EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
CONTRATO SINALAGMÁTICO
QUESTÕES NOVAS INVOCADAS EM FASE DE RECURSO
Sumário

1. Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas e visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento.
2. Isto significa que, em regra, o tribunal não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados.
3. Baseando-se esta asserção no princípio do cumprimento simultâneo das obrigações sinalagmáticas e na manutenção do equilíbrio patrimonial característico dos contratos bilaterais, a excepção de não cumprimento tem como efeito principal a dilação do tempo de cumprimento da obrigação de uma das partes até ao momento do cumprimento da obrigação da outra parte.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 11010/24.2YIPRT.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Competência Genérica do Entroncamento – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente injunção proposta por “(…) – Comércio e Manutenção de (…) de (…), SA” contra “(…), Unipessoal, Lda.”, a sociedade Ré veio interpor recurso da sentença proferida.
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A requerente alega que, no exercício da sua actividade comercial, a pedido da requerida, vendeu e prestou diversos serviços a esta e que, apesar do envio das facturas, o valor em causa não foi pago.
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A requerida deduziu oposição, dizendo, em suma, que a maquinaria adquirida apresentava defeitos e que as intervenções técnicas realizadas foram efectuadas no período de garantia.
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Foi exercido o contraditório relativamente à matéria da oposição.
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Os autos foram remetidos à distribuição e transmutou-se o procedimento de injunção em acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, nos termos do n.º 1 do artigo 16.º do regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro.
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Realizada a audiência final, a sentença recorrida decidiu condenar a requerida “(…), Unipessoal, Lda.” no pagamento à requerente “(…) – Comércio e Manutenção de (…) de (…), SA” da quantia de € 6.957,92 [seis mil e novecentos e cinquenta e sete euros e noventa e dois cêntimos], acrescida de juros de mora à taxa legal comercial calculados desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento; absolvendo-a do demais peticionado.
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A sociedade recorrente não se conformou com a referida decisão e apresentou alegações que continham as seguintes conclusões, aliás extensas e prolixas[1] [2] [3] [4] [5]:
«I. A prova carreada para o processo e o depoimento das testemunhas impunham uma decisão diversa da sentença aqui recorrida .
II. Decidindo deste modo, salvo o muito e devido respeito, o Tribunal recorrido fez uma incorreta interpretação dos factos e por via disso, uma incorreta aplicação do Direito, e simultaneamente fez uma incorre ta interpretação e aplicação das normas que constituem fundamento jurídico da decisão (artigo 639.º, n.º 2, do CPC).
III. Relativamente à persistência das avarias (factos não provados C, E, H, I), a prova testemunhal, nomeadamente os depoimentos das testemunhas (…) e (…), revela de forma clara e irrefutável a continuidade dos defeitos nas máquinas, mesmo após intervenções técnicas realizadas pela Recorrida.
IV. A testemunha (…), com clareza e consistência, afirmou que as máquinas continuaram a apresentar problemas recorrentes, nomeadamente relacionados com o sistema (…), bem como outros defeitos técnicos.
V. Questionado sobre o estado das máquinas após as reparações, (…) confirmou que os defeitos persistiram e se manifestaram de forma repetida.
VI. A mesma testemunha afirmou ainda que, em diversas ocasiões, as máquinas deixaram de funcionar totalmente, impossibilitando a sua utilização.
VII. Em vez de proceder a uma reparação definitiva ou à substituição dos equipamentos defeituosos, as máquinas foram sujeitas a várias intervenções técnicas que, no entanto, não resolveram os defeitos de forma permanente.
VIII. A conjugação dos depoimentos prestados pelas testemunhas revela que as intervenções realizadas pela Recorrida não foram suficientes para corrigir definitivamente os defeitos, e que os problemas técnicos nomeadamente as falhas no sistema (…), persistiram, comprometendo o desempenho das máquinas.
IX. A testemunha (…) também especificou que, apesar das várias intervenções, as máquinas continuaram a ser usadas sem que os problemas tivessem sido resolvidos de forma definitiva.
X. A sentença do Tribunal concluiu não haver prova suficiente para afirmar que “as máquinas não estavam a cumprir adequadamente as suas funções". Contudo, os depoimentos das testemunhas (…) e (…) indicam que os problemas continuavam após cada intervenção, com falhas e avarias recorrentes, demonstrando que as máquinas não cumpriam as suas funções de forma eficaz.
XI. À luz dos depoimentos supramencionados, seria imperativo que o Tribunal tivesse considerado como provado que as avarias das máquinas eram contínuas e persistentes, que as intervenções da Recorrida não foram eficazes, e que a Recorrida não cumpriu a sua obrigação de garantir a reparação ou substituição dos equipamentos defeituosos de forma adequada.
XII. A contradição torna-se ainda mais evidente face aos e-mails enviados pela Recorrente, os quais, além de documentarem os problemas persistentes, demonstram a insatisfação quanto à eficácia da prestação.
XIII. A prestação realizada pela Recorrida não correspondeu ao fim a que estava adstrita, ou seja, a reparação eficaz e definitiva dos equipamentos foram sujeitas a várias intervenções técnicas que, no entanto, não resolveram os defeitos de forma permanente.
VIII. A conjugação dos depoimentos prestados pelas testemunhas revela que as intervenções realizadas pela Recorrida não foram suficientes para corrigir definitivamente os defeitos, e que os problemas técnicos nomeadamente as falhas no sistema (…), persistiram, comprometendo o desempenho das máquinas.
IX. A testemunha (…) também especificou que, apesar das várias intervenções, as máquinas continuaram a ser usadas sem que os problemas tivessem sido resolvidos de forma definitiva.
X. A sentença do Tribunal concluiu não haver prova suficiente para afirmar que “as máquinas não estavam a cumprir adequadamente as suas funções”. Contudo, os depoimentos das testemunhas (…) e (…) indicam que os problemas continuavam após cada intervenção, com falhas e avarias recorrentes, demonstrando que as máquinas não cumpriam as suas funções de forma eficaz.
