ATIVIDADE INVESTIGATÓRIA PRELIMINAR
ART. 249.º DO CPP
Sumário

A atividade investigatória preliminar (por prévia à instauração de inquérito), tem cobertura legal (art. 249.º, do Cód. Processo Penal), não estando as declarações que os intervenientes em acidente de viação prestem às autoridades que após o acidente ocorreram ao local sujeitas às restrições dos arts. 356.º e 357.º do Cód. Processo Penal. Trata-se de prova legal.

Texto Integral

Acórdão deliberado em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
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1 – RELATÓRIO

1.1 Decisão recorrida

Em 7/06/2024 foi proferida sentença que julgou a pronúncia totalmente improcedente, por não provada, absolvendo a arguida AA da prática do crime de ofensa à integridade física por negligência, p. p. pelo art. 148.º, n.º 3, do Código Penal, e da prática de um crime de condução perigosa na forma negligente, p. e p. pelo art. 291.º, al. b), nºs 1 e 4, do Código Penal, por referência aos arts. 29.º, n.º 1, 30.º, n.º 1; 35º e 44.º, n.º 1 e 2, do Código da Estrada.

Mais se julgaram improcedentes os pedidos de indemnização, absolvendo a demandada, BB, do pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante CC (no valor de €118.929,11€) e do pedido de indemnização civil deduzido pela demandante DD (no valor de €14.587,13€).

1.2 Recurso

Inconformado com a decisão final, dela interpôs recurso o assistente CC pugnando pela condenação da arguida pela prática dos crimes pelos quais vinha pronunciada, com a consequente condenação da demandada seguradora no pagamento da indemnização peticionada, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

« A. O presente recurso recai sobre a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e depositada a 07/06/2024 (Ref.ª …), que julgou totalmente improcedente a pronúncia da Arguida AA e que a absolveu da prática do crime de ofensa à integridade física por negligência, prevista e punida, pelo artigo 148.º, n.º 3 do Código Penal, e da prática do crime de condução perigosa na forma negligente, previsto e punido, pelo artigo 291.º, al. b), n.º 1 e 4 do Código Penal, por referência aos artigos 29.º, n.º 1, 30.º, n.º 1, 35.º e 44.º, n.º 1 e 2, do Código da Estrada.

A Sentença absolveu ainda a Demandada BB, do pedido de indemnização civil deduzido pelo Demandante CC, ora Recorrente, no valor de € 118.929,11 (cento e dezoito mil, novecentos e vinte e nove euros e onze cêntimos), bem como absolveu ainda a Demandada BB, do pedido de indemnização civil deduzido pela Demandante DD, no valor € 14.587,13 (catorze mil, quinhentos e oitenta e sete euros e treze cêntimos).

B. Os factos dados como não provados n.º A., B., C., D., E., F., G., H. DA PRONÚNCIA foram mal julgados em face da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, e em consequência deverão ser julgados como não provados e os factos provados n.º 3. E 11 da CONTESTAÇÃO da Arguida têm necessariamente de serem julgados como não provados.

C. O Tribunal a quo desvalorizou as declarações do Assistente, aqui Recorrente, sem nunca as pôr em causa. Da motivação da decisão de facto NADA consta sobre a falta de isenção, coerência ou credibilidade das declarações do Assistente, aqui Recorrente. O Tribunal a quo limita-se a fundamentar de facto, que “não se convence” com a versão da dinâmica do acidente descrita pelo Assistente, aqui Recorrente (o que muito se estranha até porque a Arguida, aqui Recorrida, em momento algum prestou declarações em sede de audiência de discussão e julgamento para contar uma outra versão da descrição da dinâmica do acidente) - (Ficheiro Áudio n.º Diligencia_533-17.0T9BNV_2024-04-05_10-46-49, conforme ata de audiência de julgamento de 05/04/2024, com início às 00:02:12 e seu termo aos 00:06:29; com início às 00:06:45 e seu termo aos 00:08:33; com início às 00:15:20 e seu termo aos 00:15:45; com início às 00:19:14 e seu termo aos 00:20:22).

D. Na motivação de facto da Sentença conclui o Tribunal a quo o seguinte que infra se transcreve:

“Para apreciação das declarações do assistente, impõe-se considerar as fotografias do veículo, do processo de sinistro, que se encontram de fls. 217a 221 dos autos, nas quais são visíveis danos na frente esquerda do mesmo. Em concreto do meio do veículo, para a esquerda, sendo que, na parte esquerda incidem também sobre o capot. O motociclo, considerando as fotografias de fls. 209 a 215, apresenta danos na proteção da roda da frente e do lado esquerdo, sendo nestas percetível que se trata de uma marca de arrastamento.

Para esta mesma apreciação, releva considerar também o croqui, constante da participação de acidente viação, de fls. 28 a 30, do qual se retira, para o que agora releva, que a faixa de rodagem tinha 7 metros de largura.” (negritos e sublinhados nossos).

Aqui chegados concluímos que quer as declarações do Assistente, aqui Recorrente, quer os danos visíveis em ambos os veículos nas fotografias de fls. 217 a 221 eg 209 a 215, são consentâneos com a descrição da dinâmica do acidente (atendendo à única versão da descrição do acidente que é do Assistente, aqui Recorrente).

E. O Tribunal a quo escolheu não acreditar nas declarações do Assistente, aqui Recorrente, para retirar uma conclusão de facto (que os danos no veículo da Arguida, aqui Recorrida deveriam estar presentes à direita do seu veículo automóvel) apesar de nunca pôr em causa as declarações do Assistente, aqui Recorrente.

F. Motivo pelo qual, em face das declarações do Assistente, aqui Recorrente, analisadas à luz das regras da experiência e do espírito crítico, não poderiam restar quaisquer dúvidas ao Tribunal a quo de que os factos não provados A., B., C., D., E., F., G., H da pronúncia devem ser julgados como provados e os factos provados 3. e 11. da contestação da Arguida têm necessariamente de serem julgados como não provados e, em consequência, seja a Arguida, aqui Recorrida, condenada pelos crimes de que vem pronunciada.

G. Por outro lado, O Tribunal a quo valorou, ainda que sem qualquer fundamento legal, as declarações da Arguida, ora Recorrida, que constam da participação do acidente de viação. SUCEDE QUE, A ARGUIDA NÃO PRESTOU QUAISQUER DECLARAÇÕES EM SEDE DE AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO E JULGAMENTO!

H. O Tribunal a quo valorar e inferir “que é estranho” a testemunha EE, Inspetor da PJ, referir no seu depoimento que quando falou com a Arguida, aqui Recorrida, pela mesma foi dito que tinha consciência de que estava fora de mão e desvalorizar o depoimento desta testemunha com base “nas declarações que prestou, [a Arguida, aqui Recorrida] após, o acidente, e que constam da participação de acidente de viação, a fls. 29, diz [a Arguida, aqui Recorrida] exatamente o inverso, ou seja, que o senhor da mota que foi contra si.”???? Tais declarações da Arguida, aqui Recorrida, não podiam ser valoradas pelo Tribunal a quo para fundamentar a sua decisão, quer de facto que de Direito!

I. O Tribunal a quo decidiu ignorar as declarações prestadas pela Arguida, aqui Recorrida em sede da instrução. A Arguida, aqui Recorrida, foi advertida, nos termos do artigo 141.º, n.º 4, alínea b) do Código de Processo penal, de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova. E, nesta fase, a Arguida, aqui Recorrida decidiu prestar declarações, conforme infra se transcreve (Ficheiro Áudio n.º Diligencia_533-17.0T9BNV_2020-06-25_16-10-00 conforme ata de interrogatório da Arguida de 25/06/2020, com início às 00:07:08 e seu termo aos 00:08:25; com início às 00:12:55 e seu termo aos 00:14:15)(…).

J. Das declarações da Arguida, aqui Recorrida, resulta claro, que a Arguida entra em contradição durante o suas declarações pois quando confrontada em instâncias do sr. Procurador sobre a possibilidade de ter o seu veículo automóvel parado 12 metros antes da intersecção (vulgo, em contramão) nega tal facto referindo que estava parada na estrada e a fazer pisca para virar para o lado esquerdo no sítio certo, repetindo diversas vezes que estava no sítio certo. Sendo que em instâncias da Meritíssima Juiz, já no final das suas declarações e já claramente agastada com as questões do Tribunal e audivelmente emocionada, transtornada e chorosa CONFESSA ao Tribunal que estava parada naquele sítio (12 metros antes do ponto da interseção do entroncamento) porque estava em CONTRAMÃO.

K. Entendemos que o Tribunal a quo incorreu num erro crasso de apreciação da prova, designadamente dos elementos objetivos: croqui e esclarecimentos da testemunha FF, bem como dos danos em ambos os veículos, ESTES SIM EXPLICAM A DINÂMICA EM QUE OCORREU O ACIDENTE (e que são coincidentes com a versão das declarações do Assistente, aqui Recorrente), e bem assim valorando as declarações da Arguida, aqui Recorrida, na participação do acidente de viação para tomar a decisão que tomou, quer de facto, quer de Direito.

