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NULIDADE DA SENTENÇA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
FACTOS ESSENCIAIS NÃO ALEGADOS
SOFTWARE
PROGRAMA INFORMÁTICO
CONTRATO MISTO
Sumário
I – O nosso ordenamento processual só admite a atendibilidade, na decisão da causa, de matéria não alegada pelas partes quando não consubstancie factualidade essencial (que identifique ou individualize a causa de pedir e/ou a excepção alegadas). II - Quando o juiz tome conhecimento de factos essenciais de que não se pode servir, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes, não comete a nulidade prevista no art.º 615º, nº 1, al. d), do NCPC. III – Quando tal ocorra, não podem tais factos ser considerados, devendo ser eliminados do elenco dos factos provados, mesmo oficiosamente por envolver a interpretação e aplicação de regras processuais de cariz imperativo, concretamente do art.º 5º, nºs 1 e 2 do NCPC. IV - Constitui um contrato misto, com elementos de compra e venda e prestação de serviços, o acordo celebrado entre autora e ré com vista ao fornecimento de software já existente e sua instalação no cliente, com migração dos elementos de anterior programa informático, a que se aplicam predominantemente as regras próprias da prestação de serviços. V – Aplicam-se as regras do contrato de empreitada aos denominados contratos de desenvolvimento de software “à medida”.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório EMP01..., Lda,
intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra AA, Componentes Eletrónicos, Lda (EMP01...),
pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global de € 7.343,00, acrescida dos juros de mora à taxa supletiva legal para as dívidas comerciais, desde ../../2021, quanto à quantia de € 1.968,00 (que, à data da propositura da acção, ascendiam a € 149,31) e desde a citação, sobre a quantia de € 5.375,10.
Invocou, para tanto e em síntese, que a ré lhe solicitou a implementação de uma plataforma de vendas online; que, quando esta estava já finalizada e em processo de incorporação no seu sistema informático, a ré comunicou à autora que desistia dos seus serviços; que a ré adquiriu ainda à autora um software denominado ... que esta instalou no sistema informático daquela; que se encontra em dívida do valor de € 7.343,10, o qual a ré não pagou apesar de instada para o efeito; que são devidos juros de mora, quanto à aquisição do software, desde a data de vencimento da factura respectiva, e no que tange aos trabalhos de implementação da plataforma de vendas online, desde a citação para a presente acção.
Citada, a ré apresentou contestação, confirmando ter solicitado, em Abril de 2021, à ré um orçamento para desenvolvimento de plataforma de comércio eletrónico, com diversas funcionalidades/módulos, vindo a ser acordado o preço de € 5.870,00; que, entre Abril e Novembro de 2021, a autora não desenvolveu, como se propôs, a plataforma e-commerce ou os demais módulos, sendo que, se limitou a disponibilizar um modelo base, adquirido online e que não era da sua autoria, em junho de 2021; que, até final de novembro de 2021, o módulo e-commerce continuava sem desenvolvimento significativos, apesar da insistência da ré pela conclusão do módulo, e, em 06.09.2021, a autora reconheceu mesmo não ter meios para entregar o produto contratado, instando a ré a procurar outra solução, o que a ré fez, encontrando solução alternativa em Novembro de 2021; que, em 03.12.021, autora e ré reuniram, acordando em por fim ao desenvolvimento da plataforma, tendo a ré aceitado pagar a factura já emitida, para compensar a autora pelos trabalhos desenvolvidos, sendo que ficou excluído o pagamento da totalidade da quantia acordada; que a factura do valor compensatório, no montante de € 1.500,00, acrescida do IVA, foi paga pela ré; e que na reunião vinda de aludir, foi igualmente acordado o pagamento da factura atinente à aquisição do software ..., mas tendo a ré constatado que a autora não instalara o aludido software, recusou-se a fazer o pagamento.
Terminou, pugnando pela improcedência da acção.
Em resposta, a autora limitou-se a impugnar o conteúdo dos documentos nºs 1 a 3 juntos com a contestação.
Realizou-se audiência prévia, que iniciou pela tentativa de conciliação das partes, a qual se gorou, posto o que foi proferido despacho saneador e o despacho a que alude o art.º 596º do NCPC.
Foi ordenada e realizada prova pericial requerida pela ré, tendo sido apresentado o respectivo relatório pericial a 18.07.2023.
Na sequência, foi ampliado o objecto da perícia e apresentado o respectivo relatório pericial a 13.11.2023.
Tendo a ré, por requerimento de 14.11.2023, solicitado esclarecimentos relativamente a este relatório adicional, a prestação de tais esclarecimentos foi indeferida por despacho de 13.12.2023, por extravasarem o objecto que foi fixado à perícia, tendo sido ordenado que o perito apenas esclarecesse se havia evidência de utilização da plataforma e clarificasse o que seja a afirmação de que a plataforma é um wordpress.
Não obstante o assim decidido, o perito nomeado nos autos, em 15.12.2023, respondeu às questões colocadas pela ré no aludido requerimento de 14.11.2023, pelo que tais esclarecimentos vieram a ser julgados inadmissíveis por despacho de 25.01.2024, o qual não foi objecto de qualquer impugnação.
Notificado novamente para prestar os esclarecimentos conforme ordenado no despacho de 13.12.2023, o que veio a fazer em 26.01.2024.
Realizada a audiência final foi prolatada sentença que julgou parcialmente procedente a acção, constando o seguinte do respectivo dispositivo:
“Em face do exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente e, consequência condeno a ré AA, Componentes Eletrónicos, Lda. a pagar à autora EMP01..., Lda., a quantia de € 7.343,10 (sete mil, trezentos e quarenta e três euros e dez cêntimos), a título de capital, acrescida dos juros de mora, à taxa legal para as dívidas comerciais sucessivamente em vigor, vencidos e vincendos, desde a data da citação da ré e até efetivo e integral pagamento.
Custas por autora e ré, na proporção dos respetivos decaimentos, que fixo em 2% para a primeira e 98% para a segunda, nos termos do artigo 527º nºs 1 e 2 do CPC.
Registe e notifique.”.
Inconformada com tal sentença, dela apelou a ré, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
«1. O Tribunal a quo condenou a Ré AA, Componentes Eletrónicos, Lda. a pagar à autora EMP01..., Lda., a quantia de € 7.343,10 (sete mil, trezentos e quarenta e três euros e dez cêntimos), sendo
2. € 1.968,00 relativos à instalação do software ... e
3. € 5.375,10 correspondentes ao remanescente do preço acordado pelo licenciamento e serviços de implementação da plataforma web em causa nestes autos;
4. Na douta PI, a Autora declara que instalou o software ... no sistema informático da Ré;
5. Na audiência de julgamento, em sede de declarações de parte, o legal representante confessou que o software ... não foi instalado no servidor da Ré;
6. E traz aos autos a novidade de que havia instalado uma versão experimental e gratuita do mesmo software ..., versão 2014;
7. A Autora declara que comprou a versão ... que agora quer cobrar à Ré mas não logrou fazer prova de que a tenha comprado;
8. A Autora facturou e quis receber da Ré o valor correspondente ao software ... que confessou não ter instalado;
9. Os factos 9) a 13) provados com relevância para a decisão da causa reescrevem a história da relação entre a Autora e a Ré;
10. Esta “nova versão” dos factos foi introduzida em sede de declarações de parte na audiência final de discussão e julgamento;
11. A Ré não teve oportunidade de exercer o direito de contraditório sobre os factos apresentados e conhecidos naquele mesmo instante;
12. A Ré apresentou a sua contestação a uma versão dos factos manifestamente oposta àquela que constituíram os temas de prova em sede de audiência;
13. A violação do princípio do contraditório do artigo 3.º, n.º 3, dá origem, não a uma nulidade processual nos termos do artigo 195.º que origina a anulação da sentença, mas a uma nulidade da própria sentença, por excesso de pronúncia nos termos dos artigos 615.º, n.º 1, alínea d), 666.º, n.º 1, e 685.º do CPC;
14. Com a citação, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir de acordo com o princípio da estabilidade da instância consagrado no artigo 260.º, do CPC;
15. Sem acordo, nem confissão pela Ré, a modificação da causa de pedir da acção, em sede de audiência final de discussão e julgamento, não é processualmente admissível;
16. Em abril de 2021, a Ré solicitou à Autora uma proposta para a implementação de uma plataforma de comércio eletrónico (e-commerce) com diversas funcionalidades, para vendas online;
17. Na audiência de julgamento, a Autora vem dizer que o website estava quase pronto a arrancar e a entrar em funcionamento;
18. O perito nomeado pelo Tribunal foi peremptório ao responder que “a página principal, foi publicada em: 2019/09/25 às 11h48”
19. e que o que fora por si avaliado “olhando para o histórico fornecido pelo backoffice do respetivo site foram 2 a 3 horas de trabalho…”;
20. Em 06-09-2021 (Doc 2 da contestação), a Autora fez saber à Ré “…não há prazos para os desenvolvimentos […] recomendo que procure um novo fornecedor para o mesmo projeto.”;
21. Apesar desta comunicação, a Autora facturou e quis receber da Ré o valor integral de um trabalho que não fez;
22. Pretensão que o Tribunal a quo reconheceu em oposição ao facto não provado que “d) Em final de 2021 a plataforma tenha ficado completamente concluída e pronta a arrancar e a entrar em funcionamento;”
23. A Autora violou os mais básicos princípios do tráfico comercial como o estipulado no artigo 406.º do Código Civil – “pacta sunt servanda”,
24. e ainda o princípio da boa-fé pelo qual o devedor cumpre a sua obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, artigo 762.º do Código Civil;
25. A prova, acrescida das regras da experiência comum e da normalidade das coisas, impõe nova redacção ao texto dos factos provados 14 e 16 que deverá ser substituída por
14) Entretanto, a A. foi desenvolvendo a plataforma web que a Ré lhe adjudicou de acordo com as instruções que recebia.
