Tendo sido decididas antes da decisão final algumas das questões colocadas no recurso interposto pelo arguido, relativo à decisão que lhe aplicou uma coima, aquela decisão judicial preliminar é recorrível se o montante da coima aplicada permitir o recurso para o tribunal superior.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Reclamante/arguido…………..A... – Soc. Unipessoal, Lda.
Reclamado………………………Ministério Público
a) A presente reclamação contra o não recebimento do recurso insere-se num processo de contraordenação pendente no Juízo Local Criminal de Cantanhede perante, no qual foi impugnada a decisão tomada pela IGAMAOT (Inspeção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território), que aplicou à Reclamante uma coima de €60.000,00.
b) A reclamação incide sobre o despacho datado de 30 de janeiro de 2025 que antes da decisão final, duas questões, a saber:
- Extinção por prescrição do procedimento contraordenacional; e
- Nulidades com fundamento no decurso do prazo de instrução; falta de inquirição de testemunhas; falta de indicação da data no auto de notícia e na decisão administrativa e omissão de factos.
c) A Reclamante recorreu deste despacho que decidiu estas questões em sentido desfavorável à Reclamante.
O tribunal proferiu despacho no sentido de não ser admissível o recurso, com esta fundamentação:
«Ref.ª 9471206 de 28.1.2025 – Veio a sociedade arguida interpor recurso do despacho de 9.1.1.2025 que se pronunciou sobre a matéria da prescrição bem como da nulidade dos autos.
Dispõe o artigo 73.º do Regime Geral das Contra-Ordenações sob a epigrafe de “Decisões Judiciais que admitem recurso” que: “1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência”.
Pretendendo a recorrente colocar em causa um despacho interlocutório, afigura-se-nos manifesto que não encontra previsão no aludido artigo 73.º do Regime Geral das Contra-Ordenações - cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 27.03.2014, disponível em www.dgsi.pt quanto às decisões proferidas em processo de contra-ordenação que são recorríveis, dado que a decisão proferida não integra o elenco das decisões cujo recurso é admissível – também neste sentido cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 26.04.2023.
Por outro lado, também não nos parece que a questão suscitada tenha por objecto qualquer matéria que coloque em causa os direitos constitucionalmente garantidos das pessoas que poderia levar à admissão do recurso conforme se decidiu no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 22.10.2014, disponível em www.dgsi.pt.
Em face do exposto, porque da decisão proferida não é admissível recurso não se pode admitir o recurso interposto. Custas a cargo da recorrente pelo mínimo legal. Notifique.»
d) As conclusões da Reclamação resumem-se ao seguinte:
« (…) Numa palavra, se bem foi entendido e sempre com o maior Respeito, repita-se, dir-se-ia que a ter valimento o entendimento perfilhado pelo Juízo Local Criminal de Cantanhede nos presentes autos e demais com a mesma natureza, o Recorrente que visse apreciada a sua Impugnação Judicial em dois momentos, a saber antes da realização do Julgamento - como aconteceu nos presentes autos - e o aqueloutro Recorrente que apenas tivesse a uma única Decisão Final (Sentença) encontrar-se-ia este, relativamente ao outro, beneficiado da possibilidade de apresentação de amplo recurso sobre toda a matéria por si suscitada o que, naturalmente, a Lei não permite!
Termos em que se requer a Vª Exª, Senhor Presidente, que se digne ordenar a anulação do despacho - Decisão (final) que negou a admissão do recurso à Arguida por ilegal e máxime inconstitucional, substituindo por aqueloutro que o admita, atenta a sua admissibilidade legal, com todas as consequências legais, sempre vindo a conhecer (requerendo-o) da inconstitucionalidade da norma do nº1 do Artigo 73º do RGCO por violação, nomeadamente, dos preceitos conjugados dos artigos 2º, 13º, 18º, nºs 2 e 3, 20º, nº 4, 2ª parte e 32º todos da CRP.»
II. Objeto da reclamação
A questão colocada na presente reclamação consiste em saber se sendo decididas antes da decisão final algumas das questões colocadas no recurso interposto pelo arguido, contra a decisão que lhe aplicou uma coima, aquela decisão preliminar é recorrível se o montante da coima aplicada permitir o recurso.
