOCUMENTOS, VEÍCULO QUE DETÊM E UTILIZAM ILICITAMENTE E SEM QUALQUER TÍTULO, NO MESMO ESTADO FÍSICO EM QUE FOI ENTREGUE;

c) A PAGAR À A. QUANTIA NÃO INFERIOR A €50,00 (CINQUENTA EUROS) POR CADA MÊS, A PARTIR DE 24 DE OUTUBRO DE 2022, A TÍTULO DE INDEMNIZAÇÃO PELA PROVAÇÃO DO SEU USO E FRUIÇÃO POR PARTE DA R. E UTILIZAÇÃO ABUSIVA DO MESMO VEÍCULO E ATÉ À DATA DA ENTREGA EFETIVA, A LIQUIDAR EM INCIDENTE PRÓPRIO A DEDUZIR;»

Alega, para o efeito, o não pagamento dos serviços que prestou, no veículo propriedade dos RR., nomeadamente, na reparação do mesmo, com a retenção do automóvel pela Autora nas suas instalações e consequentemente, a privação do uso do veículo de substituição que a Autora concedeu aos Réus para que estes usassem, enquanto a sua viatura estava a ser arranjada.

Em 23.10. 20024 foi proferida a seguinte decisão (transcrição na parte relevante):

«Não Realização da Audiência Prévia

Considerando que a audiência prévia em causa tinha apenas como finalidade a faculdade do artigo 591.º, n.º 1.º, alínea d) do Código de Processo Civil, dispenso a realização da mesma, nos termos do artigo 593.º, nº 1.º do Código de Processo Civil, passando-se de seguida à prolação de despacho saneador-sentença e saneador.

= Despacho Saneador-Sentença=

Sempre que os articulados não precisem de aperfeiçoamento, ao abrigo do artigo 590.º, n.º 2.º e 4.º do Código de Processo Civil, e o estado dos autos o permitam, pode o juiz conhecer logo do mérito da causa, nos termos do artigo 595.º, n.º 1.º, alínea b) do Código de Processo Civil.

É de realçar que o artigo 595.º, n.º 5.º do Código de Processo Civil contempla a situação das ações que são destinadas à defesa da posse, se o Réu apenas tiver invocado a titularidade do direito de propriedade, sem impugnar a posse do Autor, e não puder apreciar-se logo aquela questão, o juiz ordena a imediata manutenção ou restituição da posse, sem prejuízo do que venha a decidir-se a final quanto à questão da titularidade do direito. Relativamente a este preceito, tem sido entendido que sempre que esteja em causa uma situação do artigo 1278.º do Código Civil, pode o possuidor esbulhado ser restituído ou mantido na sua posse, independentemente da resolução ao direito de propriedade.

No caso dos autos, verifica-se que um dos pedidos realizados é a entrega da viatura de cortesia entregue pela Autora aos Réus, que foi peticionada por estes enquanto o seu veículo se encontrava em reparação.

No que concerne a este pedido, os articulados permitem-nos conhecer sobre o mérito da causa, uma vez que não precisam de aperfeiçoamento e no mesmo sentido, porque os Réus, em momento algum, colocam em causa a propriedade da Autora, relativamente ao veículo em causa, ou que a posse deste lhes pertença a eles ou à Autora. Pelo contrário, aceitam que o mesmo deva ser entregue à Autora, disponibilizando-se a que esta o apanhe nas instalações daqueles.

Assim, o Tribunal está em condições de proceder ao conhecimento da causa.

1. Factos Provados

A) Enquanto a viatura dos Réus estava a ser arranjada na oficina da Autora, aqueles solicitaram uma viatura de substituição.

B) Foi entregue pela Autora aos Réus, a título gratuito, a viatura “Ford”, modelo “Transit”, com a matrícula ..-..-NQ.

C) A viatura encontra-se nas instalações nos Réus.

D) Os Réus informaram a Autora que poderia ir buscar a viatura às instalações destes.

A entrega de uma viatura de cortesia consubstancia a existência de um contrato e comodato, nos termos do artigo 1129.º do Código Civil e seguintes do Código Civil, sendo uma forma contratual que não está sujeito a forma, por força dos artigos 219.º e 220.º do Código Civil.