L. ANALISADA A DINÂMICA DO ACIDENTE:

• Do croqui (elemento objetivo de prova) elaborado pela GNR de …, de fls.28 a 30 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, resulta que o veículo da Arguida, aqui Recorrida, ficou imobilizado próximo do eixo da via (apesar de não existirem quaisquer demarcações na via), em posição oblíqua, já com a sua parte frontal esquerda na hemi-faixa de rodagem onde seguia o veículo do Assistente, aqui Recorrente, demonstrando intenção de mudança de direção à esquerda num local que não lhe era permitido.

• Há que distinguir o local onde ocorreu o embate do veículo da Arguida, aqui Recorrida, no veículo do Assistente, aqui Recorrente, no meio da hemi-faixa em que circulava o Assistente, e o local onde o veículo da Arguida foi encontrado após o acidente pelo facto deste se ter movimentado (tal como a própria Arguida, aqui Recorrida, assumiu em declarações que prestou na fase de instrução) e regressado à faixa de rodagem da Arguida, aqui Recorrida.

• O Tribunal a quo não só desvalorizou o depoimento da testemunha GG por estar a encher um balde com água numa torneira a dois metros da estrada e (alegadamente) não ter capacidade para observar o que se passa na estrada mesmo à sua frente conforme se transcreve:

Procuradora: Pronto, então o que é que o senhor viu?

GG: Então, olhe eu vou ser sincero mesmo. Vou contar como vi. Eu estava a encher um balde de água como faço todos os dias que era para pôr para lá numas plantas onde eu tenho a oficina, mas tenho lá umas árvores e estava mesmo à beira da estrada em frente mesmo ao cruzamento, a uma espécie de uma rotunda. E estava assim a olhar de frente até com um carro que eu tinha cá fora e vejo vir um carro, um veículo, vinha praticamente sozinho do meu lado esquerdo, do lado do … para … e vinha, não digo que desgovernado, mas vinha, pronto, não vinha a saber, pronto o carro vinha meio a tentar virar para a esquerda. Eu tive um reflexo de, pronto, pôr as mãos no ar, aquilo foi tão rápido e quando, a avisar que a pessoa ia a entrar mal e quando vou para baixar sinto uma mota a bater no carro. E pronto, e mais nada.

Procuradora: Deixe-me recuperar, o senhor diz desgovernado como?

GG: Pá vinha inseguro, assim incerto para onde é que ia. Deu-me ideias.

Procuradora: Mas vinha em zigzag, como é que era?

GG: Vinha já com uma parte do carro na outra faixa da estrada.

Procuradora: Que faixa era esta?

GG: Então, o carro tenta virar para o lado esquerdo. Procuradora: Certo.

GG: E nunca parou. Fez que para, não para, mas nunca parou. E arranca para virar para a esquerda quando aparece a mota.

Procuradora: E, portanto, o senhor estava mesmo em frente ao entroncamento?

GG: Eu estou mesmo em frente ao entroncamento.(Ficheiro Áudio n.º Diligencia_533-17.0T9BNV_2024-04-05_15-50-25, conforme ata de audiência de julgamento de 05/04/2024, com início às 00:0:18 e seu termo aos 00:04:54; com inícioàs00:05:03 e seu termo aos00:05:55; 00:12:38 e seu termo aos 00:14:11; com início às 00:16:18 e seu termo aos 00:17:00; com início às 00:18:41 e seu termo aos 00:18:55; com início às 00:06:49 e seu termo aos 00:08:47).

• Aliás, é a própria Arguida, aqui Recorrida que em declarações perante a Juiz de Instrução reconhece: Que o seu carro se mexeu após o embate; Que estava em contramão e que disso tem consciência - Ficheiro Áudio n.º Diligencia_533-17.0T9BNV_2020-06-25_16-10-00 conforme ata de interrogatório da Arguida de 25/06/2020, com início às 00:12:55 e seu termo aos 00:14:08).

• Também a testemunha HH (mecânico que estava por perto) referiu nas suas declarações que viu o carro recuar “um bocadinho” e voltar para a sua faixa de rodagem. (Ficheiro Áudio n.º Diligencia_533-17.0T9BNV_2024-04-05_16-15-42, conforme ata de audiência de julgamento de 05/04/2024, com início às 00:09:47 e seu termo aos 00:10:55; 00:15:56 e seu termo aos 00:17:02).

• Não cabe ao Tribunal a quo fundamentar a sua decisão de facto com base em juízos de valor, considerações, conjeturas sobre a tomada de (in)decisão da Arguida, aqui Recorrida em mudar de direção à esquerda num local em que não podia fazê-lo. O Tribunal a quo não podia opinar (como opinou) sobre o comportamento da Arguida, aqui Recorrida, sem esta ter prestado quaisquer declarações em sede de audiência e discussão de julgamento. Muito menos podia opinar sobre os motivos da indecisão da Arguida, aqui Recorrida, conforme infra se transcreve: “Ora, atento o local onde diz ter ocorrido o embate - na primeira entrada do entroncamento - não faz qualquer sentido a referida indecisão, por parte da arguida. E não faz sentido, porque antes a arguida não tinha qualquer local para virar. Portanto, antes de chegar ao entroncamento, não tinha qualquer motivo para estar indecisa.(negritos e sublinhados nossos).

M. ANALISADOS OS DANOS EM AMBOS OS VEÍCULOS:

• Das fotos que constam do processo de fls.217a 221 e 209 a 215 dos presentes autos onde constam os danos em ambos os veículos são coincidentes com a dinâmica do acidente explicado nas declarações do Assistente, aqui Recorrente, conjugadas com a prova testemunhal e a prova documental que instrui os presentes autos.

• O raciocínio Tribunal a quo – de que o acidente se deu através de uma colisão frontal em que o motociclo do Assistente, aqui Recorrente, embateu contra o veículo da Arguida, aqui Recorrida - parece-nos ilógico e contrário às leis da física.

• Em primeiro lugar:

- Atendendo às fotos dos danos no automóvel conduzido pela Arguida, aqui Recorrida, não há marcas, não há vestígios de tinta (cinzenta) da mota, nem sequer quaisquer risco ou vinco que coincida com um embate frontal da mota do Assistente, aqui Recorrente no capot do carro daquela.

- Antes pelo contrário, do capot do carro da Arguida, aqui Recorrida, resulta apenas uma amolgadela (provocada por um corpo mole – o corpo do Assistente, aqui Recorrente).

- Se a colisão fosse frontal como o Tribunal a quo defende o para-choques do carro da Arguida teria de apresentar danos na sua parte frontal (o que não acontece), apenas se verificando sobre a frente-lateral mais sobre a esquerda do veículo da Arguida vestígios de tinta cinzenta do raspar do motociclo no veículo automóvel após o embate deste.

- O veículo automóvel da Arguida, aqui Recorrida, não apresenta qualquer dano no vidro do veículo, o que seria compatível com uma colisão frontal entre os dois veículos.

• Em segundo lugar:

- Atendendo às fotos dos danos no motociclo conduzido pela Assistente, aqui Recorrente, não há quaisquer marcas, não há vestígios de tinta (azul) do veículo automóvel da Arguida no motociclo do Assistente, aqui Recorrente.

- A proteção do pneu da frente do motociclo do Assistente, aqui Recorrente não apresenta NENHUM dano, encontra-se completamente intacto, assim com o próprio pneu da frente do motociclo, danos estes completamente incompatíveis com um embate frontal.

- Dos danos no motociclo do Assistente, aqui Recorrente, apenas são verificáveis rastos de raspagem no lado esquerdo do mesmo.

- Se a colisão fosse frontal como o Tribunal a quo defende não deveriam existir, também, danos provocados pela projeção do motociclo e do próprio Assistente, aqui Recorrente, no vidro do carro ou até não faria sentido o Assistente, aqui Recorrente, ser projetado por cima do veículo da Arguida?? Tal seria o mais lógico em relação às leis da física, para tanto deixamos um vídeo demostrativo de um acidente do motociclo frontal, bem como alguns frames do referido vídeo

(consultável em https://www.youtube.com/watch?v=3p7VvZceoMs ).

• Os danos do veículo da Arguida, aqui Recorrida, são apenas ao nível do capot do veículo (fruto do embate do corpo do Assistente, aqui Recorrente) e no para-choques frontal mais sobre o lado esquerdo, o que sugere que o embate (entre os dois veículos) foi provocado por uma intensidade ligeira de velocidade. Intensidade essa compatível com a velocidade reduzida em que seguiria a Arguida, aqui Recorrida, ao iniciar a manobra mudança de direção à esquerda (circulando a cerca de 10 km/h).

• O Assistente, aqui Recorrente, foi apanhado completamente de surpresa com a mudança de direção à esquerda do veículo da Arguida, aqui Recorrida, em local que não podia fazer invadindo a sua faixa de rodagem, daí que o Assistente, aqui Recorrente, pouco (ou nenhum) tempo teve para travar, quanto mais para se desviar e evitar o embate do veículo da Arguida, aqui Recorrida no seu.

