I - Tendo presente o princípio da tipicidade das nulidades (artº 118º do Cód. Proc. Penal), o disposto no artº 379º do CPP aplica-se apenas às sentenças e não aos meros despachos. A omissão de pronúncia verificada em despacho constitui uma mera irregularidade, a arguir no prazo e nos termos estabelecidos no artigo 123º do Código de Processo Penal.
II - A apreensão bancária, prevista no art.º 181º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, corresponde a uma medida provisória de conservação de bens, à qual podem presidir distintas finalidades, em função do destino que irá ser dado aos bens a apreender. Pode ser apenas um meio de obtenção e conservação de provas, servindo finalidades exclusivamente probatórias; pode, ainda, servir finalidades exclusivamente conservatórias, visando garantir a segurança dos bens, por a final deverem ser declarados perdidos e podem-lhe, ainda, estar subjacentes, em simultâneo, ambas as finalidades..
III - A Decisão Europeia de Investigação em matéria penal (DEI) consiste num instrumento para obtenção de prova em contexto transnacional.
IV - A Lei 25/2009, que tinha sido revogada apenas na parte relativa à execução das decisões de apreensão de elementos de prova pela Lei 88/2017, de 21 de agosto (DEI), veio a ser tacitamente revogada, na restante parte pelo Regulamento nº 2108/1805 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de novembro de 2018.
V - O Regulamento nº 2108/1805 estabelece as regras segundo as quais um Estado-Membro reconhece e executa no seu território uma decisão de apreensão ou uma decisão de perda emitida por outro Estado-Membro no âmbito de processos em matéria penal.
VI - Se estiver em causa apenas a perda dos bens a apreender o instrumento de cooperação a utilizar será o Regulamento 2018/1805; se estiver em causa a apreensão de elementos de prova, ainda que essa finalidade não seja a única, o instrumento de cooperação adequado é a DEI.
VII - A distinção entre os dois objetivos das medidas provisórias nem sempre é óbvia e pode mudar no decurso do processo; cabe à autoridade de emissão apreciar aferir a finalidade do bem a apreender.
(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Relatora: Isabel Matos Namora
1º Adjunto: Jorge Langweg
2ª Adjunta: Maria Deolinda Dionísio
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
No inquérito que corre termos no DIAP da comarca do Porto, secção de Valongo, com o n.º1556/24.8JAPRT, remetidos que foram os autos ao Juiz de Instrução Criminal do Porto – Juiz 1, acompanhados da promoção para que fosse autorizada a apreensão do valor global de 67.395,27€, referente ao valor que tinha sido ilegitimamente transferido para uma conta bancária aí identificada, veio tal pedido a ser indeferido.
Dessa decisão o Ministério Publico interpôs o competente recurso, o qual foi admitido por despacho sustentado com reforçados argumentos.
Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no qual corrobora as razões aduzidas, reclamando a revogação do despacho proferido pelo JIC.
Proferido que foi o despacho liminar, teve lugar a conferência.
2. Iter processual a considerar
2.1. Objeto do inquérito
Neste inquérito investiga-se a prática dos crimes de, burla qualificada, p. e p. pelos artigos, 217º, n.º 1 e 218º, n.ºs, 1 e 2, al. a), ambos do Código Penal, acesso ilegítimo, p. e p. pelo artigo 6.º e falsidade informática, p. e p. pelo artigo 3.º, estes da Lei do Cibercrime, na sequência da denúncia apresentada, no dia 26/02/2024, pela sociedade A..., LDA.
Esta sociedade recebeu uma mensagem no correio eletrónico remetido por ..........@....., a solicitar o pagamento de uma fatura em atraso (...), no valor de 67.395,27€, para uma conta sedeada na Polónia, no Banco 1... SA e julgando tratar-se de uma mensagem de correio eletrónico verdadeira, dado ser semelhante ao endereço original daquela empresa, a sociedade denunciante procedeu ao pagamento do referido valor/fatura, no dia 29 de Fevereiro de 2024. Porém, após o dia 5 de Março de 2024, a denunciante veio a constatar que tal mensagem eletrónica datada de 26 de Fevereiro era falsa e não tinha sido remetida pela sociedade B... e que os indivíduos denunciados criaram e utilizaram nas comunicações endereço de correio eletrónico falso, muito semelhante ao legítimo, contudo não pertencendo ao domínio da internet diferente ...., já que este pertence ao domínio da internet C... INC (China), tendo data de criação o dia 27 de Fevereiro de 2024 e a conta bancária de destino daquele valor possui o IBAN ... e está sedeada no Banco 1...”, na Polónia - o Ministério Público (MP).