16) No final do ano de 2021, o legal representante da Ré chamou às suas instalações o legal representante da A. e comunicou-lhe que tinha decidido desistir dos serviços solicitados à A. e em sua substituição iriam adquirir outro sistema de faturação.
26. O valor entregue pela Ré à Autora no momento da adjudicação é suficiente para compensar o (pouco) trabalho desenvolvido;
27. A Ré não está obrigada a pagar à Autora por um trabalho que não foi feito;
28. O Tribunal a quo condenou a Ré in totum quanto ao pedido da Autora;
29. Em manifesta contradição aos elementos de prova trazidos aos autos quer nos articulados quer na audiência de julgamento;
30. O que configura uma gritante violação do Princípio da Justiça!».
Foram apresentadas contra-alegações, constando das respectivas conclusões o seguinte:
«1. O Tribunal “a quo” valorou de forma correta e indiscutível toda a prova produzida, a qual, foi invocada pelas partes nos articulados, tendo apreciado criticamente os depoimentos das testemunhas produzidos em sede de julgamento, bem como, todos os documentos juntos aos autos, inexistindo qualquer nulidade por excesso de pronúncia.
2. A razão invocada nos autos pela Recorrente não é nem pode consubstanciar qualquer nulidade, uma vez que, se trata de matéria de facto instrumental e que não tem qualquer reflexo na causa de pedir e no pedido formulado.
3. Analisada a prova produzida nos autos e o julgamento da matéria de facto conforme consta da sentença em crise, afirmar-se-á liminarmente que não existe qualquer erro na valoração da prova produzida, pelo que, nenhuma censura merece a resposta dada pela MMª Juiz a quo aos factos provados e não provados constantes da sentença.
4. O Tribunal baseou-se no depoimento das testemunhas e nas declarações de parte prestados na sessão de julgamento, que depuseram de forma credível e isenta, para dar como assentes e não assentes os factos ora postos em causa pela Recorrente, não tendo a Recorrente efetuado qualquer prova tendente a contrariar a credibilidade da referida prova testemunhal.
5. Assim, atento o supra exposto, a matéria de facto provada e não provada constante da sentença recorrida deverá manter-se inalterada, permanecendo nos exatos moldes em que a mesma se encontra redigida.
6. Ficam demonstradas as razões de improcedência do recurso ora em análise, posto que o Tribunal a quo julgou corretamente a matéria de facto e aplicou bem o direito ao caso sub judicie, não tendo violado quaisquer disposições legais, pelo que, a sentença proferida deve ser inteiramente mantida.».
O tribunal recorrido admitiu o recurso interposto, tendo ainda julgado improcedente a invocada nulidade da sentença.
Colhidos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
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As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, são as seguintes:
a) da nulidade da sentença por excesso de pronúncia;
b) da impugnação da decisão de facto quanto aos pontos 9 a 13 e 14 e 16 do elenco dos factos provados;
c) do erro na subsunção jurídica dos factos ao direito.
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III. Fundamentação
3.1.Fundamentação de facto
O Tribunal recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos (assinalando-se a negrito a matéria de facto impugnada):
«1) A requerente é uma sociedade comercial que se dedica, com fins lucrativos, ao comércio de hardware, software e consumíveis informáticos, bem como, prestação de serviços de assistência técnica e desenvolvimento de software, conforme resulta do print da certidão permanente nº ...32. 2) A Ré é uma sociedade comercial que se dedica à venda de componentes eletrónicos. 3) Autora e Ré mantiveram uma relação comercial sem incidentes ao longo de quase 25 anos. 4) A Autora forneceu, durante esse período, apoio técnico a um programa de faturação que funciona nas instalações da Ré, sendo que as intervenções da A. no sistema informático da R. eram executadas remotamente, sem necessidade de deslocação do técnico às instalações desta. 5) Num dado momento, a R., EMP01..., sentiu necessidade de escalar as funcionalidades do seu software de faturação, para oferecer um melhor serviço e aumentar a oferta à sua clientela. 6) Pelo que, em abril de 2021, a Ré solicitou à A. uma proposta para a implementação de uma plataforma de comércio eletrónico (e-commerce) com diversas funcionalidades, para vendas online. 7) A plataforma deveria incluir nomeadamente os seguintes módulos:
a) Plataforma e-commerce;
b) Capacidade de guardar múltiplas imagens por artigo;
c) Capacidade de guardar múltiplos documentos por artigo;
d) Listas aleatórias (entre armazém e sistema);
e) Integração com software Primavera; e
f) Sugestão de compras. 8) A Autora analisou a pretensão da Ré e enviou-lhe uma proposta para a implementação da aludida plataforma de vendas online, a qual ascendia ao valor de 6.870,00€, acrescido do imposto de IVA, sendo que, no caso de adjudicação de todos os desenvolvimentos propostos pela A., esta concedia um desconto de 1.000,00€, ascendendo, neste caso, o valor total da proposta ao montante de 5.870,00€, acrescido de IVA. (cfr. Doc. 2 junto com a PI) 8) A Ré adjudicou a execução da referida plataforma Web à Autora, que em cumprimento das condições de adjudicação previamente acordadas, em 2021/11/10 emitiu a favor da Ré fatura nº ...06, do montante de 1.500,00€, mais IVA, no montante de 1.845,00€, a título de desenvolvimento da plataforma, valor que a Autora pagou. (Cfr. Doc. 3 junto com a PI) 9) No decurso do ano de 2021 e para aumentar a capacidade de armazenamento de dados do seu sistema informático, já que o mesmo tinha atingido o seu limite de 10 GB da versão gratuita ..., a Ré adquiriu à Autora um software denominado ... (que esta adquiriu para vender àquela), pelo preço de 1.968,00€, na sequência do que a autora emitiu a fatura ...98 de 2021/11/10. (cfr. documentos 4 a 7 juntos com a PI) 10) A autora tentou instalar o software a que vem de aludir-se no sistema informático da Autora, em novembro de 2021, o que não se mostrou possível, uma vez que o sistema operativo no servidor da ré não era compatível com o software, por falta de atualizações. 11) Na ótica de solucionar, ainda que transitoriamente, a autora instalou a versão experimental do ... de 2014, versão que seria utilizada até à instalação do ..., a qual ocorreria assim que a ré diligenciasse pela atualização do seu sistema operativo. 12) Porquanto a ré não deu conta de que procedera às atualizações necessárias do sistema operativo do seu servidor, o ... não chegou a ser instalado, apesar de comprado pela autora para a ré. 13) De todo o modo, a autora efetuou a migração de dados para o ... 2014 em 2021/11/15, tendo a ré passado a utilizar o software no exercício da sua atividade profissional. (cfr. Doc. 8 a 11 juntos com a PI) 14) Entretanto, a A. foi desenvolvendo a plataforma web que a Ré lhe adjudicou de acordo com as instruções que recebia e fez a sua incorporação no sistema da Ré,
15) prestando a correspondente formação aos colaboradores desta e esclarecendo as dúvidas de funcionamento que estes fossem colocando, conforme se alcança da troca de emails cuja cópia se junta. (cfr. Docs. 12 a 16 juntos com a PI) 16) No final do ano de 2021, depois de praticamente finalizada a plataforma e após a sua incorporação no sistema informático da Ré, faltando, apenas, a definição dos meios de pagamento disponíveis e dos portes (aspetos que a ré haveria de definir), já depois de ter sido ministrada a formação aos colaboradores da Ré, quando o Website já se encontrava quase pronto a arrancar e a entrar em funcionamento, o legal representante da Ré chamou às suas instalações o legal representante da A. e comunicou-lhe que tinha decidido desistir dos serviços solicitados à A. e em sua substituição iriam adquirir outro sistema de faturação. 17) No dia 3 de dezembro de 2021, reuniram Ré e Autora nas instalações da primeira, que pretendia pôr fim à relação comercial que as unia. 18) O legal representante da Autora ficou perplexo com esta decisão da Ré, solicitando o pagamento do valor dos trabalhos executados a pedido da Ré, pagamento que esta recusa fazer. (cfr. doc. 3 junto com a Contestação) 19) Na verdade, a plataforma desenvolveu-se através de um modelo de desenvolvimento base, adquirido online, não da sua autoria, o Wordpress, que foi disponibilizado em data não posterior a junho de 2021, 20) Em 6 de setembro de 2021, a A. enviou um e-mail onde declarava não ter meios suficientes para o desenvolvimento e entrega do produto contratado e que deveria a R. procurar outra solução. (cfr. Doc. 2 junto com a Contestação) 21) Não obstante, continuou a desenvolver a plataforma nos meses seguintes e a esclarecer dúvidas colocadas pelos colaboradores da ré. (cfr. doc. 12 a 6 juntos com a PI) 22) Contudo, a Ré encetou contactos com outros fornecedores de serviços e produtos na mesma área, tendo encontrado um produto que resolveria o seu problema, em novembro desse ano.
