I - O critério essencial que no pedido de escusa deve ser ponderado, na perspetiva da “imparcialidade objetiva” em que as aparências são de considerar, é o de que haja um motivo que, a avaliar de forma exigente e em função das circunstâncias objetivas do caso, em juízo de razoabilidade na consideração do “homem médio” que se revê num poder judicial imparcial e independente, seja tido como sério e grave para impor a prevenção do perigo de que a intervenção do juiz seja encarada com desconfiança e suspeita, pelo público em geral e, particularmente, pelos destinatários das decisões.
II - Devendo a requerente da escusa decidir um incidente deduzido por arguido que outorgou procuração a favor de sociedade de advogados de que é sócio o seu marido, que pertence, tal como os advogados mencionados na procuração forense, ao mesmo escritório (concentrado num único piso de um prédio), tal facto é suscetível de suscitar dúvidas sérias, na vertente externa das aparências dignas de tutela, tendo por base a perceção que um cidadão médio, leigo em matéria de direito, tem sobre as circunstâncias do caso.
I – RELATÓRIO
1. A Senhora Juíza Desembargadora, Dr.ª AA, a exercer funções no Tribunal da Relação do Porto, vem, ao abrigo do disposto no artigo 43.°, n.ºs 1 e 4, do Código de Processo Penal, apresentar pedido de escusa com os fundamentos seguintes (transcrição):
No âmbito das suas funções de juíza desembargadora do Tribunal da Relação do Porto, foi distribuído em 26.02.2025 à requerente e signatária o incidente de recusa apresentado pelo aí arguido BB, no âmbito do processo comum com intervenção do Tribunal Coletivo n.º 172/17.5..., que corre os seus termos no Juízo Central Criminal de ... – juiz ..., do Exmo. Sr. CC, que preside à audiência de julgamento.
Após exame do processo, a signatária constatou o seguinte:
- O arguido e requerente do incidente de recusa constituiu, no âmbito do referido processo, como sua procuradora a sociedade de advogados “P..., R.L.”, na pessoa dos Senhores Advogados DD, EE, FF e GG.
- Sucede que o cônjuge da requerente e signatária, HH, advogado de profissão, faz parte e integra a identificada sociedade de advogados, na qualidade de sócio.
As circunstâncias expostas, que podem ser resumidas no facto de o marido da requerente fazer parte, enquanto sócio, da sociedade de advogados que representa o requerente do incidente de recusa, arguido no Processo Coletivo nº 172/17.5..., poderão configurar, no entendimento da signatária, a existência de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade do ponto de vista de um cidadão médio, representativo da comunidade, em particular aos sujeitos processuais envolvidos, e, como tal, correr o risco de a sua intervenção no referido incidente de recusa ser considerada suspeita.
Nesta conformidade, sem prejuízo de outro entendimento que, naturalmente, se respeitará, e porque não basta a objetiva independência e imparcialidade subjetiva do juiz, não basta sê-lo, mas importa também parecê-lo, solicito que considerem este meu PEDIDO DE ESCUSA, nos termos do artigo 43°, n.ºs 1 e 4, do CPP.
Notifique, remeta cópia ao Sr. Juiz Presidente da 1.ª Secção para conhecimento e D.N, nomeadamente crie apenso referente a este pedido de escusa, junte ao mesmo este despacho após remeta ao Venerando Supremo Tribunal de Justiça, dando-se ainda acesso eletrónico a estes autos e ao processo principal, donde foi extraída a certidão que deu origem ao incidente de recusa.
Consigno que, por não me ter apercebido previamente das supra referidas circunstâncias, no incidente de recusa procedi à prolação de despacho – referência eletrónica ...13– determinando que fosse aberta vista ao Ex.mo Procurador-Geral Adjunto.
2. Colhidos os vistos e remetidos os autos para serem submetidos à presente conferência, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Factos relevantes:
- Os factos relevantes para a decisão do presente incidente são os que ficaram referidos no relatório que antecede, constando da procuração outorgada pelo arguido no Processo Coletivo n.º 172/17.5... o seguinte (transcrição parcial):
«BB, NIF (…), residente na (…), constitui sua bastante procuradora a P..., R.L., na pessoa dos advogados EE e DD, ambos com escritório na Rua ..., ..., a quem confere os mais amplos poderes forenses em direito permitidos, incluindo os de substabelecer”.
- A referida sociedade de advogados tem escritórios em diversas cidades do país.
- A requerente é casada com HH, advogado de profissão, que integra a identificada sociedade de advogados, na qualidade de sócio, pertencendo os advogados mencionados na procuração e o cônjuge da requerente ao escritório da cidade do ..., situado na Rua ..., ....
2. Apreciação
2.1. Os tribunais são os órgãos de soberania a quem compete administrar a justiça em nome do povo (artigo 202.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa - CRP).
O artigo 203.º da CRP consagra o princípio fundamental da independência, estabelecendo que os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei, princípio que exige a independência e imparcialidade dos juízes.