XI. À luz dos depoimentos supramencionados, seria imperativo que o Tribunal tivesse considerado como provado que as avarias das máquinas eram contínuas e persistentes, que as intervenções da Recorrida não foram eficazes, e que a Recorrida não cumpriu a sua obrigação de garantir a reparação ou substituição dos equipamentos defeituosos de forma adequada.
XII. A contradição torna-se ainda mais evidente face aos e-mails enviados pela Recorrente, os quais, além de documentarem os problemas persistentes, demonstram a insatisfação quanto à eficácia da prestação.
XIII. A prestação realizada pela Recorrida não correspondeu ao fim a que estava adstrita, ou seja, a reparação eficaz e definitiva dos equipamentos.
XIV. A Recorrida não cumpriu devidamente a sua obrigação, tendo realizado uma prestação defeituosa que não resolveu os problemas mecânicos dos equipamentos.
XV. A prestação defeituosa por parte da Recorrida, ao não atingir o objetivo contratual de reparação eficaz, confere à Recorrente o direito de exigir nova intervenção sem custos, redução proporcional do preço ou, em última instância, a resolução do contrato, conforme o artigo 801.º do Código Civil.
XVI. O tribunal a quo, ao desconsiderar esses elementos, incorreu em erro na apreciação dos factos e na aplicação do direito.
XVII. Relativamente à ausência de orçamento prévio e à falta de informação sobre os custos (factos não provados K e L) as testemunhas (…) e (…) evidenciaram de forma inequívoca que a Recorrida não forneceu uma estimativa de custos antes de proceder às intervenções.
XVIII. Ambas as testemunhas afirmaram que as intervenções foram realizadas sem qualquer comunicação prévia sobre o fim do período de garantia e sem que a Requerida / Recorrente tivesse sido informada sobre os custos que seriam cobrados.
XIX. Especificamente, a testemunha (…) confirmou que a empresa (…), ora Recorrente, não foi notificada, antes das intervenções, sobre o término da garantia ou os custos associados às reparações; acrescentou ainda que a empresa (…) apenas recebeu as faturas após a realização das intervenções, sem qualquer aviso prévio sobre os valores cobrados.
XX. As declarações de (…), (…) e (…) demonstram de forma clara que a Recorrida não comunicou à Requerida/ Recorrente o término da garantia, nem os custos das intervenções antes da sua execução.
XXI. As intervenções foram realizadas na expectativa de que estivessem cobertas pela garantia, com as faturas emitidas posteriormente, sem qualquer aviso prévio.
XXII. Se a recorrente tivesse recebido um orçamento prévio à intervenção da recorrida não podia ficar convencida de que os equipamentos ainda se encontravam no período da garantia.
XXIII. A decisão do tribunal a quo, ao legitimar esta prática, permite, na prática, que qualquer prestador de serviços realize intervenções sem prévia aprovação do cliente e posteriormente cobre valores desproporcionais, independentemente da eficácia do serviço prestado.
XXXIV. Resulta dos factos dados como provados na sentença que a Recorrente, ao solicitar a intervenção técnica em agiu na convicção de que os equipamentos em causa se encontravam ainda abrangidos pelo prazo de garantia.
XXV. Tal crença incorreta constitui um erro essencial, pois incidiu sobre um elemento fulcral que condiciona a assunção de obrigações contratuais, a saber, o suporte ou não dos encargos decorrentes da reparação por parte da entidade prestadora dos serviços, aqui Recorrida.
XXVI. Com efeito, é evidente que, caso a Recorrente tivesse tido conhecimento de que os equipamentos estavam fora do prazo de garantia, não teria, em circunstância alguma, solicitado a intervenção nos mesmos termos.
XXVII. Ao omitir a comunicação sobre o término do prazo de garantia, a Recorrida perpetuou o erro em que a Recorrente laborava, privando-a da possibilidade de decidir com pleno conhecimento de causa se pretendia ou não aceitar os serviços de reparação nos termos em que estes foram prestados.
XXVIII. O facto de a Recorrente ter agido na convicção de que os equipamentos estavam ainda abrangidos pela garantia e de a Recorrida ter omitido essa informação constitui fundamento suficiente para que reconheça a inexigibilidade do pagamento das reparações realizadas.
XXIX. Conclui-se, assim, que o comportamento da Recorrida, ao intervir nos equipamentos sem informar previamente a Recorrente sobre a caducidade da garantia, contribuiu de forma direta e decisiva para o vício na formação da vontade desta última.
XXX. Este vício, essencial, compromete a validade e a eficácia do negócio jurídico celebrado, impondo o reconhecimento da anulabilidade ou da inexigibilidade das obrigações que dele decorram.
XXXI. Se o Tribunal considerou provado que houve várias intervenções técnicas, deveria ter levado em conta as razões que justificaram essas deslocações e intervenções repetidas.
XXXII. A afirmação de que as máquinas foram assistidas, mas sem reconhecer a continuidade das avarias, é contraditória, pois a necessidade de intervenções sucessivas indica que os problemas não foram resolvidos de forma definitiva.
XXX. O Tribunal a quo parece inferir que a falta de contestação imediata da Requerida implica uma aceitação tácita dos serviços prestados, mas ignora que a Requerida poderia legitimamente ter presumido que as intervenções visavam resolver definitivamente os problemas, sob a expectativa de cobertura da garantia.
XXXIV. A sentença, ao não reconhecer a ineficácia das intervenções (facto não provado) desconsidera que a Requerida apenas aceitou as intervenções esperando uma solução duradoura, o que configura uma contradição lógica na decisão final.
XXXV. Em qualquer relação de prestação de serviços, especialmente em serviços técnicos especializados, apresentação de um orçamento prévio ou de uma estimativa de custos é uma prática obrigatória, básica de transparência que visa assegurar que o cliente tenha plena consciência do encargo financeiro que assume.
