I - Ao direito de sub-rogação da Seguradora previsto no nº4, do artigo 17º, da Lei nº98/2009, de 4 de setembro, que Regulamenta o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais, é aplicável o prazo de prescrição de três anos, por aplicação analógica do artigo 498º, nº2, do Código Civil, sendo-lhe inaplicável a extensão do prazo de prescrição prevista no nº3, do artigo 498º, do Código Civil.
II - Esse prazo de prescrição inicia-se, em regra, com o último pagamento efetuado, apenas devendo excetuar-se os casos em que seja possível distinguir nos diversos pagamentos danos normativamente diferenciados, um núcleo indemnizatório, autónomo e bem diferenciado, bem como os casos em que a indemnização seja arbitrada em forma de renda perpétua ou vitalícia ou de outras prestações periódicas análogas, casos esses em que o prazo de prescrição do direito de reembolso se inicia e corre autonomamente em relação a cada pagamento parcelar.
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível da Maia – Juiz 3
Recorrente: A..., S.A.
Recorrida: B... – Companhia de Seguros, S.A.
Relatora: Juíza Desembargadora Teresa Pinto da Silva
1º Adjunto: Juiz Desembargador Mendes Coelho
2ª Adjunta: Juíza Desembargadora Teresa Fonseca
I - RELATÓRIO
Em 28.03.2023, B... – Companhia de Seguros, S.A. intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A..., S.A., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe:
I) A quantia de €37.497,92 (trinta e sete mil, quatrocentos e noventa e sete euros e noventa e dois cêntimos), que a Autora, posteriormente a 22 de janeiro de 2019, continuou a pagar ao sinistrado AA, a título de reembolso das despesas com o acidente concomitantemente de viação e de trabalho sofrido por este.
II) Todas as despesas e pensões que a Autora continua a suportar com a assistência ao AA no decurso da presente ação .
III) Juros de mora a contar da citação.
Para o efeito, alegou que, no exercício da sua atividade, celebrou com a sociedade C..., Lda, um contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho, através do qual aquela sociedade transferiu para a Autora a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho sofridos pelos seus trabalhadores, entre os quais AA, o qual, no dia 9 de setembro de 2010, sofreu um acidente simultaneamente de viação e de trabalho (in itinere), causado por culpa exclusiva do condutor de um veículo automóvel cuja responsabilidade civil emergente da circulação rodoviária se encontrava transferida para a Ré por contrato de seguro do ramo automóvel, tendo a responsabilidade exclusiva daquele condutor na produção do acidente sido decretada por sentença, transitada em julgado, proferida pelo 6.º Juízo Central da Póvoa de Varzim, no processo nº 1126/15.1T8PVZ, com a consequente obrigação de reparar os danos decorrentes de tal sinistro por parte da Companhia de Seguros Tranquilidade – hoje por força de sucessivas fusões por incorporação, designada “A... Companhia de Seguros, S.A.”, aqui Ré.
Na sequência do alegado acidente de trabalho o sinistrado AA sofreu graves lesões, tendo corrido termos pelo 1º Juízo do Tribunal do Trabalho da Maia o processo de acidente de trabalho nº 495/11.7MAI, no âmbito do qual foi proferido despacho homologatório de acordo celebrado em auto de conciliação entre a Autora, a sociedade C..., Lda e o sinistrado, por força do qual foi fixado ao sinistrado uma incapacidade permanente parcial de 78,423%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual e a aqui Autora condenada a pagar ao sinistrado a pensão anual, vitalícia e atualizável de €5.827,183, devida a partir de 18 de fevereiro de 2013, correspondente a uma percentagem de responsabilidade de 72,0575% pelo salário transferido, bem como obrigada a prestar ao sinistrado as ajudas medicamentosas, consultas de especialidade e cirurgias de que aquele viesse eventualmente a necessitar, relacionadas com a assistência médica relativa às lesões por ele sofridas no acidente.