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Por outro lado, não se provou que:
a) O pedido de orçamento por parte da ré, para desenvolvimento de plataforma web tenha sido feito em outubro de 2019;
b) A decisão de adquirir o ... tenha sido tomada, concretamente, aquando da adjudicação da plataforma web;
c) A autora tenha efetivamente instalado o ... no sistema informático da ré;
d) Em final de 2021 a plataforma tenha ficado completamente concluída e pronta a arrancar e a entrar em funcionamento;
e) O legal representante da ré tenha manifestado o propósito de adquirir à autora outro sistema de faturação;
f) A autora, durante meses, se haja mantido praticamente inerte no que respeita ao desenvolvimento da plataforma de e-commerce e demais módulos;
g) Só em novembro de 2021 a autora tenha iniciado o desenvolvimento da plataforma de e-commerce e que, no fim desse mês, não apresentasse qualquer desenvolvimento significativo;
h) O e-mail a que se alude em 20) dos factos provados se tenha ficado a dever à insistência da ré para que a autora lhe entregasse o produto final; e
i) Na reunião a que se alude em 17) dos factos provados haja sido acordado que a autora seria compensada pelos trabalhos por si feitos, pelo pagamento da fatura a que se alude em 8) e 9), prescindindo dos demais valores acordados.».
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3.2. Fundamentação de direito 3.2.1. Da nulidade da sentença
Diz a recorrente que a sentença é nula porquanto foram tomados em consideração factos que não foram oportunamente alegados pela autora e relativamente aos quais não teve oportunidade de exercer o contraditório.
Vejamos.
A sentença, como acto jurisdicional, pode atentar contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada, e então torna-se passível de nulidade, nos termos do art.º 615º do NCPC.
As nulidades da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.
De acordo com a al. d) do nº 1 do art.º 615º do CPC, temos que a sentença é nula “[q]uando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»; tal normativo está em consonância com o comando do nº 2 do art.º 608º do NCPC, no qual se prescreve que «[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.».
Por outro lado, como é jurisprudência unânime, não há que confundir questões colocadas pelas partes, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido (cfr., entre muitos outros, o ac. do STJ de 10.04.2024, processo nº 1610/19.8T8VNG.P1.S1, acessível in www.dgsi.pt).
Questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio. Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do art.º 615º, nº 1, al. d), do NCPC. Daí que, se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este se não pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia.
Assim, os vícios de omissão ou de excesso de pronúncia incidem sobre as “questões” a resolver, nos termos e para os efeitos dos art.ºs 608º e 615º, nº 1, al. d), do NCPC, com as quais se não devem confundir os “argumentos” expendidos no seu âmbito.
No que respeita à decisão de facto, «o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. Reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, (…)» (cfr. ac. do STJ de 23.03.2017, processo nº 7095/10.7TBMTS.P1.S1, in www.dgsi.pt).
Na verdade, e como já ensinava Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p. 144 a 146): «(…) quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art. 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art. 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão. (…) uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer.».
Assim, «por argumento de maioria de razão, o mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito» (cfr. o citado ac. do STJ de 23.03.2017, que aqui seguimos de perto).
Por conseguinte, o eventual atendimento de factos não oportunamente invocados pelas partes nos respectivos articulados pode eventualmente constituir uma patologia da decisão da matéria de facto, mas não implica a nulidade da sentença.
Nesta conformidade, no caso em apreço, não se verifica a apontada nulidade da sentença, sendo que a consideração indevida de factualidade não oportunamente alegada terá de ser discutida e apreciada em sede de impugnação da matéria de facto, o que faremos de seguida.
Improcede, pois, a nulidade da sentença invocada.
3.2.2. Da impugnação da decisão de facto
Como decorre do acima exposto, a recorrente defende a eliminação dos pontos 9 a 13 do elenco dos factos provados e a alteração da decisão da matéria de facto quanto aos e 14 e 16 do elenco dos factos provados.
A modificação da decisão de facto não só é legalmente permitida, como é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão, conforme decorre do disposto no art.º 662º, nº 1 do NCPC.
Deste modo, a alteração da decisão de facto impõe-se, desde logo, quando se detecte ter ocorrido erro de julgamento ou de apreciação da prova produzida.
Note-se, porém, que a decisão de matéria de facto pode ainda sofrer de outras patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação da prova e que podem e devem ser conhecidas e solucionadas oficiosamente pela Relação.
Assim é, nomeadamente, quando a decisão de facto inclua asserções conclusivas, genéricas ou matéria de direito; se revele excessiva; seja deficiente, obscura ou contraditória; careça de ampliação; e não esteja devidamente fundamentada.
Vide, neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, p. 350 e seguintes e ainda o ac. desta RG de 14.03.2024, processo nº 172/20.8T8VVD.G1, acessível in www.dgsi.pt.
No caso em apreço, atento o alegado pela recorrente importa, desde logo, verificar se a decisão da matéria de facto se revela excessiva, nomeadamente por incluir matéria de facto (essencial) não alegada pela autora e relativamente à qual não pode exercer o competente contraditório.
Na verdade, e como refere Abrantes Geraldes (in, obra e local citados): “O conteúdo da decisão pode revelar-se excessivo, por envolver a consideração de factos essenciais [não alegados] para a integração da causa de pedir ou das exceções (art.º 5º, n.º 1), ou mesmo de factos complementares ou concretizadores fora das condições de admissibilidade previstas no art.º 5º, n.º 2, alínea b).”.
Deste modo, “[n]ão podendo tais factos ser considerados, a consequência só pode ser a sua eliminação do elenco dos factos provados.”; sendo que “(…) esta questão pode ser conhecida oficiosamente por envolver a interpretação e aplicação de regras processuais de cariz imperativo, concretamente do art.º 5º, n.º 1 e 2 do CPC.” (cfr. ac. desta RG de 14.03.2024, supra citado).
Com efeito, o nosso ordenamento processual só admite a atendibilidade, na decisão da causa, de matéria não alegada pelas partes quando a mesma não consubstancie factualidade essencial (que identifique ou individualize a causa de pedir e/ou a excepção alegadas).
Dispõe o art.º 5º, do NCPC, a propósito, que:
“1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.
2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.”.
Decorre, pois, deste preceito legal que, sem prejuízo de às partes caber a formação da matéria de facto, mediante a alegação, nos articulados, dos factos principais que integram a causa de pedir, ao tribunal cabe a assunção de uma posição activa, por forma a aproximar-se da verdade material e alcançar uma posição mais justa do processo, reconhecendo-se ao juiz, para além da atendibilidade dos factos que não carecem de alegação e de prova a possibilidade de considerar, mesmo oficiosamente, os factos instrumentais, bem como os essenciais à procedência da pretensão formulada, que sejam complemento ou concretização de outros que a parte haja oportunamente alegado e de os utilizar quando resultem da instrução e da discussão da causa e desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório [vide, art.ºs 607º, nºs 3 a 5, e 5º, nº 2, al. b), do NCPC].
Porque reservada às partes a alegação dos factos essenciais identificadores ou individualizadores da causa de pedir e/ou excepção alegadas (factos essenciais nucleares), não pode o juiz considerar, na decisão, factos essenciais diversos dos alegados pelas partes, podendo somente ser atendidos e integrados na fundamentação de facto da decisão da causa (além dos notórios e daqueles que o tribunal conheça por virtude do exercício das suas funções – al. c) do nº 2 do art.º 5º do NCPC), os factos que, não desempenhando tal função individualizadora ou identificadora da causa de pedir e/ou excepções alegadas, se revelem imprescindíveis à procedência da acção ou da excepção, por também constitutivos do direito invocado ou excepção arguida (factos essenciais complementares), assim como os factos instrumentais (aqueles que permitem a afirmação, por indução, de factos de cuja prova depende o reconhecimento do direito ou da excepção).