N. Por outro lado, o Tribunal a quo, simplesmente, ignorou as tentativas da testemunha FF - militar da GNR que foi destacado para investigar o acidente de viação em causa nos prestes autos - em explicar de forma isenta e do ponto de vista de profissional qualificado a dinâmica do acidente e os danos nos veículos compatíveis com a mudança de direção à esquerda da Arguida, aqui Recorrida. A testemunha referiu e explicou ao Tribunal a quo que a colisão em causa nos presentes autos se carateriza por uma colisão fronto-lateral atendendo aos danos em ambos os veículos, bem como explicou ao Tribunal a quo a diferença entre os danos que esta colisão (fronto-lateral) provoca e os danos provocados por uma colisão frontal. (Ficheiro Áudio n.º Diligencia_533-17.0T9BNV_2024-04-05_15-14-22, conforme ata de audiência de julgamento de 05/04/2024, com início às 00:01:57 e seu termo aos 00:03:56 com início às 00:05:36 e seu termo aos 00:06:31; com início às 00:09:31 e seu termo aos 00:11:31: com início às 00:15:00 e seu termo aos 00:16:10; com início às 00:16:36 e seu termo aos 00:17:56).

O. Ainda sobre os danos no motociclo do Assistente, aqui Recorrente, distinguiu a testemunha FF quais os danos provocados pelo arrastamento do motociclo no chão e quais os danos provocados pela colisão com o veículo automóvel da Arguida, aqui Recorrida. Ficheiro Áudio n.º Diligencia_533-17.0T9BNV_2024-04-05_15-14-22, conforme ata de audiência de julgamento de 05/04/2024, com início às 00:14:09 e seu termo aos 00:14:42).

P. O Tribunal a quo conclui pela falta de coerência do depoimento da testemunha FF aquando da sua explicação ao Tribunal que os danos e a projeção do motociclo (e da vítima) seriam diferentes caso a colisão ocorresse na via de trânsito da Arguida, aqui Recorrida, incorrendo num erro crasso de apreciação da prova (objetiva), para nós, retinta-se ilógico, mas que inquinou, definitivamente, a sorte da tomada de Decisão nos autos.

Q. Atendendo a toda a prova produzida, analisada à luz das regras da experiência e do espírito crítico, não poderiam restar quaisquer dúvidas ao Tribunal a quo de que os factos não provados A., B., C., D., E., F., G., H da pronúncia devem ser julgados como provados e os factos provados 3. e 11. da contestação da Arguida têm necessariamente de serem julgados como não provados e, em consequência, seja a Arguida, aqui Recorrida, condenada pelos crimes de que vem pronunciada.

R. Quanto ao pedido de indemnização civil, os factos não provados n.º A., B., E., F. e G. foram mal julgados em face da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, e em consequência deverão ser julgados como provados.

S. Da conjugação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, mormente das declarações do Assistente, aqui Recorrente (Ficheiro Áudio n.º Diligencia_533-17.0T9BNV_2024-04-05_10-46-49, conforme ata de audiência de julgamento de 05/04/2024, com início às 00:55:00 e seu termo aos 00:56:22; com início às 01:06:28 e seu termo aos 01:08:31; com início às 01:00:24 e seu termo aos 01:01:36) e da testemunha II (Ficheiro Áudio n.º Diligencia_533-17.0T9BNV_2024-04-19_14-36-29, conforme ata de audiência de julgamento de 19/04/2024, com início às 00:09:25 e seu termo aos 00:13:03), companheira deste, resulta provado que tiveram necessidade de reorganizar a vida familiar e todas as deslocações principalmente as familiares, ficaram a cargo da companheira do Demandante, aqui Recorrente, esclareceu ainda o Demandante que não viu o seu filho mais novo enquanto esteve nos cuidados intensivos e só no dia em que teve alta da … é viu o seu filho mais novo começar a andar.

T. Resultou provado que o Demandante, aqui Recorrente, não só alegou o valor a atribuir à roupa e calçado (€ 200,00) no seu pedido de indemnização civil junto aos autos (artigo 122), como fez prova através das suas declarações. (Ficheiro Áudio n.º Diligencia_533-17.0T9BNV_2024-04-05_10-46-49, conforme ata de audiência de julgamento de 05/04/2024, com início às 01:06:28 e seu termo aos 01:08:31).

U. Motivos pelos quais, analisada à luz das regras da experiência e do espírito crítico, não poderiam restar quaisquer dúvidas ao Tribunal a quo de que os factos não provados n.º A., B., E., F. e G. do pedido de indemnização civil do Demandante, aqui Recorrente devem ser julgados como provados e, em consequência, seja a Arguida, aqui Recorrida, condenada pelos crimes de que vem pronunciada e a Demandada BB seja condenada no valor do pedido de indemnização civil peticionado no valor de € 118.929,11 (cento e dezoito mil, novecentos e vinte e nove euros e onze cêntimos).

V. Assim que, julgando-se (também) como provados A., B., C., D., E., F., G., H da pronúncia e os como não provados os factos 3. e11. da contestação da Arguida, dúvidas não restam que estão verificados os elementos objetivos e subjetivos dos tipos de crime de que a Arguida, aqui Recorrida foi acusada e pronunciada.

W. Resultou provado que a conduta da Arguida – ao mudar de direção à esquerda repentinamente, em local impróprio (em contramão), sem assegurar um dever objetivo de cuidado, invadiu a hemi-faixa de rodagem do Assistente embatendo com a sua frente na lateral esquerda do veículo do Assistente – provocou os danos (patrimoniais e não patrimoniais provados nos presentes autos), motivo pelo qual a Sentença a quo substituída por outra que condene a Arguida pelo crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 3 do Código Penal e pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos artigo 291.º, al. b), n.º e 4 do Código Penal, por referência aos artigos 29.º, n.º 1, 30.º, n.º 1e 44.º, n.º 1 e 2 do Código da Estrada.

X. Face o exposto, atendendo aos factos dados como provados A., B., C., D., E., F., G., H da pronúncia (e como não provados os factos 3. e 11. da contestação da Arguida) são também julgados provados os factos referentes ao pedido de indemnização civil (factos n.ºs 1 a 101 e A I) no valor total de € 118.929,11 (cento e dezoito mil, novecentos e vinte e nove euros e onze cêntimos), devendo a Sentença a quo substituída por outra que condene a Demandada no referido pedido de indemnização civil.»

1.3 O recurso foi admitido, por tempestivo e legal, aderindo ao mesmo a demandante DD.

1.4 A arguida apresentou resposta ao recurso interposto pelo assistente, pugnando pela respetiva improcedência e consequente manutenção da decisão recorrida, sustentando ser a sentença recorrida clara quanto ao raciocínio em que assenta o seu entendimento, fundado no que as provas podem determinar.

Tendo em conta o croqui do acidente bem como o relatório pericial, decorre inegavelmente dos mesmos que o veículo da Arguida não transpôs o eixo da via, logo, não teria invadido a via contrária.

Mais refere não poder o recorrente arvorar o seu recurso em prova que está vedada, considerando o disposto nos artigos 355.º e 357.º, n.º 1, do Cód. Processo Penal – não podendo ser consideradas as declarações anteriormente prestadas pela arguida, por não reproduzidas em sede de julgamento.

1.5 A Seguradora BB respondeu ao recurso interposto, pugnando pela improcedência do mesmo e manutenção da decisão recorrida.

1.6 Neste Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, também pugnando pela improcedência do recurso, ao que respondeu o recorrente, reiterando as razões já aduzidas na respetiva motivação.

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Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.

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2. QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância, sem prejuízo das questões que forem de conhecimento oficioso (artigos 379.º, 403º, 410.º e 412º, nº 1, do Cód. Processo Penal e AUJ n.º 7/95 de 19/10/95, in DR de 28/12/1995).

Não se detetando questão de conhecimento oficioso, atendendo às conclusões apresentadas, cumpre apreciar:

- Do recurso quanto à matéria de facto;

- Se a conduta da arguida preenche os tipos legais do crime de ofensa à integridade física por negligência, p. p. pelo art. 148.º, n.º 3, do Código Penal e do crime de condução perigosa na forma negligente, p. e p. pelo art. 291.º, al. b), nºs 1 e 4, do Código Penal, por referência aos arts. 29.º, n.º 1, 30.º, n.º 1; 35º e 44.º, n.º 1 e 2, do Código da Estrada;

- Dos pedidos de indemnização civil.

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3. DA DECISÃO RECORRIDA

Transcreve-se a decisão recorrida, nos segmentos relevantes, começando pela matéria de facto:

«Da pronúncia:

Com interesse para a boa decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 28.07.2017, cerca das 14h56m, a arguida conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula …, pela Av. …, …, sentido EN ….

2. Em sentido contrário circulava o ofendido CC, conduzindo o motociclo de passageiros de matrícula ….

3. Nisto, ocorreu um embate entre o veiculo da arguida e o motociclo conduzido pelo ofendido CC, tendo este sido projetado contra o capot do veículo conduzido pela arguida e daí para o passeio do lado direito da via, aí ficando inanimado.