No seu artigo 32.º, n.º 9, a CRP consagra o princípio do «juiz natural», configurado como uma garantia fundamental do processo criminal, assegurando, também por esta via, todas as garantias de defesa em processo criminal, em que se inclui o julgamento por um juiz aleatoriamente pré-determinado.
Sem isenção e imparcialidade dos juízes não se alcança o direito ao processo equitativo que a Constituição garante a todos os cidadãos (artigo 20.º), constituindo a imparcialidade do Tribunal um requisito fundamental do processo justo (artigo 10.º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos; artigo 14.º, n.º 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos).
Há situações em que a garantia da imparcialidade dos Tribunais pressupõe exceções ao princípio do «juiz natural».
No entanto, o «juiz natural» só deve ser afastado quando a garantia da sua imparcialidade e isenção o impuser, isto é, quando se verifiquem circunstâncias assertivas e claramente definidas, sérias e graves, reveladoras de que o juiz aleatoriamente pré-definido como competente para determinada causa deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.
A proteção da garantia de imparcialidade do juiz é assegurada pela categoria dos impedimentos, e, de forma complementar, pelo instituto das suspeições, que podem assumir a natureza de recusa ou de escusa, conforme consagrado no Código de Processo Penal (diploma que passaremos a nomear como CPP), que no seu Livro I, Título I, Capítulo VI, regula o regime dos impedimentos, recusas e escusas do juiz.
Dispõe o artigo 43.º, n.ºs 1, 2 e 4, do CPP:
«1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º
4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verifiquem as condições dos nºs 1 e 2.»
Os fundamentos da recusa (o mesmo com a escusa) podem referir-se à imparcialidade subjetiva, do foro íntimo, que se presume, só podendo ser posta em causa face a circunstâncias objetiváveis e certamente excecionais, ou à imparcialidade objetiva, por verificação de “circunstâncias relacionais ou contextuais objetivas suscetíveis de gerar no interessado o receio da existência de ideia feita, prejuízo ou preconceito em concreto quanto à matéria da causa”, ou circunstâncias ou contingências de relação com algum dos interessados (Henriques Gaspar, anotação ao artigo 43.º, Código de Processo Penal comentado, H. Gaspar et alii, Almedina, 2016).
Na interpretação e aplicação da cláusula geral enunciada no artigo 43.º, n.º1, para justificar o afastamento do juiz do processo, a jurisprudência do STJ tem adoptado um critério particularmente exigente, pois que, estando em causa o princípio do juiz natural, constitucionalmente consagrado, deve tratar-se, como já se assinalou, de uma suspeição fundada em motivo sério e grave, a avaliar de forma exigente e em função das circunstâncias objetivas do caso, “a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade do julgador” (acórdão de 27.4.2022, Proc. 30/18.6PBPTM.E1-A.S1; acórdão de 26.10.2022, Proc. 193/20.0GBABF.E1-A.S1).
Em suma, para sustentar a escusa ou recusa do juiz é necessário verificar:
- se a intervenção do juiz no processo em causa corre “o risco de ser considerada suspeita”;
- e, se essa suspeita ocorre “por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, para o que deverão ser indicados factos objetivos suscetíveis de preencher tais requisitos, a analisar e ponderar segundo as circunstâncias de cada caso concreto, de acordo com as regras da experiência comum e com “bom senso” (acórdão de 13.04.2023, Proc. 16/23.9YFLSB-A).
Neste campo, socorremo-nos do que se escreve no acórdão de 13.04.2005, Proc. 05P1138, onde a dado passo se refere:
«Mas a dimensão subjetiva não basta à afirmação da garantia. Releva, também, e cada vez mais com acrescido reforço, uma perspectiva objetiva, que é consequencial à intervenção no direito processual, com o suporte de um direito fundamental, de um conceito que não era, por tradição, muito chegado à cultura jurídica continental: a aparência, que é traduzida no adágio "justice must not only be done; it must also be seen to be done", que revela as exigências impostas por uma sensibilidade acrescida dos cidadãos às garantias de uma boa justiça.
Na abordagem objetiva, em que são relevantes as aparências, intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v. g., a não cumulabilidade de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objetivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si.
Mas devem ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjetivo do foro interior do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz; a construção conceptual da imparcialidade objetiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz.»
Continua o mesmo aresto:
«A imparcialidade objetiva apresenta-se, assim, como um conceito que tem sido construído muito sobre as aparências, numa fenomenologia de valoração com alguma simetria entre o "ser" e o "parecer". Por isso, para prevenir a extensão da exigência de imparcialidade objetiva, que poderia ser devastadora, e para não cair na "tirania das aparências" (cfr., Paul Martens, "La tyrannie des apparences", "Revue Trimestrielle des Droits de L´Homme", 1996, pag. 640), ou numa tese maximalista da imparcialidade, impõe-se que o fundamento ou motivos invocados sejam em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, e tendo em conta os valores em equação - a garantia externa de uma boa justiça, que seja mas também pareça ser.