XXXVI. A ausência de comunicação prévia sobre os custos deveria, no mínimo, conduzir à redução proporcional da quantia devida, dado que a falta de orçamento limita a aceitação informada do serviço por parte da Requerida.
XXXVII. O Tribunal a quo reconheceu que a falta de um ajuste de preço prévio é uma falha significativa por parte da Recorrida, pois priva a Requerida da oportunidade de avaliar os custos antes da execução dos serviços; contudo, a decisão conclui que essa falha, apesar de reconhecida, não afeta a validade da prestação dos serviços, como se a omissão de transparência não tivesse consequências diretas sobre a cobrança da quantia faturada.
XXXVIII. Esta conclusão é incoerente, uma vez que a própria sentença reconhece a falta de transparência por parte da Recorrida e, ao mesmo tempo, condena a Requer Ida a pagar o montante integral sem considerar as implicações dessa falha.
XXXIX. A Requerida comunicou reiteradamente as falhas nos serviços prestados e questionou, os custos envolvidos. Contudo, não existem quaisquer e-mails ou outros documentos que comprovem que tenha sido enviado à Requerida um orçamento prévio das intervenções, nem que tal orçamento tenha sido aceite ou acordado de forma explícita.
XL. A condenação integral da Requerida não atende ao princípio da equidade, consagrado no artigo 4.º do Código Civil Português , nem respeita os princípios gerais de proporcionalidade que deveriam orientar o Tribunal.
XLI. A sentença impugnada menciona, de forma aparentemente condescendente, uma alegada "ingenuidade" da Requerida, sugerindo que esta deveria ter previamente questionado os custos das intervenções realizadas; contudo, ao ter aceite as expectativas legítimas da Requerida quanto à cobertura da garantia e à ausência de custos adicionais, contraditório concluir que tal "ingenuidade" deve obstar ao direito de contestação, especialmente após a faturação dos serviços prestados.
XLII. A própria alegação de que a prestação do serviço “foi incompleta” em uma das últimas intervenções reforça a ineficácia dos serviços prestados, o que, aliado à ausência de um orçamento prévio, compromete a validade da cobrança integral dos custos.
XLIII. Considerando a recorrência das avarias, a persistência dos defeitos, a falta de uma solução definitiva para os problemas identificados a comunicação reiterada das avarias, as várias reclamações apresentadas e a ausência de comunicação sobre os custos envolvidos, é evidente que as intervenções técnicas realizadas pela Requerente não solucionaram adequadamente os problemas das máquinas gerando danos e prejuízos contínuos à Requerida.
XLIV. À luz do exposto, deve a sentença ser reformulada, considerando-se provado que: as avarias eram recorrentes e inviabilizavam o funcionamento normal das máquinas; as intervenções realizadas não sanaram definitivamente os defeitos; a Requerente tinha pleno conhecimento da falha na resolução das avarias e, ainda assim, omitiu o fornecimento do orçamento prévio, atuando em desacordo com as práticas comerciais de boa-fé e transparência.
XLV. Pelo que deve ser revogada a Sentença Recorrida, absolvendo a Requerida / Recorrente de qualquer pagamento, tendo em consideração a ausência de aceitação clara e informada por parte desta, bem como a persistência de defeitos que Impossibilitam a utilização adequada dos equipamentos; caso assim não se entenda, deve considerar-se a aplicação de uma redução calculada de forma equitativa, do montante peticionado pela Requerida / Recorrente.
Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, revogando-se, por conseguinte, a sentença recorrida e absolvendo-se a Requerida / Recorrente de qualquer pagamento, considerando a inexistência de aceitação clara e informada por parte desta, o que configura um vício na formação da vontade, nos termos do artigo 251.º e seguintes do Código Civil, bem como persistência de defeitos que inviabilizam adequada utilização dos equipamentos, traduzindo num cumprimento defeituoso da prestação, nos termos do artigo 799.º e seguintes do Código Civil.
Subsidiariamente, caso assim não se entenda, deve a decisão recorrida ser substituída por outra que determine a redução equitativa do montante peticionado pela Requerente / Recorrida.
Assim se fazendo a costumada Justiça!»
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Houve lugar a resposta da parte contrária, que propugna pela manutenção da decisão recorrida. * Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:
i) Erro na avaliação da matéria de facto.
ii) Erro de julgamento na subsunção jurídica realizada, tendo em consideração os factos apurados, quanto à questão da excepção de não cumprimento.
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III – Dos factos apurados:
3.1 – Matéria de facto provada:
Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. A Requerente dedica-se habitual e lucrativamente à compra e venda de máquinas industriais, peças para as mesmas, sua assistência, manutenção, reparação e aluguer.
2. A Requerida adquiriu à Requerente, em Dezembro de 2020, dois equipamentos, mais concretamente, retroescavadoras da marca MST, com as matrículas (…) e (…), com uma garantia de 24 meses ou 2.000 horas de trabalho, consoante o que ocorresse primeiro.
3. Passado alguns meses após a aquisição, as máquinas começaram a apresentar problemas.
4. Durante o período abrangido pela garantia ambos os equipamentos foram intervencionados várias vezes.
5. Em Março de 2021, foi solicitada assistência técnica a ambas as viaturas.
6. Em Maio de 2021, a Requerida solicitou novamente assistência, uma vez que a máquina com matrícula (…), de acordo com comunicação eletrónica datada de 3 de Maio de 2023, remetida do endereço (…)volt.pt para (…).pt, com o assunto «problema retroescavadora MST (…)» na qual consta, além do mais, que «segundo os meus colegas em obra a máquina deve aquecer e deixam de entrar as mudanças e a luz de bloqueio acende, se pararem a máquina uns 15 min ela volta a trabalhar até bloquear novamente».
7. A Requerente, a pedido da Requerida, vendeu-lhe e enviou-lhe vários filtros e uma correia de ventoinha, para uma máquina industrial, marca MST, modelo (…), com o número de série M (…).