4. Nesse dia e àquela hora, o tempo apresentava-se seco, a visibilidade era boa e o piso da via estava em bom estado de conservação.

5. A via apresentava-se como uma reta com visibilidade numa extensão de cem metros para a arguida e de setenta metros para o ofendido.

6. No local, após, os factos supra descritos, não existiam no piso quaisquer rastos de travagem notórios.

7. Nas circunstâncias de tempo e lugar em apreço, não circulava qualquer outro veículo em nenhum dos sentidos.

8. Como consequência direta e necessária do embate do motociclo no veiculo, o condutor do motociclo sofreu:

- Traumatismo abdominal fechado;

- Contusão no ombro esquerdo, com deformação do ombro;

- Ventre em tábua;

- Hemorragia uretral visível;

- Hematoma peritoneal;

- Lamina milimétrica de derrame pleural esquerdo;

- Atelastasia laminar no segmento medial do lobo médio;

- Liquido peritoneal peri hepático no abdómen e no espaço Morrisson, a sujeitar hemoperitoneu;

- Sinais de fratura do 11 arco costal esquerdo;

- Fratura cominutiva da omoplata esquerda, parecendo haver também envolvimento da base acrómio esquerdo;

- Grande quantidade de sangue intra – abdominal;

- 3 Lacerações do meso do delgado e 1 perfuração do jejuno;

- Vários hematoma do meso;

- Varias lacerações do peritoneu parietal;

- Hematomas retroperitoneais;

- Lacerações do meso de colon e serosa;

- Rafia do peritoneu visceral, ressecção de 10 cm de jejuno aos 40 cm com, anastomose LL;

- Fratura da glenoide com extensão à escama da omoplata e fratura do acrómio; e

- Redução cruenta osteossíntese rígida por cirurgia da fratura cominutiva da espinha e escama da omoplata e fratura de apófise coracóide.

9. Lesões que obrigaram a intervenção cirúrgicas, a internamento hospitalar até 21.08.2017 e que lhe determinaram 322 dias de doença, todos com afetação da capacidade profissional.

10. Como consequência direta e necessária dos ferimentos sofridos, CC ficou ainda com as seguintes lesões:

- Dor e rigidez no ombro esquerdo;

- Obstipação cronica;

- Falta de força no membro superior esquerdo com esforço, dificuldade na mobilidade por limitação de movimentos, por rigidez;

- Cicatriz linear na omoplata com 28 cm;

- Cicatriz vertical na região mediana do abdómen com cerca de 22 cm por 1 cm;

- Cicatrizes de escoriação arredondadas, hiperpigmentadas com 1,5cm, um a e outra de 2cm, na zona interna do cotovelo do braço direito

- Cicatrizes de escoriação arredondadas, hiperpigmentadas com 1,5cm, um a e outra de 2cm, na zona interna do cotovelo do braço esquerdo, que lhe afetam a capacidade de trabalho, enquanto agente de autoridade.

Contestação:

11. O embate referido em 3 ocorreu porque o veiculo motociclo, conduzido pelo ofendido, ultrapassou o eixo central da via, invadindo a hemi-faixa de rodagem contrária - onde seguia a arguida - embatendo no veiculo desta.

Do pedido de indemnização civil deduzido por CC:

1. Ao tempo do acidente, a responsabilidade civil pelo veículo de matrícula … — veículo tripulado pela Arguida - havia sido transferida para a BB, aqui Demandada, nos termos do disposto no DL 291/2007, de 21 de agosto, através de contrato de seguro titulado pela apólice n…., válida e eficaz à data do acidente.

2. O acidente motivou o imediato transporte do ora demandante para o Hospital de …, tendo dado entrada no Serviço de Cirurgia Geral NH, pelas 16h45.

3. Neste serviço, foi-lhe realizada uma TAC Toracoabdominopélvio, foi submetido a uma "laparotomia mediana supra e infraumbilical", tendo sido submetido aos procedimentos de "RESSECCAO PARCIAL INTESTINO DELGADO, N/CLASSIFICAVEL OUTRA PARTE", "SUTURA DO PERITONEU" e de "REPARAÇÃO DE MESENTÉRIO, NCOP", intervenção cirúrgica de urgência que teve inicio às 17h20 e término às 20h26.

4. Na sequência da intervenção cirúrgica foi-lhe diagnosticado um "TRAUMATISMO INTESTINO DELGADO NCOP SEM MENCAO, FERIMENTO PENETRANTE CAVIDADE e Abdómen agudo".

5. No período de pós-operatório foi admitido na Unidade de Cuidados Intensivos, sedado e ventilado, servido onde permaneceu internado cerca de 6 dias, tendo-lhe apenas sido retirados os drenos no 5.2 dia de pós-operatório.

6. No dia 02/08/2017, foi transferido para a enfermaria do Serviço de Cirurgia Geral, pelas 16:22 horas, local onde permaneceu internado até dia 11/08/2018, tendo-lhe sido prestados no pós-operatório todos os cuidados, realizados todos os exames e análises e administrada toda a terapêutica adequada ao seu estado de saúde.

7. Tendo-lhe sido retirada argália, sem intercorrências, ao oitavo dia do pós-operatório.

8. Ainda na sequência do acidente sofreu uma fratura complexa na omoplata esquerda.

9. Dada a gravidade e complexidade da lesão da omoplata o demandante foi aconselhado a ser operado no Hospital …, pelo cirurgião especialista, DR. JJ.

10. Pelo que, no dia 11.08.2018, pelas 14h00, recebeu alta do Hospital de ….

11. Nesta data, encontrava-se dependente do apoio da sua companheira, II para a realização da sua higiene diária, comer e para se vestir.

12. No referido dia o Demandante seguiu para o Hospital …, em …, onde deu entrada nos Serviços de Urgência, pelas 16:19 horas.

13. Onde permaneceu internado no serviço de ortopedia com o objetivo de ser intervencionado cirurgicamente à omoplata esquerda, no dia 17/08/2017.

14. Durante esse período (11/08/2017 a 21/08/2017), foram realizados ao Demandante os exames complementares e administrada a terapêutica.

15. No dia 17/08/2017, em virtude da grave lesão na omoplata esquerda, o Demandante foi submetido a um procedimento cirúrgico de redução cruenta e osteossíntese rígida da omoplata.

16. Teve alta no dia 21.08.2017, data em que ficou marcada a primeira consulta de ortopedia.

17. Foi para o domicilio com indicação para permanecer em repouso absoluto.

18. Bem como com recomendações de manter a suspensão do braço, apenas retirando-a para se despir, vestir, proceder à sua higiene diária, tendo-lhe sido dadas indicações sobre exercícios que deveria fazer diariamente.

19. Todos cuidados médicos prestados ao Demandante no Hospital …, decorrentes do seu internamento, ascenderam ao montante total de €7.313,66.

20. No dia 30/10/2017 regressou ao Hospital … para a primeira consulta de ortopedia.

21. No dia 20/12/2017 regressou ao Hospital … para a consulta subsequente de ortopedia e para a realização de um raio-x Convencional ao ombro

22. No dia 02/01/2018 regressou ao Hospital … para a consulta subsequente de ortopedia.

23. No dia 07/03/2018 regressou ao Hospital … para a consulta subsequente de ortopedia.

24. Por indicação médica, realizou fisioterapia e reabilitação desde 18.09.2017 até 06.06.2018, num total de 90 sessões, tratamentos com medicação analgésica, gelo e contusão.

25. Sendo que, a data da consolidação médico-legal das lesões é fixada em 15 de junho de 2018.

26. Consultas e tratamentos esses que tiveram um custo no montante total de € 3.733,50, comparticipando a ADSE em € 1.644,65 e suportando o demandante o remanescente de €2.088,58.

27. Desde 2017, o demandante frequentou a piscina do ginásio “…”, em …, por indicação médica para reforço muscular do ombro acidentado, pelo que paga o valor de €46,00, por mês, desde Novembro de 2017 e que em 15.01.2019 - data da apresentação do pedido cível - correspondia ao total de €696,20.

28. Atendendo ao seu estado de saúde debilitado, porque não podia conduzir, fez-se acompanhar com a companheira, sempre que possível, em todas as deslocações ao Hospital, farmácia, fisioterapia, consultas de ortopedia.

29. Quando não era possível a companheira acompanha-lo, tinha que se deslocar de táxi, pelo que teve despesas de transporte no valor total de €982,00.

30. Quando regressou ao seu domicílio (em 21/08/2017) o Demandante teve necessidade de permanecer em repouso durante, pelo menos, cinco meses, tendo necessitado de auxílio direto e permanente da companheira, durante os primeiros dois meses, na realização das tarefas básicas do quotidiano, desde comer, vestir, fazer a higiene diária, etc.

31. Após esse período o Demandante começou a ter alguma autonomia na realização dessas tarefas do dia a dia, apesar das dores constantes.

32. O Demandante deixou de auxiliar a companheira nas tarefas domésticas, tal como arrumar e aspirar a casa, lavar a loiça, pôr a mesa, lavar e passar a roupa, limpar o pó, confecionar as refeições, etc.