Ao abrigo do disposto no artigo 1135.º, alínea h) e 1137.º, n.º 1.º do Código Civil, uma das obrigações do comodatário é a entrega da coisa, assim que o contrato finde. Sendo que nos casos em que não exista um prazo estipulado para a sua entrega, o comodatário deve proceder à entrega, independentemente de interpelação, assim que o uso finde.

No caso em apreço, os Réus não se arrogam da propriedade do veículo, nem da posse do mesmo. Aliás, da própria contestação é visível que estes aceitam restituir de imediato o veículo de substituição àquela. Logo, não existe qualquer questão que possa e/ou deva ser discutida nos presentes autos, relativamente a esta matéria, já que existe acordo entre as partes.

Pelo exposto, julgo o presente pedido procedente e consequentemente, condeno os Réus a restituir de imediato o veículo da marca “Ford”, modelo “Transito”, matrícula “..-..-NQ”, com as respetivas chaves e documentos.

Custas relegadas para sentença.

*

= Despacho Saneador =

(…) »

Após tal decisão, os RR. BB e CC requereram o seguinte:

«(…) notificados do Despacho Saneador-Sentença que condenou os RR. a “restituir de imediato o veículo da marca “Ford”, modelo “Transito”, matrícula “..-..-NQ”, com as respetivas chaves e documentos” aos AA., vêm, ao abrigo do disposto no artigo 614º do CPC, requerer a V. Exa. a sua retificação nos termos e com os seguintes fundamentos:

1.Conforme alegado no artigo 21º da contestação, a viatura de cortesia entregue pela A. aos RR. não possuía seguro obrigatório de responsabilidade civil e inspeção periódica válida – o que se mantém.

2. Motivo pelo qual, não fizeram os RR. qualquer utilização da mesma, encontrando-se imobilizada no domicílio daqueles desde a data da entrega (2022).

3. Efetivamente, os RR. solicitaram à A. que procedesse à sua recolha, como aliás reconhece o douto Despacho.

4. Intenção que mantêm.

5. Os RR. continuam disponíveis para, mediante designação de dia e hora, entregarem à A. o veículo, as chaves e os documentos.

6. Considerando que a sua circulação é absolutamente ilegal, face à inexistência dos documentos infra identificados, não se mostra possível aos RR. conduzirem o veículo até às instalações da A que ficam a 25 Km, sensivelmente, do seu domicílio.

7. Acresce que, desconhecem os RR. o estado da mesma, nomeadamente, se a bateria e o motor estão operacionais, sendo visível a perda de pressão dos pneus.

8. Porquanto, como referido, a viatura não circula há 2 anos.

Ora, 9. Dispõe o artigo 614º CPC que “se a sentença (…) contiver (…) inexatidões devidas a outra omissão (…), pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz”.

10. Em caso de recurso, e de acordo com o n.º 2, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação.

11. Porém, se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo, conforme preceituado no n.º 3 do art. 614.º do Código de Processo Civil.

12. Não querendo os RR. recorrer do douto Despacho e pretendendo cumprir com a condenação imposta, importa concretizar de que forma se procederá à restituição da mesma, sublinhando o facto de a A. se dedicar à manutenção e reparação de veículos automóveis.

13. E de ter recursos para poder recolher a viatura em segurança, nomeadamente por conter meios próprios para colocar em funcionamento a viatura e com toda a probabilidade ter algum funcionário com seguro de carta ou, em último caso recorrer ao reboque da viatura.

Termos em que se requer a V. Exa. se digne retificar o douto Despacho nos termos expostos, face à existência de omissões que inviabilizam o cumprimento da condenação.»

Sobre tal requerimento foi proferida a seguinte decisão (decisão recorrida):

«A 23-10-2024 foi proferido despacho saneador-sentença, com a referência Citius n.º 100345246, onde foram os Réus condenados à restituição de imediato do veículo da marca “Ford”, modelo “Transito”, matrícula “..-..-NQ”, com as respetivas chaves e documentos à Autora.

Por requerimento de 07-11-2024, vieram os Réus solicitar a retificação do respetivo despacho, uma vez que o automóvel em causa não tem seguro obrigatório nem inspeção periódica válida, impedindo que pudessem circular com o mesmo. No mesmo sentido, referem que desconhecem o estado da viatura, nomeadamente, se a bateria e o motor estão operacionais, sendo visível a perda de pressão dos pneus.

