RECURSO DE CONTRAORDENAÇÃO
ACÇÃO ESPECIAL DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
SENTENÇA CÍVEL
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Sumário

1-Conforme estatui o art. 12º, nº2 do Código do Trabalho, constitui contra-ordenação muito grave imputável ao empregador a prestação de actividade, por forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado.
2-Para efeitos do citado preceito legal, basta que a conduta do arguido «possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado», mesmo que não tenha ainda causado.
3- A decisão transitada em julgado que reconheça a existência de um contrato de trabalho impõe-se ao empregador, por via da autoridade do caso julgado, no âmbito do processo contra-ordenacional.

Texto Integral

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa :
I-Relatório

A Inspecção Regional do Trabalho condenou XX, Lda. no pagamento de uma coima no valor de € 9384,00 (correspondente a 92 UC), com sanção acessória de publicidade, imputando-lhe a prática de factos que, no seu entendimento, configuram o cometimento de uma contra-ordenação prevista e punida pelo art. 12º, nº 2 e 4, do Código do Trabalho, conjugado com os arts. 554º, nº 4, alínea e) e 562º, nº 1, do mesmo Código.
Em síntese, os factos pelos quais “XX, Lda.” foi condenada referem-se à prestação de actividade no seu interesse, por parte de um profissional, de forma aparentemente autónoma, mas em condições características de contrato de trabalho, com prejuízo para tal trabalhador e / ou para o Estado.
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“XX, Lda.” impugnou judicialmente tal decisão, alegando, em síntese, que:
- À data da decisão contra-ordenacional, já havia sido proferida, no âmbito de processo judicial, sentença a declarar a existência de um contrato de trabalho entre a recorrente e o profissional aqui em causa, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2023;
- Razão pela qual não houve qualquer prejuízo para o trabalhador e / ou para o Estado, em face da existência de contrato de trabalho à data da acção inspectiva;
-De resto, atendendo ao valor que era pago pela recorrente a este profissional pelos serviços que o mesmo prestava, superior ao que fica fixado na esfera laboral por força do instrumento de regulamentação colectiva aqui aplicável, também por esta razão não se apura qualquer prejuízo para o trabalhador que possa levar a concluir pelo cometimento desta infracção contra-ordenacional;
- E isto tendo presente que a relação que era mantida entre a recorrente e este profissional configurava, não um contrato de trabalho, mas sim um contrato de prestação de serviços;
- Razões que fundamentam a presente impugnação, requerendo-se, assim, o arquivamento deste processo de contra-ordenação;
- Sendo outro o entendimento, sempre estão reunidas as condições para autorizar o pagamento faseado da coima aqui fixada, ao abrigo do art. 27º da Lei nº 107/2009, de 14 de Setembro, o que, subsidiariamente, também se requer.
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Considerando-se haver condições para proferir decisão final mediante despacho, e afigurando-se, como tal, desnecessária a realização de audiência de julgamento, deu-se cumprimento ao disposto no art. 39º, nº 2, da Lei nº 107/2009, de 14 de Setembro.
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Pelo Exmº Juiz a quo foi proferida decisão.
Foram considerados provados os seguintes factos:
1. No dia 23 de Fevereiro de 2023, os serviços da Inspecção Regional do Trabalho realizaram acção de fiscalização junto de um estabelecimento comercial sujeito a obras de remodelação, explorado por XX, Lda., localizado na Rua....
2. Nesta acção inspectiva, verificou-se que AA prestava, no interesse da recorrente, funções de reparação da laje de cobertura do edifício e pintura destas instalações.
3. Ainda nessa acção inspectiva, o inspector autuante, configurando a actividade prestada por AA nos termos definidos no número anterior como um ‘contrato de trabalho’ com aparência de ‘contrato de prestação de serviços’, procedeu à notificação de XX, Lda. para ‘regularizar’ esta ‘relação contratual’.
4. Em 10 de Março seguinte, os serviços inspectivos voltaram a notificar XX, Lda. nos termos descritos no número anterior.
5. E, em 24 de Março seguinte, os serviços inspectivos apresentaram, junto do Ministério Público, “participação-inadequação do vínculo que titula a prestação de uma actividade – artigo 15º-A, nº 3, da Lei nº 107/2009”.