A Autora foi ao identificado processo nº 1126/15.1T8PVZ do Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim, exercer o seu direito de intervir para aí impetrar o reembolso de todas as despesas que suportara até então com a reparação a que estava obrigada pelo acidente, e o mesmo Tribunal condenou a Ré nessa ação, hoje A... Companhia de Seguros, ora demandada, a reembolsar a B... pela quantia global de € 169.529,61. Nesse processo, a aí interveniente, aqui Autora, também tinha demandado a ali Ré quanto ao reembolso de todas as prestações que de futuro – posteriores a tal processo – com a assistência médica hospitalar, medicamentosa e pensões infortunísticas viesse a suportar por causa do acidente em apreço. No entanto, o Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim considerou improcedente esse segmento do pedido, dele absolvendo a Ré, por considerar, quanto a este, que estão em causa prestações futuras e não pagas, não ocorrendo nesta situação a sub-rogação legal que seria pressuposto do direito de regresso da então interveniente.
Entretanto, a Autora suportou mais despesas do que as que havia impetrado naquela ação, tendo pago ao sinistrado: a título de pensões (vencidas entre janeiro de 2019 e janeiro de 2023 a quantia global de €23.725,11; após 22 de janeiro de 2019 gastou com meios auxiliares de diagnóstico mais €984,43; com aparelhos, próteses e ortóteses despendeu mais €4.739,44; com transportes do sinistrado a tratamentos, consultas e suas deslocações a postos médicos, gastou, entretanto, €2.875,20; de despesas médicas, incluindo hospitalizações, honorários clínicos para consultas, cirurgias, tratamentos de fisioterapia, gastou mais €5.876,92, quantias cujo reembolso reclama da Ré na presente ação, nos termos do art.º 17, n.º 4 da Lei 98/2009, de 4 de setembro.
A ação foi contestada, por exceção e por impugnação, tendo a Ré excecionado a prescrição do direito da Autora ao reembolso das prestações pagas e a pagar a AA, a título de pensão anual e vitalícia, bem como a prescrição do direito da Autora ao reembolso das prestações pagas àquele sinistrado entre o dia 25.01.2019 e o dia 31.03.2020, a título de despesas com meios auxiliares de diagnóstico, de aparelhos, prósteses e ortóteses, de deslocações para tratamentos, consultas e deslocações a postos médicos e de despesas médicas (hospitalizações, honorários clínicos, consultas, cirurgias e fisioterapia).
A Autora respondeu, pugnando pela improcedência da exceção perentória da prescrição invocada pela Ré.
Foi designada uma tentativa de conciliação, que se veio a revelar infrutífera.
O Tribunal a quo dispensou a realização da audiência prévia, tendo, em 12 de maio de 2024, proferido despacho saneador, no qual relegou para a sentença o conhecimento da exceção perentória da prescrição, identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
Em 6 de junho de 2024, a Autora deduziu ampliação do pedido, alegando, para tanto e em síntese, que desde 28 de março de 2023 até ao presente continuou a processar pagamentos ao sinistrado, a suportar despesas com meios auxiliares de diagnóstico, aparelhos, próteses e ortóteses, despesas médicas, honorários clínicos para consultas e cirurgias, tratamentos de fisioterapia e transportes do sinistrado a tratamentos e consultas, num total de dispêndios de mais €2501,50.
Em 21 de junho de 2024, a Ré pronunciou-se quanto à ampliação do pedido, reiterando a posição assumida na contestação.
Em 27 de junho de 2024 realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal, no início da qual o Tribunal a quo admitiu a ampliação do pedido formulado pela Autora.
Em 2 de agosto de 2024 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, e ao abrigo das referidas disposições legais julgo a acção totalmente procedente, condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de € 39.999,42, acrescida de juros de mora, desde a citação, relativamente à quantia de € 37.497,92, e desde a notificação do requerimento de ampliação do pedido relativamente à quantia de € 2.501,50.
Custas da acção pela Ré porque vencida (art. 527.º, n.º1, do CPC).
Registe e notifique.”
Para tanto, apresentou alegações, culminando com as seguintes conclusões:
1. Versam os presentes autos acerca do direito da autora, enquanto seguradora de acidentes de trabalho, ao reembolso de diversas quantias que despendeu no âmbito da regularização de um determinado acidente de trabalho e de viação, não estando em causa a responsabilidade civil da apelante no acidente de viação.