Assim, apenas podem ser considerados na sentença (com referência, sempre, aos limites de cognição do tribunal traçados pela causa de pedir e/ou excepção individualizadas e identificadas nos factos essenciais alegados pelo autor e pelo réu – art.º 5º, nº 1 e 615º, nº 1, al. d) do NCPC) os factos complementares e instrumentais – estes, quando resultem da instrução da causa (art.º 5º, nº 2, a) do NCPC); aqueles, quando resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido as partes possibilidade de se pronunciar (art.º 5º, nº 2, b) do NCPC).
Isto posto, urge averiguar se, no caso, foram incluídos na decisão da matéria de facto factos essenciais que careciam de ser alegados pela autora, ou se estamos perante meros factos instrumentais ou, porventura, complementares dos factos essenciais susceptíveis de ser atendidos na decisão da matéria de facto, mesmo que oficiosamente.
Factos essenciais são aqueles de que depende a procedência da pretensão formulada pelo autor e da excepção ou da reconvenção deduzidas pelo réu.
Factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito. São aqueles que indiciam os factos essenciais e, ainda que sejam secundários ou não essenciais, permitem aferir a ocorrência e a consistência dos factos principais; permitem “a afirmação, por indução, de factos de cuja prova depende o reconhecimento do direito ou da exceção” e, não se mostrando “imprescindível a sua alegação, podem ser livremente averiguados e discutidos na audiência final em torno da produção e valoração dos meios de prova e em face dos temas da prova enunciados” (vide, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 29).
Quanto aos factos complementares são aqueles que, não integrando a causa de pedir, são complementares dessa causa de pedir e, por isso, podem ser também essenciais para a procedência da acção; o mesmo se diga para os factos complementares de uma excepção peremptória: embora não integrem essa excepção, podem revelar-se essenciais para a improcedência da acção com base na excepção.
Para Paulo Pimenta (in, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 20 e 21) os factos complementares e os concretizadores são, a par dos factos nucleares (os referidos no nº 1 do art.º 5º do NCPC), modalidades de factos essenciais: os nucleares constituem o núcleo primordial da causa de pedir ou da excepção, de forma a que a sua omissão implica a ineptidão da petição inicial ou a nulidade da excepção e os factos complementares e os concretizadores embora também integrem a causa de pedir ou a excepção não têm já uma função individualizadora pelo que a omissão da sua alegação já não é passível de gerar a ineptidão da petição inicial ou a nulidade da excepção. Para este autor “os factos complementares são os completadores de uma causa de pedir (ou de uma exceção) complexa, ou seja, uma causa de pedir (ou uma exceção) aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros complementando aquele” e os factos concretizadores “têm por função pormenorizar ou explicitar o quadro fáctico exposto, sendo exatamente essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da ação (ou exceção)”.
Os factos complementares “[A]lém de poderem ser adquiridos durante a instrução da causa (…) também podem ser adquiridos na sequência do convite ao aperfeiçoamento do articulado da parte (art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4); como não se pode entender que este convite possa servir para a parte completar uma causa de pedir insuficiente (dado que este vício determina a ineptidão da petição inicial e esta ineptidão não é sanável), só se pode concluir que os factos complementares não integram a causa de pedir (…) A conclusão de que os factos complementares não integram a causa de pedir é confirmada pelo disposto no art. 590.º, n.º 6, nCPC: este preceito estabelece que os factos alegados pela parte na sequência do convite formulado pelo tribunal não podem implicar uma alteração da causa de pedir. Isto significa que os factos que são suscetíveis de ser invocados pela parte não podem constituir nenhuma nova causa de pedir, ou seja, só podem ser factos complementares da causa de pedir invocada pelo autor” (vide, Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, https://blogippc.com).
Também Teixeira de Sousa, in ‘Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil’, Scientia Iuridica, Tomo LXII, n.º 332, 2013, pp. 396 e 397 (na sequência do que ensina já nos Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª Edição, p. 71 a 74), nota que deve distinguir-se a factualidade necessária “para individualizar a pretensão material alegada pelo autor, isto é, para se saber qual a pretensão material que o autor quer defender em juízo”, que constitui a causa de pedir, daquela que constitui factualidade complementar ou instrumental, nos seguintes termos:
- os factos complementares “concretizam ou complementam os factos que integram a causa de pedir (cf. art. 5.º, n.º 2, al. b))” e “asseguram a concludência da alegação da parte”; não “esgotam uma previsão legal, mas, como complemento dos factos que integram a causa de pedir, são necessários para a procedência da pretensão da parte” e “realizam, por isso, uma função de fundamentação desta pretensão”;
- os “factos instrumentais (cf. art. 5.º, n.º 2, al. a)) são os factos que indiciam, através de presunções legais ou judiciais (cf. art. 349.º a 351.º CC), os factos que constituem a causa de pedir ou os factos complementares; os factos instrumentais compõem a base de uma presunção e a causa de pedir ou os factos complementares os factos presumidos; portanto, os factos instrumentais cumprem apenas uma função probatória dos factos indispensáveis à procedência da causa.”.
A consideração dos factos complementares ou concretizadores em resultado da instrução tem agora, segundo entendemos, natureza oficiosa; isto é, não obstante a parte interessada continuar a poder ter a iniciativa de deles se querer aproveitar, agora não é necessário requerimento nesse sentido da parte interessada e nem a sua concordância para que o tribunal os possa considerar.
Neste sentido consagrou-se na al. b) do nº 2 do art.º 5º do NCPC que além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, mas desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar.
Voltando ao caso que nos ocupa, defende a ré/recorrente que foram inseridos nos pontos 9 a 13 do elenco dos factos provados factos que não foram alegados na petição inicial, designadamente, que:
- a autora tenha adquirido o ... para vender à ré;
- a autora tivesse tentado instalar o referido software;
- não tenha sido possível a instalação do mesmo;
- a autora tenha instalado em alternativa um software gratuito; e
- era a ré a responsável por proceder à actualização do servidor.
Prescrutada atentamente a petição inicial, constata-se que a factualidade ora elencada, efectivamente não foi alegada pela autora/recorrida, conforme aliás a própria veio admitir nas contra-alegações, defendendo, contudo, que se trata de mera factualidade instrumental.
Contudo e salvo o devido respeito, não estamos somente perante factos meramente instrumentais que possam ser livremente averiguados e discutidos na audiência final, em resultado da instrução da causa.
Igualmente, não estão apenas em causa factos complementares dos essenciais (nucleares) alegados pela autora.
Na realidade, a factualidade assinalada não se limita a concretizar, nem a complementar os factos que integram a causa de pedir e muito menos nos permite concluir pela sua verificação. E, tanto assim é, que a factualidade alegada pela autora/recorrida – quanto à instalação do software denominado ... no sistema informático da ré/recorrente - foi expressamente dada como não provada.
Ou seja, as razões que supostamente motivaram tal falta de instalação do ... e que serão imputáveis à ré - incompatibilidade do sistema operativo da ré por falta de actualização de tal sistema a cargo desta -, bem como a instalação provisória pela autora de uma versão experimental que permitiria alcançar a finalidade do ... até à sua instalação, trata-se de factualidade nova e essencial.
Tal circunstancialismo fáctico, como facilmente se vê, não nos permite concluir pelo cumprimento da obrigação a que a autora se vinculou (e que consistia no fornecimento e instalação do aludido software, segundo o alegado pela própria no articulado inicial), consubstanciando antes facticidade reveladora do incumprimento de tal obrigação, ainda que por factos não imputáveis à autora, mas à ré.
Ou seja, trata-se de factualidade substancialmente diversa da alegada, tanto mais que conduz a um enquadramento jurídico também distinto, e mesmo que tenha sido discutida no decurso da produção da prova – como as próprias alegações de recurso denunciam – não é susceptível de ser adquirida e considerada pelo tribunal a quo (quer como provada, quer como não provada).
Não obstante, tal não implica a eliminação integral dos pontos 9 a 13 do elenco dos factos provados, como aparentemente pretende a recorrente, visto que aqueles itens incluem outra factualidade que foi efectivamente alegada nos articulados, nomeadamente a referente ao acordo de aquisição e instalação do software denominado ... e consequente migração de dados, pelo preço de 1.968,00€ e a emissão da respectiva factura (alegada na petição inicial e que não foi impugnada pela ré na contestação), bem como a relativa à falta de instalação de tal software no sistema informático da autora (matéria alegada pela própria recorrente na contestação e reafirmada no presente recurso – cfr. conclusões 4ª a 8ª do recurso da ré).
Impõe-se, assim, alterar a redacção conferida aos pontos 9 a 13 do elenco dos factos provados, nos seguintes termos: “. No decurso do ano de 2021 e para aumentar a capacidade de armazenamento de dados do seu sistema informático, já que o mesmo tinha atingido o seu limite de 10 GB da versão gratuita ..., a Ré acordou com a Autora a aquisição e instalação de um software denominado ... e subsequente migração de dados, pelo preço de 1.968,00€. . A autora emitiu a fatura ...98 de 2021/11/10, no referido valor de 1.968,00€. . Porém, o referido software denominado ... não chegou a ser instalado pela Ré no sistema informático da Autora.”.
