RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ABUSO DE CONFIANÇA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ABSOLVIÇÃO EM 1.ª INSTÂNCIA E CONDENAÇÃO NA RELAÇÃO
DOLO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
PRESUNÇÃO JUDICIAL
IN DUBIO PRO REO
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA DE MULTA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
Sumário


I - Nos termos dos arts. 432.º, al. b) e 400.º, al. e), ambos do CPP, cabe recurso para o STJ do acórdão do Tribunal da Relação que altera a matéria de facto e reverte a decisão de absolvição na 1.ª instância condenando o arguido.
II - A livre apreciação da prova não pode ser “arbitrária”, “discricionária” ou traduzir-se numa apreciação subjectiva daquele que tem por missão apreciar a mesma, sob pena de violação do dever/princípio da perseguição da verdade material enquanto objectivo último da justiça penal.
III - A inexistência da imediação não impede o Tribunal da Relação de apreciar o julgamento da matéria de facto, como, aliás, a lei consagra no art. 428.º do CPP.
IV - A utilização de presunções e prova indirecta são permitidas por lei (arts. 349.º e 351.º do CC) e ainda estão no campo de aplicação do princípio de livre apreciação da prova, exigindo-se, contudo, ao juiz uma maior prudência e fundamentação no seu raciocínio lógico de valoração da prova.
V - Sendo o elemento volitivo do dolo um acto interno do agente que se materializa pelos demais factos externos anteriores ou contemporâneos do ilícito, não pode, o mesmo, deixar de ser dado como provado, a partir do momento em que são dados como provados os factos imputados, ou seja, o elemento objectivo do ilícito, salvo se existirem circunstâncias que afastem o dolo ou a culpa.
VI - O dolo (elemento intelectual e volitivo) é assim dado por provado a partir das circunstâncias de facto dadas por assentes, analisadas à luz das regras da experiência comum, tal como resulta do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º do CPP.

Texto Integral


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I Relatório

1. No processo 8805/19.2..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de ..., Juiz ..., por sentença de 11 de Dezembro de 2023, foi a arguida AA absolvida da prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, a) do Cód. Penal, de que tinha sido acusada.

2. Não se conformando, os Assistentes BB e CC, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa o qual, por acórdão de 7 de Maio de 2024, revogou a sentença recorrida e condenou a arguida AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, alínea a) do Cód. Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão para cada um dos crimes e, em cúmulo jurídico, na pena única de 14 (catorze) meses de prisão, cuja execução suspendem por um período de 2 (dois anos) subordinada ao dever de entregar a cada um dos assistentes a quantia de 6.000,00 € (seis mil euros) no prazo de 1 (um) ano.

3. Inconformada com tal decisão, a arguida AA interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, retirando da respectiva motivação, as seguintes conclusões: (transcrição)

1. O tribunal a quo violou o disposto pelo nº 2 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa, ao fixar a medida da pena com base no registo criminal da arguida, construindo essa presunção com base em três elementos, sendo um desses elementos a identificação do dolo com a consciência da ilicitude utilizando o registo criminal da Arguida, sem qualquer consideração, também in casu, pelas circunstâncias concretas da mesma Arguida.

2. In casu, existe a falta de um dos três elementos no tocante à produção e à valoração da prova no Tribunal da Relação, configurando tal interpretação e aplicação do art. 127º do CPP em desconformidade com os princípios constitucionais da presunção de inocência e da imediação.

3. A sentença recorrida viola o princípio que se encontra consagrado no nº 2 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa, tendo o referido princípio como importante consectário a exigência da interpretação in dubio pro reo, força que lhe é dada pelos arts. 18º e 204º também da Lei Fundamental

4. A inconformidade da Recorrente assenta em 3 pontos a saber:

a) O Recurso que está na origem da taxa sancionatória é admissível;

b) É inaceitável invocar critérios que assentem em juízo de valor, sem que tais factos tenham resultado como provados;

c) Fazer uso de um direito/princípio constitucionalmente garantido: o duplo grau de jurisdição.

5. A Recorrente apresenta o presente recurso porque entende que tal parte da decisão da Relação viola os princípios basilares do direito penal, sedo o acórdão admissível de recurso nos termos dos artigos 399º e 400º nº1 alínea e) do CPP e art. 32º CRP.

6. Posição com eco de maior relevância (vide ponto 26 da motivação) é a posição ignorada injustificadamente dos Ilustres Procuradores do Ministério Público da 1ª instância e de 2ªa Instância, quando os mesmos se opõe à interposição do recurso por parte da assistente.

7. Ora, não pode a Recorrente ver-lhe ser bloqueada a recorribilidade de tal decisão, violando tal posição o princípio do duplo grau de jurisdição pois deixaria, claramente, uma decisão nova sem sindicância superior o que é ilegal, inconstitucional e INJUSTO.

8. É também injusto e inaceitável invocar “o registo criminal da arguida” para justificar uma condenação, aplicando o pagamento de um valor pecuniário, quando a assistente nunca apresentou qualquer pedido de indemnização cível, ou mesmo foi dado como provado os elementos estruturais do crime que a Recorrente vem condenada pelo tribunal a quo.

9. Qualquer limitação do poder/dever de administração da Justiça (que é em nome do Povo – ex. vi do art. 202º CRP) assente em questões de deve/haver monetárias redunda, a tempo, na restrição ou abolição dos direitos.

10. Direitos que, por vezes, são o último reduto de uma procura de Justiça cada vez mais afastada do cerne Romanistico e plasmado em regras e regras que, de tão intrincadas diluem o escopo principal da sua própria ratio: a Justiça.

11. Fazendo apelo ao Prof. Alberto dos Reis e à sua vetusta, mas válida classificação das lides entre uma lide “normal” e a dolosa, entende a Recorrente que só mesmo alguma temeridade lhe pode ser imputada.

12. A Recorrente age convicta de lhe assiste razão. Alegando em conformidade e justificando em vários pontos da sua alegação a recorribilidade da decisão.

13. Apesar de lhe ser doloroso ver a luta pela verdade e pela Justiça – que é o que a move – apedrejada com “abuso de direito e Processo”.

14. Apena aplicada à arguida foi determinada tendo em consideração “o registo criminal da arguida”. Tratou-se de apreciar a conduta posterior ao facto, conforme estipula a alínea e) do nº 2 do artigo 71º do CP.

15. Ao determinar concretamente a pena com base numa prognose com base no registo criminal da arguida, desconsiderando a postura adotada pela arguida no julgamento, o tribunal desrespeitou a alínea e) do nº 2 do artigo 71º do CP.