6. Na sequência do descrito no número anterior, na acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho que correu, neste Juízo do Trabalho, sob o nº 779/23.1T8PDL, por sentença proferida em 9 de Junho de 2023 e transitada em julgado em 27 de Junho seguinte, declarou-se “a existência de um contrato de trabalho celebrado entre AA e XX, Lda., com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2023”.
7. Pelo menos até à data da prolação da sentença mencionada no número anterior, XX, Lda. não havia entregue a AA qualquer prestação relativa a subsídio de férias e subsídio de Natal.
8. E, pelo menos até à mesma data, não havia entregue à Segurança Social qualquer prestação relativa a taxas contributivas calculadas nos termos definidos em 6).
9. Nas circunstâncias descritas nos números anteriores, XX, Lda. omitiu a diligência a que estava obrigada e de que era capaz.
10. Tendo apresentado, no ano de 2022, um volume de negócios no valor de € 63.530828,00.
11. Não constam antecedentes contra-ordenacionais.
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Pelo Exmº Juiz a quo foi proferida a seguinte decisão:
« Atento o exposto, o Tribunal julga a presente impugnação judicial improcedente e decide, em consequência, condenar XX, Lda. pela autoria de uma contra-ordenação prevista e punida pelo art. 12º, nº 2 e 4, do Código do Trabalho, conjugado com os arts. 551º, nº 3, 554º, nº 4, alínea e), e 562º, nº 1, do mesmo Código, numa coima no valor de € 9384,00, com sanção acessória de publicidade.
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Mais decide o Tribunal indeferir o requerido pagamento faseado desta coima aqui fixada.
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Custas a cargo da impugnante.»
A arguida recorreu desta decisão e formulou as seguintes conclusões:
I. O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Juízo de Trabalho de Ponta Delgada de 04-09-2024 (Ref. 57769353) que julgou a impugnação judicial improcedente, decidindo em consequência condenar a Recorrente pela autoria de uma contra-ordenação laboral prevista e punida pelo artigo 12.º n.º 2 e 4, conjugado com os artigos 551.º n.º 3, 554, n.º 4 al. e) e 562 n.º 1, todos do Código de Trabalho, numa coima de valor de €9384,00, com sanção acessória de publicidade.
II. Ao contrário do alegado na douta sentença recorrida a verdade é que na data em que foi proferida decisão de contraordenação já existia um contrato de trabalho, entre a ora Recorrente e o senhor AA.
III. A 23-02-2023, no âmbito de uma visita inspetiva, o senhor AA
encontrava-se a desempenhar funções de reparação de laje de cobertura e de pintura do edifício, em obra de remodelação de um estabelecimento comercial pertencente à Arguida, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, no entanto a Recorrida entendeu que aquele senhor se encontrava a prestar serviços em condições características de contrato de trabalho, causando prejuízo àquele e ao Estado.
IV. Por sentença deste Tribunal no âmbito do processo n.º 779/23.1T8PDL, foi declarado a existência de um contrato de trabalho celebrado entre AA e a ora arguida XX, Lda. com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2023.
V. A sentença referida foi proferida a 09-06-2023, o que significa que aquando da aplicação da contraordenação e respetiva coima já existia um contrato de trabalho aplicado à data dos factos que motivaram a decisão que ora se impugna.
VI. Assim, não houve qualquer prejuízo para o trabalhador nem tão pouco para o Estado, face à existência do contrato de trabalho na data da ação inspetiva que serviu de fundamento ao auto de notícia e à respetiva decisão.
VII. À cautela e sem prescindir sempre se dirá que, ainda que não se considere o supra exposto, não estão preenchidos os pressupostos plasmados no n.º 2 do
artigo 12.º do CT para aplicação da respetiva contraordenação.
VIII. O senhor AA presta serviços de construção civil, os quais podem ser enquadrados na categoria de encarregado geral, nos termos Convenção Coletiva de Trabalho n.º 19/2023 de 5 de abril de 2023, para o setor da construção civil, pois é “o profissional que superintende na execução de um conjunto de obras da empresa”.
IX. Como tal, nos termos daquela convenção, que prevê a atualização da tabela salarial para aquela categoria profissional, um encarregado geral aufere a quantia mensal de €949,00 (novecentos e quarenta e nove euros).