8. A Requerente emitiu e enviou para a Requerida as respectivas faturas referentes às peças vendidas e aos portes de envio, mais concretamente:
a) a factura n.º (…)/381, datada de 18 de Maio de 2023 com vencimento em 17 de Junho de 2023, no valor de € 510,63, cujo teor, constante de anexo ao requerimento de 8 de Abril de 2024, se dá aqui por integralmente reproduzido.
b) a factura n.º (…)/543, datada de 11 de Julho de 2023, com vencimento em 10 de Agosto de 2023, no valor de € 188,71, cujo teor, constante de anexo ao requerimento de 8 de Abril de 2024, se dá aqui por integralmente reproduzido.
9. A Requerida, porém, solicitou a devolução da correia de ventoinha, o que a Requerente aceitou, tendo-lhe creditado o respetivo valor, através da nota de crédito n.º NC4 (…), no valor de € 179,48, correspondente ao valor da peça, reportando-se a diferença a portes de envio.
10. A Requerida também solicitou à Requerente para proceder à reparação da máquinas industrial marca (…), modelo (…), n.º de série M (…) e da retroescavadoras Marca MST, modelo (…) com o n.º de série M (…).
11. Em 28 de Julho de 2023, um mecânico e um ajudante de oficina da Requerente deslocaram-se ao local onde se encontravam as máquinas e procederam às respetivas reparações, tendo um colaborador da Requerida assinado as fichas de trabalhos efetuados com os n.ºs (…) e (…).
12. Em 31 de Julho de 2023 a Requerente emitiu a factura n.º (…)/472, no valor de € 2.650,80, com vencimento em 30 de Agosto de 2023, onde constam todas as peças e materiais aplicados e respectivos valores, custo da mão de obra dos mecânicos e deslocação, respeitantes à reparação da máquina M (…), cujo teor, constante de anexo ao requerimento de 8 de Abril de 2024, se dá aqui por integralmente reproduzido.
13. Em 29 de Agosto de 2023, a Requerente emitiu a factura n.º (…)/528, com vencimento em 28 de Setembro de 2023, de € 3.787,27, onde constam todas as peças e materiais aplicados e respectivos valores, custo da mão-de-obra dos mecânicos, respeitantes à reparação da máquina M (…), cujo teor, constante de anexo ao requerimento de 8 de Abril de 2024, se dá aqui por integralmente reproduzido.
14. Por comunicação eletrónica datada de 20 de Julho de 2023, remetida do endereço (…)@cmvolt.pt para «Oficina … », com o assunto «retroescavadora MST (…)» consta, além do mais, o seguinte «Venho por este meio informar que o nosso equipamento MST descrito no assunto do e-mail se mantém com o mesmo problema apresentado quando solicitamos o apoio da vossa assistência. A máquina foi intervencionada pelo vosso mecânico mas continuam a aparecer os mesmos códigos de erro no painel, assim como após alguns minutos de funcionamento se desliga sozinha e fica parada».
15. Por comunicação eletrónica datada de 2 de Agosto de 2023, remetida do endereço (…)@cmvolt.pt para (…)@espaco
mecanico.pt com o assunto «MST (…)» consta, além do mais, o seguinte «informo que a nossa retroescavadora MST com o n.º de série M (…) manifestou hoje os mesmos problemas mecânicos que tinha antes da intervenção feita pela vossa equipa no dia 28/07. Estão a aparecer os mesmos erros no painel e a máquina após alguns minutos de funcionamento fica bloqueada».
16. Por comunicação eletrónica datada de 11 de Agosto de 2023, remetida do endereço (…)@cmvolt.pt para (…)@espaco.pt com o assunto «MST – (…), Unipessoal, Lda.» consta, além do mais, o seguinte «Relativamente ao ocorrido, não achamos correcto suportar na integra o custo apresentado. É certo que ambos os equipamentos se encontram já fora do período de garantia, algo que devíamos ter detetado também. Contudo, quando apresentamos o pedido de assistência da vossa parte, podiam também ter indicado que já não seria coberto pela garantia, bem como apresentar-nos um orçamento prévio ao serviço que vieram efectuar (para termos uma hipótese de analisar e perceber se realmente queríamos o serviço efectuado pela vossa entidade ou não). É de salientar também que tanto numa máquina como outra, os problemas apresentados são persistentes e recorrentes do período em que as mesmas ainda estavam em garantia. Daí o 13. Em 29 de Agosto de 2023, a Requerente emitiu a factura n.º (…)/528, com vencimento em 28 de Setembro de 2023, de € 3.787,27, onde constam todas as peças e materiais aplicados e respetivos valores, custo da mão de obra dos mecânicos, respeitantes à reparação da máquina (…), cujo teor, constante de anexo ao requerimento de 8 de Abril de 2024, se dá aqui por integralmente reproduzido.
14. Por comunicação eletrónica datada de 20 de Julho de 2023, remetida do endereço (…)@cmvolt.pt para «Oficina (…)», com o assunto «retroescavadora MST (…)» consta, além do mais, o seguinte «Venho por este meio informar que o nosso equipamento MST descrito no assunto do e-mail se mantém com o mesmo problema apresentado quando solicitamos o apoio da vossa assistência. A máquina foi intervencionada pelo vosso mecânico mas continuam a aparecer os mesmos códigos de erro no painel, assim como após alguns minutos de funcionamento se desliga sozinha e fica parada».
15. Por comunicação eletrónica datada de 2 de Agosto de 2023, remetida do endereço (…)@cmvolt.pt para (…)@ mecanico.pt com o assunto «MST (M6…)» consta, além do mais, o seguinte «informo que a nossa retroescavadora MST com o n.º de série M6… manifestou hoje os mesmos problemas mecânicos que tinha antes da intervenção feita pela vossa equipa no dia 28/07. Estão a aparecer os mesmos erros no painel e a máquina após alguns minutos de funcionamento fica bloqueada».