17. Na operação de fixação da medida concreta da pena, atende-se ao disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal.

18. O limite máximo fixa-se de acordo com a culpa do agente. O limite mínimo situa-se de acordo com as exigências de prevenção geral. Assim, reduz-se a amplitude da moldura abstratamente associada ao tipo penal em causa.

19. A pena não pode ultrapassar a medida da culpa, sob pena de se atingir a dignidade da pessoa humana, pelo que tal limite encontra consagração no artigo 40º do Código Penal.

20. A arguida explicou as suas convicções e motivações no decorrer do julgamento de 1.ª instância, não podendo tais motivações serem desconsideradas; Assim:

Nos termos expostos e nos mais que os Excelentíssimos Senhores Conselheiros venham a suprir, deve o presente Recurso ser admitido e, em consequência, face à violação dos arts. 71º CPP e 32º CRP, em consequência ser revogada a decisão dos Exmos. Senhores Desembargadores Relatores de 7/05/2024 que condenou a Arguida pela prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, alínea a) do Cód. Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão para cada um dos crimes e, em cúmulo jurídico, na pena única de 14 (catorze) meses de prisão, cuja execução suspendem por um período de 2 (dois anos) subordinada ao dever de entregar a cada um dos assistentes a quantia de 6.000,00 € (seis mil euros) no prazo de 1 (um) ano, Direito que sempre se pede e espera. (fim de transcrição)

4. O Ministério Público, junto do Tribunal da Relação, respondeu ao recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição)

1. Não são recorríveis os acórdãos proferidos em sede de recurso de decisão em 1.ª instância de absolvição, que condene e aplique pena de prisão inferior a cinco anos suspensa na execução.

2. A gravidade da pena de prisão impede a conformidade constitucional da irrecorribilidade da decisão da Relação que, inovadoramente relativamente à absolvição da primeira instância, condena o arguido em prisão efetiva, como concluiu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 595/2018.

3. Assim não sucede quando está em causa a aplicação de uma pena não privativa da liberdade, como é o caso da pena de prisão suspensa na sua execução, resultante da alteração da matéria de facto e, consequentemente, da matéria de direito, por não se refletir de imediato na liberdade do arguido.

4. A pena em causa é uma pena de substituição, autónoma face à pena de prisão efetiva substituída, cuja revogação não é automática, resultando de um procedimento autónomo, com apreciação de prova, garantias de contraditório e nova decisão fundamentada.

5. Este facto não permite reclamar para o momento da condenação em pena suspensa um regime igual ou análogo ao das decisões condenatórias em pena de prisão efetiva.

6. O recurso interposto para o STJ nestas circunstâncias não é legalmente admissível, devendo ser rejeitado. (fim de transcrição)

5. Os Assistentes BB e CC responderam igualmente ao recurso, apresentando as seguintes conclusões: (transcrição)

1. Os artigos 400.º, n. º 1, alínea e) e 432.º, n.º 1, alínea b) do C.P.P. têm como função delimitar a recorribilidade direta para o STJ.

2. As normas restritivas em matéria de recorribilidade direta para o STJ visam garantir que esta instância superior se concentre em questões de direito e não em questões de facto, que outrora foram apreciadas pelas instâncias inferiores.

3. In casu, estamos perante uma situação de irrecorribilidade para o STJ, nos termos do disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea e) ex vi artigo 432.º, n.º 1, alínea b) ambos do C.P.P., porquanto, a pena aplicada à Arguida além de inferior a 5 anos, não é privativa da liberdade.

4. Ora, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do C.P.P., não é admitido recurso para o STJ de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância.

5. A interpretação juridicamente adequada que devemos retirar da alínea mencionada é que o recurso apenas pode ser admitido nestes termos se a pena aplicada for de prisão efetiva, ou seja, se a pena aplicada for privativa da liberdade.

6. A suspensão da execução da pena, prevista no artigo 50.º do C.P. é uma medida que visa a reintegração social do condenado sem necessidade de privação imediata da liberdade, pelo que, o interesse em recorrer para o STJ não se justifica.

7. O fundamento subjacente a esta limitação processual prende-se com a ideia de que a suspensão da execução da pena de prisão representa uma medida menos gravosa do que a prisão efetiva, logo, o legislador procurou restringir a intervenção dos tribunais superiores aos casos que envolvem a privação efetiva da liberdade.

8. A doutrina e a jurisprudência têm reforçado este entendimento, sublinhando que a razão de ser da alínea e) do artigo 400.º, n.º 1, do C.P.P. é precisamente a diferença entre uma pena de prisão efetiva e uma pena de prisão suspensa na sua execução.

9. Por conseguinte, a limitação de recursos nos casos de penas de prisão suspensa visa garantir uma maior eficácia e eficiência no sistema judicial, reservando o STJ para casos de maior gravidade, onde a liberdade do condenado é efetivamente posta em causa.

10. Em suma, o direito ao recurso é garantido nas situações onde a liberdade individual é diretamente atingida, como nas condenações com penas de prisão efetiva, enquanto que em penas suspensas, essa recorribilidade é restringida pela inexistência de uma privação imediata da liberdade.

11. Por conseguinte, as normas supra referidas que limitam a recorribilidade direta para o STJ não são inconstitucionais por violação dos artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da CRP, como a Recorrente defende.

12. Pelo contrário, estas normas respeitam os princípios fundamentais estabelecidos pela Constituição assegurando um processo justo, equilibrado e eficiente, sem comprometer os direitos fundamentais do arguido.

13. Nos termos dos artigos 400.º, n.º 1, alínea e) e 432.º, n.º 1, alínea b) ambos do C.P.P., os acórdãos proferidos em sede de recurso de decisão em 1.ª instância de absolvição, que condene e aplique pena de prisão inferior a cinco anos suspensa na sua execução, não são recorríveis.

14. Pelo que, não sendo o recurso admissível, e não estando o tribunal superior vinculado à decisão de admissão do recurso deve o presente recurso, em conformidade com o disposto no artigo 420.º, n.º 1, al. b), do C.P.P., ser rejeitado por se verificar causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º do C.P.P.

15. Quanto ao princípio da livre apreciação da prova em matéria penal, este encontra-se consagrado no artigo 127.º do C.P.P., e confere ao juiz a liberdade de formar a sua convicção com base na análise crítica e ponderada das provas apresentadas, desde que essa convicção esteja fundamentada em critérios racionais e objetivos.