2. Todavia, atentas as circunstâncias, a apelante suscitou, além do mais, na sua contestação, a excepção de prescrição do direito unitário da apelada ao reembolso das quantias que pagou ao sinistrado AA a título de pensão anual e vitalícia;
3. A sentença recorrida julgou a indicada excepção de prescrição, com o fundamento de que a apelante não alegou que os pagamentos cujo direito de sub-rogação a apelada pretendia exercer correspondiam a núcleos indemnizatórios autónomos e diferenciados, impedindo a destrinça de tais pagamentos, em termos de natureza e tipo de bens lesados, com a consequência de que se deve considerar como data de início do prazo de prescrição do direito da autora, a data em que esta realizou o último pagamento no âmbito da regularização do sinistro laboral.
4. A recorrente não se conforma com a aludida decisão, no que tange a excepção de prescrição do direito unitário da apelada ao reembolso das quantias que pagou ao sinistrado AA a título de pensão anual e vitalícia;
5. Com efeito, na sua contestação, a ré procedeu à identificação dos pagamentos efectuados pela autora a título de pensões, tendo-os caracterizado como prestações periódicas correspondentes ao direito à pensão anual e vitalícia devido pela apelada a AA, em virtude da incapacidade permanente de que ficou a padecer.
6. A apelante concretizou, bem assim, a que pagamentos se reportou para deduzir tal excepção de prescrição do direito unitário da autora, referindo-se expressamente aos pagamentos efectuados entre os dias 22.01.2019 e 01.02.2023, em consequência do acidente simultaneamente de viação e de trabalho, ocorrido em 09.09.2010, no qual foi interveniente o sinistrado AA.
7. Da contestação de fls… resulta patente que a indemnização em causa – o reembolso de prestações pagas a título de pensão anual e vitalícia – tem a natureza de pensão anual e vitalícia, e que o bem jurídico lesado corresponde à integridade física do lesado em sede de direito laboral.
8. Por outras palavras, perante o alegado – e que, de resto, resultou provado nos autos, nenhuma dúvida pode subsistir quanto à natureza da indemnização a que a ré aqui se pretendeu referir, bem como, quanto ao bem jurídico lesado em que se funda a indemnização peticionada.
9. Vem referido no ponto 9. do elenco dos factos julgados provados, que a recorrida “… B... ficou obrigada a pagar ao autor – a partir de 18/02/2013 - a pensão anual e vitalícia atualizável, de €5.827,183…” (sublinhado nosso)
10. Mais ficou provado nos autos que, “de pensões, pela incapacidade parcial e permanente de 78,423% (com incapacidade permanente e absoluta para o trabalho habitual), a ora autora, “…a partir de 22 de janeiro de 2019, até janeiro de 2023, pagou ao sinistrado a quantia global de € 23.725,11…”. (sublinhado nosso)
11. Suscitada a questão da prescrição do direito unitário da autora ao reembolso das prestações por esta pagas ao sinistrado AA, a título de pensão anual e vitalícia por incapacidade permanente para o trabalho, por decurso do respectivo prazo prescricional, impunha-se à autora/apelada demonstrar que tal prazo não se completou, o que não sucedeu.
12. As referidas prestações são pagas todos os anos (ainda que sob a forma mensal, como decorre do provado 26 e doc. da p.i.), até ao decesso do sinistrado, correspondendo assim a prestações periódicas, para os efeitos do disposto no artigo 307.º do Código Civil.
13. Ora, é segura a afirmação de que, pelo menos, a partir de 22.01.2019, a apelada teve conhecimento do seu alegado direito contra a ora recorrente.
14. Quer isto dizer que nesse momento a recorrida estava já em posição de exercer o seu direito unitário, podendo pedir a condenação da aqui recorrida não só no que já tinha pago, como também nas prestações futuras.
15. A partir do momento em que teve conhecimento do seu alegado direito e pôde exercê-lo, incumbia à apelante acautelá-lo dentro do prazo prescricional previsto na lei, o que não fez senão em 31.03.2023, data da citação da ré para os termos dos presentes autos. Cf. facto provado 33;
16. Dispõe o n. 1 do artigo 498.º do Código Civil que o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete.
17. Como tal, o pedido deduzido pela autora, atinente ao direito unitário ao reembolso das quantias pagas ao sinistrado AA a título de pensão anual e vitalícia que se encontra irremediavelmente prescrito, na sua totalidade.