16. Por comunicação eletrónica datada de 11 de Agosto de 2023, remetida do endereço (…)@cmvolt.pt para (…)@...mecanico.pt com o assunto «MST – (…), Unipessoal, Lda.» consta, além do mais, o seguinte «Relativamente ao ocorrido, não achamos correcto suportar na integra o custo apresentado. É certo que ambos os equipamentos se encontram já fora do período de garantia, algo que devíamos ter detetado também. Contudo quando apresentamos o pedido de assistência da vossa parte, podiam também ter indicado que já não seria coberto pela garantia, bem como apresentar-nos um orçamento prévio ao serviço que vieram efectuar (para termos uma hipótese de analisar e perceber se realmente queríamos o serviço efectuado pela vossa entidade ou não). É de salientar também que tanto numa máquina como outra, os problemas apresentados são persistentes e recorrentes do período em que as mesmas ainda estavam em garantia. Daí o deslocação, sendo que este serviço acaba por se repetir (visto que precisam de se deslocar uma primeira vez para análise de equipamento e outra para elaborar o trabalho necessário), ou seja só em deslocações falamos de um valor acima dos € 1.000,00. (…) Os componentes e correspondentes valores acima referidos estão completamente fora do contexto atual de outros fornecedores e prestadores de serviços dedicados a esta mesma área. Caso seja a melhor proposta que têm para nos apresentar, teremos que recusar. (…) A fatura que nos enviaram via CTT será entretanto devolvida».
20. Por comunicação eletrónica datada de 25 de Agosto de 2023, remetida do endereço (…)@cmvolt.pt para (…)@espaco.pt com o assunto «RE: MST – (…), Unipessoal, Lda.» consta, além do mais, o seguinte «Agradeço a vossa ultima proposta, infelizmente não podemos aceitar as condições impostas, os equipamentos MST têm problemas recorrentes desde que se encontravam em garantia e com relativamente poucas horas de trabalho. Se fossem avarias fora desse contexto, não teríamos qualquer problema em assumir os custos, mas desta forma achamos que não é correcto. Os nossos pedidos de assistência começaram com avarias semelhantes bem antes do término do período de garantia. Deste modo, na nossa opinião, o procedimento correcto deveria ser um acompanhamento eficiente da vossa parte até aos equipamentos ficarem devidamente aptos à realização dos trabalhos. Têm de compreender que não é normal surgirem avarias com tanta frequência, sobretudo imediatamente após as intervenções feitas pelos vossos mecânicos. Peço que façam uma revisão das propostas de assistência que nos apresentaram, compreendemos que não seja possível o trabalho ser efectuado sem custos, mas de qualquer modo entre deslocações e peças, os valores são realmente muito desajustados».
21. Por comunicação eletrónica datada de 29 de Agosto de 2023, remetida do endereço (…)@espaco.pt para (…)@cmvolt.pt consta, além do mais, o seguinte «Anotamos a vossa opinião relativamente aos custos da nossa assistência, no entanto os valores praticados de mão de obra e dos materiais são iguais para todos os clientes. Apesar do nosso esforço e colaboração em resolver o problema na vossa máquina MST com o n.º de série M6 (…), verificamos que o mesmo não foi aceite e que não pretendem adjudicar a reparação de acordo com a proposta anteriormente enviada, assim sendo enviamos em anexo a fatura do serviço já efectuado».
22. A Requerente, quando solicitou a intervenção técnica em Julho de 2023 não tinha consciência de que o equipamento em causa já se encontrava fora do prazo de garantia.
23. A Requerente intervencionou os veículos sem previamente avisar que já não os considerava abrangidos pela garantida e sem obter a concordância da Requerida para intervir nessas condições.
24. A Requerente enviou para a Requerida todas as facturas, que esta recebeu, mas que não pagou.
25. Apesar de diversas vezes interpelada pela Requerente para pagamento da referida dívida, a Requerida nada pagou.
26. A Requerente não elaborou orçamento prévio para proceder à reparação, por desconhecimento do tipo de avaria que estava em causa[6].
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3.2 – Matéria de facto não provada[7]:
Com relevância para a boa decisão da causa, não se provaram os seguintes factos:
A. Os problemas referidos em 3 eram mecânicos.
B. Aquando do envio das facturas à Requerida mencionado em 24, a mesma não apresentou qualquer reclamação.
C. Os problemas de funcionamento foram permanecendo voltando as máquinas a apresentar exatamente o mesmo tipo de avaria.
D. As avarias não foram reparadas pela Requerente, o que impediu o funcionamento das máquinas.
E. Apesar de as máquinas terem sido intervencionadas no período de garantia, por diversas vezes, o defeito nunca foi reparado, nem nunca a Requerente deu à Requerida a possibilidade de vir a substituir as mesmas.
F. As avarias foram recorrentes e originaram não só a inutilização da máquina, mas também paragens forçadas da mesma, impedindo a sua utilização pela compradora, aqui Requerida.
G. A Requerente sabia desde que vendeu o bem que o mesmo se encontrava com defeitos, mas ainda assim, nada fez para os reparar.
H. As máquinas continuaram a ir continuamente para a assistência, mantendo os defeitos iniciais, reportados no prazo da garantia e apesar de ter sido alvos de intervenção não foram reparados.
I. As máquinas não estão a desempenhar adequadamente as funções a que se destinam e as várias intervenções técnicas da Requerente não resolveram definitivamente os problemas apresentados.
J. A Requerente sabia que vendeu bens defeituosos, por um avultado valor e que nunca conseguiu resolver os problemas denunciados pela Requerida.
K. A Requerente não permitiu a substituição das máquinas para, depois de expirado o período da garantia e sem informar a Requerida desse facto, lhe imputar uma conta de intervenção técnica arbitrária e avultadíssima, da qual não teve prévio conhecimento.
L. Eliminado[8].
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IV – Fundamentação:
4.1 – Impugnação da matéria de facto:
Só à Relação compete, em princípio, modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas aos pontos da base instrutória, a partir da prova testemunhal extractada nos autos e dos demais elementos que sirvam de base à respectiva decisão, desde que dos mesmos constem todos os dados probatórios, necessários e suficientes, para o efeito, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil.