Isto posto, importa averiguar ainda da pretendida alteração da decisão proferida, por erro de apreciação da prova, quanto aos pontos 14 e 16 do elenco dos factos provados.
Para que o tribunal se encontre habilitado a proceder à reapreciação da prova, o art.º 640º do NCPC impõe as seguintes condições de exercício da impugnação da matéria de facto:
“1 – Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevante;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
Estes requisitos visam assegurar a plena compreensão da impugnação deduzida à decisão sobre a matéria de facto, mediante a identificação concreta e precisa de quais os pontos incorretamente julgados e de quais os motivos de discordância, de modo a que se torne claro com base em que argumentação e em que elementos de prova, no entender do impugnante, se imporia decisão diversa da que foi proferida pelo tribunal.
Tais exigências surgem como uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo, assegurando a seriedade do próprio recurso intentado pelo impugnante (cfr., Abrantes Geraldes, in obra citada, p. 200 e 201).
Em todo o caso, sendo de admitir a impugnação da matéria de facto, a Relação pode e deve reapreciar a prova que se encontrar acessível e se lhe afigurar pertinente para decidir da concreta pretensão recursória (excepto, como é evidente, se se tratar de uma situação que contenda com a apreciação de prova vinculada).
No caso vertente, afigura-se-nos que se mostram cumpridos os requisitos mínimos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto previstos no art.º 640º do NCPC, nada obstando a que se conheça da mesma.
Na verdade, a ora recorrente cumpriu os descritos ónus, tendo indicado expressamente quais os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e qual a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões, bem como os concretos meios de prova que o justificam e em que fundamenta a sua pretensão.
Passemos então a verificar se, na parte colocada em crise, a análise crítica da prova corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida pela apelante.
A ré insurge-se, como vimos, contra a decisão relativa à matéria de facto incluída nos pontos 14 e 16 do elenco dos factos provados, os quais têm a seguinte redacção:
“14) Entretanto, a A. foi desenvolvendo a plataforma web que a Ré lhe adjudicou de acordo com as instruções que recebia e fez a sua incorporação no sistema da Ré,
16) No final do ano de 2021, depois de praticamente finalizada a plataforma e após a sua incorporação no sistema informático da Ré, faltando, apenas, a definição dos meios de pagamento disponíveis e dos portes (aspetos que a ré haveria de definir), já depois de ter sido ministrada a formação aos colaboradores da Ré, quando o Website já se encontrava quase pronto a arrancar e a entrar em funcionamento, o legal representante da Ré chamou às suas instalações o legal representante da A. e comunicou-lhe que tinha decidido desistir dos serviços solicitados à A. e em sua substituição iriam adquirir outro sistema de faturação.”.
E pretende a mesma que se dê como provado que:
“14) Entretanto, a A. foi desenvolvendo a plataforma web que a Ré lhe adjudicou de acordo com as instruções que recebia.
16) No final do ano de 2021, o legal representante da Ré chamou às suas instalações o legal representante da A. e comunicou-lhe que tinha decidido desistir dos serviços solicitados à A. e em sua substituição iriam adquirir outro sistema de faturação.”.
Baseia a recorrente a sua pretensão recursória na análise de parte da prova produzida, nomeadamente, nos esclarecimentos prestados pelo perito a 15.12.2023 (refª citius 15483247), no teor do documento nº 2 junto com a contestação e nos depoimentos prestados pelas testemunhas por si arroladas.
Todavia, e conforme decorre do exarado no relatório do presente acórdão, os esclarecimentos prestados pelo perito a 15.12.2023 não podem ser tidos em consideração. Com efeito, a prestação de tais esclarecimentos não foi admitida por despacho proferido pelo tribunal a quo em 25.01.2024 e já transitado em julgado (pois não foi objecto de qualquer impugnação, nomeadamente, no âmbito do presente recurso).
Por outro lado, e quanto documento nº 2 junto com a contestação, datado de 6.09.2021 – mensagem de correio electrónico no qual o representante da autora declara não ter meios suficientes para o desenvolvimento e entrega do produto contratado -, não o podemos tomar como decisivo.
Com efeito, o teor do aludido documento foi levado em consideração na decisão de facto (cfr. ponto 20 do elenco dos factos provados), mas o tribunal a quo deu ainda como provado - no item 21 – que, não obstante o envio de tal comunicação a autora continuou a desenvolver a dita plataforma nos meses seguintes e a esclarecer as dúvidas colocadas pelos colaboradores da ré, factualidade esta que não mereceu qualquer objecção por parte da ora recorrente.
Na verdade, importa não esquecer que a formação da convicção do juiz não pode resultar de partículas probatórias, mas tem necessariamente de provir da análise global do conjunto de toda a prova produzida.
E, assim sendo, não nos limitamos à audição dos depoimentos das testemunhas indicadas no recurso, tendo procedido à audição integral de todos os depoimentos prestados em sede de audiência final, bem como à análise da prova documental e do relatório pericial adicional, datado de 13.11.2023, (referente ao desenvolvimento da plataforma de comércio electrónico) e respectivos esclarecimentos, prestados pelo perito a 26.01.2024.
Concatenados todos os referidos elementos probatórios, cremos que o decidido em 1ª instância não é totalmente rigoroso no que respeita ao estádio dos trabalhos adjudicados à autora, no momento em que a ré decidiu por termo à relação comercial entre ambas.
Com efeito, e muito embora se tenha por certo que o desenvolvimento da plataforma de comércio electrónico não se encontrava num estádio incipiente como a recorrente e as testemunhas por si arroladas quiseram fazer crer (veja-se que, no relatório pericial de 13.11.2024, apenas se dá nota que relativamente ao site alfa.datapremium só não foi possível finalizar a simulação de uma compra online por falta de definição dos meios de pagamento, acrescentado que relativamente à plataforma/backoffice, a qual é um wordpress, foram criadas as respectivas páginas, produtos - informação e elementos multimédia - e instalação de plugins relacionados com o comércio eletrónico), a verdade é que também não podemos concluir que apenas faltava a ré/apelante proceder à configuração dos meios de pagamento disponíveis e dos portes para dar os trabalhos acordados por concluídos.
Para tanto, basta atentar aos esclarecimentos prestados pelo mesmo perito (em 26.01.2024). Questionado quanto à possibilidade de utilização da plataforma desenvolvida pela autora, respondeu nos seguintes termos: “A plataforma em causa tem material digital da Ré mas estava e está numa fase de desenvolvimento pois não é possível concluir um processo de aquisição de um produto ou seja não pode ser vista como uma plataforma em produção.”.
Acresce que a testemunha BB que disse ser colaborador da autora, desempenhando aí as funções de técnico de informática, e ter, nessa qualidade, sido o responsável pela apresentação à ré dos valores e condições para o desenvolvimento da plataforma solicitada (após levantamento e avaliação das respectivas necessidades) e mediado todo o processo com a equipa de programação da autora liderada por CC (igualmente ouvida, na qualidade de testemunha), afirmou de forma espontânea, quando perguntado relativamente ao tempo estimado para a duração do projecto, que seria de cerca de um ano, explicitando que, após a conclusão das configurações e integração da plataforma prevista para o final do ano de 2021, o projecto passaria para a fase de produção, durante a qual é sempre necessário proceder a ajustes, prevendo que o projecto só estaria completamente fechado por volta de Fevereiro/Março do ano seguinte.
Desta forma, a afirmação de que a plataforma estava praticamente finalizada quando o legal representante da ré comunicou desistir dos serviços da ré, para além de ser algo conclusiva, não encontrou o competente eco ou suporte na prova pericial produzida nos autos e foi até contrariada pelo depoimento prestado pela testemunha BB, segundo o qual o trabalho da autora só poderia ser concluído no espaço de cerca de 3 meses.
Em suma, entendemos ser necessário alterar também a redacção conferida aos itens do elenco dos factos provados ora em crise, nos seguintes termos: “. Entretanto, a A. foi desenvolvendo a plataforma web que a Ré lhe adjudicou de acordo com as instruções que recebia, procedendo às configurações necessárias e integração nos respectivos sites. . No final do ano de 2021, o legal representante da Ré chamou às suas instalações o legal representante da A. e comunicou-lhe que tinha decidido desistir dos serviços solicitados à A. e em sua substituição iriam adquirir outro sistema de faturação. . Nesse momento apenas faltava proceder à configuração (e integração) dos meios de pagamento disponíveis e dos portes no site alfa.datapremium para colocar a plataforma em funcionamento e passar à fase de produção, na qual seriam realizados os ajustes necessários.”.