16. Ora, a livre apreciação da prova não se traduz numa decisão arbitrária, pelo contrário, o juiz deve justificar de forma clara e coerente a sua decisão, indicando os elementos de prova que fundamentam as suas conclusões.

17. Da análise da referida decisão, é possível extrair que o Tribunal a quo se baseou fundamentalmente na prova produzida em julgamento e dada como provada em 1.a instância, limitando-se a averiguar se os factos respeitantes aos elementos volitivos e intelectuais do tipo se encontravam provados.

18. Assim, o Tribunal a quo deu como provado os elementos volitivos e intelectuais do tipo - aos quais acresceu os factos anteriormente dados como provados pelo tribunal de 1.ª instância -, o que originou a condenação da Arguida.

19. O tribunal a quo conseguiu alcançar tal entendimento, nomeadamente, a prova dos factos respeitantes aos elementos volitivos e intelectuais, por inferência que retirou dos restantes factos dados como provados pelo tribunal de 1.ª instância.

20. Os factos respeitantes aos elementos volitivos (intenção, vontade) e intelectuais (conhecimento, compreensão) do tipo penal, por sua natureza subjetiva, muitas vezes não podem ser provados diretamente, pelo são frequentemente inferidos com base nos restantes factos dados como provados, como ações, comportamentos e circunstâncias observadas, que indicam a intenção ou o conhecimento do arguido.

21. O juiz pode inferir os elementos volitivos e intelectuais com base nos factos provados, desde que essa inferência seja logicamente motivada e fundamentada.

22. O que, in casu, se verificou.

23. Em face do exposto, mormente se pode concluir que não assiste sombra de razão ao alegado pela Recorrente no que concerne ao facto do julgador ter baseado a sua decisão em presunções, pelo que, se deve manter a decisão recorrida.

24. Decisão essa que subordinou a suspensão da execução da pena única de 14 meses de prisão, por um período de 2 anos, ao dever de entregar a cada um dos Assistentes, aqui Recorridos, a quantia de € 6.000,00, no prazo de 1 ano, nos termos e ao abrigo dos artigos 50.º, n.º 2 e 51.º, n.º 1, al. a) do C.P.

25. Dever que que não está dependente da formulação de pedido de indemnização civil (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02 de outubro de 2013, proferido no âmbito do processo n.º 1054/10.7TALRA.C1)

26. Face ao exposto, e salvo melhor e douta opinião, deverá o presente recurso improceder in totum, mantendo-se a decisão sob censura.

Nestes termos e nos mais de Direito, o Venerando Tribunal ad quem, mantendo a decisão do Tribunal de 2.ª instância (fim de transcrição)

6. Neste Supremo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu douto manifestando-se pela admissibilidade do recurso e concluindo “no sentido de que não assiste qualquer razão à recorrente, devendo ser julgado o recurso improcedente e mantido o acórdão recorrido na íntegra.”

7. Notificado os sujeitos processuais não houve respostas.

Realizado o exame preliminar, colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

II Fundamentação

8. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça1 e da doutrina2 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.3

Da leitura dessas conclusões, após muito esforço e se bem as percebemos, dada a sua complexidade intrínseca, a recorrente coloca a este Supremo Tribunal de Justiça, as seguintes questões:

Admissibilidade do recurso;

Violação das regras de apreciação da prova; presunções judiciais e violação do in dúbio pro reo;

Medida da pena.

Vejamos, antes de mais, quais os factos dados por provados.

8.1. Estão provados, em função do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (alíneas l) e m)) os seguintes factos: (transcrição)

a) Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos entre o mês de fevereiro e o mês de junho de 2019, que a Arguida exerceu a profissão de Solicitadora.

b) Entre os dias 21 e 25 de fevereiro de 2019, a Arguida foi contratada por BB e por CC, irmãos, para elaborar escritura de partilha de bens imóveis pertencentes à herança de DD e de EE, avós destes, bem como tendo em vista a realização de contratos de arrendamento.

c) Assim, no dia 26/02/2019, após BB e CC lhe terem entregado a documentação pedida, a Arguida, tendo em vista a concretização do trabalho que lhe havia sido contratado por estes, solicitou a BB o pagamento dos seguintes valores:

- € 200,00, pelas certidões;

- € 1.600,00 (€ 250,00 + € 1.350,00), pelos registos;

- € 8.702,66, para pagamento de IMT;

- € 422,03, para pagamento de Imposto de Selo;

No total de € 10.924,69;

d) E a CC, o pagamento dos seguintes valores:

- € 200,00, pelas certidões;

- € 1.600,00 (€ 250,00 + € 1.350,00), pelos registos;

- € 11.156,67, para pagamento de IMT;

- € 530,19, para pagamento de Imposto de Selo;

No total de € 13.486,86;

e) Após o que, no dia 28/02/2019, BB transferiu para a conta bancária da Arguida com IBAN ...43, o montante de € 10.000,00, e, no mesmo dia, mas através do sistema de pagamento de serviços, entregou à Arguida o valor de € 924,69.

f) De igual forma, no dia 28/02/2019, CC entregou à Arguida, através do sistema de pagamento de serviços, os valores de € 1.476,86 e € 2.000,00, após o que, no dia 01/03/2019, transferiu para a conta bancária da Arguida com IBAN ...43, o montante de € 10.000,00.

g) Após o que, a Arguida não praticou nenhum dos atos que havia acordado com BB e CC, nem pagou qualquer montante a título de imposto devido pelos mesmos.

h) Entre o dia 28/02/2019 e o dia 04/03/2019, transferiu o valor global de € 13.000,00 para a conta de FF, sua filha.

i) Posteriormente, após BB e CC, no dia 27/09/2019, lhe terem solicitado a devolução dos valores que lhe haviam transferido – no montante global de € 24.401,86 – a Arguida não entregou aos mesmos qualquer quantia em dinheiro.

j) A Arguida exerceu a profissão de Solicitadora; hoje, cuida da sua mãe idosa; tem três filhas, já autónomas.

k) Do seu certificado de registo criminal constam antecedentes criminais por crimes de burla qualificada, falsificação de documento e abuso de confiança fiscal.

(Aditados na decisão recorrida pelo Tribunal da Relação de Lisboa)

l) ao agir conforme descrito, a arguida agiu de forma livre e consciente, com o propósito concretizado de, aproveitando-se das suas funções profissionais e da confiança que havia estabelecido com BB e CC, se apropriar daquelas quantias em dinheiro, bem sabendo que as mesmas não lhe pertenciam e que BB e CC apenas lhe haviam entregue para que esta procedesse à prática daqueles atos e ao pagamento daqueles impostos, o que esta não fez;

m) sabia a arguida que, com a sua atuação, causava prejuízo a BB e CC e que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal. (fim de transcrição)

8.2. Questões colocadas pela recorrente, iniciando a análise pela questão prévia da admissibilidade do recurso interposto.