X. Ora, como contrapartida do serviço prestados, a arguido pagou à data dos
factos ao sr. AA em média mensal o montante de €1.322,40 (mil trezentos e vinte e dois euros e quarenta cêntimos).
XI. Ora, se o sr. AA tivesse celebrado um contrato de trabalho com a arguida iria auferir anualmente (contabilizando 14 meses, correspondente aos subsídios de férias e de Natal) a quantia de €13.286,00 (treze mil duzentos e oitenta e seis euros).
XII. Ao invés dos €15.868,80 (quinze mil, oitocentos e sessenta e oito cêntimos) que, efetivamente, recebeu pela realização do serviço prestado correspondente a 12 meses.
XIII. Assim, não está preenchido o requisito do prejuízo ao trabalhador de que depende a aplicação da contraordenação, nos termos do n.º 2 do artigo 12.º do CT, assim, face à inexistência de prejuízo para o trabalhador não pode ser aplicada a contraordenação, a respetiva coima e a sanção acessória como aconteceu.
XIV. Ainda que não se considere, subsidiariamente sempre se dirá que entre a arguida e o senhor AA foi celebrado um contrato de prestação de serviços.
XV. Resulta do reconhecimento expresso por ambas as partes intervenientes da tipologia de relação contratual que os vincula no âmbito da liberdade contratual.
XVI. A relação contratual verificada entre a XX, Lda. e o Sr. AA, porquanto no âmbito do contrato de prestação de serviço existente entre ambas as partes aqui descritas a relação estabelecida entre as partes decorre de forma mais livre e autónoma, importando tão só o resultado do trabalho prestado intelectual ou manual.
XVII. À cautela e sem prescindir requer-se, respeitosamente a V. Exa. nos termos do artigo 27.º da Lei 107/2009 o pagamento a prestações da coima aplicada com todas as consequências legais.
Termos em que deverão Vossas Excelências considerar julgado procedente o presente recurso, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra que não condene a Recorrente pela autoria de uma contraordenação laboral, ou caso assim V. Exas. não entendam, deve ser considerado procedente o pagamento da coima a prestações nos termos do artigo 27.º da Lei 107/2009, com todas as consequências legais.
O Ministério Público respondeu e formulou as seguintes conclusões:
1. A recorrente dá uma versão dos factos que não se mostram consentâneos com a matéria probatória carreada para os autos, sendo que, em bom rigor, não colocou em causa quaisquer dos factos dados como assentes pelo Tribunal “a quo”.
2. Alicerça a sua posição em interpretações cirúrgicas “de tempo e de modo” que, apesar de não terem sustentação nos factos apurados, pretende com as mesmas alterar o que na realidade aconteceu.
3. Na verdade, não existia qualquer contrato de trabalho à data da verificação da contraordenação, momento que importa. Pelo que a atribuição de efeitos de contrato de trabalho, à posteriori, por reconhecimento judicial do mesmo, só comprova que à data da inspeção o mesmo não existia, momento relevante.
4. Apesar da intervenção da autoridade administrativa e, posteriormente, do Tribunal, ao proferir a sentença de reconhecimento do contrato como de trabalho, a ora recorrente manteve-se em incumprimento.
5. Decidiu a Arguida atuar após a aplicação da coima e da sanção acessória,
pelo que, mais uma vez, em retrospetiva, não se entende como a mesma defende que não houve qualquer prejuízo para o trabalhador e para a segurança social.
6. No que respeita ao pagamento faseado da coima em que foi condenada, face à situação económica da ora recorrente, descrita nos autos, inexiste fundamento que o justifique.
7. A decisão recorrida não merece qualquer reparo, quer quanto ao nível da prova carreada, e que sustentou a resolução final, quer quanto ao seu acerto com o direito, pelo que deverá a mesma ser mantida na íntegra.
A Exª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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II- Importa solucionar no âmbito do presente recurso se estão reunidos os pressupostos do ilícito contra-ordenacional em apreço.
Invoca a recorrente os seguintes fundamentos para sustentar a falta dos indicados pressupostos:
- As partes celebraram um contrato de prestação de serviços;
- À data em que foi proferida decisão de contraordenação já existia um contrato de trabalho;
- Inexistiu prejuízo para o trabalhador.