2.2. Promoção do Ministério Público
Após a realização das diligências de inquérito que se afiguraram como úteis e necessárias ao esclarecimento dos factos em território nacional, o Ministério Público determinou a emissão de uma DEI (Decisão Europeia de Investigação), considerando que existem ainda informações imprescindíveis a recolher, no sentido da descoberta da verdade material e realização da justiça, relacionadas com a identificação da conta bancária e respetivos titulares, para a qual foi efetuada a transferência ilegítima por parte da denunciante, realizada para a Polónia, já que o respetivo IBAN de destino dessa transferência surgem com a identificação desse País.
Tal DEI, efetuada em formulário próprio, foi ordenada ao abrigo do disposto nos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 4.º, n.º 1, 5.º, n.º 1, alínea a), 6.º, 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 1, 38º todos da Lei n.º 88/2017, de 21 de Agosto, a ser executada na Polónia para que:
I - Se averiguasse, junto do Banco 1...” a identidade do titular/es da conta bancária identificada com IBAN ..., cópia da ficha de assinaturas de abertura de tal conta e remessa do extrato bancário referente aos meses de fevereiro e março de 2024;
II- No caso de tal valor 67.395,27€ já ter sido levantado ou transferido, se obtenham todos os elementos de prova que confirmem qual o destino que lhes foi dado (incluindo cópia de toda a documentação bancária comprovativa do seu levantamento e/ou transferência);
III- Se proceda à constituição como arguidos da pessoa ou das pessoas que vierem a ser identificadas; ao seu interrogatório nessa qualidade, para que expliquem a forma como lograram obter na respetiva conta bancária tal valor de 67.395,27€, devendo ser confrontados com a factualidade em causa no presente inquérito; e à aplicação da medida de coação de termo de identidade e residência a quem for constituído arguido;
- Aquando da realização do interrogatório deverão o/s denunciado/s ser questionados sobre os seguintes factos e prestar declarações, querendo (atento o direito que o estatuto processual de arguido lhes confere):
- Se conhecem a empresa “A..., Lda.”, com sede em Portugal e a “B...”, com sede na Roménia e que relação comercial, ou outra, têm com as mesmas;
- Se entre fevereiro e março de 2024 foi o autor do envio das mensagens de correio eletrónico para a empresa A..., Lda., fazendo-se passar pela empresa B..., criando e utilizando endereços eletrónicos do domínio ... e solicitando o pagamento do valor de uma fatura (...), para o IBAN ... e, em caso negativo, se conhece os seus autores, devendo identificados, e caso afirmativo;
- A que título foi creditada na conta bancária com o IBAN ..., o valor monetário de 67.395,27€, associado à transferência bancária de 29 de fevereiro de 2024, proveniente da empresa A..., L.da e que destino foi dada a essa quantia;
- Se o titular da conta bancária com o IBAN ... autorizou que alguém utilizasse a dita conta para aí receberem transferências monetárias, e em caso afirmativo, a sua identificação completa, morada, contacto telefónico e endereço de correio eletrónico;
- Caso seja identificado outro indivíduo suspeito residente no Estado da Polónia proceder à sua constituição como arguido e respetivo interrogatório, devendo prestar Termo de Identidade e Residência;
- Se realizem todas as diligências de investigação que, no decurso do presente pedido de cooperação judiciária, se venham a revelar úteis à investigação em causa.