Nos termos dos artigos 46º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) e artigo 434º do Código de Processo Penal, os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se “exclusivamente ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432º”.

O artigo 432º do Código de Processo Penal, estatui que “Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410.º.

Por sua vez o artigo 400º do Código de Processo Penal, entre as várias decisões que não admitem recurso, estatui, na sua alínea e), que não cabe recurso dos “acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância”

A actual redacção da alínea e) do artigo 400º do Código de Processo Penal, foi introduzida pela Lei n.º 94/2021 de 21 de Dezembro em obediência a jurisprudência do Tribunal Constitucional4 que tinha considerado inconstitucional a anterior redacção. Como doutamente refere o Senhor Procurador-Geral no seu parecer, o qual se subscreve, “(…) decorre ser hoje, a nosso ver, incontestável a afirmação de que a alteração do artigo 400º, nº 1, al. e), do CPP, levada a cabo pela Lei n.º 94/2021, 21/12, tomando em consideração a jurisprudência do Tribunal Constitucional acima referida e indo mais longe do que ela, veio consagrar a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões proferidas pelo tribunal da Relação em recurso de decisões de absolvição em 1.ª instância, não apenas no caso de condenação em penas de prisão inferiores a 5 anos, mas também quando se trate de penas não privativas da liberdade”.

Assim, é admissível o recurso.

Apesar de o recurso versar apenas matéria de direito, tal não impede que este Supremo Tribunal de Justiça conheça, oficiosamente, dos vícios do artigo 410º, nº2 do Código de Processo Penal, bem como de eventuais nulidades da decisão.5

8.3 Violação das regras de apreciação da prova; presunções judiciais e in dúbio pro reo.

Feito este esclarecimento sobre a admissibilidade do recurso, vejamos as questões sobre o mérito do mesmo.

Como ficou referido anteriormente, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do nº2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, os quais, por se reportarem à decisão e sua estrutura interna e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida, têm de resultar do texto da decisão recorrida, encarado por si só ou conjugado com as regras gerais da experiência comum, sem recurso a outros elementos estranhos ao texto da própria decisão.

Relativamente à impugnação da matéria de facto, importa reafirmar, como ficou dito no ponto anterior, que o Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista – artigo 434º do Código de Processo Penal – a mesma está excluída dos seus poderes de cognição, excepto na dimensão dos vícios decisórios.

Por força desta limitação cognitiva, está também o Supremo Tribunal de Justiça impedido de conhecer das questões conexas e intrinsecamente estruturantes com a apreciação da matéria de facto, como a alegada violação do princípio da livre apreciação da prova, utilização de presunções judiciais ou mesmo o princípio in dúbio pro reo, o qual apenas releva em sede de matéria de facto, excepto se, repete-se, do texto da decisão revidenda, resultar qualquer dos vícios decisórios.6

Apenas em sede de apreciação dos vícios decisórios, o Supremo Tribunal de Justiça pode sindicar a matéria de facto.

Apesar do que fica dito e desta limitação cognitiva deste Supremo Tribunal de Justiça, importa tecer algumas considerações sobre a alegação da recorrente sobre a pretensa violação dos princípios que regem a apreciação da prova e a utilização de presunções judiciais e ainda a violação do princípio in dúbio pro reo, ao dar como provado o elemento subjectivo dos crimes imputados à arguida.

Vejamos, antes de mais, o que consta da decisão recorrida para a alteração da matéria de facto provada.

Escreveu-se, a este propósito, na decisão recorrida (transcrição)

Alegam os recorrentes/assistentes que foram erradamente dados como não provados os dois factos que integram a matéria não provada, ou seja, o elemento subjectivo.

Afirmam que o erro resulta da inequivocidade do teor da prova documental constante de fls. fls. 22, 29 a 80, 91, 207 a 217, e dos documentos juntos com o requerimento apresentado a 23 de dezembro de 2021, conjugados com o teor das declarações da arguida e dos assistentes e o depoimento da testemunha GG (transcrevendo no corpo da motivação as passagens que entendem relevantes).

A matéria factual em questão – dada como não provada na sentença recorrida – é a seguinte:

- Que ao agir conforme descrito, a Arguida tenha atuado de forma livre e consciente, com o propósito concretizado de, aproveitando-se das suas funções profissionais e da confiança que havia estabelecido com BB e CC, se apropriar daquelas quantias em dinheiro, bem sabendo que as mesmas não lhe pertenciam e que BB e CC apenas lhe haviam entregue para que esta procedesse à prática daqueles atos e ao pagamento daqueles impostos, o que esta não fez;

- Que soubesse a Arguida que, com a sua atuação, causava prejuízo a BB e CC e que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

Define o art. 124º 1 do Cód. Proc. Penal, o que vale em julgamento como prova, ali se determinando que “constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”. Neste artigo, onde se regula o tema da prova, estabelece-se que o podem ser todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou para a inexistência de qualquer crime, para a punibilidade ou não punibilidade do arguido, ou que tenham relevo para a determinação da pena. A ausência de quaisquer limitações aos factos probandos ou aos meios de prova a usar, com excepção dos expressamente previstos nos artigos seguintes ou em outras disposições legais (só não são permitidas as provas proibidas por lei ou as obtidas por métodos proibidos – arts. 125º e 126º do mesmo Cód.), é afloramento do princípio da demanda da descoberta da verdade material que continua a dominar o processo penal português (Maia Gonçalves, Cód. Proc. Penal, 12ª ed., p. 331).

A prova pode ser directa ou indirecta/indiciária (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Proc. Penal, II vol., p. 99 ss). Enquanto a prova directa se refere directamente ao tema da prova, a prova indirecta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.

A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova – quer a directa quer a indiciária – estando o fundamento da sua credibilidade dependente da convicção do Julgador (que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável) que a valorará, por si e na conjugação dos vários indícios, sempre de acordo com as regras da experiência.

Com efeito, o art. 127º do Cód. Proc. Penal prescreve que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. É o chamado princípio da livre apreciação da prova que, no entanto, e como ensina o Prof. Germano Marques da Silva (Direito Processual Penal, vol. II, p. 111) “(a livre valoração da prova) não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”.