18. Deste modo, forçoso é concluir que o direito unitário da apelada a receber as sobreditas prestações periódicas prescreveu no dia 22.01.2022, pois que, tendo a apelada iniciado os pagamentos da pensão anual e vitalícia ao lesado em 22.11.2019 não cuidou, nos três anos seguintes, de exigir da responsável civil o seu reembolso.
19. Deverá, como tal, ser declarado prescrito o direito unitário que a apelada pretende exercer nesta acção relativamente à pensão anual e vitalícia paga ao sinistrado AA, e a pagar no futuro, o que sempre determina a improcedência do pedido deduzido pela apelante a esse título, no valor de 23.725,11€, com a consequente absolvição da recorrida deste pedido.
20. Neste sentido veja-se o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22.11.2011, proferido no âmbito do processo n. 356/10.7T2AND-A.C1, consultável em www.dgsi.pt.
21. A decisão em apreço nos presentes autos viola o preceituado no artigo 307º do Código Civil.
1) Considerando que desde 2013 que a seguradora de acidentes de trabalho, aqui recorrida, tem vindo a suportar todas as despesas com o sinistrado AA ao abrigo da cobertura de acidentes de trabalho, nomeadamente, com tratamentos e pensões;
2) Que no processo 1126/15.1T8PVZ da Póvoa de Varzim, o direito ao reembolso de tais despesas já tinha sido peticionado, judicialmente reconhecido e na sequência disso, pago pela A... à aqui apelante até janeiro de 2019,
3) A invocação nestes autos, pela recorrente, da prescrição do direito ao reembolso das pensões é, desde logo, manifestação de uma gritante falta de pudor, do mais incivilizado sentido estético e de um comportamento processual absolutamente lamentável.
4) Na medida em que esse direito ao reembolso, repete-se, já estava judicialmente reclamado e reconhecido.
5) Mas mesmo “passando por cima” de tudo quanto está para trás, nunca a infeliz invocação da exceção da prescrição poderia ou poderá proceder.
6) Pois, como resulta da matéria provada pela 1ª instância, o pagamento das pensões infortunísticas estendeu-se até janeiro de 2023 (para além de outras despesas que se suportaram até ao fim da discussão em primeira instância),
7) e é manifesto que a ré foi citada para os termos da presente demanda em março de 2023 (dois meses após o pagamento daquela última pensão),
8) sendo que, de acordo com jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça, para efeitos de contagem de prescrição nos casos em que existe uma sucessão de vários pagamentos (de despesas médicas, medicamentosas ou de indemnizações e pensões), deve, em regra, atender-se ao último dos pagamentos efectuados [cf. entre vários outros, o Acórdão do STJ, de 02.04.2019, processo n.º 2142/16.1T8PTM-A.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
9) Por tal não se verifica, no caso presente, a prescrição.
10) Sendo manifesto que no caso presente, por força dos pagamentos, indemnizações e despesas de tratamento suportadas pela aqui recorrida com o acidente de trabalho, SVB-JVDICE, a recorrida ficou legalmente sub-rogada nos direitos do lesado pelo acidente que também foi de viação (arts 592 n.º 1 do Código Civil e 17.º n.º 4 da Lei 98/2009, de 4 de setembro),
11) e que com a sub-rogação o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam.” – Artigo 593 n.º 1 do Código Civil
12) entenda-se, todos os poderes, nomeadamente o de gozar do benefício do prazo de prescrição mais longo,
13) que, no caso presente, considerando as circunstâncias do sinistro automóvel com culpa grave e exclusiva do terceiro causador do acidente que praticou crime de ofensa à integridade física grave, uma vez que foi gravemente afetada a capacidade de trabalho da vítima, conforme se consignou no processo 1126/15.1T8PVZ da Póvoa de Varzim (v.g. Certidão Judicial daquele processo, junta aos presentes auto, conjugado com a matéria provada na sentença recorrida),
14) tal prazo é de cinco anos, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 148.º n.º 3 e 118.º n.º 1, alínea c) do Código Penal e 498 n.º 3 do Código Civil 15) e tal prazo, à data da citação da ré, março de 2023, ainda não decorrera.
16) Pelo que, também por aqui, a exceção da prescrição soçobra.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões vertidas pelo Recorrente nas suas alegações (arts. 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido.