III. Fundamentação
a) Matéria de facto processual
A matéria a considerar é a que consta do relatório que antecede.
b) Apreciação
A resposta à questão colocada é afirmativa, pelas razões já mencionadas na decisão proferida na Reclamação n.º 32/22.4T9FVN-A.C1.
(1) Como refere a Reclamante, a circunstância de algumas questões terem sido decididas em despacho preliminar não as torna irrecorríveis se estiverem preenchidos todos os requisitos dos artigos 73.º, n.º 1, e 64.º, do Regime Geral das Contraordenações.
Efetivamente, a autonomia das várias questões que se possam colocar num recurso pode permitir a sua cindibilidade no que respeita à respetiva decisão.
Porém, esta autonomia e cindibilidade não implica, em regra, uma autonomia plena em relação à questão substantiva, pelo que a respetiva decisão seja ela processualmente preliminar ou final não pode retirar direitos processuais ao interessado.
Por outras palavras, as diversas questões que se possam colocar num processo e que possam influenciar processual ou substantivamente a questão factual/jurídica objeto do processo, no sentido de a poderem determinar em sentido qualitativo ou quantitativo, estão todas elas unificadas pela finalidade do processo, que é obter a respetiva decisão final.
(2) Dada esta unidade entre as várias questões, apesar da sua autonomia e até da sua precedência lógica (em regra a sentença começa pela decisão das questões processuais, depois pelas factuais e finalmente pela aplicação do direito substantivo), resulta que sendo a decisão que aplicou a coima recorrível, são igualmente recorríveis todas as questões colocadas pelo recorrente que se possam repercutir processual ou substantivamente sobre a decisão impugnada no recurso.
Assim, se a decisão que aplica a coima for recorrível face ao seu valor, é recorrível a decisão do tribunal de 1.ª instância que decide acerca da prescrição do procedimento contraordenacional afirmada pelo arguido, porquanto a questão da prescrição do procedimento se repercute na decisão final, impedindo, se procedente, da aplicação da coima em questão.
No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 27.03.2014, invocado no despacho reclamado a questão não é idêntica à aqui em apreço, porquanto como se refere no texto da decisão «Analisado o despacho recorrido, verificamos que o mesmo se limitou a determinar o envio do processo à autoridade administrativa, com vista a suprir a omissão de factos e outros elementos que entende ali não constarem
Ora, não estando manifestamente em causa nenhuma das situações previstas nas als. a), b), d) e e) do n.º 1 do art. 73.º do RGCOC, também há que considerar que tal decisão não se enquadra de forma alguma na previsão da sua al. c), pois que não está em causa uma qualquer situação de “absolvição da arguida”, antes sim a mera declaração de nulidade/inexistência de uma decisão, que pode vir a ser refeita (com o colmatar dos vícios detectados) e implicar nova decisão, pelos mesmos factos, contra a arguida.» - Processo n.º 829/11.4TFLSB.L1-9.
(Quanto ao acórdão da mesma Relação datado de 26.04.2023, nada se diz porque não foi encontrado)
(3) – Relativamente à apreciação das decisões que aplicam coimas, o artigo 64.º do DL n.º 433/82, de 27 de outubro (Ilícito de Mera Ordenação Social), dispõe o seguinte:
«1 - O juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.
2 - O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.
3 - O despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação.
4 - Em caso de manutenção ou alteração da condenação deve o juiz fundamentar a sua decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção.
5 - Em caso de absolvição deverá o juiz indicar porque não considera provados os factos ou porque não constituem uma contra-ordenação.»
A al. a) do n.º 1 do artigo 73.º do mesmo diploma, sobre as decisões judicias que admitem recurso, diz que «Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando: a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40».
Verifica-se que, no caso dos autos, o montante da coima aplicada permite o recurso.
Pelas razões indicadas é admissível o recurso interposto pela ora Reclamante.
(4) Tendo em consideração o disposto no n.º 4 do artigo 74.º do RGCO e o artigo 407.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o recurso sobe a final.
IV. Decisão
Considerando o exposto, julga-se a reclamação procedente, admite-se o recurso interposto, o qual sobe com o recurso da decisão que ponha termo à causa.
Sem custas.
(Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, por competência delegada - Despacho do Ex.mo Sr. Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de março de 2022)