No caso em análise, o que cumpre apreciar é se estão provados os factos respeitantes aos elementos volitivos e intelectuais de que a arguida/recorrida vinha acusada.

Ora os factos respeitantes aos elementos volitivos e intelectuais são inferências que se retiram dos restantes factos provados, sabido que o dolo é uma realidade que não é apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum [ensina Cavaleiro Ferreira – in “Curso de Processo Penal”, Vol. II, 1981, pág. 292 – que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta, como são todos os elementos de estrutura psicológica, os relativos ao aspecto subjectivo da conduta criminosa; também Malatesta – in “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, págs. 172 e 173 – defende que, exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas (“percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita e, dessas coisas, passa-se a concluir pela sua existência”)].

Analisando os restantes factos provados verificamos que se provou que:

- entre os dias 21 e 25 de fevereiro de 2019, a arguida, que exercia a profissão de solicitadora, foi contratada por BB e por CC, irmãos, para elaborar escritura de partilha de bens imóveis pertencentes à herança dos avós destes, bem como tendo em vista a realização de contratos de arrendamento.

- no dia 26/02/2019, a arguida, tendo em vista a concretização do trabalho que lhe havia sido contratado por estes, solicitou:

> a BB o pagamento dos seguintes valores: € 200,00, pelas certidões; € 1.600,00 (€ 250,00 + € 1.350,00), pelos registos; € 8.702,66, para pagamento de IMT; € 422,03, para pagamento de Imposto de Selo; no total de € 10.924,69;

> a CC, o pagamento dos seguintes valores: € 200,00, pelas certidões; € 1.600,00 (€ 250,00 + € 1.350,00), pelos registos; € 11.156,67, para pagamento de IMT; € 530,19, para pagamento de Imposto de Selo; no total de € 13.486,86;

- os referidos valores foram transferidos/entregues à arguida por BB e por CC em 28/02/2019 e 01/03/2019;

- a arguida não praticou nenhum dos actos que havia acordado com BB e CC, nem pagou qualquer montante a título de imposto devido pelos mesmos;

- entre o dia 28/02/2019 e o dia 04/03/2019, a arguida transferiu o valor global de € 13.000,00 para a conta de FF, sua filha;

- BB e CC, no dia 27/09/2019, solicitaram à arguida a devolução dos valores que lhe haviam transferido, não tendo ela entregue aos mesmos qualquer quantia.

Está, portanto, assente, que os assistentes entregaram quantias à arguida, no âmbito de um contrato de prestação de serviços de solicitadoria (€ 10.924,69 + € 13.486,86), quantias que a arguida tinha pedido para pagar certidões, registos, IMT e Imposto de Selo.

Mais está assente que a arguida não praticou nenhum dos actos que havia acordado, nem pagou qualquer montante a título de impostos. E que transferiu para a conta da sua filha, logo após a entrega das quantias pelos assistentes, o valor de € 13.000,00, não tendo entregue aos assistentes qualquer quantia quando estes lhe pediram a devolução em 27/09/2019.

Vistos tais factos, de acordo com as regras da experiência e o normal acontecer das coisas, forçoso é concluir que:

- ao agir conforme descrito, a arguida agiu de forma livre e consciente, com o propósito concretizado de, aproveitando-se das suas funções profissionais e da confiança que havia estabelecido com BB e CC, se apropriar daquelas quantias em dinheiro, bem sabendo que as mesmas não lhe pertenciam e que BB e CC apenas lhe haviam entregue para que esta procedesse à prática daqueles atos e ao pagamento daqueles impostos, o que esta não fez;

- sabia a arguida que, com a sua atuação, causava prejuízo a BB e CC e que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

Repare-se que a arguida não solicitou as quantias supra referidas como provisão, mas para o pagamento de coisas certas e determinadas: certidões, registos e impostos – as quais não pagou… nem devolveu o que recebeu depois de interpelada, tendo claramente, com esta conduta, e pelo menos na data da interpelação (em 27.09.2019) invertido o título da posse.

Pelo que se impõe que os factos tidos pelo Tribunal recorrido como não provados sejam dados como provados, procedendo o recurso.

Da modificação da decisão recorrida nos termos do art. 431º do Cód. Proc. Penal…

Em face do que vem de ser expendido, há que modificar a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto, ao abrigo do disposto no art. 431º b) do Cód. Proc. Penal.

Assim, na parte relativa aos factos provados passarão a constar mais os seguintes:

l) ao agir conforme descrito, a arguida agiu de forma livre e consciente, com o propósito concretizado de, aproveitando-se das suas funções profissionais e da confiança que havia estabelecido com BB e CC, se apropriar daquelas quantias em dinheiro, bem sabendo que as mesmas não lhe pertenciam e que BB e CC apenas lhe haviam entregue para que esta procedesse à prática daqueles atos e ao pagamento daqueles impostos, o que esta não fez;

m) sabia a arguida que, com a sua atuação, causava prejuízo a BB e CC e que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

E os factos não provados serão eliminados.” (fim de transcrição)

Transcrito o que consta do acórdão recorrido, analisemos, perfunctoriamente, as questões suscitadas.

O princípio da livre apreciação da prova, expressamente consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, impõe, salvo quando a lei dispuser diferentemente, que a prova seja apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.

A livre apreciação é uma liberdade “ (…) de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” –, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”7, a qual tem na base as regras de experiência e a livre convicção daquele que a deve apreciar de forma racional, objectiva e crítica.

Como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de outubro de 2008, “A livre apreciação da prova não se confunde com a apreciação arbitrária da mesma, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; trata-se antes de uma liberdade para a objectividade. Daí a íntima ligação entre o princípio da livre apreciação da prova e o da fundamentação e, através desta, a possibilidade/dever de ampla, efectiva e substancial intervenção do tribunal de recurso, verificando se as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, susceptíveis de objectivar a apreciação dos factos, foram observados, a respeito de cada um deles, na motivação apresentada pelo tribunal recorrido.8

Com efeito, a livre apreciação da prova não poder ser “arbitrária”, “discricionária” ou traduzir-se numa apreciação subjectiva daquele que tem por missão apreciar a mesma, sob pena de violação do dever/princípio da perseguição da verdade material enquanto objectivo último da justiça penal.