Na “réplica” de 01-03-2024, os Autores apresentaram o seguro obrigatório do veículo, desde 03-01-2022 até 27-07-2024.

Os Réus foram condenados a cumprirem uma obrigação, para efeitos dos artigos 762.º e 773.º, n.º 1.º do Código Civil, em que nos casos de existir uma coisa móvel, esta deve ser entregue no lugar ao tempo da conclusão do negócio.

Como os Réus referem, é necessário os veículos a motor terem seguro obrigatório, conforme decorre do artigo 4.º, n.º 1.º do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

Todavia, e do nosso ponto de vista, não é pelo facto de o veículo não ter seguro que tal impede a sua circulação, isto é, não pode circular na via pública, já que tal é uma contraordenação grave. Mas, nada invalida que os Réus entreguem o veículo por outros meios, nomeadamente, com recurso a um reboque, em que o automóvel seja transportado por este.

E, no mesmo sentido, também nada invalida que os Réus consigam acordar com a Autora a entrega do veículo, se considerarmos que esta é proprietária de uma oficina, podem acordar as partes no transporte da referida viatura, através de um reboque facultado pela Autora.

Quando em despacho saneador se condena os Réus no cumprimento desta obrigação, o Tribunal não deixa de ter em consideração que o veículo não tem seguro. Contudo, tal não invalida que a obrigação possa ser cumprida, já que a entrega do veículo, assim como das chaves e documentos, pode ocorrer de várias formas, não sendo obrigatório que o veículo circule nem sendo isso pretendido por nós.

Não nos parece ser compaginável a postura dos Réus ao afirmarem que estão dispostos a entregar as chaves e documentos do veículo à Autora e quando são condenados a tal, encontram, supostas, omissões no despacho saneador-sentença apenas para impedirem o cumprimento dessa obrigação.

Os Réus referem que o veículo não tem seguro nem inspeção periódica válida, mas questiona o Tribunal se caso estas estivessem regularizadas, se os Réus não iriam justificar a não possibilidade do cumprimento da obrigação, com base no estado da viatura e na baixa pressão dos pneus.

Como se disse, e volta-se novamente a frisar, o Tribunal teve em consideração tal circunstância. Todavia, do nosso ponto de vista, não há uma impossibilidade objetiva para o cumprimento da prestação, já que a mesma pode ser cumprida de várias formas.

Assim, e face ao exposto, entendemos que os Réus, pese embora requererem uma retificação do despacho, na realidade pretendem a alteração do mesmo, já que pedem que o Tribunal os desobrigue da obrigação que lhe foi imposta. Tomando por base todas as considerações que foram realizadas, entendemos que não deve ser realizada nenhuma retificação no despacho em causa, já que não há qualquer impedimento para a realização da obrigação em causa.

Concluindo, deste modo, por manter integralmente o conteúdo do despacho proferido.

Notifique.»

Inconformados com a decisão, os RR. vieram interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões (transcrição):

«A. Em Despacho Saneador-Sentença foram os RR. condenados a "restituir de imediato o veículo da marca “Ford”, modelo “Transito”, matrícula “..-..-NQ”, com as respetivas chaves e documentos."

B. Tal condenação resulta da decisão de dar como provado os seguintes factos:

“A) Enquanto a viatura dos Réus estava a ser arranjada na oficina da Autora, aqueles solicitaram uma viatura de substituição.

B) Foi entregue pela Autora aos Réus, a título gratuito, a viatura “Ford”, modelo “Transit”, com a matrícula ..-..-NQ.

C) A viatura encontra-se nas instalações nos Réus.

D) Os Réus informaram a Autora que poderia ir buscar a viatura às instalações destes.”

C. O Despacho Saneador-Sentença não é claro, não especifica de que modo, local e meio deverá ser realizada a entrega a que foram condenados.

D. Nos termos do disposto no Art. 614º do CPC, os RR. requereram a retificação de sentença para que o Tribunal viesse esclarecer de que forma poderiam cumprir a obrigação a que foram condenados, todavia, o Tribunal decidiu “manter integralmente o conteúdo do despacho proferido”.

E. Os RR. não são proprietários do veículo, nunca tal alegaram e não têm qualquer interesse em manter a posse do veículo em questão, uma vez que não podem circular com o mesmo na via, por se encontrar sem seguro obrigatório e sem inspeção periódica.