Ainda no mesmo despacho, e com os mesmos fundamentos, o MP veio promover ao Juiz de Instrução Criminal do Porto que ordenasse a apreensão do valor global de 67.395,27€, referente à transferência bancária ilegítima efetuada, no dia 29 de fevereiro de 2024, pela sociedade comercial denunciante para a conta bancária sedeada no Banco 1...”, com o IBAN ..., por ser proveniente de ilícito criminal, nos termos do disposto nos artigos, 181.º, n.º 1 e 178.º, n.º 1, 2, do Código de Processo Penal e nos termos do 1º, 2.º, n.º 1, 4.º, n.º 1, 5.º, n.º 1, alínea a), 6.º, 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 1 e 2, 38º e 44º todos da Lei n.º 88/2017, de 21 de agosto:
“Nos termos e com os fundamentos de facto e de direito enunciados supra, importa assim apreender junto do banco os saldos bancários correspondentes à transação bancária efetuada indevidamente no dia 29 de Fevereiro de 2024, por ser proveniente de ilícito criminal. (…) Nos presentes autos existem já elementos probatórios que indiciam a prática de ilícitos criminais, sendo que aos referidos montantes é proveniente da atividade ilícita correspondendo às contrapartidas monetárias recebidas através da prática do crime em investigação.
Pelo exposto, promovo seja remetida DEI às autoridades judiciárias da Polónia, nos termos acima descritos que, atento o disposto no artigo 181.º, n.º 1 e 178.º, n.º 1, 2, do Código de Processo Penal e nos termos do 1º, 2.º, n.º 1, 4.º, n.º 1, 5.º, n.º 1, alínea a), 6.º, 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 1 e 2, 38º 44º todos da Lei n.º 88/2017, de 21 de Agosto, para que se proceda à apreensão do valor global de 67.395,27€, referente à transferência bancária ilegítima efetuada pela sociedade comercial denunciante, acima referida, efetuada para a conta bancária sedeada no Banco 1...”, com o IBAN ....”
2.3. Despacho do Juiz de Instrução Criminal
Conclusos os autos ao JIC veio o mesmo indeferir tal promoção, com os seguintes fundamentos:
“A DEI é uma decisão emitida ou validada por uma autoridade judiciária de um Estado membro da União Europeia para que sejam executadas noutro Estado membro uma ou várias medidas de investigação específicas, tendo em vista a obtenção de elementos de prova. No caso vertente, a apreensão de saldos bancários não visa a obtenção de elementos de prova, mas antes a conservação dos ativos provenientes de um facto ilícito típico (com o propósito de garantir a execução do confisco do produto do crime), sendo que a DEI não é o meio próprio para pedir a apreensão de quantia numa conta bancária, com o fim visado, que no caso é a futura perda ou confisco (neste sentido vd o Ac. do TRP de 27.11.2024 disponível in www.dgsi.pt).
Face ao exposto, indefiro o promovido.
Notifique e devolva os autos ao MP.”
2.4. Recurso do Ministério Público
Deste despacho interpôs o Ministério Público recurso para este Tribunal da Relação, em 18/02/2025, invocando, no essencial:
- A promoção do MP que requereu a apreensão fundamentou devidamente, até com argumentos vertidos no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 294/2008 (publicado no Diário da República, 2.ª série — N.º 125 — 1 de Julho de 2008) que, para além da apreensão bancária representar uma medida cautelar destinada a assegurar o cumprimento de certos efeitos de direito substantivo que estão associados à pratica de ilícito penal, também funciona como meio de prova, não só porque a sua previsão legal (art.º 178º e 181º, ambos do CPP) se encontra na parte referente aos meios de prova, como é a prova maior da prática do crime e, eventualmente, da sua autoria;
- A M.ª JIC devia ter ordenado a apreensão promovida à autoridade judiciária competente do local da apreensão e a sua concretização através de DEI, nos termos do disposto na Lei n.º 88/2017, de 21 de agosto;
- Mesmo que se entenda que a Lei n.º 88/2017, de 21 de agosto não se aplica ao caso concreto, poderia tal promoção ser atendida e concretizada através dos mecanismos que a M. mª JIC considerasse aplicáveis ao caso;
- Ao assim não proceder, a M.ª JIC violou o disposto nos artigos, 178º e 181º, ambos do CPP, artigo 3º, al. e) da Lei n.º 88/2017, de 21 de agosto e jurisprudência do Tribunal Constitucional vertida no acórdão n.º 294/2008.
2.5. Despacho de sustentação proferido pelo Juiz de Instrução Criminal
“Independentemente da natureza e fins da apreensão pretendida - sendo certo que se nos afigura que o “rasto” dos valores apropriados não é obtido através da apreensão dos saldos bancários, mas por simples junção de documentação bancária, mormente do extrato bancário de suporte dessa conta onde constem os respetivos movimentos e saldos-, mesmo admitindo que a apreensão bancária funciona também como meio de prova, continuaria a DEI (Decisão Europeia de Investigação, aprovada pela Lei n.º 88/2017, de 21 de agosto) a não ser o meio próprio da promovida ordem de apreensão, contrariamente ao que sustenta o Ministério Público.