A título subsidiário, requereu ainda a recorrente o pagamento da coima em prestações.
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III- Apreciação
Estipula o art. 12º, nº2 do Código do Trabalho : «Constitui contra-ordenação muito grave imputável ao empregador a prestação de actividade, por forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado.»
No caso em apreço, já foi reconhecida, por sentença transitada em julgado, a existência de contrato de trabalho.
Com efeito, resultou provado sob 6 : Na sequência do descrito no número anterior, na acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho que correu, neste Juízo do Trabalho, sob o nº 779/23.1T8PDL, por sentença proferida em 9 de Junho de 2023 e transitada em julgado em 27 de Junho seguinte, declarou-se “a existência de um contrato de trabalho celebrado entre AA e XX, Lda., com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2023”.
Conforme refere o Acórdão da Relação do Porto de 18.05.2020 ( relatora Desembargadora Paula Leal de Carvalho- www.dgsi.pt : « (…) a decisão transitada em julgado que reconheça a existência de um contrato de trabalho, no que se reporta ao empregador, faz caso julgado material [art. 619º, nº 1, do CPC/2013], a qual, por via da autoridade desse caso julgado, se lhe impõe também no âmbito do processo contra-ordenacional que previamente havia sido instaurado pela ACT nos termos do art. 15º-A, nº 1, e que, de harmonia com o nº 4 do mesmo, ficou suspenso até ao trânsito em julgado de tal decisão.
Temos como indiscutível que o legislador da Lei 63/2013 assim o entendeu – no sentido do caso julgado material e da sua autoridade no âmbito do processo contra-ordenacional- o que decorre do disposto no art. 15º-A., nº 4, por aquela aditado. Com efeito, a suspensão do procedimento contra-ordenacional determinada nesse nº 4 apenas se compreende se a decisão que vier a ser proferida na acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho se impuser, com autoridade de caso julgado, no procedimento contra-ordenacional. De outro modo, essa suspensão seria totalmente irrelevante e incompreensível, não fazendo qualquer sentido. O legislador pensou e desenhou a articulação entre o procedimento contra-ordenacional e a acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho [ARECT], deferindo aos tribunais a competência para a apreciação e decisão da questão da existência, ou não, de um contrato de trabalho, questão essa que se apresenta como uma questão prévia e necessária ao prosseguimento da contra-ordenação. Uma vez definida essa questão, tal definição determinará a sorte do procedimento contra-ordenacional: arquivamento do mesmo, caso porventura na ARECT venha a ser decidido no sentido da inexistência de um contrato de trabalho; ou, caso na ARECT venha a ser decidido no sentido da existência de contrato de trabalho, prosseguimento do procedimento contra-ordenacional, com vista à apreciação das demais questões, que não a da existência do contrato de trabalho [que, como referido, já se mostra assente], próprias do procedimento contra-ordenacional, designadamente as relativas ao elemento subjectivo da contra-ordenação e determinação da medida da coima.»
Sufragamos este entendimento1.
Refere a recorrente que à data em que foi proferida decisão de contraordenação já existia um contrato de trabalho.
Sobre este aspecto diz a sentença recorrida :
« Alega a recorrente, por sua vez, que não se deu o cometimento desta contra-ordenação uma vez que, à data da decisão administrativa de condenação, por factos ocorridos em 23 de Fevereiro de 2023, já havia a tal declaração judicial de reconhecimento deste contrato de trabalho… com efeitos a partir de 1 de Janeiro do mesmo ano. E que, pelo mesmo motivo, não se verifica qualquer prejuízo para o trabalhador ou para o Estado, um dos pressupostos desta contra-ordenação. Mas também não lhe assiste razão nesta argumentação. Como se apurou, a visita inspectiva ocorreu no dia 23 de Fevereiro de 2023, por duas vezes notificou-se a recorrente para a regularização deste contrato (de trabalho) que a mesma mantinha com AA e, em Março seguinte, ao abrigo do art. 15º-A, nº 3, da Lei nº 107/2009, os serviços inspectivos enviaram participação ao Ministério Público, com vista a instauração da referida acção judicial de reconhecimento de contrato – acção que, de resto, levou à suspensão do procedimento contra-ordenacional (cfr. art. 15º-A, nº 4, do mesmo diploma). E foi só neste processo judicial, apenas e só no momento em que foi proferida a sentença, em Junho do mesmo ano, que se declarou a existência do contrato de trabalho, neste caso com efeitos a partir de, pelo menos, 1 de Janeiro do mesmo ano. Seguindo-se, depois, a restante tramitação do processo de contra-ordenação. O que significa que, à data de 23 de Fevereiro de 2023, o contrato que existia era de trabalho, sim, mas a aparência que lhe era dada pela recorrente era a de prestação de serviços, sendo esta, precisamente, a conduta que faz configurar a contra-ordenação aqui em causa. Afirmar, nestas condições, que afinal já existia um contrato de trabalho desde 1 de Janeiro de 2023 e que, por isso, a contra-ordenação não foi praticada não passa, mais uma vez com o devido respeito, de uma ficção, sem qualquer correspondência com a verdade material. »
Consideramos que a data que releva, para efeitos de integração do ilícito contra-ordenacional em apreço, é a data dos factos : 23.02.2023.