F. Os RR. estão de boa-fé e pretendem cumprir a condenação que lhes foi imposta, todavia, a verdade é que não dispõem de meios para o fazer, isto porque, o veículo não pode circular na via, e apresenta outras questões mecânicas, comuns de um veículo parado há longos meses, mas que, de qualquer das formas, impossibilita a circulação e colocaria em causa a segurança rodoviária.

G. Ainda que se pondere o uso de um reboque para a deslocação do veículo, a verdade é que, este veículo de cortesia é uma carrinha de grandes dimensões, e sempre exigiria aos RR. a contratação de um serviço de um camião-reboque que, considerando que este se encontra a cerca de 40 Km das instalações da A., será de valores muito avultados, mesmo superiores ao preço do próprio veículo.

H. Importa aqui ter em consideração o caso concreto, a obrigação subjacente ao contrato de comodato que surgiu no presente caso.

I. Releva, nomeadamente, que o comodato do veículo de cortesia surge apenas e só porque, o veículo dos RR., que já tinha sido, alegadamente, reparado regressa, passado cerca de um mês, à oficina da A. com os mesmos problemas.

J. Ora, é na sequência do regresso do veículo dos RR. à oficina da A. que esta faculta voluntariamente o veículo de cortesia.

K. E os RR. aceitam este veículo de substituição, todavia, nunca o teriam feito se tivessem sido informados da falta de inspeção periódica e seguro obrigatório no veículo, dois requisitos determinantes para que o mesmo possa circular.

L. Os RR. não dispunham, nem dispõem, de meios para entregar o veículo por reboque, até porque, tal serviço, tem um valor superior ao do próprio veículo.

M. De notar que, não obstante, sempre se mostraram recetivos a que a A. recolhesse o veículo, aliás, o próprio Tribunal a quo refere por várias vezes a conveniência, praticidade e possibilidade da própria A., detentora de uma oficina com vários reboques aptos a tal, recolher o veículo na morada dos RR., todavia, acaba por não deixar expresso na condenação como deverá ser realizada esta restituição.

N. Este veículo de cortesia teria um único propósito, que era o de substituir, dentro dos possíveis, o veículo dos RR. que estava novamente parado a aguardar reparação na oficina da A..

O. Só após a posse do veículo os RR. se apercebem da falta de inspeção periódica e seguro obrigatório.

P. Nesse momento, vêm-se privados do seu veículo próprio, que fica ilegalmente retido na oficina da A., sem veículo de substituição e são ainda, aparentemente, obrigados a entregar este tal veículo à A..

Q. Existe uma grave desproporcionalidade a condenar os mesmos a entregar o tal veículo de cortesia por meio de reboque, com todas as despesas avultadas que isso implica, quando nunca teriam necessitado do mesmo caso não fosse a segunda reparação em garantia do seu veículo.

R. E, ainda que se assuma que esta segunda reparação era inevitável, nunca os RR. teriam aceitado o veículo de cortesia se soubessem que este não estava apto a circular legalmente na via pública.

S. Face ao exposto, entendem os RR. que a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto na alínea d), do n.º 1 do Art. 615º do CPC, pois, esta questão da forma de entrega do veículo era de resposta obrigatória no Despacho Saneador-Sentença, o que não aconteceu.

T. No caso sub judice, as circunstâncias que subjazem ao mesmo e os factos ainda controvertidos e não dados como provados, impõem que o tribunal os tome em consideração na decisão de condenar na devolução do veículo.

U. É absolutamente necessário que a decisão determine em concreto onde se faz a entrega e atenda aos factos suprarreferidos bem como fundamente de facto e de direito a sua pronúncia.

Termos em que, V. Exa., VENERANDOS DESEMBARGADORES, acolhendo as conclusões que antecedem e dando provimento ao recurso farão a costumada JUSTIÇA!»

Nas contra-alegações, conclui a recorrida "AA, Lda."