Com efeito, o mecanismo adequado para proceder à apreensão de valores ilicitamente transferidos e acautelar o perigo de as quantias serem dissipadas, é a emissão de certificado de apreensão (vulgarmente designado de FREEZING ORDER), no caso por referência à conta bancária domiciliada na Polónia, sendo este o Estado de Execução competente, nos termos do previsto no Regulamento (EU) 2018/1805 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14.11.18, relativo ao reconhecimento mútuo das decisões de apreensão disponível em https://www.ejn-crimjust.europa.eu/ejn/libdocument properties/EN/3270.
O Regulamento (EU) 2018/1805 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14.11.18, relativo ao reconhecimento mútuo das decisões de apreensão assenta no princípio base de que a apreensão e a perda dos instrumentos e produtos do crime constituem um dos meios mais eficazes de luta contra a criminalidade reforçando o empenhamento da União em assegurar uma maior eficácia na identificação, perda e reutilização de bens de origem criminosa, em conformidade com o «Programa de Estocolmo — Uma Europa aberta e segura que sirva e proteja os cidadãos».
Tendo em conta a frequente natureza transnacional da criminalidade, é fundamental assegurar a eficácia da cooperação transfronteiriça para apreender e declarar perdidos os instrumentos e os produtos do crime (considerandos 4 e 5 do Regulamento).
Ora, não foi isso que o Ministério Público promoveu e o que o Tribunal indeferiu foi o uso da DEI (e não a apreensão em si conforme se depreende do texto e fundamentos do despacho sob censura), por se tratar de instrumento indevido, carecendo, pois, de cabimento e fundamento para tal, entendimento esse que continuamos a sufragar”.
2.6. Parecer
A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta no douto parecer que apresenta sustenta que a DEI é o instrumento que deve ser utilizado no presente caso, com vista à apreensão de saldo bancário em instituição bancária sediada em país da União Europeia.
Alega, em síntese, que a DEI abrange qualquer medida de investigação, com exceção da criação de equipas de investigação conjuntas e da obtenção de elementos de prova por essas equipas, abrangendo por isso qualquer medida destinada a impedir provisoriamente a destruição, transformação, deslocação, transferência ou alienação de um elemento que possa servir de prova.
Por outo lado, compete ao JIC determinar a apreensão de valores que se encontrem em estabelecimentos bancários, nomeadamente, depósitos bancários, quando tiver fundadas razões de que estejam relacionados com um crime e que assumem interesse para a descoberta da verdade ou para a prova (artigo 181º, n.º 1 do CPP), o que sucede nos autos.
Conclui, assim, que não se vislumbra qualquer obstáculo legal à apreensão, caso exista, do saldo bancário no valor global de 67.395,27€, referente à transferência bancária ilegítima efetuada pela sociedade comercial denunciante para a conta bancária indicada e que tal diligência de prova seja efetuada através de DEI.
Nem mesmo o invocado Regulamento (UE) 2018/1805, de 14/11/2028, do qual não resulta que a apreensão de saldo bancário, quer para efeitos de prova, quer como medida cautelar destinada a assegurar a eventual perda ou confisco, não possam ser efetuadas através de DEI, ainda que com a emissão de certificado de apreensão - o denominado FREEZING ORDER -, por referência à conta bancária domiciliada na Polónia.
E deste Regulamento, sustenta, também não resulta que essa competência possa ser do Estado da execução, como refere a M.ª JIC.
Por último, refuta a aplicabilidade da jurisprudência firmada no invocado acórdão desta Relação, de 27/11/2024, por incidir sobre uma situação distinta, já que a apreensão ali promovida pelo MP visava, exclusivamente, garantir a execução do confisco dos produtos do crime e, no presente caso, a apreensão do valor global de 67.395,27€, depositada em conta bancária sediada na Polónia tem, desde logo e essencialmente efeitos probatórios, como melhor resulta do despacho do MP que ordenou a emissão da DEI, com várias diligências solicitadas muito antes da apreensão de eventual saldo bancário, que se desconhece se existe ou não.