Na referida data, o trabalhador prestava a sua actividade sob a égide de um contrato de prestação de serviços, quando efectivamente vigorava um contrato de trabalho entre as partes.
O reconhecimento da relação laboral por sentença não obsta à continuação do processo contra-ordenacional que fora suspenso.
Vejamos, agora se inexistiu prejuízo para o trabalhador:
Quanto a este aspecto, refere a sentença recorrida : « Por outro lado, quanto ao alegado não preenchimento do requisito do prejuízo produzido na esfera do trabalhador ou do Estado, cumpre esclarecer o seguinte:
- à data da infracção, se este trabalhador prestava funções ao serviço da recorrente, em condições materiais de um contrato de trabalho, mas mediante a aparência – promovida pela empregadora – de um contrato de prestação de serviços, é seguro afirmar que, naquele momento, eram vários os direitos laborais, previstos na lei e em instrumento de regulamentação colectiva, a que o mesmo não tinha acesso (o não recebimento dos subsídios de férias e de Natal é apenas uma manifestação, entre outras, dessa realidade), sendo evidente o prejuízo sofrido com esta conduta da recorrente (conclusão que de forma alguma é abalada por uma suposta diferença entre o valor que a empregadora, em tais condições, entregava a este profissional e o valor a que fica eventualmente obrigada a pagar por força de contrato colectivo de trabalho aqui aplicável);
- nos mesmos moldes, com a tal aparência de um contrato de prestação de serviços, a recorrente também não havia entregue à Segurança Social qualquer prestação relativa às taxas contributivas fixadas por força da existência de um contrato de trabalho, em manifesto prejuízo para o Estado.»
Sobre a questão ora em apreço, temos ainda a referir que não é necessária a prova do efectivo prejuízo para o trabalhador ou para o Estado. Conforme decorre do nº 2 do art. 12º do CT, basta que «possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado».
Ou seja, para efeitos de preenchimento do ilícito em causa, é suficiente que a conduta da arguida possa causar prejuízo, mesmo que ainda não tenha causado ( neste sentido, João Soares Ribeiro in “Contra-Ordenações Laborais”, 3ª edição, pág. 118).
Assim e atentas as razões indicadas na sentença recorrida, consideramos que estão reunidos os elementos objectivos e subjectivos do ilícito contra-ordenacional previsto no nº2 do art. 12º do CT.
Por último, a recorrente peticionou o pagamento da coima em prestações.
O art. 27º da Lei nº 107/2009, de 14 de Setembro consagra a possibilidade de pagamento da coima em prestações nos seguintes termos:
«1-Excepcionalmente, quando o arguido o requeira e desde que a sua situação económica o justifique, pode a autoridade administrativa competente, após decisão condenatória, autorizar o pagamento da coima em prestações, não podendo a última delas ir além de um ano subsequente ao carácter definitivo da decisão.
(…)
3- Para efeitos de apreciação do pedido do pagamento da coima em prestações, o arguido tem de fazer prova da impossibilidade de pagamento imediato da coima»
Ora, dos factos provados não resultam elementos referentes à situação económica da recorrente que nos permitam concluir pela impossibilidade de pagamento imediato da coima.