Mercê do exposto, da análise das conclusões vertidas pela Recorrente nas suas alegações decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à seguinte questão:
1ª – Se se encontra ou não prescrito o direito reclamado pela Apelada relativo ao reembolso das quantias que pagou ao sinistrado AA a título de pensão anual e vitalícia.
1 – Se se encontra ou não prescrito o direito reclamado pela Apelada relativo ao reembolso das quantias que pagou ao sinistrado AA a título de pensão anual e vitalícia
Na sua contestação, a Ré invocou, em sua defesa, a exceção da prescrição do direito da Autora em duas vertentes, que descreve nos seguintes termos:
- “a exceção da prescrição do direito unitário ao reembolso das quantias pagas a título de pensões.”
- “a exceção da prescrição do direito ao reembolso das demais prestações pagas desde 25 de janeiro de 2019 até à data em que a Ré foi citada para a presente ação, a saber, o dia 31 de março de 2023.”
A sentença recorrida julgou improcedente a invocada exceção da prescrição nas duas vertentes.
Em sede de recurso, no entanto, a Ré/Apelante deixou cair a exceção da prescrição do direito ao reembolso das demais prestações pagas desde 25 de janeiro de 2019 até à data em que a Ré foi citada para a presente ação, impugnando apenas aquela decisão quanto à improcedência da prescrição do direito unitário ao reembolso das quantias pagas pela Autora ao sinistrado a título de pensões, que ascendem ao montante global de 23.725,11€.
Importa, por conseguinte, decidir se o direito da Apelada ao reembolso das prestações por esta pagas ao sinistrado AA, a título de pensão anual e vitalícia por incapacidade permanente parcial de 78,423%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, está ou não prescrito.
A Autora, ora Recorrida, invocou como fundamento da sua pretensão ao peticionado reembolso o disposto no artigo 17º, nº4, da Lei nº98/2009, de 4 de setembro, que Regulamenta o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais.
Nos termos daquele preceito, que tem como epígrafe “Acidente causado por outro trabalhador ou por terceiro”:
«1 - Quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de ação contra aqueles, nos termos gerais.
2 - Se o sinistrado em acidente receber de outro trabalhador ou de terceiro indemnização superior à devida pelo empregador, este considera-se desonerado da respetiva obrigação e tem direito a ser reembolsado pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido.
3 - Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente, a exclusão da responsabilidade é limitada àquele montante.
4 - O empregador ou a sua seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente pode sub-rogar-se no direito do lesado contra os responsáveis referidos no n.º 1 se o sinistrado não lhes tiver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente.
5 - O empregador e a sua seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo».
Resulta do nº4, do citado preceito, que o direito ali previsto é um direito de sub-rogação legal, ou seja, ocorre uma transmissão ex lege para a seguradora do direito que cabia ao lesado, em virtude do cumprimento pela seguradora (nisso direta interessada, em razão das obrigações contratuais e legais que sobre ela recaem decorrentes do contrato de seguro) da obrigação de indemnização que impendia sobre o responsável (artigos 592º a 594º do Código Civil).
Decorre do disposto no n.º 1, do artigo 592.º do Código Civil, que «fora dos casos previstos nos artigos anteriores ou noutras disposições da lei, o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento, ou quando, por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito», acrescentando o artigo 593º, nº1, daquele diploma fundamental que «o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam».
Sustenta a Apelada que o prazo de prescrição a considerar relativamente ao seu direito de reembolso reclamado nos autos é de cinco anos. Alicerça essa conclusão na circunstância de a conduta do lesante, segurado da ré A... e responsável civil pela eclosão do sinistro, concomitantemente de trabalho, consubstanciar a prática de um crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, uma vez que foi gravemente afetada a capacidade de trabalho da vítima – de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 148.º n.º 3 e 144 n.º 1, alínea c) do Código Penal – motivo pelo qual será de aplicar o número 3 do artigo 498.º do Código Civil, que estatui “Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.”
Não aderimos a tal argumentação, entendimento que perfilhámos em linha com o que se nos afigura ser o consenso atual na jurisprudência em torno da tese da inaplicabilidade daquele nº 3 às situações de sub-rogação legal e da aplicabilidade, analogicamente, do prazo de prescrição de três anos previsto no artigo 498º, nº2, do Código Civil[1].