Ainda que a apreensão da referida quantia tenha, também, por finalidade acautelar a eventual perda/confisco de tal montante, essa não é a sua finalidade principal, nem decorre do Regime Jurídico da Emissão e Execução de Decisões de Apreensão de bens ou elementos de prova da UE qualquer obstáculo à sua utilização.
3. Objeto do recurso
Considerando os termos em que o Ministério Público estruturou o respetivo recurso, a única questão a apreciar apurar se o juiz de instrução criminal deve ordenar a apreensão de saldo bancário de conta sedeada na Polónia até ao montante da transferência efetuada ilicitamente da conta da sociedade ofendida, através da emissão de uma DEI.
4. Do mérito do recurso
Nos presentes autos o Ministério Público recorreu do despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal, no qual se decidiu que a DEI não é o meio próprio para requerer a apreensão de saldo bancário, com o propósito de futura perda ou confisco.
O despacho recorrido concluiu indeferindo o assim promovido.
Com efeito, importa considerar que a promoção do Ministério Público, sobre a qual recaiu o despacho recorrido, era composta de dois segmentos.
O primeiro relativo à apreensão do valor global de 67.395,27€, quantia esta correspondente ao valor da transferência bancária ilegítima efetuada pela sociedade comercial denunciante para a conta bancária indicada.
O segundo relativo ao instrumento de cooperação internacional a utilizar, promovendo o Ministério Público que para esse efeito fosse remetida uma DEI às autoridades judiciárias da Polónia.
O despacho recorrido apenas incidiu sobre este segundo segmento, tendo decidido que “a DEI não é o meio próprio para pedir a apreensão de quantia numa conta bancária, com o fim visado.”
O recurso interposto pelo Ministério Público conclui que “A M.ª JIC devia ter ordenado a apreensão promovida à autoridade judiciária competente do local da apreensão e a sua concretização através de DEI, nos termos do disposto na Lei n.º 88/2017, de 21 de agosto.”
Tendo presente o princípio da tipicidade das nulidades (artº 118º do Cód. Proc. Penal), o disposto no artº 379º do mesmo diploma aplica-se apenas às sentenças e não aos meros despachos. Decorre do âmbito da citada norma que a omissão de pronúncia do Juiz de Instrução Criminal quando ao primeiro pedido que lhe foi apresentado em sede de promoção do Ministério Público (apreensão do valor global de 67.395,27€) constitui uma mera irregularidade que deveria ter sido arguida no prazo e nos termos estabelecidos no artigo 123º do Código de Processo Penal, o que não aconteceu.
Decorre de todo o exposto que apenas iremos conhecer da única questão sobre a qual recaiu pronúncia por parte do Juiz de Instrução Criminal, a saber, o instrumento de cooperação internacional a utilizar para a concretização da pretendida apreensão.
Começamos por indicar o enquadramento jurídico das apreensões bancárias, sua natureza e finalidades.
O art.º 178º do Cód. Proc. Penal regula o objeto e pressupostos da apreensão, dispondo no seu nº1 que “São apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova.” e no n.º 3 que “As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária.”
Quando estejamos perante apreensões bancárias o art.º 181º nº1 do Cód. Proc. Penal dispõe que “O juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objetos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome.”
Tal apreensão corresponde a uma medida provisória de conservação de bens, à qual podem presidir distintas finalidades, em função do destino que irá ser dado aos bens a apreender. Pode ser apenas um meio de obtenção e conservação de provas, servindo finalidades exclusivamente probatórias. Pode, ainda, servir finalidades exclusivamente conservatórias, visando garantir a segurança dos bens, por a final deverem ser declarados perdidos, mencionando a este propósito o acórdão do Tribunal Constitucional nº 294/08, citado por João Conde Correia, que “a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objetos à ordem do processo até à decisão final.” Destaca-se que à apreensão podem, ainda, estar subjacentes em simultâneo ambas as finalidades[1].
E quais são instrumentos de cooperação que estão em causa: a Decisão Europeia de Investigação em matéria penal (DEI) e o regime jurídico da emissão e da execução de decisões de apreensão, que iremos distinguir.