Não estão, por isso, reunidos os requisitos que permitem, excepcionalmente, deferir o pagamento da coima em prestações.
Improcede, desta forma, o recurso da arguida.
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IV- Decisão
Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela arguida, fixando-se no mínimo a taxa de justiça ( 3 UC ).

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2025
Francisca Mendes
Paula de Jesus Jorge dos Santos
Maria José Costa Pinto, vencida conforme declaração de voto

Declaração de voto
Com muito respeito pela solução adiantada no Acórdão (e no douto Acórdão da Relação do Porto que nele é invocado), bem como reconhecendo que não é de fácil compreensão a solução legal da suspensão do processo de contra-ordenação prevista no artigo 15.º-A, n.º 4, da Lei n.º 107/2009, de 14/09, entendo que à sentença proferida na acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não pode conferir-se a força de caso julgado material no processo de contra-ordenação, não se dispensando o apuramento, neste último, dos factos consubstanciadores dos elementos constitutivos da infracção a partir da prova que nele for produzida.
É em face dos factos que assim se considerem provados que no processo de contra-ordenação se poderá chegar – ou não – à conclusão de que se verifica uma “prestação de actividade, por forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado”, tal como se mostra tipificado no n.º 2 do artigo 12.º do Código do Trabalho.
Com efeito, sendo certo que os factos constitutivos desta infracção são, também, os factos necessários à qualificação jurídico-laboral da relação contratual a operar na acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, não pode perder-se de vista que nesta acção cível valem na sua plenitude as regras do ónus da prova que resultam do estabelecimento da presunção de laboralidade consagrada no artigo 12.º, n.º 1, do Código do Trabalho, o que implica o funcionamento da presunção da existência de contrato de trabalho desde que se verifiquem pelo menos duas das características elencadas nas diversas alíneas daquele n.º 1, cabendo ao réu o ónus de ilidir essa presunção através da prova do contrário do que se presume nos termos do artigo 350.º, n.º 2 do Código Civil.
Ora, não se afigura possível que no processo de contra-ordenação se alcance a prova dos factos constitutivos da infracção através de um tal caminho.
O direito de mera ordenação social, embora de diferente natureza e tutelando, em geral, interesses de menor gravidade do que os salvaguardados no direito penal, tem natureza sancionatória. Por isso a Constituição da República Portuguesa estende a este tipo de processos as garantias que consagra para o processo criminal (artigo 32.°, n.º 10) e a lei ordinária determina que são subsidiariamente aplicáveis ao respectivo processo de contra-ordenação os preceitos reguladores do processo criminal (artigo 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.° 433/82 de 27 Outubro).
De tais princípios constitucionais reguladores do processo criminal, mormente do princípio da presunção de inocência (que, no campo da prova, se projecta no princípio in dubio pro reo, a impor uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de dúvida sobre factos relevantes: não pode decidir contra o arguido) e do acusatório, decorre que é à acusação (à autoridade administrativa, na fase administrativa, e ao Ministério Público, na fase judicial), que compete imputar ao arguido os factos pertinentes à verificação do ilícito contra-ordenacional (acusar) e fazer a prova dos mesmos. Não é compatível com tais princípios defender que, com fundamento numa presunção legal de natureza cível e na inversão do ónus da prova decorrente do artigo 350º, nº 1, do Cód. Civil – de acordo com o qual “quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz”, compete afinal ao arguido a prova de que não cometeu os factos, mormente a prova de que não cometeu os factos que integram o tipo do ilícito contraordenacional de que é acusado.
Entendemos, pois, que a presunção de laboralidade a que se reporta o artigo 12.º, n.º 1, do CT/2009 não tem aplicação em matéria de responsabilidade contra-ordenacional2, não se coadunando com os princípios reguladores do processo criminal considerar verificados os elementos constitutivos da contra-ordenação, e punir o arguido, com base na utilização de presunções de natureza civil, ou conferindo o valor de caso julgado material a uma sentença cível que reconheceu a existência de um contrato de trabalho fazendo operar a referida presunção.
É perante o juiz do processo sancionatório – que, por força do princípio da investigação, “tem o poder dever de investigar o facto sujeito a julgamento, independentemente dos contributos da acusação e da defesa, construindo autonomamente as bases da sua decisão” e valorando de forma favorável ao arguido “a dúvida que fique aquém da razoável”3 – que deve fazer-se a prova dos factos que consubstanciam a prática da contra-ordenação através dos meios de prova admissíveis (artigo 125.º do CPP).