Em face do que vem de ser exposto, procede parcialmente o recurso nesta parte, pelo que a matéria de facto provada passará a ter a seguinte formulação e numeração:
«1)A requerente é uma sociedade comercial que se dedica, com fins lucrativos, ao comércio de hardware, software e consumíveis informáticos, bem como, prestação de serviços de assistência técnica e desenvolvimento de software, conforme resulta do print da certidão permanente nº ...32.
2) A Ré é uma sociedade comercial que se dedica à venda de componentes eletrónicos.
3) Autora e Ré mantiveram uma relação comercial sem incidentes ao longo de quase 25 anos.
4)A Autora forneceu, durante esse período, apoio técnico a um programa de faturação que funciona nas instalações da Ré, sendo que as intervenções da A. no sistema informático da R. eram executadas remotamente, sem necessidade de deslocação do técnico às instalações desta.
5)Num dado momento, a R., EMP01..., sentiu necessidade de escalar as funcionalidades do seu software de faturação, para oferecer um melhor serviço e aumentar a oferta à sua clientela.
6)Pelo que, em abril de 2021, a Ré solicitou à A. uma proposta para a implementação de uma plataforma de comércio eletrónico (e-commerce) com diversas funcionalidades, para vendas online.
7)A plataforma deveria incluir nomeadamente os seguintes módulos:
a) Plataforma e-commerce;
b) Capacidade de guardar múltiplas imagens por artigo;
c) Capacidade de guardar múltiplos documentos por artigo;
d) Listas aleatórias (entre armazém e sistema);
e) Integração com software Primavera; e
f) Sugestão de compras.
8)A Autora analisou a pretensão da Ré e enviou-lhe uma proposta para a implementação da aludida plataforma de vendas online, a qual ascendia ao valor de 6.870,00€, acrescido do imposto de IVA, sendo que, no caso de adjudicação de todos os desenvolvimentos propostos pela A., esta concedia um desconto de 1.000,00€, ascendendo, neste caso, o valor total da proposta ao montante de 5.870,00€, acrescido de IVA. (cfr. Doc. 2 junto com a PI)
9)A Ré adjudicou a execução da referida plataforma Web à Autora, que em cumprimento das condições de adjudicação previamente acordadas, em 2021/11/10 emitiu a favor da Ré fatura nº ...06, do montante de 1.500,00€, mais IVA, no montante de 1.845,00€, a título de desenvolvimento da plataforma, valor que a Autora pagou. (Cfr. Doc. 3 junto com a PI)
10) No decurso do ano de 2021 e para aumentar a capacidade de armazenamento de dados do seu sistema informático, já que o mesmo tinha atingido o seu limite de 10 GB da versão gratuita ..., a Ré acordou com a Autora a aquisição e instalação de um software denominado ... e subsequente migração de dados, pelo preço de 1.968,00€.
11) A autora emitiu a fatura ...98 de 2021/11/10, no referido valor de 1.968,00€.
12) Porém, o referido software denominado ... não chegou a ser instalado pela Ré no sistema informático da Autora.
13) Entretanto, a A. foi desenvolvendo a plataforma web que a Ré lhe adjudicou de acordo com as instruções que recebia, procedendo às configurações necessárias e integração nos respectivos sites.
14) Prestando a correspondente formação aos colaboradores desta e esclarecendo as dúvidas de funcionamento que estes fossem colocando, conforme se alcança da troca de emails cuja cópia se junta. (cfr. Docs. 12 a 16 juntos com a PI)
15) No final do ano de 2021, o legal representante da Ré chamou às suas instalações o legal representante da A. e comunicou-lhe que tinha decidido desistir dos serviços solicitados à A. e em sua substituição iriam adquirir outro sistema de faturação.
16) Nesse momento apenas faltava proceder à configuração e integração dos meios de pagamento disponíveis e dos portes no site alfa.datapremium para colocar a plataforma em funcionamento e passar à fase de produção, na qual seriam realizados os ajustes necessários.
17) No dia 3 de dezembro de 2021, reuniram Ré e Autora nas instalações da primeira, que pretendia pôr fim à relação comercial que as unia.
18) O legal representante da Autora ficou perplexo com esta decisão da Ré, solicitando o pagamento do valor dos trabalhos executados a pedido da Ré, pagamento que esta recusa fazer. (cfr. doc. 3 junto com a Contestação)
19) Na verdade, a plataforma desenvolveu-se através de um modelo de desenvolvimento base, adquirido online, não da sua autoria, o Wordpress, que foi disponibilizado em data não posterior a junho de 2021,
20) Em 6 de setembro de 2021, a A. enviou um e-mail onde declarava não ter meios suficientes para o desenvolvimento e entrega do produto contratado e que deveria a R. procurar outra solução. (cfr. Doc. 2 junto com a Contestação)
21) Não obstante, continuou a desenvolver a plataforma nos meses seguintes e a esclarecer dúvidas colocadas pelos colaboradores da ré. (cfr. doc. 12 a 6 juntos com a PI)
22) Contudo, a Ré encetou contactos com outros fornecedores de serviços e produtos na mesma área, tendo encontrado um produto que resolveria o seu problema, em novembro desse ano.
*
3.2. Do erro quanto à decisão de mérito da acção
Perante as alterações introduzidas na decisão da matéria de facto, interessa apreciar se se deve manter a decisão jurídica da causa.
Na verdade, em face do novo elenco de factos provados há que aferir se há razões para revogar a sentença no sentido pretendido pela recorrente, isto é, concluindo pela absolvição da ré no pagamento das quantias peticionadas.
Está em causa, por um lado, o pagamento do preço acordado pelas partes como contrapartida do fornecimento e instalação do software denominado ... e, por outro, o remanescente do valor acordado como retribuição pelo desenvolvimento de uma plataforma de comércio electrónico.
Por conseguinte, e não obstante ter sido formulado pela autora/recorrida um único pedido englobando as duas quantias, afigura-se-nos que tal pedido se baseia em duas pretensões distintas - com fundamento na celebração de dois contratos - que importa tratar autonomamente.
Com efeito, independentemente do nomen iuris que as partes dão aos contratos, na interpretação e na qualificação destes, o que releva na definição do mesmo é a vontade expressa nas respectivas declarações negociais, entendidas estas com o sentido captável pelo declaratário normal, colocado no real circunstancialismo negocial. Assim, o tribunal não se encontra adstrito à qualificação jurídica que as partes atribuem ao acordo entre si celebrado, devendo qualificar o contrato de acordo com a “interpretação da atividade negocial das partes, tendo por elementos de trabalho o texto contratual, as negociações que o antecederam e a vivência da relação negocial estabelecida” (cfr. ac. da RC de 7.02.2006, relatado por Cura Mariano, disponível in www.dgsi.pt).
Importa, portanto, perceber qual ou quais os contratos celebrados entre as partes e quais as obrigações a que se vincularam.
Resulta, desde logo da factualidade apurada, que no decurso do ano de 2021, e para aumentar a capacidade de armazenamento de dados do seu sistema informático, já que o mesmo tinha atingido o seu limite de 10 GB da versão gratuita ..., a ré acordou com a autora a aquisição e instalação de um software denominado ... e subsequente migração de dados, pelo preço de 1.968,00€.
Estamos, pois, claramente perante um contrato de fornecimento e instalação de software.
A respeito deste tipo de contrato, a jurisprudência tem-se dividido sobre a sua qualificação.
Com efeito, parte da jurisprudência defende que estamos perante uma união de contratos, integrando elementos essenciais de diferentes tipos contratuais que, conforme referido no ac. da RL de 02.07.2019 (proferido no processo nº 6905/17.2T8LSB.L1-7, disponível in www.dgsi.pt), “se interligam através de um único nexo de funcionalidade comum, e que, na sua execução, dependem da realização de cada uma das prestações pertinentes a cada um dos tipos de contrato em presença”.
Encontramos ainda jurisprudência que entende estarmos perante um contrato misto de compra e venda e prestação de serviços (ac. da RP de 19.09.2005, proferido no processo nº 0553291, disponível in www.dgsi.pt) ou perante um contrato de prestação de serviços atípico (acs. da RL de 08.09.2015, proferido no processo nº 89359/10.7YIPRT.L1-7 e de 04.07.2019, proferido no processo nº 9584/16.0T8LRS.L1-6, ambos disponíveis in www.dgsi.pt) ou mesmo perante um contrato de empreitada quando ocorra a transformação da realidade material, corporizada naquela aplicação informática (acs. do STJ de 10.12.2013, proferido no processo nº 12865/02.7TVLSB.L1.S1, e de 12.01.22, proferido no processo nº 27863/18.0T8LSB.L1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt).
Propendemos para a qualificação deste tipo de contratos como um contrato misto em que ao fornecimento do programa informático (correspondendo ao tipo contratual da compra e venda), acresce a sua instalação no cliente e migração do anterior programa por este detido para o novo programa agora fornecido (correspondendo ao tipo contratual da prestação de serviços), contrato permitido por via do disposto no art.º 405º, nº 2 do CC.