33. Bem como deixou de ajudar a companheira nas tarefas domésticas inerentes aos cuidados com os filhos de ambos, designadamente, dar banho aos filhos, fazer a higiene dos dentes, vesti-los, dar-lhes de comer, deitá-los, levantá-los de manhã, levá-los à escola/creche, acompanhá-los nas atividades extracurriculares, como natação.

34. À data do acidente o demandante era …, na …, tendo como principais funções a investigação de crimes executados com arma de fogo, executando diligências no exterior, como buscas e detenções.

35. Funções que exigiam uma elevada preparação e robustez física.

36. Auferia um vencimento mensal de €1.774,80, acrescendo a este valor o subsidio de risco, no valor mensal de €390,63.

37. Acresciam os montantes referentes aos subsídios de prevenção passiva no valor de € 206,39 (duzentos e seis euros e trinta e nove cêntimos) e ativa no valor de € 276,72 (duzentos e setenta e seis euros e setenta e dois cêntimos), bem como o subsídio de piquete no valor de € 68,52 (sessenta e oito euros e cinquenta e dois cêntimos) e, ainda, o subsídio de refeição no valor de € 99,44 (noventa e nove euros e quarenta e quatro cêntimos).

38. O demandante estava de prevenção, pelo menos, dez vezes ao ano, bem como estava de piquete, pelo menos, cinco vezes ao ano.

39. Pelo que, desde a data do acidente até à data da alta para o exercício da profissão (27 de abril de 2018), o Demandante deixou de auferir o montante referente aos subsídios de prevenção ativa e passiva, bem como o montante correspondente ao subsídio de piquete, o que implicou uma perda de rendimento do valor de € 4.964,67 (quatro mil novecentos e sessenta e quatro euros e sessenta e sete cêntimos), entre os meses de agosto de 2017 e maio de 2018, da forma que se discrimina:

A) Subsídio de prevenção passiva, no valor mensal de € 206,39 (duzentos e seis euros e trinta e nove cêntimos);

B) Subsídio de prevenção ativa, no valor mensal de € 276,72 (duzentos e setenta e seis euros e setenta e dois cêntimos);

C) Subsídio de piquete, no valor mensal de € 68,52 (sessenta e oito euros e cinquenta e dois cêntimos).

TOTAL MENSAL DE SUBSÍDIOS: €: 551,63 (QUINHENTOS E CINQUENTA E UM EUROS E SESSENTA E TRÊS CÊNTIMOS) X 9 = €: 4.964,67 (quatro mil novecentos e sessenta e quatro euros e sessenta e sete cêntimos).

40. Como consequência direta e necessária do acidente, em virtude das sequelas sofridas, determinaram-lhe 322 dias de doença.

41. A DD, através de Junta Médica realizada a 08/08/2018, atribuiu ao Demandante uma Incapacidade Permanente Parcial de 6,9%, de acordo com o Capítulo IX, n g 3, Grau I e Capítulo l, N.2 3.2.7.3, alínea b) lado passivo da T -N.1 .

42. O Demandante foi promovido a … em maio de 2018, passando a desempenhar outras funções que não exigiam ao Demandante tanta destreza.

43. O veículo … era tripulado única e exclusivamente pelo Demandante nas suas deslocações do quotidiano.

44. Demandante usava o veículo … diariamente para se deslocar de casa para o trabalho e vice-versa, bem como para se deslocar para outros locais, em todo o país, inerentes à sua profissão e noutras deslocações para os seus compromissos pessoais e familiares.

45. Após o acidente supra descrito, o Demandante passou a deslocar-se diariamente de casa para o trabalho, e vice-versa, usando transportes públicos.

46. Sendo que nas suas deslocações de cariz pessoal ou familiar passou a depender da utilização de outro veículo usado regularmente pela sua companheira.

47. Após o acidente, o veículo … foi rebocado por uma empresa de reboques, para as suas instalações, onde esteve imobilizado, desde a data do acidente até meados de outubro de 2017.

48. Com o acidente, o Demandante teve danos no capacete …, óculos de sol da …, top case da …, roupa e calçado, bem como um telemóvel … e um telemóvel …, com os seguintes valores:

€ 40,00 (quarenta euros) pelo capacete … ;

€ 50,00 (cinquenta euros) pelos óculos de sol da …;

€ 250,00 (duzentos e cinquenta euros) top case da ….

€ 600,00 (oitocentos euros) pelo telemóvel …;

€ 300,00 (oitocentos euros) pelo telemóvel …;

49. À data do acidente o Demandante tinha 40 anos.

50. Era uma pessoa bem-disposta, alegre e muito ativa.

51. Sempre praticou várias modalidades desportivas, como futebol e desportos radicais.

52. Era também instrutor de tiro.

53. E tinha um enorme gosto em andar de mota.

54. Era um pai dedicado e que acompanhava ativamente o crescimento e desenvolvimento dos três filhos.

55. Antes do acidente acompanhava os filhos nas atividades extracurriculares, nomeadamente frequentava aulas de natação com o seu filho mais novo, o que deixou de fazer após o acidente e ainda não faz por vergonha das cicatrizes que ostenta na parte superior do seu corpo (abdómen e braço esquerdo),

56. Acontece que tudo mudou depois do acidente.

57. Ficou impossibilitado de praticar tiro, porquanto ainda não consegue ter o controlo da arma.

58. Nunca mais andou de mota.

59. Nunca mais praticou qualquer desporto, porquanto tem medo de se magoar, novamente.

60. Após o acidente, o Demandante ficou sem ver os seus dois filhos mais velhos durante um mês e meio, uma vez que a sua companheira se viu obrigada a deixá-los aos cuidados dos avós maternos em … (a mais de 400 km de distância), até ao início do período escolar, por forma a dar assistência ao Demandante e a prover o filho mais novo.

61. Só viu o filho mais novo, duas semanas após o acidente.

62. Como consequência direta e necessária do acidente, o Demandante sentiu dores fortíssimas, tendo dificuldades a vestir-se.

63. Ainda não consegue levantar pesos com o braço esquerdo, sentindo ainda muita dificuldade em levantar o braço acima da cabeça.

64. Nem tão-pouco consegue pegar na arma, porquanto ainda não recuperou toda a força e mobilidade do braço esquerdo,

65. Deixou de conseguir pegar ao colo e brincar com os dois filhos mais velhos.

66. Apenas consegue pegar no seu filho mais novo sobre o braço direito, com muitas dificuldades, compensando a força necessária sobre esse mesmo braço.

67. Frequentemente tem dores nas costas, sobretudo sobre a omoplata esquerda, quando levanta o braço ou quando faz algum tipo de força.

68. Tinha e tem dificuldades em dormir, dado que não tinha, nem ainda tem, posição para o fazer e qualquer movimento lhe era doloroso.

69. Ainda sente dores ao deitar-se sobre o lado esquerdo.

70. Além disso, por força do acidente, o Demandado passou a sofrer de obstipação crónica.

71. Sofreu com pesadelos contínuos vivenciando o acontecimento traumático do acidente, sofreu alterações de sono.

72. Como consequência direta e necessária das intervenções a que foi submetido e, por isso, por única e exclusiva consequência do acidente, o Demandante ficou com uma cicatriz com cerca de 22 centímetros por 1 centímetro, supra e infra umbilical, fazendo queloide,

73. Com uma cicatriz com cerca de 28 centímetros, para o lado esquerdo do ombro esquerdo, tendo feito igualmente queloide.

74. Com uma cicatriz de escoriação arredondadas, hiperpigmentadas com 1,5 centímetros a 1 centímetro e outra de 2 centímetros, na zona interna do cotovelo do braço direito,

75. Bem como com uma cicatriz de escoriação arredondadas, hiperpigmentadas com 1,5 centímetros a 1 centímetro e outra de 2 centímetros, na zona interna do cotovelo do braço esquerdo.

76. Cicatrizes essas perfeitamente visíveis em fato de banho, das quais o Demandante sente vergonha, razão pela qual deixou de acompanhar o seu filho mais novo nas aulas de natação.

77. Ficando frustrado e revoltado com toda a situação.

78. O demandante temeu pela própria vida.

79. Perdeu parte de um órgão vital, designadamente 10 centímetros do jejuno aos 40 centímetros - intestino delgado.

80. Volvidos três anos, como consequência direta e necessária do acidente, o demandante teve uma recaída, no dia 09.05.2020.

81. Que originou a sua entrada, pelas 07h15, nas urgências do Serviço de Atendimento Permanente, e consequente internamento, por 3 (três) dias, no Hospital ….

82. O Demandante deu entrada nas referidas urgências com fortes dores abdominais acompanhadas de vómitos e paragem de emissão de gases e fezes.

83. Tendo-lhe sido diagnosticado um quadro de oclusão intestinal por eventual brida (vulgo cicatriz) após investigação clínica, imagiologia e laboratorial, sendo internado para vigilância.

84. Durante o período de internamento (09/05/2020 a 11/05/2020), foram realizados ao Demandante exames complementares e administradas as terapêuticas

85. Pelo seu internamento hospitalar o Demandante teve uma despesa diária no montante de € 221,66 (duzentos e vinte e um euros e sessenta e seis cêntimos) à qual acrescem os custos referentes aos kits de equipamento de proteção individual e serviços de enfermagem.