Como refere Germano Marques da Silva, “(…) a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão.9

Apesar de estarmos em presença de um poder vinculado, a violação do princípio apenas ocorre nas situações de prova legal não considerada, arbitrariedade, juízos subjectivos, imotivados e nas situações em que, segundo as regras de experiência de um homem médio, da prova produzida não seja possível extrair a prova do facto dado por assente. Apenas nestas situações é possível ao tribunal de recurso sindicar a valoração da prova efectuada pelo tribunal recorrido.

Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Janeiro de 2017, “A intromissão da Relação no domínio factual, quando da reapreciação da prova, cinge-se a uma intervenção "cirúrgica", delimitada e restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo-se à sua correção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.”10

Alega a recorrente que o Tribunal da Relação estava impedido de alterar a matéria de facto provada, por força do princípio da imediação.

É indiscutível que na apreciação da prova, o referido princípio é relevante e inexiste no tribunal de recurso. Como refere Germano Marques da Silva, “(…) implica a imediação da produção da prova e a decisão pelos próprios juízes que constituíram o tribunal na audiência e essa componente não é, pelo menos em grande parte, sindicável pelo recurso, onde falta a imediação”.11

Porém, a inexistência da imediação não impede o tribunal de recurso de apreciar o julgamento da matéria de facto, como, aliás a lei consagra (artigo 428º do Código de Processo Penal).

Como bem refere Germano Marques da Silva, “o tribunal superior pode verificar se na sentença se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum”.12

Foi exactamente o que foi efectuado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão recorrido.

A recorrente entende ainda, se bem percebemos a sua motivação e conclusões, que o Tribunal da Relação fez uso indevido das presunções, no que respeita à prova do elemento subjectivo.

Não tem razão.

O Tribunal da Relação de Lisboa, como resulta da transcrição efectuada, fez uso, partindo dos factos dados como provados e dos elementos documentais existentes nos autos, da chamada prova indirecta, circunstancial ou por presunção a qual permite, partindo de um facto conhecido, extrair, através das regras da experiência e sem margem para dúvidas, um outro facto e dar este último como provado.

Sobre o uso de presunções, o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 7 de Janeiro de 2004, no processo n.º 03P3213, considerou que “(…) Na passagem de um facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido” e no acórdão de 9 de Fevereiro de 2005, proferido no processo n.º 04P4721, “(…) As presunções naturais são o produto das regras de experiência que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido, quando um facto é a consequência típica de outro (...) Na ilação derivada de uma presunção natural tem de existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido; a existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária”.13

A utilização destas presunções e prova indirecta são permitidas por lei (artigos 349º e 351º do Código Civil) e ainda estão no campo de aplicação do princípio de livre apreciação da prova, exigindo-se, contudo, ao juiz uma maior prudência e fundamentação no seu raciocínio lógico de valoração da prova.

Em matéria de apreciação da prova, Alberto dos Reis considera que, “(…) o que está na base do conceito é o princípio da libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, entretanto, se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra prova; porque o sistema da prova livre não exclui, e antes pressupõe, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica”.14

No mesmo sentido, Rodrigues Bastos “(…) neste regime, pois, se o juiz não procede como um autómato na aplicação de critérios legais apriorísticos de valoração, também não lhe é permitido julgar só pela impressão que as provas oferecidas pelos litigantes produziram no seu espírito, antes se lhe exige que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou, e cujo carácter racional se expressará na correspondente motivação”.15

Ainda neste sentido, Castanheira Neves “(…) não é, nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional, puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação ou à comunicação.”16

Ora, olhando para estes ensinamentos e para a fundamentação constante do acórdão recorrido, facilmente se percebe que o Tribunal da Relação de Lisboa fez um raciocínio lógico e equilibrado das regras de experiência e uma adequada utilização da chamada prova indirecta, ao dar como provado o elemento subjectivo do tipo.

Na verdade, o elemento subjectivo do ilícito, o dolo (elemento volitivo), “(…) pertence à vida interior de cada um, é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”.17

Como refere o Supremo Tribunal de Justiça, “(…) o ânimo ou intenção, embora seja um acto interno revela-se pelos factos externos que precedem ou acompanham o facto criminoso18

Sendo o elemento volitivo do dolo um acto interno do agente que se materializa pelos demais factos externos anteriores ou contemporâneos do ilícito, não pode, o mesmo, deixar de ser dado como provado, a partir do momento em que são dados como provados os factos imputados, ou seja, o elemento objectivo do ilícito, salvo se existirem circunstâncias que afastem o dolo ou a culpa.

O dolo (elemento intelectual e volitivo) é assim dado por provado a partir das circunstâncias de facto dadas por assentes, analisadas à luz das regras da experiência comum, tal como resulta do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal.

A recorrente alega ainda, em conjugação com o princípio da livre apreciação, a violação do princípio in dúbio pro reo e da presunção de inocência.

O princípio condensado na fórmula latina in dúbio, impõe que, em caso de dúvida na valoração da prova, a decisão seja pro reo, isto é, decidida a favor do réu. Pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. Trata-se de um princípio de prova de aplicação geral.19

Este princípio decorre, desde logo, do princípio da presunção de inocência estabelecido no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, bem como da inexistência de um ónus probatório do arguido em processo penal, no sentido de que o arguido não tem de provar a sua inocência para ser absolvido.

Como se vê dos pressupostos e da natureza do princípio, o mesmo, para ter aplicação, pressupõe que o Tribunal tenha ficado com dúvidas sobre determinado facto.20

Não tendo o Tribunal da Relação de Lisboa ficado com dúvidas em relação aos factos provados que adicionou, como claramente se alcança da leitura da decisão, não faz qualquer sentido lançar mão do princípio in dúbio pro reo.

Por tudo o exposto e inexistindo qualquer dos vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, os quais são de conhecimento oficioso21, improcedem as questões suscitadas.

8.4 Medida da pena.

Como ficou referido a arguida veio, de forma imprecisa e pouco clara, colocar em crise a medida concreta das penas aplicadas.

Vejamos.

Em sede de medida da pena, o legislador estatui como parâmetros de determinação da mesma que deve ser fixada - “(…) dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” visando a aplicação das penas “(…) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” e levando ainda em conta “(…) todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (…)” considerando, nomeadamente, os factores de determinação da pena a que se referem as várias alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal (artigos 71º, nº1 e nº2 e 40º, nº1 e nº2, ambos do Código Penal.

A densificação jurisprudencial destes critérios tem sido feita, por este Supremo Tribunal de Justiça, de modo a considerar e ponderar o equilíbrio entre “exigências de prevenção geral”, a “tutela dos respectivos bens jurídicos” e a “socialização do agente”.