Com efeito, por via do disposto no art.º 405º, nº 2 do CC, têm as partes a livre opção de escolha de qualquer tipo contratual com submissão às suas regras imperativas, a livre opção de celebrar contratos diferentes dos típicos, a introdução no tipo contratual de cláusulas defensivas dos interesses das partes que não quebrem a função sócio-económica assumida pelo respectivo tipo e a reunião no mesmo contrato de dois ou mais contratos típicos.
Devem qualificar-se como contratos mistos aqueles, como nos ensina Antunes Varela (in, Das obrigações em geral, Vol. I, 7ª ed., p. 281), nos quais “se reúnem elementos de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei. Em vez de realizarem um ou mais dos tipos ou modelos de convenção contratual incluídos no catálogo da lei (…) as partes, porque os seus interesses o impõem a cada passo, celebram por vezes contratos com prestações de natureza diversa ou com uma articulação de prestações previstas na lei, mas encontrando-se ambas as prestações ou todas elas compreendidas em espécies típicas reguladas na lei.”.
Neste modelo de contrato verifica-se a “fusão, num só negócio, de elementos contratuais distintos que, além de perderem a sua autonomia no esquema negocial unitário, fazem simultaneamente parte do conteúdo deste.” (ibidem, p. 286).
Quanto ao regime a aplicar diz-nos ainda Antunes Varela que “sempre que o contrato misto se traduza numa simples justaposição ou contraposição de elementos pertencentes a contratos distintos, deve aplicar-se a cada um dos elementos integrantes da espécie a disciplina que lhe corresponde dentro do respectivo contrato (típico). (...) Pode, todavia, suceder que os termos da convenção revelem que, em lugar de uma justaposição ou contraposição dos diversos elementos contratuais, existe entre eles um verdadeiro nexo de subordinação. O que as partes quiseram, fundamentalmente, foi celebrar determinado contrato (típico), ao qual juntaram, como cláusula puramente acessória ou secundária, um ou vários elementos próprios de uma outra espécie contratual. (...) Nesses casos (sobre os quais directamente se inspirou a teoria ou critério da absorção), o regime dos elementos acessórios ou secundários só será de observar na medida em que não colida com o regime da parte principal, fundamental ou preponderante do contrato. (...). Nem sempre, no entanto, o contrato misto se traduz numa simples justaposição, contraposição ou sobreposição de elementos pertencentes a matrizes contratuais. Por vezes sucede que há antes uma verdadeira fusão desses elementos num todo orgânico, unitário, complexo que é substancialmente diferente da soma aritmética deles; e outras ainda em que há uma real assimilação de um dos contratos (compreendidos no negócio misto) pelo outro.” (ibidem, p. 290).
No caso dos autos, reúne-se neste contrato elementos de dois contratos tipificados na lei, o contrato de compra e venda e o de prestação de serviços de instalação do software em apreço, sendo certo, no entanto que, entre estes diferentes elementos contratuais existe um verdeiro nexo de subordinação, não sendo dissociável a aquisição do programa em causa e a sua (correcta) instalação de acordo com as necessidades do seu cliente.
Com efeito, de acordo com os princípios da boa fé que devem nortear os contratos (art.º 762º, nº 2 do CC), quem realiza uma prestação deve realizá-la pontualmente e sem vícios de acordo com o regime convencionado (art.º 763º, nº 1 do CC).
Nesta medida, o fornecimento e instalação do programa de software em causa é indissociável da obrigação de conformidade do software às necessidades do cliente, conhecidas da autora pela longa relação já mantida com este cliente, e ao seu correcto funcionamento, tendo em conta as referidas necessidades. Tratam-se de obrigações de resultado e não de meios (cfr. ac. da RL de 09.03.2021, proferido no processo nº 1778/15.2T8CSC.L1-7, acessível in www.dgsi.pt).
Por assim ser, a obrigação de fornecimento do software adequado às necessidades do cliente e a sua colocação em funcionamento de acordo com essas finalidades, no caso sob apreciação, não se mostra cumprida, conforme decorre da factualidade apurada.
Assim sendo, dúvidas não restam de que a autora, empresa especializada no fornecimento e instalação de soluções de carácter informático, não logrou atingir o resultado a que se obrigara de fornecimento e instalação de programa adequado às funcionalidades pretendidas e por si conhecidas, pois que visava substituir programa informático que já não satisfazia as necessidades da ré, não logrando de igual forma ilidir a presunção de culpa que decorre do disposto no art.º 799º, do CC.
Não tendo a autora/recorrida cumprido com a sua prestação, nem retirando a ré/recorrente deste programa informático, qualquer utilidade ou benefício, não é devido o pagamento da respectiva factura.
Procede assim a apelação, nesta parte, revogando-se a sentença recorrida igualmente neste conspecto.
Mas, como vimos, a autora fundamentou ainda a sua pretensão na celebração de um outro acordo, mediante o qual se obrigou a desenvolver uma plataforma de comércio electrónico para a ré utilizar no âmbito da sua actividade.
Face à natureza das prestações acordadas, estamos, pois, perante um contrato de desenvolvimento de software «à medida», conforme denominado no ac. da RL de 08.09.2015, relatado por Maria do Rosário Morgado e in www.dgsi.pt.
No nosso ordenamento jurídico, a qualificação jurídica de contratos de desenvolvimento de software é igualmente alvo de divergência na doutrina e a jurisprudência, sendo considerado por uns como contrato de empreitada (cfr. ac. da RP de 11.11.2024, relatado por Ana Olívia Loureiro e acessível in www.dgsi.pt e Ana Prata, in Código Civil anotado, vol. I, p. 1546), enquanto outros entendem tratar-se de um contrato inominado de prestação de serviços (cfr. o ac. da RC de 10.09.2024, relatado por Moreira do Carmo, acessível in www.dgsi.pt e Luís Menezes Leitão in, Direito das Obrigações, vol. III, 7ª edição, p. 518 e seguintes).
Na sentença recorrida, o contrato em apreço foi qualificado como sendo um contrato de empreitada, qualificação esta que não nos merece reparo e que, de resto, não foi colocada em questão pelas partes.
Da noção legal do contrato de empreitada decorre que a obrigação do empreiteiro é uma obrigação de resultado – a de realização de certa obra.
E, de facto, na presente situação, a autora/recorrida obrigou-se ao desenvolvimento de algumas tarefas destinadas a implementar uma plataforma de comércio electrónico para a ré utilizar no âmbito da sua actividade comercial.
Acontece que a apelada não logrou conseguir inteiramente tal desiderato, como decorre dos factos provados. O que quer dizer que a prestação da autora/recorrida não foi a devida, na óptica da pontualidade e integralidade do cumprimento.
Todavia, tal ocorreu, a nosso ver, não por qualquer falta de colaboração da ré/recorrente, como concluiu o tribunal recorrido, mas porquanto aquela decidiu proceder à cessação unilateral do contrato celebrado com a autora/recorrida, antes desta ter concluído o desenvolvimento da plataforma e a ter colocado em funcionamento.
Tal conduta da ré/apelante corresponde, a nosso ver, a uma desistência da empreitada, expressa e legalmente prevista no art.º 1229º, do CC.
No âmbito da extinção do contrato de empreitada, estatui o art.º 1229º, do CC que “o dono da obra pode desistir da empreitada a todo o tempo, ainda que tenha sido iniciada a sua execução, contanto que indemnize o empreiteiro dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia tirar da obra”.
Nas palavras de Rodrigues Bastos (in, Notas ao Código Civil, vol. IV, p. 329), o dono da obra “pode desistir do contrato de empreitada a qualquer momento e qualquer que seja a razão sem necessidade de se justificar e de efectuar qualquer aviso prévio”, sendo que a “declaração de desistência tem natureza receptícia e não depende de forma escrita, salvo convenção em contrário”.
Trata-se de uma situação cujo objectivo “é apenas o de dar ao dono da obra a possibilidade de não prosseguir com a empreitada, interrompendo a sua execução para o futuro, o que pode ter a sua justificação nas mais variadas causas: mudança de vida, alteração das condições económicas, etc., ou de prosseguir nela, mas com outro empreiteiro, ou de realizar a obra por outra forma (administração directa, por exemplo)” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª Edição, p. 832).
Por seu lado, João Serras de Sousa (in, Código Civil Anoado, vol. I, Coordenação de Ana Prata, p. 1527) diz que o presente normativo traduz “uma possibilidade de extinção unilateral ad nutum, que não é reconduzível a qualquer das formas típicas de extinção do contrato: é uma forma específica de extinção do contrato de empreitada. Trata-se de uma exceção ao art. 406º”.
Considerando justificada tal solução legal, na perspectiva do interesse do dono da obra, aduz estarmos perante uma “verdadeira faculdade: não carece de justificação, de pré-aviso, ou de forma e não pode ser apreciada pelo Tribunal”.