Em abono do entendimento por nós perfilhado, importa salientar que o nº3, do artigo 498º, do Código Civil, encontra a sua justificação na necessidade de adaptar o pedido de responsabilidade civil à ação penal, tendo em atenção os casos em que, por força do princípio da adesão (cfr. artigo 71.º do Código de Processo Penal), aquele é deduzido no contexto desta última. Não faria sentido que o direito do titular à indemnização civil (a exercer no processo criminal) pudesse ser afetado pela prescrição quando estivesse ainda a decorrer o prazo de prescrição do procedimento criminal, que, em certos casos (cfr. artigo 118.º do Código Penal) é mais longo do que o fixado no n.º 1, do artigo 498.º, do Código Civil. No entanto, estas razões não colhem quando se está perante o direito de reembolso que a Autora pretende exercer nos presentes autos contra a Ré, realidade jurídica distinta em relação ao direito de indemnização do lesado, que dita a inaplicabilidade do artigo 498º, nº3, do Código Civil ao caso sub judice. Neste contexto, dado que a obrigação já foi cumprida no confronto do lesado, não vale o argumento de que desde que o facto ilícito pode ser discutido em sede penal deve também poder ser apreciado no âmbito da atuação da respetiva responsabilidade civil. Nenhuma razão existe, pois, para se lhe aplicar um alargamento do prazo que pressupõe justamente que a medida dessa responsabilidade possa ser ainda discutida em sede penal por mais tempo.
Concluímos, por conseguinte, que o disposto no artigo 498º, nº3, do Código Civil é inaplicável ao direito que a Autora/Apelada pretende exercer contra a Ré/Apelante, aplicando-se, em linha com o entendimento perfilhado na sentença recorrida, o prazo de prescrição de três anos, por aplicação analógica do artigo 498º, nº2, do Código Civil.
E dizemos analógica porque é certo que no nº 2, do artigo 498º, o legislador prevê que “prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis”, não se referindo a sub-rogação.
A distinção não é ociosa na medida em que o direito de regresso determina a constituição de um direito novo na esfera do devedor que satisfez integralmente a prestação extinguindo o direito creditício, enquanto a sub-rogação se enquadra na transmissão de dívidas, ou seja, na transmissão de um crédito do credor para o devedor que lho satisfez. Na expressiva locução do Professor Antunes Varela, na sub-rogação os direitos dos devedores transferem-se de armas e bagagens[2] para a esfera jurídica de quem satisfez a obrigação, o que implica a transmissão de todo o regime aplicável.
No entanto, como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Novembro de 2020, proferido no processo 2325/18-0T8VRL.G1.S1, disponível in www.dgsi.pt, o “direito de regresso" e o “direito de sub-rogação” desempenham, do ponto de vista prático ou económico, uma análoga «função recuperatória» no âmbito das «relações internas» entre os vários sujeitos que estavam juridicamente vinculados ao cumprimento de certa obrigação ou, embora não o estando, acabaram por realizar efetivamente – na veste de garantes ou interessados diretos no cumprimento – a prestação devida.
Por isso, concluímos pela aplicação analógica do prazo prescricional de três anos ao direito reclamado pela Autora nestes autos, em conformidade com disposto no artigo 498.º, n.º 2, do Código Civil.
Importa agora determinar a partir de quando se inicia a contagem desse prazo de prescrição de três anos.
O artigo 498º, nº2, do Código Civil, estipula que aquele prazo de três anos será de contar “do cumprimento”, o qual deve ter-se como reportado ao momento em que o devedor realiza a prestação a que está obrigado (cfr- nº1, do artigo 362º, do Código Civil) e que, no caso em análise, corresponde ao pagamento pela Autora ao sinistrado do montante indemnizatório sobre o qual incide o direito de reembolso que vem exercer nesta ação contra a Ré.
Ou seja, aquele artigo 498º, nº2, do Código Civil, estatui que o termo inicial do prazo de prescrição a que alude é o do cumprimento, inexistindo norma que estabeleça que, em caso de pagamentos fracionados, o prazo de prescrição se inicia na data do último pagamento.
Situam-se neste ponto as divergências esgrimidas nos autos.