«a) Os ora recorrentes, insurgem-se contra a decisão condenatória proferida, em virtude de, segundo alegam, a mesma não especificar o modo de entrega da viatura à A., padecendo, por isso, de nulidade por omissão de pronuncia.

b) No requerimento/aclaração de 07/11/2024, ref.ª 8379905, os RR., ora recorrentes, alegaram que, em virtude de a A., ora recorrida, se dedicar à manutenção e reparação de veículos automóveis, teria recursos para poder recolher a viatura e em último caso, ao reboque desta.

c) Agora, nesta sede, alegam os recorrentes que não têm meios para entregar o veículo por reboque, pois a contratação de tal serviço teria valores avultados, mesmo superiores ao preço do próprio veículo e que existe uma grave desproporcionalidade ao condenar os mesmos a entregar o veículo de cortesia por meio de reboque.

d) Deixando claro que, nada existe a esclarecer, nem qualquer omissão da sentença, que bem compreenderam, inclusive no que concerne a quem deve proceder à entrega do veículo e onde.

e) Os RR., ora recorrentes, verdadeiramente, não só pretendem eximir-se à condenação de entregar a viatura à A., como a pretendem inverter, fazendo recair sobre esta, como se a tal tivesse sido condenada, o dever de a recolher onde a deixaram, suportando tais custos com o inerente prejuízo adicional daí decorrente.

f) A A., ora recorrida, ao contrário do que RR. , ora recorrentes, querem fazer crer, apesar de ser dona de uma oficina e se dedicar à reparação de veículos automóveis, não se dedica à atividade de reboque de veículos/pronto-socorro, não possui qualquer veículo com tal aptidão e, decisivamente, não foi condenada.

g) Argumentam, por outro lado, os RR., ora recorrentes, não saber onde entregar o veículo, em virtude de nada acrescentarem ou esclarecerem as normas relativas à restituição, no âmbito do contrato de comodato - arts. 762.º e 773.º do Código Civil.

h) Os arts. 762.º e 763.º do C.C. inserem-se no capítulo respeitante ao cumprimento e incumprimento das obrigações, que regula as regras gerais supletivamente aplicáveis à generalidade dos contratos, incluindo naturalmente o comodato, na ausência de norma especial.

i) O art.º 762.º n.º1 do C.C. refere que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, sendo que a prestação a que os AA., ora recorrentes, estão vinculados, agora também por força da condenação, foi a imediata devolução do veículo à A., ora recorrida .

j) A obrigação de restituir é, aliás, elemento caracterizador essencial do contrato de comodato (cfr. art.º 1129.º do CC).

k) Os RR., ora recorrentes, contrariamente ao que afirmam e mesmo ao que alegam em sede recurso, sabem que a viatura deverá ser entregue à A., ora recorrida, na sede e onde esta possui as instalações oficinais, local onde, a seu pedido, lhes foi entregue, a título de comodato.

l) A tal resultado, chegariam por aplicação das mesmas regras gerais supletivas que convocam, mas nos termos do art.º 773.º do C.C., que refere que “se a prestação tiver por objeto coisa móvel determinada, como é o caso, a obrigação deve ser cumprida no lugar onde a coisa se encontrava à data da conclusão do negócio”

m) O comodato só se conclui com a entrega da coisa comodatada, o que sucedeu, como se disse e os próprios RR. reconhecem, com a entrega pela A., ora recorrida a estes e a seu pedido da viatura de cortesia, precisamente e como dissemos, na sua sede/ instalações oficinais.

n) Não padece, por isso, a douta decisão-sentença de qualquer vicio, concretamente, aquele de nulidade por omissão de pronuncia invocado pelos ora recorrentes.

Termos em que, e nos mais de direito aplicável, deverá ser negado provimento ao recurso, nos termos e com os fundamentos suporá expostos, mantendo-se a douta decisão proferida, assim fazendo, V. Exas., Venerandos Desembargadores, uma vez mais, sã, serena e costumada»

Dispensados os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

Os factos relevantes constam deste relatório.

2 – Objecto do recurso.

Questão a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3 do CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso com relevância nesse âmbito: Se a decisão padece de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto na alínea d), do n.º 1 do Art. 615º do CPC.

3 - Análise do recurso.