A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é, a respeito da densificação do conceito de imparcialidade, de assinalável extensão (cfr., v. g., entre muitas outras referências possíveis, Renée Koering-Joulin, "La notion européenne de «tribunal indépendant et impartial» au sens de l’article 6º, par. 1 de la Convention européenne de sauvegarde des droits de l’homme", in Revue de science criminelle et de droit pénal comparé, nº 4, Outubro-Dezembro 1990, págs. 766 e segs.).»
Quer isto dizer que as aparências são de considerar, no contexto da imparcialidade objetiva, sem riscos de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente para impor a prevenção do perigo de que a intervenção do juiz seja encarada com desconfiança e suspeita, ou seja, quando a projeção externa da sua imparcialidade suscite reparos no público em geral e, particularmente, nos destinatários das decisões.
Regressando ao mesmo acórdão de 13.04.2005:
«Os motivos que podem afetar a garantia da imparcialidade objetiva, que mais do que do juiz e do "ser" relevam do "parecer", têm de se apresentar, nos termos da lei, «sério» e «graves».
(…)
o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objetivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser visto externamente («encarado com desconfiança», na expressão do pedido) e ser adequado a afectar (gerar desconfiança) sobre a imparcialidade.»
O critério essencial que no pedido de escusa deve ser ponderado, na perspetiva da “imparcialidade objetiva”, é o de que haja um motivo sério e grave para que, exteriormente, na consideração do “homem médio” que se revê num poder judicial imparcial e independente, possa ser considerada a possibilidade de a intervenção do juiz não respeitar a exigência de imparcialidade a que nessa mesma perspetiva do cidadão comum a atividade de julgar deve estar sujeita.
2.2. No caso em análise, está em causa um incidente de recusa que deverá ser julgado na Relação do Porto, tendo a Sr.ª Juíza Desembargadora requerente a qualidade de relatora.
O arguido/requerente da recusa passou procuração em que constituiu, “sua bastante procuradora a P..., R.L., na pessoa dos advogados EE e DD, ambos com escritório na Rua ..., ..., a quem confere os mais amplos poderes forenses em direito permitidos, incluindo os de substabelecer”.
Admitindo-se a possibilidade de ser outorgada procuração a favor de uma sociedade de advogados, pode debater-se o âmbito de extensão dos poderes: se a todos os advogados da sociedade ou apenas aos que sejam concretamente indicados.
A particularidade do caso está na circunstância de a procuração ser outorgada expressamente a favor da sociedade de advogados, “na pessoa dos advogados EE e DD”, e não diretamente a favor dos advogados concretamente identificados, com a posterior indicação da sociedade a que estão ligados.
Os senhores advogados indicados na procuração e o cônjuge da requerente, sócio da sociedade de advogados a favor da qual a procuração foi outorgada, trabalham todos no escritório do ... da sociedade em causa, que funciona num único piso do prédio da Rua ....
A procuração forense foi outorgada a favor da mencionada sociedade de advogados antes de à Sr.ª Juíza Desembargadora ter sido distribuído o incidente de recusa.
Não está em causa a imparcialidade subjetiva da Sr.ª Juíza Desembargadora, que sempre se presume até prova em contrário e de que não há razões para duvidar.
O que importa é avaliar o pedido formulado na perspetiva da imparcialidade objetiva, a partir da valoração, também objetiva, das circunstâncias, segundo o senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade.
Temos de admitir que os termos em que a procuração foi passada - a favor da sociedade de advogados -, a circunstância de a requerente ser casada com um dos sócios da dita sociedade, que pertence, tal como os advogados mencionados na procuração forense, ao escritório do ... (concentrado num único piso), é suscetível de suscitar dúvidas sérias, na vertente externa das aparências dignas de tutela, tendo por base a perceção que um cidadão médio, leigo em matéria de Direito, tem sobre as circunstâncias do caso.
Importa afastar qualquer desconfiança quanto à atuação da Ex.ma requerente, gerada pelo facto de o seu marido ser sócio da sociedade de advogados em causa, a quem foi passada pelo arguido procuração forense, e do mesmo e dos advogados indicados na dita procuração trabalharem no mesmo escritório, localizado no ....
Entendemos, por conseguinte, que importa preservar uma situação que dissipe todas as dúvidas ou reservas, pois as aparências têm importância, devendo ser concedida a escusa para evitar que sobre a decisão, em que deveria participar a Sr.ª Juíza Desembargadora requerente, possa recair qualquer sombra de desconfiança.
*
III - DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em deferir o presente pedido de escusa formulado pela requerente, Ex.ma Sr.ª Desembargadora, Dr.ª AA
Sem custas.
Supremo Tribunal de Justiça, 13 de março de 2025
(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)
Jorge Gonçalves (Relator)
Ernesto Nascimento (1.º Adjunto)
Ana Paramés (2.ª Adjunta)