A Recorrente sustenta que o prazo de prescrição de três anos deve contar-se a partir do dia 22 de janeiro de 2019, atenta a factualidade provada sob o ponto 26), nos termos do qual “De pensões, pela incapacidade parcial e permanente de 78,423% (com incapacidade permanente e absoluta para o trabalho habitual), a ora autora, a partir de 22 de janeiro de 2019, até janeiro de 2023, pagou ao sinistrado a quantia global de €23.725,11”. Por isso, invocando o disposto no artigo 307º, do Código Civil, considera que pelo menos a partir de 22 de janeiro de 2019 a Autora teve conhecimento do seu direito de reembolso contra a Recorrente.
Por seu lado, a Recorrida sustenta que o prazo de prescrição deve ser contado a partir do cumprimento da obrigação/pagamento das quantias devidas ao sinistrado ao abrigo do contrato de seguro celebrado com a sua empregadora. E como existe uma sucessão de vários pagamentos (de despesas médicas, medicamentosas ou de indemnizações e pensões) deve atender-se ao último dos pagamentos efetuados. No caso dos autos, uma vez que se provou que a Autora efetuou o último pagamento, de pensões, ao sinistrado em Janeiro de 2023, por via do contrato de seguro celebrado, sustenta que o termo inicial do prazo de prescrição de 3 anos previsto no nº1, do artigo 498º, do Código Civil, apenas se iniciou nessa data, em janeiro de 2023.
Já a sentença recorrida, a respeito desta questão, teceu as seguintes considerações:
“Não concordamos que o prazo se conte desde cada um dos pagamentos parcelares, que fazem parte da mesma prestação, reportada à indemnização devida ao lesado ao abrigo do contrato de seguro de acidentes de trabalho. Entendimento diverso conduziria inevitavelmente a uma multiplicação das ações de regresso, no caso de pagamentos parcelares prolongados por um significativo período de tempo.
Por outro lado, a tese de contagem do inicio da prescrição do direito de regresso quando tudo estiver pago ao lesado, poderia permitir um excessivo retardamento no exercício da ação de regresso pela seguradora e um desproporcionado alargamento do prazo da prescrição do direito de regresso.
Daí que concordemos com uma tese intermédia, seguida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-02-2017 (acessível em www.dgsi.pt) que defende que “(…) a ideia base da unidade da “obrigação de indemnizar” poderá ser temperada pela possível autonomização das indemnizações que correspondam ao ressarcimento de tipos de danos normativamente diferenciados, consoante esteja em causa, nomeadamente:
- A indemnização de danos patrimoniais e não patrimoniais, sendo estes ressarcidos fundamentalmente através de um juízo de equidade, e não da aplicação da referida teoria da diferença;
- A indemnização de danos que correspondam à lesão de bens ou direitos claramente diferenciados ou cindíveis de um ponto de vista normativo, desde logo os que correspondam à lesão da integridade física ou de bens da personalidade e os que decorram da lesão do direito de propriedade sobre coisas”.
Ora, a Ré não alegou que os pagamentos cujo direito de sub rogação a Autora pretende exercer correspondam a um núcleo indemnizatório, autónomo e diferenciado, que seja possível destrinçar em termos de natureza da indemnização e tipo de bens jurídicos lesados, pelo que tem de considerar-se que o prazo de prescrição previsto no artigo 498º, nº2, do Código Civil tem o seu termo inicial desde a data do último pagamento, que ocorreu em Junho de 2024 (data da ampliação do pedido) pelo que tendo a Ré sido citada em 31-03-2023 não pode concluir-se pela prescrição dos créditos cujo valor é peticionado.”
Para o conhecimento desta questão, importa desde logo salientar que a sentença recorrida e a Recorrente abordam realidades jurídicas distintas. A sentença refere-se ao cumprimento de cada parcela indemnizatória da indemnização global enquanto a Recorrente se refere a prestações periódicas da parcela indemnizatória relativa à pensão anual e vitalícia devida ao lesado, sustentando que tais prestações periódicas têm o regime específico previsto no artigo 307º, do Código Civil.
Quanto às parcelas indemnizatórias, entendemos, à semelhança do que cremos ser a jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal de Justiça[3] que o curso do prazo prescricional se inicia, em regra, com o último pagamento efetuado, pois apenas este corresponde ao cumprimento tal como a lei o configura no artigo 406.º, n.º 1, e 762.º, n.º 1, ambos do Código Civil.