Todavia, e conforme resulta da definição legal, a assunção de tal acto por parte do dono da obra (in casu, por parte da ré, configurando-se a sua atitude como uma verdadeira desistência da empreitada contratada com a autora empreiteira), tem efeitos ao nível da indemnização, para que o empreiteiro não sofra prejuízos, ou não exista um ilegítimo enriquecimento por parte do dono da obra.
Assim, tal indemnização, tendo natureza reparadora de um dano causado por acto lícito, deve ser calculada “equitativamente tendo por base, como o preceito indica, as despesas feitas pelo empreiteiro, o trabalho realizado tendo em conta os preços contratuais e ainda a perda do ganho que o empreiteiro teria em resultado dos trabalhos ainda não realizados” (cfr. Rodrigues Bastos, obra e volume citados., p. 329).
Esclarecendo, referem Pires de Lima e Antunes Varela (in obra e volume citado, p. 833) que a indemnização devida pelo dono da obra incide, em primeiro lugar, sobre os gastos e trabalho, sendo considerados “todos os danos emergentes, sem se atender à utilidade que a parte executada possa ter para o dono”.
João Serras de Sousa esclarece ainda que (in, obra citada, p. 1527), “a indemnização pelo proveito que poderia tirar significa ter o empreiteiro direito à sua margem de lucro integral: devem os custos que o empreiteiro teria com a realização da obra ser subtraídos ao preço total que receberia por ela, devendo, assim, ser indemnizado pelo interesse contratual positivo”
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Na mesma linha, pode ler-se no ac. do STJ de 15.04.2015, processo nº 2986/08.8TBVCD.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt que “para a determinação da indemnização devida ao empreiteiro pelo dono da obra desistente, importa ponderar duas vertentes: (i) – Por um lado, os gastos e trabalhos já suportados pelo empreiteiro à data da desistência, independentemente do preço convencionado, sem se atender à utilidade que a parte executada possa ter para o dono; (ii) – Por outro lado, ao proveito que o empreiteiro deixou de tirar com a realização completa da obra, a apurar pela diferença entre o custo global da obra e o preço convencionado”.
Voltando ao caso concreto, na aplicação do entendimento exposto, verifica-se que a autora/recorrida, na data em que a ré desistiu da empreitada, teria assim o direito a ser ressarcida/indemnizada do custo dos trabalhos já suportados àquela data, independentemente do preço convencionado (o que não resultou apurado), bem como do lucro integral que teria na execução da obra, a aferir pela subtracção dos custos que a autora teria com a execução integral da dita obra (que também não se apurou) ao preço total acordado pela execução da mesma.
E não, conforme se depreende da sentença apelada, que a autora tivesse o direito a reclamar da ré o pagamento do remanescente do preço acordado, que é coisa distinta.
Deste modo, a matéria de facto apurada é claramente parca para ajuizar o valor da indemnização devida à autora/recorrida, em consequência da desistência da obra pela recorrente.
E, assim sendo, ou seja, não tendo sido possível apurar o concreto valor de tais perdas de rendimentos, nada mais resta que relegar a sua liquidação para momento posterior, nos termos previstos no citado art.º 609º, nº 2, do NCPC.
Com efeito, dispõe este normativo, que “Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida”.
E embora tenha existido alguma jurisprudência que interpretava a aludida disposição legal (mais concretamente a norma do anterior CPC que lhe correspondia), sustentando que apenas seria aplicável quando, no momento da sentença, ainda não fosse possível conhecer todos os factos necessários à liquidação da obrigação, não sendo, todavia, aplicável quando esses factos já haviam ocorrido e muito menos quando esses mesmos factos haviam sido alegados mas não provados (vg, o ac. do STJ de 17.01.1995, proferido no processo nº 085801, disponível in www.dgsi.pt), pensamos poder afirmar que essa corrente jurisprudencial está ultrapassada, não merecendo acolhimento na jurisprudência mais recente do STJ e não colhendo o necessário apoio na letra da lei e no pensamento legislativo.
Na verdade, nada na letra da lei nos induz a fazer tal interpretação (restritiva), uma vez que a previsão da norma em questão reporta-se à falta de elementos para fixar o objecto ou a quantidade da condenação sem fazer qualquer distinção entre as situações em que esses elementos não existem por ainda não terem ocorrido os factos que permitiriam fixar o objecto ou a quantidade da obrigação e as situações em que esses factos já ocorreram, já são conhecidos e até foram alegados, sucedendo apenas que não foram provados. Em qualquer uma dessas situações, o tribunal – no momento em que profere a sentença – não dispõe desses elementos e, portanto, está impossibilitado de fixar o objecto ou a quantidade da prestação e, ao que nos parece, é apenas essa circunstância que está subjacente à norma em questão.
O que ali se pretende salvaguardar é a possibilidade de o tribunal proferir uma decisão condenatória, nas situações em que, apesar de se ter apurado a existência do direito e respectiva obrigação, não se determinou o objecto ou a quantidade dessa obrigação. Ou seja, o juiz apurou a efectiva existência de uma obrigação – sabendo, portanto, que o réu terá que ser condenado – mas não apurou qual é o concreto objecto ou a quantidade exacta dessa prestação – não podendo, por isso, determinar o objecto da condenação.
Numa situação dessas, e como refere Alberto dos Reis (in, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 71) “…nem seria admissível que a sentença absolvesse o réu, nem seria tolerável que o condenasse à toa, naquilo que ao juiz apetecesse. A única solução jurídica é a que o texto consagra: proferir condenação ilíquida. O juiz condenará o réu no que se liquidar em execução de sentença”.
Temos, portanto, como certo que tal disposição será aplicável a todos os casos em que o tribunal, no momento em que profere a decisão, carece de elementos para fixar o objecto ou a quantidade da condenação, seja porque ainda não ocorreram os factos constitutivos da liquidação da obrigação, seja porque, apesar de esses factos já terem ocorrido e terem sido alegados, não foi feita a sua prova.
Neste sentido, pronunciaram-se ainda José Lebre de Freitas (in, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª ed., p. 682), Vaz Serra (in, RLJ, Ano 114º, p. 309 e 310) e, entre outros, o ac. do STJ de 22.09.2016, proferido no processo nº 681/14.8TVLSB.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt.
Concluímos, portanto, que, para efeito de aplicação da norma citada, é irrelevante que o autor tenha formulado um pedido líquido ou específico sem que tenha conseguido provar os factos que havia alegado e dos quais dependia a fixação ou quantificação do objecto da prestação; também essa situação se insere no âmbito de previsão da norma citada e, portanto, também nesse caso o tribunal deverá condenar no que vier a ser liquidado.
O que é absolutamente necessário é que se prove a existência da obrigação, uma vez que aquilo que pode ser relegado para posterior liquidação, ao abrigo da citada disposição legal, não é a existência da obrigação – porque esta, constituindo um pressuposto necessário para que seja proferida uma decisão condenatória, tem que ser previamente demonstrada – mas sim e apenas o objecto ou a quantidade dessa obrigação. Vide, assim, o ac. RC de 11.10.2017, processo nº 228/15.9T8SEI.C1 e o ac. 13.11.2023, processo nº 1285/22.7T8GDM.P1, ambos igualmente disponíveis in www.dgsi.pt.
Consequentemente, haverá desde já que atentar que não sendo o crédito pecuniário líquido, temos de considerar não existir ainda mora do devedor, pois que nos casos de iliquidez do crédito, a mora não ocorre enquanto ele se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor – art.º 805º, nº 3 do CC -, o que não é o caso.
Concomitantemente, importa alterar a decisão recorrida quanto ao valor a pagar pela ré/recorrente à autora, em consequência da desistência do contrato de desenvolvimento de software, relegando-a para liquidação posterior, nos termos supra expostos.
Procede, pois, ainda que parcialmente a pretensão recursória da ré nesta parte.
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Conclui-se desta forma pela procedência parcial do recurso interposto pela ré, revogando-se parcialmente a sentença recorrida no sentido acima exposto.
As custas da acção e do presente recurso são da responsabilidade da recorrente e da recorrida, provisoriamente na proporção de metade, ficando o seu rateio definitivo para a decisão a proferir na liquidação (art.º 527º, nºs 1 e 2, do NCPC).
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se parcialmente a sentença recorrida, condenando-se a ré/apelante a indemnizar a autora/apelada pela desistência da obra de desenvolvimento da plataforma de comércio electrónico nos termos acima expostos, em quantia a liquidar posteriormente, absolvendo-a do demais peticionado (nomeadamente, quanto à peticionada quantia de € 1.968,00 e respectivos juros de mora).
Custas da acção e do recurso a cargo da recorrente e da recorrida, provisoriamente na proporção de metade, ficando o seu rateio definitivo para a decisão a proferir na liquidação (art.º 527º, nºs 1 e 2, do NCPC).
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Guimarães, 27.02.2024 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária
Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Maria dos Anjos Melo Nogueira
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. António Figueiredo de Almeida