E, assim sendo, à sentença proferida na acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho apenas pode conferir-se no processo de contra-ordenação o valor reconhecido à prova documental autêntica no artigo 169.º do Código de Processo Penal, não se dispensando a tarefa da entidade administrativa e do tribunal, em caso de impugnação judicial da decisão administrativa, de apuramento dos factos consubstanciadores dos elementos constitutivos da infracção a partir da prova que perante eles for produzida – e na qual se inclui a sentença proferida na acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho –no sentido de aferir, em face dos factos que assim considere provados, mesmo dos que se integrem eventualmente na hipótese do n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho (mas quanto a estes sem lhes atribuir a força presuntiva que tal preceito lhes confere), se no caso pode chegar à conclusão de que o arguido incorreu na infracção tipificada no n.º 2 do artigo 12.º do Código do Trabalho4.
Se com a suspensão do procedimento contra-ordenacional prevista no artigo 15.º-A, n.º 4 da Lei n.º 107/2009, o legislador pretendia que deixassem de nele ser averiguados os factos necessários à caracterização do vínculo estabelecido entre o arguido e o “trabalhador”, não terá atentado nos princípios constitucionais da presunção da inocência e do acusatório plasmados no artigo 32.º da Lei Fundamental, pelo que, salvo o devido respeito, se mostra vedada a aplicação da referida norma com um tal sentido (cfr. o artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa).
Mas o legislador não o disse, não referenciando a autoridade do caso julgado que o Acórdão afirma.
Acrescente-se que a suspensão determinada no artigo 15.º-A, n.º 4, do RGCOL, não perde de todo sentido útil quando se considera – como se me afigura dever considerar-se – que a sentença cível não se impõe com autoridade de caso julgado no processo contra-ordenacional, pois que pode a mesma justificar-se, vg. para permitir ao Ministério Público não prosseguir com o processo de contra-ordenação caso o contrato de trabalho não seja reconhecido na acção cível, ou, em caso inverso, prosseguir com o mesmo oferecendo também a sentença como meio de prova nos termos supra assinalados.
Ou seja, e em suma, a qualificação da relação jurídica existente entre o prestador de trabalho e o arguido terá que ser feita em função da prova produzida no processo de contra-ordenação e perante os factos concretos que aí se considerem provados, nele não podendo o julgador, quer lançar mão da presunção de natureza civil prevista no artigo 12.º do Código do Trabalho para julgar verificados os elementos constitutivos da infracção, quer invocar a força de caso julgado material de uma sentença cível que reconheceu a existência de um contrato de trabalho com fundamento em tal presunção, deixando de averiguar e provar os factos susceptíveis de caracterizar o vínculo contratual.
Razão por que, não subscrevendo o primeiro fundamento do Acórdão, e não contendo este os factos concretos necessários ao preenchimento da infracção que vem imputada à arguida, não acompanho a sua decisão final.
Maria José Costa Pinto
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1. O art. 7º, nº2 do CPP também prevê a possibilidade de suspensão do processo penal em situação similar.
2. Neste sentido, vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 15 de Dezembro de 2016, processo n.º 20134/15.6T8LSB.L1-4, e o Acórdão da Relação do Porto de 8 de Abril de 2013, processo n.º 40/12.7TTOAZ.P1, ambos in www.dgsi.pt.
3. Vide Maria João Antunes, in Direito Processual Penal, Coimbra, 2016, pp.171-172, a propósito do processo criminal.
4. Neste sentido parece também orientar-se Jorge Gama, no seu estudo “A acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho: Análise Crítica da Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto. Um guia para a acção. Propostas de solução”, in Revista do Ministério Público, n.º 140 : Outubro-Dezembro 2014, p. 58, afirmando que a sentença proferida na acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não faz caso julgado no processo de contra-ordenação e colocando o enfoque no facto de o Ministério Público se encontrar com vestes distintas: na acção revestido de uma competência própria originária (artigo 219.º, n.º1 da CRP e 1.º da LOMP) e no processo de contra-ordenação como titular da acção penal.