Em face disso, a questão crucial é a de apurar se a decisão do Tribunal de primeira instância que deu como provados certos factos (e como não demonstrados outros) pode ser alterada nesta sede – ou, noutra formulação, é tarefa do Tribunal da Relação apurar se essa decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com algum meio de prova ilícito e, se assim for, actuar em conformidade com os poderes que lhe estão confiados.
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A sociedade recorrente pretende reverter o sentido da decisão de facto quanto aos pontos c)[9], d)[10], e)[11], f)[12], h)[13], i)[14], j)[15], k)[16] e l)[17] dos factos não provados.
Funda a sua pretensão nos testemunhos de (…) e (…), sendo que relativamente a estes três últimos pontos convoca também como fonte as declarações da testemunha (…).
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Na fundamentação, o Tribunal a quo sublinhou que (…), chefe no serviço pós-venda da Requerente, existiam duas máquinas (… e …) que beneficiaram de intervenções distintas e que a testemunha «foi peremptória em afastar quaisquer avarias como conexas com as anteriores, referindo que cada uma delas era nova».
(…), mecânico da Requerente, referiu igualmente que «nenhuma intervenção tinha que ver com outras», (…), gestor logístico da Requerida, não soube «precisar as avarias, que reportava sempre com base no que lhe era dito por terceiros» e (…), o legal representante da Requerida, não tinha conhecimento directo desta matéria, sublinhando que «os seus mecânicos teriam conhecimento de uma falha, mas não saberiam identificar qual a falha concreta».
Quanto à prestação de (…), mecânico da Requerida, é dito que «adoptou um discurso demasiado genérico e abstrato, reportando-se indistintamente a ambas as máquinas para, com algum excesso de voluntarismo, suportar a pretensão da Demandada».
Por conseguinte, o Tribunal concluiu que «todas as avarias que reportadas pela Requerida não estavam interligadas entre si».
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Quanto ao erro na avaliação da prova, foi ouvido todo suporte gravado e o Tribunal de Recurso comunga do entendimento expresso na motivação da decisão da matéria de facto, não sendo viável considerar que as avarias em causa teriam tido uma origem comum e que as intervenções realizadas pela requerida não foram suficientes para as corrigir.
Não se descortina assim qualquer ligação entre as peças e os materiais aplicados nas reparações realizadas em 2023 e as idas à oficina em momento anterior. Mais do que isso, o testemunho tirado a (…) é o mais detalhado, coerente e diferenciado sobre as matérias em debate e o mesmo estava ao corrente do tipo de intervenções técnicas realizadas.
Em acréscimo, parte dos excertos mencionados surgem descontextualizadas da imagem global da prestação da prova produzida e estes contributos não tem a virtualidade de modificar o juízo prudencial feito pela 1ª Instância, antes pelo contrário acabam por o reforçar.
Pelos motivos exarados na decisão de facto o Tribunal ad quem aprova claramente a interpretação feita pela Meritíssima Juíza de Direito relativamente àquilo que foi dito pela testemunha e retira as mesmas consequências quanto a não adopção dos factos indicados c), d), e), f), h), i) e j).
Não se vislumbra qualquer prova convincente relativamente à primeira parte do indicado em k) e a segunda parte desta alínea também não é acompanhada por qualquer meio de prova demonstrativo e é meramente conclusiva.
Em jeito de síntese, a alocução fundamento para impor decisão diversa, nos termos proclamados pelo n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, não se basta com a possibilidade de uma alternativa decisória antes exige que o juízo efectuado pela Primeira Instância esteja estruturado num lapso relevante no processo de avaliação da prova[18] e isso não acontece na presente situação.
No entanto, com base no testemunho de (…) é possível alterar a resposta ao ponto l) dos factos não provados. Na realidade, tal como consta da fundamentação da decisão de facto, a testemunha «foi também explicativa ao referir não ter existido qualquer orçamento ou informação de custos por não se saber qual a componente avariada».
Nesta ordem de ideias, é eliminado o ponto l) dos factos não provados, o qual é substituído pela introdução do número 26 dos factos provados com a seguinte redacção: «a Requerente não elaborou orçamento prévio para proceder à reparação, por desconhecimento do tipo de avaria que estava em causa».
Nesta ordem de ideias, com excepção deste último facto, a prova produzida não impõe decisão diversa (n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil).
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4.2 – Erro na apreciação do direito:
Na situação judicanda estamos perante a existência de dois contratos de compra e venda e a subsequente prestação de serviços de reparação quanto às máquinas adquiridas.
Há venda de coisa defeituosa sempre que a coisa vendida sofrer vícios ou carecer de qualidades abrangidas no artigo 913.º do Código Civil.
O defeito material tanto pode ser inerente à própria coisa, como a uma desconformidade ao contrato ou ainda à sua execução. Nesta dimensão, sempre que o bem vendido não tem a qualidade, explicita ou implicitamente assegurada, a prestação é defeituosa.
No leque de opções legais conferidas ao adquirente é reconhecido o direito à anulação do contrato (artigo 905.º do Código Civil) ou à redução do preço (artigo 911.º), bem como a possibilidade de ser indemnizado pelos prejuízos sofridos (artigos 908.º e 909.º do mesmo diploma legal).
Para além do direito à anulação por erro ou dolo, o regime da venda de coisa defeituosa confere, ainda, ao comprador os direitos à reparação ou substituição da coisa (artigo 914.º), à indemnização em caso de simples erro (artigo 915.º), ao cumprimento coercivo ou à indemnização respectiva (artigo 918.º) e à garantia de bom funcionamento (artigo 921.º).
Porém, basta comparar a petição inicial com o articulado de recurso para que se conclua que na impugnação por via recursal é introduzida factualidade nova que não foi discutida em sede de instrução do processo e inclusivamente é pretendido um resultado distinto que daquele constituía inicialmente o objecto da acção (designadamente ao convocar a matéria do erro e da redução equitativa da prestação).
Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo acto recorrido. Na verdade, Miguel Teixeira de Sousa ensina que no direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o tribunal não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados. Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas[19]. E o meu é afirmado pela jurisprudência unânime dos Tribunais Superiores[20].