86. Todos cuidados médicos prestados ao Demandante no Hospital …, decorrentes do seu internamento, ascenderam ao montante total de € 676,04.

87. Volvidos quatro anos, do acidente de viação, o Demandante teve novamente uma recaída no passado dia 22/09/2021, que originou a sua entrada no dia 22/09/2021, nas urgências do Serviço de Atendimento Permanente, e consequente internamento no dia 23/09/2021, por 3 (três) dias, no Hospital ….

88. Deu entrada nas referidas urgências com fortes dores abdominais acompanhadas de náuseas, sem vómito.

89. Tendo-lhe sido diagnosticado um quadro de oclusão intestinal por eventual brida (vulgo cicatriz) após investigação clínica, imagiologia e laboratorial, sendo internado para vigilância.

90. Durante o período que esteve nas urgências e no internamento (22/09/2021 a 25/09/2021), foram realizados ao Demandante exames complementares e administradas as terapêuticas.

91. No dia 22/09/2021 deu entrada nas urgências que originou uma despesa de € 19,55 (dezanove euros e cinquenta e cinco cêntimos) e foi lhe cobrado a Tarifa Segurança COVID-A permanente.

92. Para além disso, no dia 23/09/2021, foi-lhe cobrado a tarifa Segurança Covid - Diária no valor de€ 30,00 (trinta euros).

93. No dia 06/10/2021 o Demandante teve uma consulta de Cirurgia Geral que deu origem a uma despesa de € 5,00 (cinco euros)

94. Pelo seu internamento hospitalar o Demandante teve uma despesa diária no montante de € 132,44 (cento e trinta e dois euros e quarenta e quatro cêntimos), à qual acrescem os custos referentes aos kits de equipamento de proteção individual e serviços de enfermagem.

95. Todos cuidados médicos prestados ao Demandante no Hospital …, decorrentes do seu internamento, ascenderam ao montante total de € 515,84

96. O Demandante teve novamente uma recaída no passado dia 16/02/2024, que originou a sua entrada nas urgências do Serviço de Atendimento Permanente, e consequente internamento, por 3 dias no Hospital ….

97. O Demandante deu entrada nas referidas urgências com fortes dores abdominais acompanhadas de náuseas, sem vómito.

98. Tendo-lhe sido diagnosticado um quadro de oclusão intestinal.

99. Durante o período que esteve nas urgências e no internamento (16/02/2024 a 18/02/2024), foram realizados ao Demandante exames complementares e administradas as terapêutica, perfazendo o total de despesas no montante de € 89,00.

100. Pelo seu internamento hospitalar e kit de medicamentos o Demandante teve uma despesa no montante de € 147,46.

101. Todos cuidados médicos prestados ao Demandante no Hospital …, decorrentes do seu internamento, ascenderam ao montante total de € 236,46

Da DD:

1. Por oficio de 14 de Maio de 2018, a … enviou àDD o requerimento de realização de junta médica e vários documentos adicionais, respeitantes ao Inspetor Chefe CC.

2. Entre outros documentos, foi anexo ao referido oficio cópia da participação e qualificação como acidente de trabalho do acidente em 28 de Julho de 2017 e que vitimou CC.

3. Em consequência do acidente CC sofreu lesões constantes do ponto 8 e 10 da acusação.

4. Por oficio de 10 de Julho de 2018, a DD convocou CC, para comparecer no dia 08 de Agosto de 2018, nas instalações da DD para realização de junta médica para confirmação de incapacidade.

5. A junta médica realizada a 08 de Agosto de 2018, considerou que das lesões apresentadas pelo sinistrado resultava uma incapacidade permanente parcial, atribuindo um grau de incapacidade de 6,9%.

6. Por decisão proferida a 27 de Novembro de 2018, proferida pela Direção da DD, ao abrigo de delegação de poderes conferida pelo Conselho Diretivo e publicada no Diário da República, II serie n.º 66, de 4 de Abril de 2018, foi fixada a CC, uma pensão por acidente em serviço - pensão vitalícia no valor de €1.590,65.

7. Atendendo ao grau de desvalorização fixado, a titulo de reparação do acidente em serviço sofrido pelo sinistrado, foi fixado pela DD, o capital de remição de €14.587,13.

8. Por oficio de 27 de Novembro de 2018, a DD, informou CC de que o abono da pensão por acidente em serviço fixado ficaria suspenso, dado que, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 41.º do DL n.º 503/99 de 20 de Novembro, as prestações por incapacidade permanente resultante de acidente ou doença profissional, não são cumuláveis com a parcela da remuneração correspondente à percentagem de redução permanente na capacidade geral de ganho do trabalhador.

Das condições económicas e pessoais:

1. No que a este propósito respeita, resultou provado que:

- A arguida reside sozinha, mantendo, ao nível familiar, ligação próxima com os filhos. KK, filha mais velha da arguida e com morada na mesma rua, constitui-se como suporte fundamental em termos da gestão da vida quotidiana da mesma, fisicamente debilitada no contexto de múltiplas patologias (artrite reumatoide; insuficiência renal e anemia aguda).

- A arguida veio para … em junho de 2022 a fim de beneficiar do apoio da filha após sofrer uma queda com fratura de fémur.

- Tem acompanhamento domiciliário diário por parte de uma terceira pessoa, entre as 17h00 e as 20h00 horas, que assume os cuidados com a sua higiene, a confeção de refeições e a limpeza da habitação.

- Dois dias por semana a arguida frequenta a Fundação …, beneficiando, naquele contexto, de sessões de Fisioterapia, de consultas de Psicologia e de Atividades Ocupacionais.

- À data dos factos a arguida vivia sozinha em …, na condição de viúva desde 2011.

- AA encontra-se reformada desde 30/05/2006, após vinte e três anos a trabalhar como … em vários estabelecimentos de ensino público.

- Tem um rendimento liquido de €1.435,03. Os rendimentos obtidos pela arguida, relativos a pensão de sobrevivência e pensão de viuvez, permitem custear as despesas fixas com a habitação e saúde. Relativamente a custos com a alimentação e outras/eventuais despesas pessoais (produtos de higiene, vestuário, deslocações para consultas e apoio domiciliário) são asseguradas pela filha.

- Apresenta problemáticas de saúde relevantes, como Hipertensão arterial, Valvunopatia (estenose aórtica), Insuficiência renal moderada, Artrite reumatoide e anemia aguda. A arguida segue medicada em conformidade, tendo sido sujeita a três transfusões sanguíneas nos últimos seis meses. Condicionada na sua

autonomia, mantém-se na dependência de terceiros para realizar tarefas básicas como tomar banho ou sair da habitação.

Antecedentes criminais:

A arguida não tem antecedentes.

Factos não Provados:

Da pronúncia:

A. Ao chegar perto do entroncamento de tal via com a Rua …, a arguida mudou de direção para a esquerda antes do local adequado para o efeito e sem atender ao trânsito de veículos que ali se fazia sentir.

B. Com efeito, invadiu a faixa de rodagem em sentido contrário e, com a parte frontal do seu veículo, embateu na lateral esquerda do motociclo.

C. Os factos do ponto 8 resultam do embate do veiculo conduzido pela arguida AA.

D. Os ferimentos foram decorrentes da conduta da arguida AA.

E. A arguida sabia que, para mudar de direção à esquerda, tinha de atender ao trânsito que se fazia sentir no sentido contrário à via em que seguia, devendo ceder a passagem a todos os veículos que ali transitassem e fazer a manobra no local adequado, de forma a ficar na faixa de rodagem no sentido em que pretendia seguir.

F. Contudo, a arguida não o fez, prosseguindo, ao invés, com a marcha imprimida ao veículo por si tripulado, invadindo a faixa de rodagem de sentido contrário.

G. Ao proceder da forma atrás descrita, a arguida revelou falta de cuidado do qual era capaz e que deveria ter adotado por forma a evitar o acidente que, de igual modo, deveria ter previsto, dando causa ao mesmo e às lesões que daí resultaram para Aurélio Dias Pinto Afonso, as quais lhe determinaram sofrimento físico e perda de mobilidade.

H. A arguida agiu assim de forma livre, com inteiro conhecimento da ilicitude e probabilidade da sua conduta, embora não se conformando com a mesma.

Da contestação da arguida:

I. A Arguida cessou a marcha do veículo, junto ao eixo central da via, e no entroncamento para a Rua ….

J. Sinalizou a sua pretensão de mudar de direção à esquerda.

L. Quando iniciou a marcha do seu veículo atendendo que não se vislumbrava qualquer veículo na direção oposta, a Arguida é surpreendida pelo Ofendido na faixa contrária, no supra mencionado motociclo, em alta velocidade.

M. Atendendo a alta velocidade a que o Ofendido entrou na curva que dava acesso à estrada onde a Arguida se encontrava, a mesma repara que o Ofendido efetua “duas guinadas” com o referido motociclo.