No Saneador, foi proferida decisão parcial de mérito, julgando-se procedente o pedido expresso em b) (A RESTITUIR, DE IMEDIATO, À A. VEÍCULO DE SUA PROPRIEDADE, DE MARCA “FORD”, MODELO “TRANSIT”, MATRÍCULA “..-..-NQ”, RESPETIVAS CHAVES E DOCUMENTOS, VEÍCULO QUE DETÊM E UTILIZAM ILICITAMENTE E SEM QUALQUER TÍTULO, NO MESMO ESTADO FÍSICO EM QUE FOI ENTREGUE) e consequentemente, os Réus foram condenados a restituir de imediato o veículo da marca “Ford”, modelo “Transito”, matrícula “..-..-NQ”, com as respetivas chaves e documentos, decisão que foi objecto de requerimento de retificação.

A decisão recorrida é a decisão que indeferiu o requerimento de retificação dessa decisão (procedência do pedido b) da PI), por considerar que os RR. na realidade pretendem a alteração da mesmo, já que pedem que o Tribunal os desobrigue da obrigação que lhe foi imposta e mantêm a decisão de entrega considerando que não há qualquer impedimento para a realização da obrigação em causa.

Lembre-se que, o pedido em causa foi julgado procedente porque os Réus, em momento algum, colocam em causa a propriedade da Autora, relativamente ao veículo em causa, ou que a posse deste lhes pertença a eles ou à Autora. Pelo contrário, aceitaram que o mesmo seja entregue à Autora, disponibilizando-se a que esta o apanhe nas instalações daqueles.

E efectivamente, desde logo, importa ter em consideração que, os recorrentes não se insurgiram nem se insurgem quanto à entrega.

No recurso apenas levantam questões relativas ao modo de entrega, ou seja, levantam “dúvidas” sobre o modo, local e meio de realização da entrega a que foram condenados.

Assim, os recorrentes defendem agora que a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto na alínea d), do n.º 1 do Art. 615º do CPC, por (da decisão que indefere a rectificação) não constar a resposta a essas dúvidas, e por o despacho saneador não ter tomado em consideração na decisão de condenar na devolução do veículo as circunstâncias expostas.

Concluem que, é absolutamente necessário que a decisão determine em concreto onde se faz a entrega e atenda aos factos suprarreferidos bem como fundamente de facto e de direito a sua pronúncia.

Mas sem razão.

Inexiste qualquer omissão de pronúncia.

Os “esclarecimentos”, pretendidos pelos recorrentes, não tem que fazer, nem fazem parte do objecto do processo, de forma a poder ser classificado como questão a resolver.

Como sabemos:

Dispõe o artigo 615.º, n.º 1 alínea d), 1.ª parte do CPC que: “É nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)”.

As questões sobre as quais o juiz se deve pronunciar encontram-se balizadas nos artigos 608.º, n.º 2 e 609.º, n.º 1 do mesmo diploma. Com efeito, por um lado, como prescreve o primeiro dos citados preceitos o juiz deve conhecer “todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Em anotação ao referido artigo 608.º, n 2 do CPC, Abrantes Geraldes in Código de Processo Civil Anotado, pág. 727, Almedina, explica que : “As questões a que se reporta o n.º 2 reportam-se aos pontos fáctico-jurídicos estruturantes das posições das parte, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções, não se reconduzindo à argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico -jurídicas, mas sim às concretas controvérsias centrais a dirimir.”.

Neste sentido, o acórdão do STJ de 11-10-2022 602/15.0T8AGH.L1-A.S1 “ O conceito de “questão”, deve ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, dele sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes.”.

Ora, o processo civil é regido pelo princípio do dispositivo, de acordo com o qual o Tribunal dirime os conflitos que lhe são suscitados pelas partes.

Este princípio com diversas manifestações, tem o seu auge na necessidade de formulação de um pedido que implique dizer o direito, conforme dispõe o artigo 552.º, n.º 1, alínea e) do CPC.

Voltando ao caso concreto, verificamos que não foi deduzido qualquer pedido relacionado com o modo de entrega.

O equívoco dos recorrentes consiste em confundir a “entrega no sentido jurídico” com a entrega no sentido estritamente material (execução da mesma através das circunstâncias de modo e lugar).

Ao contrário do que parecem entender o que está em causa no pedido é o reconhecimento da falta de fundamento para a detenção do veículo, ou seja, o reconhecimento do direito à devolução do veículo.

Por conseguinte, inexiste omissão de pronúncia na douta decisão recorrida que conduza a que a mesma deva ser considerada nula, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1 alínea d) do CPC.

Tanto basta para a improcedência do recurso.

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC):

(…)

4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

Évora, 13.03.2025