Todavia, seguindo também aí a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça a que aderimos, devem excetuar-se os casos em que seja possível distinguir nos diversos pagamentos danos normativamente diferenciados, um núcleo indemnizatório, autónomo e bem diferenciado, cabendo ao Réu excipiente invocar, em sede de alegação da prescrição, que pagamentos constituíram tal núcleo distinto suscetível de justificar um curso autónomo do prazo de prescrição[4].
De igual modo, devem excetuar-se os casos em que a indemnização seja arbitrada em forma de renda. Também nestes caso entendemos que o termo inicial da prescrição tem de ocorrer antes do cumprimento global da obrigação de indemnizar, sob pena de, se assim não for, o direito de regresso ser praticamente imprescritível nos casos de renda vitalícia, caso se admitisse ser exercitável pela totalidade das rendas no momento em que cessasse a obrigação, a cargo da seguradora, de as pagar, havendo, por conseguinte, que fazer apelo ao disposto no artigo 307º, do Código Civil.
Ou seja, no caso da verba relativa às pensão anuais liquidadas pela Autora ao sinistrado entendemos que, de facto, terá de ter um tratamento diferenciado relativamente às demais verbas, considerando-se que o prazo de prescrição do direito de reembolso se inicia e corre autonomamente em relação a cada pagamento parcelar, sob pena de ser quase imprescritível o direito da seguradora.
Sucede que tal conclusão, no caso concreto, não conduz à procedência, mesmo que parcial, do recurso.
Isto porque, conforme decorre da factualidade provada, a Apelada foi ao processo 1126/15.1T8PVZ, que correu termos no 6.º Juízo Central da Póvoa de Varzim, exercer o seu direito de intervir para aí impetrar o reembolso de todas as despesas que suportara até então com a reparação a que estava obrigada pelo acidente simultaneamente de trabalho, tendo a D... (hoje A... Companhia de Seguros), sido condenada a reembolsar a B... pela quantia global de €169.529,61, sentença que esta responsável civil pelo acidente de viação já cumpriu, pagando à ora peticionante todas as quantias em que tinha sido condenada.
Mas mais, conforme resulta dos factos provados sob os pontos, 23) e 24), a Apelada, na qualidade de Interveniente, no dito processo 1126/15.1T8PVZ, também tinha demandado da D... o reembolso de todas as prestações que de futuro – posteriores a tal processo – com a assistência médica hospitalar, medicamentosa e pensões infortunísticas viesse a suportar por causa do acidente em apreço. Essa parte do pedido foi julgada improcedente naquela ação, que veio a transitar em julgado em data que, em concreto, não consta dos autos, mas seguramente posterior a 2 de junho de 2021, data do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no âmbito daquela ação e que faz parte integrante da certidão junta com a petição inicial.
Estipula o artigo 323º, nº1, do Código Civil que “A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente” e o artigo 327º, nº1, do mesmo diploma fundamental que “Se a interrupção resultar de citação, notificação ou acto equiparado, ou de compromisso arbitral, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo”.
Por isso, tendo presente o quadro fático descrito e subsumindo-o às normas transcritas concluímos que, no caso concreto, o prazo de prescrição do direito da Apelada ao reembolso das verbas relativas às pensões que reclama nestes autos interrompeu-se com a citação da Apelante para os termos da ação 1126/15.1T8PVZ, na qual a Apelada peticionou a condenação da ali Ré (aqui recorrente) a pagar todas as prestações vincendas que viessem a ser liquidadas em consequência do acidente, e o novo prazo de prescrição só começou de novo a correr a partir do trânsito em julgado da decisão que veio pôr termo àquele processo, trânsito esse que, como decorre dos considerandos que antecedem, seguramente não ocorreu antes de 2 de junho de 2021.
Tendo a Autora/Apelada intentado a presente ação em 28 de março de 2023 e a Ré/Apelante sido citada para a mesma em 31 de março de 2023 concluímos pela improcedência da invocada exceção perentória da prescrição, porquanto manifestamente entre aquela data de 2 de junho de 2021 e a data da citação da Ré não decorreram três anos.
Pelo exposto, impõe-se negar provimento ao presente recurso, com a consequente manutenção da sentença recorrida, ainda que, em parte, com fundamentação distinta.
Como a apelação foi julgada improcedente, mercê do princípio da causalidade, as custas serão da responsabilidade da Recorrente.