Reitera-se, os recursos são meios de impugnação e de correcção de decisões judiciais e não constituem instrumentos processuais para obter decisões novas e daí não pode o Tribunal de recurso ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas ao tribunal recorrido.
Não foi deduzido qualquer pedido sobre esta matéria, mesmo que se tratasse de mera defesa por excepção a alegação fáctica subjacente não resultou comprovada e assim a problemática fica cingida à questão do cumprimento do contrato de prestação de serviços.
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Contrato de prestação de serviços é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição (artigo 1154.º do Código Civil).
Estamos perante um acordo a que é aplicável a disciplina jurídica do contrato de prestação de serviços e a referida disponibilização de serviços vinculava a sociedade Ré contratante a proceder ao pagamento do preço dos serviços que lhe foram prestados, de harmonia com as regras presentes nos artigos 1154.º, 1156.º[21] e 1167.º[22] todos do Código Civil.
A isto, o recorrente contrapõe que se está perante um cenário de não cumprimento da prestação acordada e que viabiliza a operacionalização da exceptio non adimpleti contractus.
Almeida Costa salienta que se verifica «o não cum­primento, incumprimento ou inadimplemento de uma obrigação, sempre que a respectiva prestação debitória deixa de ser efectuada nos termos adequados»[23].
O cumprimento defeituoso integra um dos modos de não cumprimento das obrigações, que permite ao credor da prestação imperfeita o recurso à excepção do não cumprimento do contrato[24].
A excepção de não cumprimento do contrato encontra-se prevista no n.º 1 do artigo 428.º[25] Código Civil, onde se estipula que «se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo».
São pressupostos da excepção de não cumprimento do contrato: existência de um contrato bilateral, não cumprimento ou não oferecimento do cumprimento simultâneo da contraprestação; não contrariedade à boa-fé[26].
Vaz Serra alerta que «a fórmula legal não é inteiramente rigorosa, pois o que a excepção supõe é que um dos contraentes não esteja obrigado, pela lei ou pelo contrato, a cumprir a sua obrigação antes do outro; se não o estiver pode ele, sendo-lhe exigida a prestação, recusá-la, enquanto não for efectuada a contraprestação... Por conseguinte, a excepção pode ser oposta ainda que haja vencimentos diferentes… apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro...»[27]. Idêntica formulação é detectada na lição de Pires de Lima e Antunes Varela[28].
Daqui decorre que a excepção de não cumprimento do contrato só se aplica aos contratos bilaterais, uma vez que nestes derivam obrigações para ambas as partes havendo, entre tais vinculações, correspectividade ou nexo causal recíproco. Assim as duas obrigações justificam-se uma à outra, cada uma delas é causa da outra, sendo interdependentes.
Nos contratos sinalagmáticos verifica-se reciprocidade entre as prestações de ambas as partes, o que implica que, por força do sinalagma funcional, não deva permitir-se a execução de uma das prestações sem que a outra também o seja. Essa situação implica que o não cumprimento das obrigações de prestações recíprocas seja sujeito a um regime especial, admitindo-se ser lícita a recusa de cumprimento, enquanto a outra parte não realizar a sua prestação[29].
Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela «a exceptio non adimpleti contractus a que se refere este artigo (artigo 428.º do Código Civil) pode ter lugar nos contratos com prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo da outra. É o que se verifica nos contratos tradicionalmente chamados bilaterais ou sinalagmáticos»[30].
Vaz Serra alerta que, no caso dos contratos de execução continuada, «a exceptio pode ser exercida por qualquer dos contraentes, desde que a prestação e a contraprestação correspondentes devam, ser simultâneas ou a prestação do excipiens deva ser feita depois da do outro contraente»[31].
A exigência de apenas poder ser invocada quando não estejam fixados prazos diferentes para o cumprimento da prestação – ou, estando fixados prazos diferentes, pelo contraente que haja de efectuar a prestação em segundo lugar – tem fundamento no facto da aludida excepção visar salvaguardar até ao fim o sinalagma funcional.
Baseando-se esta asserção no princípio do cumprimento simultâneo das obrigações sinalagmáticas e na manutenção do equilíbrio patrimonial característico dos contratos bilaterais, este meio de defesa tem como efeito principal a dilação do tempo de cumprimento da obrigação de uma das partes até ao momento do cumprimento da obrigação da outra parte.
Por isso é que tem sido qualificada como excepção de direito material ou substancial, posto que se funda em razões de direito substantivo e é de natureza impeditiva porque não exclui definitivamente o direito do autor, apenas o paralisa temporariamente, assumindo uma feição de conservação do equilíbrio contratual nos contratos bilaterais. Eventualmente, em casos de maior gravidade, esse incumprimento pode conduzir à extinção da contraprestação da parte contrária.
No caso sob análise, para além da modificação pretendida se mostrar condicionada pela (improcedente) alteração da matéria de facto, não estão reunidos estes pressupostos. E a questão da ausência de orçamento também não tem a virtualidade de modificar este juízo prudencial, sendo que, tal como vaticinou a Primeira Instância, não se encontra aqui a existência de qualquer comportamento integrável na esfera de protecção da prática comercial desleal prevista no Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de Março.
Não existe qualquer obrigação de notificação do termo da garantia e a falta de consciência do decurso desse prazo não pode ser imputado à Autora e a Ré não logrou demonstrar que existia qualquer relação entre o serviço cuja cobrança se pretende efectivar com as avarias que foram reparadas no período de garantia. Ou seja, não ficou demonstrado que ocorreu um cenário de persistência da mesma avaria.
Por último, parte substancial do recurso assenta em petições de princípio não demonstradas nos autos, recorrendo a matéria alegada em primeira mão, designadamente não resulta provado que, caso a Ré soubesse que a garantia estava terminada, não teria realizado os serviços de manutenção e reparação. Também não resulta do acervo factual que os preços praticados fossem excessivos e que se situavam fora da lógica normal do mercado ou que os serviços prestados eram desnecessários.