A Decisão Europeia de Investigação em matéria penal (DEI) consiste num instrumento para obtenção de prova em contexto transnacional, sendo o seu principal objetivo facilitar e acelerar a obtenção e transferência dos meios de prova entre os Estados Membros da UE e harmonizar os procedimentos processuais existentes nos mesmos Estados, como assinala a Diretiva 2014/41/UE.
Com a Lei 88/2017, de 21 de agosto foi aprovado o regime jurídico da emissão, transmissão, reconhecimento e execução de decisões europeias de investigação em matéria penal, transpondo-se para a ordem jurídica interna a mencionada Diretiva 2014/41/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014.
O seu âmbito de aplicação abrange, como se estipula no art.º 4º da mencionada Lei n.º 88/2017, de 21 de Agosto, qualquer medida de investigação, com exceção da criação de equipas de investigação conjuntas e da obtenção de elementos de prova por essas equipas, assim como as medidas de investigação destinadas à realização dos objetivos de uma equipa de investigação conjunta, a executar num Estado membro que nela não participa, por decisão da autoridade judiciária competente de um dos Estados membros que dela fazem parte. Aplica-se à obtenção de novos elementos de prova e à transmissão de elementos de prova na posse das autoridades competentes do Estado de execução, em todas as fases do processo, sendo-lhe reconhecido o papel que desempenha na cooperação judiciária em matéria penal, pois passou a existir “apenas um instrumento jurídico para a obtenção de provas na UE, conseguindo assim, e sendo esse o seu desiderato principal, ultrapassar a lentidão e ineficiência do sistema baseado na emissão de cartas rogatórias transmitidas de acordo com as convenções internacionais, bem como com o pouco eficiente mandado europeu de obtenção de provas.”[2].
Tal como aí se previu (na Lei n.º 88/2017), com esta Lei revogou-se a Lei 25/2009, de 5 de junho, que estabelece o regime jurídico da emissão e da execução de decisões de apreensão de bens ou elementos de prova na União Europeia, em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2003/577/JAI do Conselho, de 22 de julho, mas apenas no que respeita à execução das decisões de apreensão de elementos de prova (art.º 49.º). A este propósito importa sublinhar que qualquer elemento, incluindo os ativos financeiros, pode ser sujeito a várias medidas provisórias na tramitação do processo penal, não só para efeitos de recolha de provas como também para efeitos de confisco.
A distinção entre os dois objetivos das medidas provisórias nem sempre é óbvia e o objetivo da medida provisória pode mudar no decurso do processo, o que explica que se deva manter uma interconexão fluida entre os vários instrumentos aplicáveis neste domínio. Além disso, e pelo mesmo motivo, cabe à autoridade de emissão apreciar se o elemento é para ser usado como prova ou também como prova (se tiver as duas finalidades) e, por conseguinte, se é objeto de uma DEI[3].
Por sua vez, a Lei 25/2009, de 5 de junho, mantinha-se vigente para as decisões de apreensão ou de perda de bens (que não de prova) na União Europeia, em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2003/577/JAI, do Conselho, de 22 de Julho de 2003, por força do disposto no art.º 49.º da Lei 88/2017: “É revogada a Lei 25/2009, de 5 de junho, que estabelece o regime jurídico da emissão e da execução de decisões de apreensão de bens ou elementos de prova na União Europeia, em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2003/577/JAI do Conselho, de 22 de julho, no que respeita à execução das decisões de apreensão de elementos de prova.”
Sucede que as disposições da Decisão-Quadro 2003/577/JAI relativamente à apreensão de bens entre os Estados-Membros por ele vinculados vieram a ser substituídas a partir de 19 de dezembro de 2020 pelo Regulamento nº 2108/1805 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de novembro de 2018. Este regulamento estabelece as regras segundo as quais um Estado-Membro reconhece e executa no seu território uma decisão de apreensão ou uma decisão de perda emitida por outro Estado-Membro “no âmbito de processos em matéria penal”, desde que as infrações penais estejam abrangidas pelo seu âmbito.
Salienta-se que o regulamento nº 2108/1805 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de novembro de 2018 favorece a uniformização na sua aplicação nas ordens jurídicas internas dos Estados-Membros, uma vez que se trata de um instrumento de aplicação direta[4], do qual resultou a revogação tácita da Lei 25/2009.