Como refere este Supremo Tribunal de Justiça, ponderando os referidos equilíbrios, “(...) Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente”,22 ou “(...) a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todo exigível”23.

Ao nível doutrinal, Figueiredo Dias entende que a medida da pena "(...) há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto (...) a protecção de bens jurídicos assume um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida".24

No mesmo sentido, Fernanda Palma considera que, “(…) A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos – prevenção geral negativa, incentivar a convicção de que as normais penais violadas são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos – prevenção geral positiva. A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral”.25

Ainda, no mesmo sentido, Anabela Rodrigues considera também como finalidade essencial e primordial da aplicação da pena a prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada (…)”. Acrescenta a autora, que a prevenção especial se traduz na “(…) necessidade de socialização do agente, embora no sentido, modesto, mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros crimes”, sendo certo que ambas são balizadas pela culpa “ (…) a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (…) Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado”.26

Neste mesmo sentido, Figueiredo Dias considera, “(…) culpa e prevenção são assim dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena ( em sentido estrito ou de determinação concreta da pena”)27, acrescentando, “ (…) comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida ótima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente».28

Enunciados os grandes princípios jurisprudenciais e doutrinais em matéria de medida da pena, vejamos o que consta do acórdão recorrido nesta matéria.

O Tribunal recorrido considerou, no que respeita à medida da concreta das penas parcelares e pena única, o seguinte: (transcrição)

E seguindo a jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2016 de 21.01.2016, publicado no DR36, Série I de 22.02.2016, nos termos do qual “em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, nº 3, alínea b), 368º, 369º, 371º, 379º, nº 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424º, nº 2, e 425º, nº 4, todos do Código de Processo Penal”, passamos a fixar a pena concreta a aplicar à arguida.

Cada um dos dois crimes de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, alínea a) do Cód. Penal, cometidos pela arguida é punível com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

De acordo com os nºs 1 e 2 do art. 40º do Cód. Penal, “a aplicação de penas… visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

A medida concreta da pena é determinada, nos termos definidos pelo art. 71º do Cód. Penal, “dentro dos limites definidos na lei… em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, atendendo-se “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente: a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) a intensidade do dolo ou da negligência; c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) as condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”

A medida concreta da pena será encontrada, assim, tomando em consideração todas as circunstâncias que lhe sejam favoráveis ou desfavoráveis ao agente (desde que não façam parte do tipo do crime) de acordo com as exigências de prevenção (geral e especial) que no caso se façam sentir, e com a culpa do agente. Com efeito, a culpa e a prevenção constituem os parâmetros a ter em linha de conta na determinação da medida da pena.

Figueiredo Dias (Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 65 a 111), diz que o legislador de 1995 assumiu no art. 40º do Cód. Penal, os princípios ínsitos no artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, (princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso) e o percurso doutrinário, resumindo assim a teoria penal defendida:

1. Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.

2. A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.

3. Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.

4. Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.

Américo Taipa de Carvalho (Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, p. 322), interpreta o actual art. 40º do Cód. Penal concluindo que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção. Assim, está subjacente ao art. 40º uma concepção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.

Antes de mais, e porque estamos perante um crime punido com pena de prisão ou com pena de multa, cumpre optar por uma ou por outra, sendo que, nos termos do art. 70º do Cód. Penal, deverá preferir-se a segunda sempre que se entenda que esta realiza, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

A arguida confessou o recebimento das quantias e o fim a que se destinavam (o que também não seria fácil de negar, considerando que está nos autos o email que enviou a solicitar as quantias e para que seriam, e que estão documentalmente provada as transferências dos assistentes para a sua conta) mas não a intenção apropriativa. Não devolveu qualquer quantia. E do seu certificado de registo criminal constam antecedentes criminais por crimes de burla qualificada e falsificação de documento (concretamente, consta uma condenação proferida em 18.09.2020, transitada em julgado em 10.05.2021, pela prática de 5 crimes de burla qualificada e 2 crimes de falsificação de documento, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos e sujeita a deveres – cfr. fls. 360 e 361).

Em face deste quadro, e considerando ainda a gravidade da ilicitude das condutas em análise nos presentes autos, entende-se que só uma pena detentiva realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Cabe agora fixar a medida concreta da pena de prisão (entre 1 mês e 5 anos).

No caso concreto diremos que as exigências de prevenção geral são de grau médio, embora não deixemos de constatar que o abuso de confiança cometido por profissionais forenses vem alastrando.

A ilicitude (consubstanciada no desvalor da acção e do resultado) revela-se acima média, considerando sobretudo o valor considerável com que a arguida se locupletou e o consequente prejuízo para os assistentes, ainda não ressarcidos.

O dolo tem grau intenso, pois que é directo (porquanto a arguida quis e conseguiu o resultado das condutas).

A arguida só confessou as evidências e não manifestou qualquer tipo de arrependimento.

A favor da arguida milita a circunstância de à data da prática dos factos ser primária e de estar familiarmente inserida.

Contudo, do seu crc consta uma condenação proferida em 18.09.2020, transitada em julgado em 10.05.2021, pela prática de 5 crimes de burla qualificada e 2 crimes de falsificação de documento, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos e sujeita a deveres).

Presentemente não trabalha.

Tudo visto, será de aplicar à arguida uma pena de 10 (dez) meses de prisão para cada um dos crimes, penas que se afiguram ajustadas à culpa e às exigências reclamadas pela prevenção especial e pela prevenção geral positiva (ou de integração), isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à norma violada.

Quanto à determinação do cúmulo jurídico…

Atento o disposto no art. 77º, nº 1, 1ª parte, do Cód. Penal, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa pena única”.

Nos termos do art. 77º, nº 2 do mesmo Código, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, acrescentando o nº 3 que se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.

Assim, a pena aplicável à arguida tem como limite mínimo 10 meses de prisão e como limite máximo 20 meses de prisão.

Na determinação da pena conjunta, deve atender-se a critérios gerais e a um critério especial, que entre si se conjugam e interagem. Com efeito, tal determinação obedece, em primeiro lugar, aos critérios gerais constantes do art. 71º, nº 1 do Cód. Penal, já supra referidos, e ainda ao critério especial a que alude o art. 77º, nº 1, in fine, do Cód. Penal, tendo que ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

De harmonia com este critério, a conjugar com os demais supra referidos, deve sopesar-se o conjunto dos factos para aquilatar da gravidade da sua ilicitude, sendo decisiva para esta avaliação o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.

Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou mesmo a uma “carreira” criminosa), ou tão só uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade.