Não existe qualquer outro argumento recursivo com a idoneidade de infirmar ou modificar o previamente decidido. E, como tal, em função das regras de cumprimento das contratos e das obrigações, concluí-se pela improcedência do recurso, confirmando-se a decisão tomada pelo Juízo Local de Competência Genérica do Entroncamento.
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V – Sumário: (…)

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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 27/02/2025
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões



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[1] Artigo 639.º (Ónus de alegar e formular conclusões):
1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.
5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.
[2] Na visão de Abrantes Geral, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª edição, Almedina, Coimbra 2016, pág. 130, «as conclusões serão complexas quando não cumpram as exigências de sintetização a que se refere o n.º 1 (prolixidade) ou quando, a par das verdadeiras questões que interferem na decisão do caso, surjam outras sem qualquer interesse (inocuidade) ou que constituem mera repetição de argumentos anteriormente apresentados».
[3] No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 137/97, de 11/03/1997, processo n.º 28/95, in www.tribunalconstitucional.pt é dito que «A concisão das conclusões, enquanto valor, não pode deixar de ser compreendida como uma forma de estruturação lógica do procedimento na fase de recurso e não como um entrave burocrático à realização da justiça».
[4] O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/06/2013, in www.dgsi.pt assume que «o recorrente deve terminar as suas alegações de recurso com conclusões sintéticas (onde indicará os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida)».
[5] No caso concreto, não se ordena a correcção das conclusões ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 639.º do Código de Processo Civil por que, na hipótese vertente, tal solução apenas implicaria um prolongamento artificial da lide e, infelizmente, no plano prático, a actuação processual subsequente constitui na generalidade dos processos uma mera operação de estética processual que não se adequa aos objectivos do legislador e do julgador.
[6] A introdução deste facto resulta da operação de reavaliação da prova realizada no 4.1 do presente acórdão.
[7] Ficou ainda exarado na sentença recorrida que «a demais matéria alegada é irrelevante, argumentativa, conclusiva e/ou de teor jurídico, motivo pelo qual não foi considerada».
[8] A eliminação do facto não provado resulta da operação de reavaliação da prova realizada no 4.1 do presente acórdão, a qual se traduziu no aditamento da matéria identificada em 26.
[9] (c) Os problemas de funcionamento foram permanecendo voltando as máquinas a apresentar exatamente o mesmo tipo de avaria.
[10] (d) As avarias não foram reparadas pela Requerente, o que impediu o funcionamento das máquinas.
[11] (e) Apesar de as máquinas terem sido intervencionadas no período de garantia, por diversas vezes, o defeito nunca foi reparado, nem nunca a Requerente deu à Requerida a possibilidade de vir a substituir as mesmas.
[12] (f) As avarias foram recorrentes e originaram não só a inutilização da máquina, mas também paragens forçadas da mesma, impedindo a sua utilização pela compradora, aqui Requerida.
[13] (h) As máquinas continuaram a ir continuamente para a assistência, mantendo os defeitos iniciais, reportados no prazo da garantia e apesar de ter sido alvos de intervenção não foram reparados.
[14] (i) As máquinas não estão a desempenhar adequadamente as funções a que se destinam e as várias intervenções técnicas da Requerente não resolveram definitivamente os problemas apresentados.
[15] (j) A Requerente sabia que vendeu bens defeituosos, por um avultado valor e que nunca conseguiu resolver os problemas denunciados pela Requerida.
[16] (k) A Requerente não permitiu a substituição das máquinas para, depois de expirado o período da garantia e sem informar a Requerida desse facto, lhe imputar uma conta de intervenção técnica arbitrária e avultadíssima, da qual não teve prévio conhecimento.
[17] (l) A Requerente omitiu orçamento prévio para proceder à reparação.
[18] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13/02/2020, in www.dgsi.pt.
[19] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., LEX, Lisboa 1997, pág. 395.
[20] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27/07/1965, BMJ 149-297; de 26/03/1985, BMJ 345-362; de 02/12/1998, BMJ 482-150; de 12-07-1989, BMJ 389-510; de 28/06/2001, in www.dgsi.pt, de 30/10/2003, in www.dgsi.pt, de 20-07-2006, in www.dgsi.pt, de 04/12/2008, in www.dgsi.pt.
[21] Artigo 1156.º (Regime):
As disposições sobre o mandato são extensivas, com as necessárias adaptações, às modalidades do contrato de prestação de serviço que a lei não regule especialmente.
[22] Artigo 1167.º (Enumeração):
O mandante é obrigado:
a) A fornecer ao mandatário os meios necessários à execução do mandato, se outra coisa não foi convencionada;
b) A pagar-lhe a retribuição que ao caso competir, e fazer-lhe provisão por conta dela segundo os usos;
c) A reembolsar o mandatário das despesas feitas que este fundadamente tenha considerado indispensáveis, com juros legais desde que foram efectuadas.
d) A indemnizá-lo do prejuízo sofrido em consequência do mandato, ainda que o mandante tenha procedido sem culpa.
[23] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra, pág. 881.
[24] Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada, Almedina, Coimbra 1994, págs. 324-330.
[25] Artigo 428.º (Noção):
1. Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
2. A excepção não pode ser afastada mediante a prestação de garantias.
[26] José João Abrantes, A Excepção de Não Cumprimento do Contrato, 1986, págs. 39 e seguintes.
[27] Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 105º, pág. 238, nota 2.
[28] Pires de Lima e Antunes Varela – Código Civil Anotado, vol. I, pág. 405, sustentam que «mesmo estando o cumprimento das prestações sujeito a prazos diferentes a excepção poderá ser invocada pelo contraente cuja prestação deva ser efectuada depois da do outro, apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro».
[29] Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 2006, vol. II, 4ª ed., pág. 262.
[30] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, pág. 405.
[31] Vaz Serra, Boletim do Ministério da Justiça, ano 67, pág. 23.