Concluindo, diremos que em face do quadro normativo apresentado, se estiver em causa a prova o instrumento de cooperação para a emissão ou o reconhecimento e execução de uma decisão europeia de apreensão de provas é a DEI e se estiver em causa a perda o instrumento de cooperação para o reconhecimento e execução de uma apreensão para futura perda é o Regulamento 2018/1805[5].
Regressemos ao caso em análise
A factualidade indiciada nos autos pelo Ministério Público é suscetível de preencher, pelo menos, um crime de burla qualificada, p.p. pelo artº 217º nº1 e 218º nº2 al. a) do Cód. Penal.
Da denúncia apresentada resulta que a sociedade A..., LDA, recebeu uma mensagem no correio eletrónico remetido por ..........@....., a solicitar o pagamento de uma fatura em atraso (...), no valor de 67.395,27€, para uma conta sedeada na Polónia, no Banco 1... SA e julgando tratar-se de uma mensagem de correio eletrónico verdadeira, dado ser semelhante ao endereço original daquela empresa, a sociedade denunciante procedeu ao pagamento do referido valor/fatura, no dia 29 de Fevereiro de 2024. Porém, após o dia 5 de Março de 2024, a denunciante veio a constatar que tal mensagem eletrónica datada de 26 de Fevereiro era falsa e não tinha sido remetida pela sociedade B... e que os indivíduos denunciados criaram e utilizaram nas comunicações endereço de correio eletrónico falso, muito semelhante ao legítimo, contudo não pertencendo ao domínio da internet diferente ...., já que este pertence ao domínio da internet C... INC (China), tendo data de criação o dia 27 de Fevereiro de 2024 e a conta bancária de destino daquele valor possui o IBAN ... e está sedeada no Banco 1...”, na Polónia.
O Ministério Público na sua promoção invoca que a apreensão tem as duas finalidades, constitui um meio de prova e assegura a futura perda e respetiva restituição ao lesado.
Porém, o Juiz de Instrução, no despacho que admitiu o recurso consigna que mantém que a DEI não é o instrumento de cooperação adequado, independentemente dos fins da apreensão, mas antes e apenas o mencionado Regulamento (EU) 2018/1805.
Não acompanhamos esta posição, nem os respetivos argumentos, porquanto nos autos existem indícios da prática do crime de burla e indícios que a vantagem obtida com tal crime se encontra depositada na conta identificada. É certo que o dinheiro é uma coisa fungível, passível de confusão no património de quem tem a sua titularidade, mas também é substituível, pode ser substituído por outro da mesmo género e quantidade. Consequentemente, a existência de dinheiro em montante igual aquele que foi transferido no contexto da prática de um crime, continua a ser indiciariamente uma vantagem desse crime com interesse para a descoberta da verdade, e também para a prova, não obstante o maior relevo que nesta sede assume o documento comprovativo da realização da transferência.
Acompanhamos nesta análise a jurisprudência que já se tem pronunciado neste sentido e que passamos a citar:
- “(…) existindo indícios de que a vantagem do crime indiciado, se encontra na conta identificada, as razões quer probatórias, quer de conservação do património indicam que a apreensão deve ser realizada (…) Como alega o recorrente, o dinheiro é uma coisa fungível,cf artº 207º do CC e como tal passível de confusão no património, mas também substituível, por outra da mesmo género e quantidade. Como tal a existência de dinheiro em montante igual aquele que foi transferido pela prática de um crime, continua a ser indiciariamente uma vantagem desse crime, face ao disposto nos arts 110º nº4 e 11º nº3 do CP, e revela interesse para a descoberta da verdade, e para prova, apesar da relevância nesta vertente do próprio comprovativo da efectivação da transferência.” - acórdão do TRP de 7/2/2024.
- “A apreensão enquanto meio de obtenção da prova serve a finalidade processual penal da descoberta da verdade e enquanto garantia processual da perda de vantagens, tem em vista a finalidade processual penal de realização de justiça. Trata-se de um importante instrumento de prevenção do perigo de aumento ou de reiteração da criminalidade, por via da reconstituição da esfera patrimonial do agente do crime, ao estágio anterior à prática do mesmo e como se este nunca tivesse sido praticado” – acórdão do TRL de 24/02/2022.