No caso concreto, a consideração unitária dos factos e da personalidade do agente, leva-nos a considerar adequada a pena única de 14 (catorze) meses de prisão – em face da ilicitude dos crimes (sobre cuja gravidade já discorremos supra) e da personalidade da arguida revelada nos factos (que aponta para uma tendência criminosa).

Esta pena será suspensa na sua execução por se entender que, atendendo à personalidade da arguida, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, é ainda de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art. 50º do Cód. Penal), existindo esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada.

Assim, a pena agora aplicada será suspensa por um período de 2 (dois anos) mas subordinada ao dever de ressarcir parcialmente cada um dos assistentes com a quantia de 6.000,00 € (seis mil euros), nos termos do art. 51º do Cód. Penal, no prazo de 1 (um) ano – o que se entende ser necessário e adequado a cumprir as finalidades da punição, ainda que nos autos não tenha sido deduzido pedido de indemnização civil. (fim de transcrição)

Como ficou referido dos critérios legais anteriormente elencados e a apreciação jurisprudencial e doutrinal dos mesmos, na determinação concreta das penas devem ser consideradas razões de prevenção geral e especial, balizadas pelo grau de culpa do arguido enquanto limite inultrapassável da pena.

Como resulta da transcrição efectuada, os referidos critérios foram judiciosamente ponderados pelo Tribunal da Relação de Lisboa no seu douto acórdão, quer no que respeita às penas parcelares, quer no que respeita à pena única aplicadas.

Começou por ponderar, em obediência ao artigo 70º do Código Penal, a aplicação de uma pena privativa ou não privativa da liberdade, afastando a opção da pena de multa, em função dos antecedentes criminais da arguida. De seguida, em relação às penas parcelares, partindo da medida abstracta da pena estabelecida (1 mês a 5 anos de prisão), ponderou o dolo directo com que a arguida actuou, a ilicitude acentuada (atentos os montantes de que se apropriou e a violação do dever de confiança), a confissão das quantias recebidas, a sua boa inserção social e o facto de ser primária à data dos factos, para concluir pela condenação da arguida em 10 meses de prisão por cada um dos crimes.

Nenhuma censura merece o juízo efectuado em matéria de medida das penas no acórdão recorrido, o qual é adequado e proporcional ao grau de culpa da arguida.

No que respeita ao cúmulo jurídico, deverá ter-se em conta o conjunto dos factos e a gravidade dos mesmos ou, na expressão do legislador, são “considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

Como refere este Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 05 de Junho de 2012, a “ pena única deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se em atenção se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação ente si, mas sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente. (…) Com a pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e da gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda considerar, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente.”2930

No caso concreto, a determinação da pena única tem como limite mínimo 10 meses de prisão e como limite máximo os 20 meses de prisão.

Assim, tendo em conta estes limites e em consideração que a pena única deve ser encontrada tendo em conta a gravidade global do comportamento delituoso da arguida, pois tem de ser considerado e ponderado um conjunto dos factos e a sua personalidade “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado”, entendemos, igualmente, que a pena única aplicada à mesma está, claramente, dentro dos limites da sua culpa e mostra-se adequada e proporcional à mesma, satisfazendo as demais exigências de prevenção geral e especial, não merecendo, por isso, qualquer intervenção correctiva deste Supremo Tribunal de Justiça.

Em resumo, confirma-se integralmente o acórdão recorrido.

III Decisão

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, decide julgar improcedente o recurso da arguida AA e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC’s - artigo 513.º, n. º1 do Código de Processo Penal e artigo 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).

Supremo Tribunal de Justiça, 5 de Março de 2025.

Antero Luís (Relator)

Jorge Raposo (1º Adjunto)

Carlos Campos Lobo (2º Adjunto)

_____________________________________________

1. Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006, proferido no Proc. Nº O6P2267.

2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.

3. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.

4. Ac. do TC nº 31/2020, de 16 de Janeiro 2020 o qual a inconstitucionalidade (embora sem força obrigatória geral) da “norma resultante da conjugação dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea e), ambos do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que condenem os arguidos em pena de multa, ainda que as decisões recorridas da 1ª Instância sejam absolutórias, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.” in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200031.html

5. Neste sentido e por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2023, Proc. 7528/13.0TDLSB.L3.S1, disponível em www.dgsi.pt

6. Veja-se, por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Setembro de 2021, Proc. nº 90/16.4JBLSB.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt

7. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal (lições coligidas por Maria João Antunes), Coimbra, Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988-89, p. 139.

8. Proc. nº 08P2864, disponível em www.dgsi.pt

9. Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Verbo, 1993, p. 111.

10. Proc. nº 154/15.1GDSNT.L1-3, disponível em www.dgsi.pt

11. Registo da Prova em Processo Penal – Estudos de Homenagem a Cunha Rodrigues”, pág. 817

12. In Curso de Processo Penal”, III, pág. 294.

13. Ambos in www.dgsi.pt

14. In C P Civil Anotado, Coimbra Editora, 1950, III, 245

15. In Notas ao Código de Processo Civil, Lisboa, 1972, III, 221

16. In Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, 53

17. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/02/1993, in, BMJ, 324º-620.

18. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/11/1988, citado pelo Prof. Carlos Lopes, in, Guia de Perícias Médico-Legais, pág. 294.

19. Acórdão do STJ de 10/05/1995, Proc. nº 47764, cit. no CPP Anotado por Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, I Vol., 1996, pág. 550.

20. Neste sentido e por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-07-2008, Processo n.º 1787/08, disponível em www.dgsi.pt

21. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no Diário da República I Série de 28 de Dezembro de 1995.

22. Sumário do acórdão de 31-01-2012, Proc. Nº 8/11.0PBRGR.L1.S

23. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 22-09-2004, Proc. n.º 1636/04 - 3.ª ambos in www.dgsi.pt

No mesmo sentido, Prof. Figueiredo Dias “O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Fasc. 2-4, Dezembro de 1993, págs. 186-187.

24. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime - Noticias Editorial, pág. 227).

25. As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva” in “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, 1998, AAFDL, pág. 25-51 e in “Casos e Materiais de Direito Penal”, 2000, Almedina, pág. 31-51.

26. A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra Editora, pág. 570 e seguintes).

27. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, pág. 214.

28. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, 2.º a 4.º, Abril-Dezembro de 1993, pág. 186 e 187,

29. Proc. nº 202/05.3GBSXL.L1.S1, disponível em: www.dgsi.pt

30. Neste sentido também, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 421e segs.