N. A Arguida imobilizou instantaneamente o seu veículo, ainda antes de ultrapassar sequer o eixo central da via.

Do pedido de indemnização civil do demandante CC:

A. A situação referida em 46 situação trouxe uma reviravolta na organização pessoal e familiar.

B. Dado que o Demandante e a sua companheira passaram a depender de um único veículo, uma vez que o Demandante passou a ter receio de conduzir, pelo que, todas as deslocações familiares como levar os filhos à escola, ir às compras, levar os filhos às atividades extracurriculares, etc., passaram a ficar a cargo da companheira do Demandante.

C. O motociclo foi rebocado pela empresa de reboques e manutenção e reparação automóvel "…".

D. Na data referida em 47, o demandante vendeu o referido veículo.

E. O valor da roupa e calçado era de €200,00 (duzentos euros) em roupa e calçado.

F. Perdeu um momento único da vida do seu filho mais novo, designadamente não assistiu o seu filho a dar os primeiros passos.

G. Nem acompanhou o início do ano escolar dos seus filhos mais velhos.

H. Passou a sofrer de irritabilidade fácil em situações de algum stress.

I. Tornou-se uma pessoa mais ansiosa, mais cautelosa em tudo o que faz, sente um medo constante de se voltar a magoar, sente dificuldade de concentração.

J. Necessitou de ser reanimado.

Motivação da decisão de facto:

Pronúncia e contestação da arguida:

O Tribunal formou a sua convicção quanto à matéria de facto com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência, conjugada com o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.º 127.º do CPP.

A arguida, por questões de saúde, não compareceu na audiência de julgamento.

O assistente/ofendido CC, relatou que, no dia 28 de Julho de 2017, depois das 14h30, foi interveniente num acidente. Foi a … almoçar com uns amigos e regressava, de moto para o trabalho, em …, tendo passado na Rua …, seguindo no sentido …/…. O veiculo ligeiro circulava em sentido contrário.

Da participação de acidente de viação, constante de fls. 28 a 30, cujo teor foi confirmado pela testemunha LL, Militar da GNR, que a elaborou, resulta que, o outro interveniente era um veiculo ligeiro de passageiros, de matricula …, na altura conduzido pela arguida.

Resultando, da conjugação desta prova, provados os factos dos pontos 1 e 2.

A prova dos factos dos pontos 4 a 6, resulta também da participação de acidente de viação constante de fls. 27 a 30 e das fotografias e dados do local, referidos no relatório de diligência da … nos autos a fls. 790 e segs.

Por outro lado, das declarações do assistente, e do depoimento das testemunhas GG e HH, resulta que, na altura não existia trânsito.

Não tendo existido qualquer outro sinistro no local, consideramos credível o referido, resultando provados os factos do ponto 7.

No que respeita à dinâmica do acidente, em síntese, contou o assistente CC que, circulava de mota, e uma viatura que circulava em sentido contrário, invadiu a via onde seguia, virando à esquerda. Ainda travou, mas foi muito em cima do local onde a senhora virou. Não seguia a mais de 50 Km/h, justificando que sabe que seguia a esta velocidade, porque é o normal para si. Concretizou que se recorda do veiculo, quando se aproxima do entroncamento, virando aquele repentinamente à esquerda, invadindo a via onde seguia. Questionado sobre o que pretendia dizer com repentinamente, diz que, não fez sinal, e ia virar para um local que não era permitido. O local onde a senhora pretendia entrar, era o local de saída dos veículos que vinham daquela rua. Mais disse que, circulava no meio da sua via, como faz sempre, e não desviou um milímetro do sentido em que seguia. Trava, a mota foi a direito, bateu de raspão no veiculo, à frente, saltou para o capot, e depois para o chão, indo a mota a rastejar. Questionado sobre como estava o veiculo, no momento em que bate, diz que estava na obliqua, e o seu corpo e a mota vão para a esquerda. Mais concretiza que, o embate foi na parte frontal da viatura, com a frente e depois lateral esquerda do motociclo.

Para apreciação das declarações do assistente, impõe-se considerar as fotografias do veículo, do processo de sinistro, que se encontram de fls. 217 a 221 dos autos, nas quais são visíveis danos na frente esquerda do mesmo. Em concreto do meio do veiculo, para a esquerda, sendo que, na parte esquerda incidem também sobre o capot. O motociclo, considerando as fotografias de fls. 209 a 215, apresenta danos na proteção da roda da frente e do lado esquerdo, sendo nestas percetível que se trata de uma marca de arrastamento.

Para esta mesma apreciação, releva considerar também o croqui, constante da participação de acidente viação, de fls. 28 a 30, do qual se retira, para o que agora releva, que a faixa de rodagem tinha 7 metros de largura.

Posto isto, retomando as declarações do assistente, por este foi dito que, conduzia o motociclo, no meio da sua via de trânsito. O que, transpondo para o local, significa que, tendo a faixa de rodagem 7 metros de largura, cada via (ou hemi-faixa de rodagem) tinha 3,50m. Conduzindo no meio, estaria a uma distância de cerca de 1,75, do eixo da via.

Diz o assistente, que a arguida entrou na sua via de trânsito, porque ia virar para a esquerda, num local que não lhe era permitido.

Porém, conduzindo o assistente, como diz, no meio da sua via de trânsito, o veiculo da arguida, para o atingir, teria que ter entrado, com a frente toda na sua via de trânsito, ficando inclinada para a esquerda, visto que, pretendia virar. A ser desta forma ( que descreve) vindo o motociclo do lado direito do veiculo, os danos no veiculo, não podiam ser do meio para o lado esquerdo, porque, necessariamente, apanharia o veiculo da arguida, ou na lateral direita ou na frente direita. E mesmo considerando que, entra na obliqua, na via de trânsito onde seguia o ofendido, tal faria com que a parte direita do veiculo, estivesse já na sua via, e naturalmente, vindo o ofendido da direita, seria este lado que apresentaria danos. Não a esquerda do veiculo.

Os danos do veiculo, são um elementos objetivo do processo, e consequentemente, a dinâmica do acidente, tem que os explicar. E esta dinâmica descrita pelo assistente, não se coaduna com os mesmos.

Razão pela qual, a este propósito, o assistente não nos convence.

Mas mais.

Como testemunha, prestou depoimento GG, mecânico automóvel, com uma oficina, à data, à beira da estrada, de frente para o entroncamento; HH, com estabelecimento de lavagem de carros, também junto do entroncamento, do lado onde circulava o motociclo e MM, colega da testemunha anterior.

Pela testemunha GG, foi dito que, estava na sua oficina, a encher um balde para pôr numa plantas. A torneira, estava mesmo à beira da estrada, frente do entroncamento. Estava a olhar de frente. Viu vir o carro do lado esquerdo, que vinha , meio “desgovernado”, a tentar virar para a esquerda, teve o reflexo de pôr as mãos no ar, para avisar que a senhora ia entrar mal, e quando baixa, vê a mota a bater no carro. Vinha, já com uma parte do carro, na outra faixa da estrada. Tenta virar para o lado esquerdo, mas nunca parou. Vinha, “para não para, e nunca parou” e arranca para virar para a esquerda. Aquilo é uma espécie de rotunda, que está fora da faixa de rodagem. A pessoa invadiu a faixa contrária para virar para a esquerda, e a mota quando bate já está na outra faixa. Aí uns 50%. A pessoa não fez os 90.º, ia de frente. A senhora ia a 10 km/h, para virar. A mota aparece nas suas costas. Não viu a mota vir. As condições da via, são iguais ao que está agora. É uma avenida, com faixas estreitas. Sobre o local onde ficou a viatura, ficou na primeira entrada da rotunda, já com uma parte do veiculo, na faixa contrária. O carro não estava a 90.º graus, se tivesse a mota ia bater do lado direito. O carro estava ligeiramente de frente. Quando chegou os bombeiros, largou o senhora da mota, que estava como morto, e viu que o carro não estava no sitio do embate. Estava mais recuado, mas não foi aí que foi o impacto. O impacto, foi no meio da via onde circulava a mota. Não sabe se tinha pisca o veiculo da arguida. Sobre obras na estrada, diz que não. Só nos passeios.

Mais concretizou que, estava a olhar para o carro. A mota veio de trás, das suas costas. Questionado sobre como foi o embate, diz que, a mota não travou. Não teve tempo. Apanha o carro de frente, do lado esquerdo. De raspão. Bate com o pneu da frente esquerda no carro. A mota foi a rojo. O senhor passa por cima do capot. Passou à frente do carro, a senhora estava bem e foi ter com o senhor da mota. A senhora estava assustada. No momento que viu , não saiu do carro. Os danos no carro não foram quase nenhuns. Ficou com o senhor encostado ao passeio. Ficou junto do senhor, até foram buscar uma garrafa de água. Quando chegou os bombeiros, foi para a oficina. A GNR também chegou. Foi apara a oficina.

Mais disse que, a estrada faz uma inclinação para onde a senhora ia. Por isso, da sua experiencia, refere que, o carro mesmo destravado e desengatado, nunca poderia ir para a trás, mas sim para a frente (para o entroncamento). Porque já estava com três rodas de um lado, e uma no outro. Já no final do seu depoimento, referiu que, levantou as mãos, quando viu a senhora, mas esta não o conseguia ver, porque tinha um limoeiro e a vedação, dificulta a visualização.