- “No presente caso é pedida a apreensão de saldos bancários e outros produtos financeiros resultando da prova doecumental apresentada pelo Ministério Público indícios de que o montante depositado da referida conta podem derivar da prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelo art. 218.°, n.°2, a) do Código Penal e, por essa via, de branqueamento p. e p. pelo art. 368°-A n°s 1 a 3 do Código Penal, em virtude de o suspeito ter obtido o depósito mencionado, supostamente por engano astuciosamente provocado sobre as ofendida e de ter procedido à circulação dos valores obtidos nessa sequência (sendo este o aspecto relevante para a presente decisão). (…) de acordo com o disposto no art. 178.°, n.°1, do Código de Processo Penal, devem ser apreendidos os bens que constituam produto, lucro, preço ou recompensa de um crime, o que, neste caso concreto, se afigura ser constituído pelos saldos bancários e outros produtos financeiros em investigação.” - acórdão do TRL 07-05-2019.
Concluímos, então, que há fundadas razões para crer que a quantia depositada, cuja apreensão se peticiona, esteja relacionada com a prática de um crime de burla qualificada e que apresenta interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, ainda que com pouco relevo. Nessa medida, não existem motivos para indeferir a peticionada apreensão, porquanto para além da finalidade cautelar (que até pode assumir maior relevo), a quantia a apreender apresenta interesse para a descoberta da verdade e para a prova.
Acresce que o Ministério Público também indicou expressamente pretender assegurar essa finalidade probatória, apelando ao mencionado acórdão do Tribunal Constitucional e defendendo que este instrumento de cooperação internacional não tem o seu âmbito de aplicação limitado às situações em que a apreensão de provas se apresenta como finalidade exclusiva[6]. Aliás, entendemos ainda que a utilização desse instrumento será também o mais adequado quando há outros meios de prova a recolher, como sucede nos autos, em que o Ministério Público determinou o envio de uma DEI, também para a Polónia, para, designadamente, obter mais informações bancárias relacionadas com a apreensão em causa nos presentes autos.
Por outro lado, apenas nos casos em que a pretendida apreensão visa unicamente acautelar a perda é que o Regulamento 2018/1805 se apresenta como o único instrumento de cooperação que se mostra apropriado, o que não é o caso dos autos.
Em face de tudo o quanto se disse, a DEI é o instrumento de cooperação a utilizar neste caso, razão pela qual procede o recurso nesta parte.
No que respeita ao pedido de apreensão do valor global de 67.395,27€, o recurso não procederá por não existir ainda decisão da primeira instância, devendo o tribunal a quo emitir pronuncia sobre tal pedido.
4. Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes da 4ª secção desta Relação em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência:
a) Revogam o despacho recorrido;
b) Determinam que, tendo em consideração a propriedade do meio de cooperação internacional indicado – DEI – baixem os autos à primeira instância para que seja conhecido o pedido de apreensão do valor global de 67.395,27€.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.
Porto, 12-3-2025
Isabel Matos Namora
Jorge Langweg
Maria Deolinda Dionísio
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[1] Cfr. João Conde Correia, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, tomo II, pág. 716; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. II, 3ª Edição, Verbo, pág. 670.
[2] Luís de Lemos Triunfante, in “Admissibilidade e validade da prova na Decisão Europeia de Investigação”, Revista Julgar Online, abril 2018.
[3] §34 dos considerandos da Diretiva 2014/41/UE de 3 de abril de 2014 relativa à decisão europeia de investigação em matéria penal.
[4] Anabela Miranda Rodrigues, O Regulamento (EU) 2018/1805m de 14 de novembro de 2018, relativo ao reconhecimento mútuo das decisões de apreensão e perda como pedra angular da cooperação judiciária na União Europeia – eficácia versus direitos fundamentais?, in Cooperação Internacional para Efeitos de Recuperação de Ativos, pág. 36.
[5] Neste sentido pode também consultar-se Luis Lemos Triunfante, Admissibilidade e validade da prova na Decisão Europeia de Investigação, Julgar, abril 2018, pág, 22.
[6] Afastamo-nos do entendimento vertido no ac. do TRP de 27.11.2024, desta secção, também citado pelo tribunal a quo, por entendermos que no caso estão presentes as duas finalidades, ainda que a futura perda ou confisco possa assumir maior relevo.