A testemunha HH, contou que, estava a trabalhar. Tinha uma loja de lavagem, do lado onde vinha a mota. Ouviu um embate forte e sai para fora da loja, quando vê uma mota a arrastar no chão e a vitima também de rojo. A mota até parou um pouco mais à frente. Foi logo prestar socorro com o colega.

Foi em frente da sua loja. Mesmo em frente da rotunda. Do lado da mão do condutor da mota. Questionado referiu que, a perceção que teve foi que o veiculo ia virar. A senhora ia entrar no cruzamento, no lado da saída dos veículos. Deu-lhe a sensação que a viatura, provavelmente, ia virar na rotunda, porque pegou o senhor quase de frente. Prestou os primeiros socorros, quando chegou a ambulância vai embora. Houve o embate, teve a sensação que o carro descaiu um bocadinho para trás. Não sabe se foi com o embate, a senhora não travou ou o que foi. A posição do acidente, ficou na frente da saída dos veículos. Não sabe se ia entrar ou não. Foi neste sentido que ficou. Ela passou para a faixa contrária. Ficou fora da faixa dela. O veiculo fica mesmo em frente a essa entrada proibida. Não tinha trânsito, era só o senhor de mota.

Concretizou que quando sai, o carro descaiu um bocadinho, para trás. A estrada era um bocadinho desnivelada. Acabando por dizer que acha que terá sido pelo embate. A parte da frente do veiculo, estava um pouco no sentido contrário. Não sabe se ia entrar ou não. Ela sai da faixa dela. O sol estava de frente, e estava um sol de frente. Viu a senhora dentro do carro em pânico, porque pensava que tinha matado o senhor. Pelo que, percebeu, o carro depois não foi mexido. Estava muita gente em volta, dizendo depois que, não sabe se foi mexido ou não. Para terminar referindo que, do que se apercebeu não foi mexido.

A testemunha MM, que trabalhava no estabelecimento de lavagem, ouviram barulho e o ex-patrão correu mais a esposa. Ligou para o 112. Foi até lá, porque precisava de dados para indicar no telefone. Viu o senhor no chão. Viu a senhora fora do carro, encostada na porta. Não estava dentro do carro. Questionado sobre onde estava o veiculo, disse que, o carro estava de frente, de quem vai de … para …. Na faixa da senhora. Concretizou que a senhora estava um pouco antes da rotunda, no sentido …. Não consegue dizer se estava a direito ou enviesado. Estava ao telefone e só foi pedir informações.

Apreciando:

Recordando, de acordo com a testemunha GG, estava no exterior do estabelecimento a encher um balde com água, de frente para o veiculo, dando conta da sua aproximação. A senhora vinha desgovernada, ” a tentar virar para a esquerda”, também nas suas palavras, vinha no vira, não vira, mas nunca parou, sendo que, tinha uma parte do carro, na outra faixa da estrada. Situa o acidente, na primeira entrada da “rotunda.”

Do relatório fotográfico junto aos autos, de fls. 262 a 283, e em concreto, das fotografias com os n.ºs 10, 11, 12, 13, 14, 15 e 16, constatamos que, a faixa de rodagem, no sentido em que seguia a arguida, e antes do entroncamento, é ladeada de edifícios/habitações, seguindo-se em momento anterior ao mesmo, um espaço com vegetação. Junto à faixa de rodagem, existe sempre passeio, que termina no entroncamento - cf. fotografia n.º 16. O referido entroncamento, é visível na fotografia n.º 18, e nas fotografias com os números 34, 35 e 36, tendo uma espécie de ilhéu/rotunda no centro.

Diz a testemunha, que a senhora vinha desgovernada, a tentar virar para a esquerda, com o vira não vira, situando o acidente na primeira entrada da “rotunda”. Ora, atento o local onde diz ter ocorrido o embate - na primeira entrada do entroncamento - não faz qualquer sentido a referida indecisão, por parte da arguida. E não faz sentido, porque antes a arguida não tinha qualquer local para virar. Portanto, antes de chegar ao entroncamento, não tinha qualquer motivo para estar indecisa.

Diz também esta testemunha que estava junto à estrada, numa torneira a encher um balde e que levantou os braços, perante a indecisão da senhora, acrescentando no fim que, o fez, mas que a senhora não o deve ter visto, porque tem a rede e o limoeiro, sendo pouca a visibilidade.

Desde logo, de acordo com as regras da experiência comum, não é credível que, uma pessoa que, esteja a encher um balde com água, consiga dividir a atenção com o que se está a passar na estrada, e que inclusivamente, com tanto pormenor consiga afirmar que, a senhora já vinha com uma parte do veiculo em sentido contrário. Acresce que, deixou a testemunha escapar a pouca visibilidade, por causa da vedação e do limoeiro! Ora, se era pouca a visibilidade para a senhora que estava na estrada, também teria que ser para o próprio, não fazendo qualquer sentido, este seu relato.

Sobre o embate, refere a testemunha que, a arguida arranca, para virar para a esquerda, invade a via contrária, sendo aqui que se dá o embate. E acrescentou que, a senhora não virou a 90.º graus, mas ia em frente, dizendo ainda que, o carro tinha as três rodas na outra via e uma na via onde estava a senhora.

Voltando novamente às referidas fotografias. Ainda que, a senhora, como o diz, não tenha virado a 90º graus, e pretendendo a mesma, também como disse entrar no entroncamento, e ainda que saísse a direito da sua via de trânsito, seria sempre a lateral direita do seu veiculo que ficaria do lado do arguido. Porque, nas suas palavras, ia na direção da entrada/saída do entroncamento. E mais, estando três rodas do veiculo, como o afirmou na outra via de trânsito, o veiculo estaria de lado, na via, e como tal, e mais uma vez, seria a parte direita do veiculo, que sofreria o embate, ficando se explicação o embate no meio frontal e os danos no lado esquerdo.

Também aqui, não se coaduna esta descrição com os danos no veiculo. Aliás, face às referidas incongruências, não é credível sequer que esta testemunha tenha visto o aproximar do veiculo e até o próprio embate. Inclusivamente, diga-se que, se o ofendido/assistente referiu que, a mota bateu no veiculo e o seu corpo foi para cima do capot do veiculo, assim justificando os danos no mesmo, já esta testemunha, que se disse tão atenta à dinâmica do acidente, referiu que, o ofendido passou por cima do capot, e caiu ao chão. Portanto, o impacto maior, que faria todo o sentido que a ver o embate tivesse visualizado, e retido, não viu, relatando uma realidade totalmente diferente.

Assim, não nos transmite esta testemunha qualquer segurança. Manifestamente disse mais do que aquilo que realmente sabe e viu, não sendo, nesta parte, credível.

Também a testemunha HH, se colocou no local. Esta testemunha, não viu o embate. Descreve que, estava a trabalhar, e foi o barulho que o chamou a atenção. Saiu para o exterior, e viu a mota de rojo no chão e o senhor também. Mas aqui, entra também o exagero e a incoerência. É que, segundo esta testemunha, ao sair do estabelecimento além de ver o referido, ainda viu o carro a descair um bocadinho (nas suas palavras) dizendo que, pode ter sido do embate.

O exagero e incongruência deste depoimento, é percetível logo no seu inicio. Referimo-nos ao descair do carro. Ainda que estando perto do local de embate, não é coerente sequer, que na referida aflição, consiga perceber que o veiculo descaiu. Ainda por cima, quando diz que foi um bocadinho, como disse, e quando está a olhar para a mota e para o ofendido, no chão, como também referiu.

Quanto ao embate, diz esta testemunha, que a sensação que teve, foi que, o veiculo ia a virar, porque apanhou o motociclo quase de frente. Acrescentando, que a senhora ficou na faixa contrária. Não se alongou muito. Interessando dizer que a senhora estava na faixa contrária, sem qualquer outra explicação e diga-se sem convicção. Aliás, nesta testemunha foi patente o dizer por dizer. Sendo que, até afirmou que estava muito sol, que pode ter influenciado a condução, para depois, não conseguir sustentar tal afirmação. Porém, também aqui, fica por explicar os danos no veiculo.

Curiosamente, contrariamente a estas testemunhas, a testemunha MM, que trabalhava com a testemunha anterior, e que referiu que, apenas ligou ao 112, aproximando-se do local porque precisou de pedir informações, referiu que, a arguida tinha o veiculo na sua faixa de rodagem, e que viu a arguida, no exterior, encostada à porta do mesmo.

Esta testemunha foi perentória. Disse o que sabia, o que se lembrava, afirmando que não se recordava quando não sabia. Foi direta, assertiva, sem rodeios, e como infra se verá, a posição que revelou como sendo do veiculo, explica efetivamente os danos.

Considerando agora o croqui constante da participação de acidente de viação, a fls. 30. A testemunha LL, Militar da GNR, prestou depoimento, tendo dito que, não se recorda já do que viu quando chegou ao local. No entanto, confirma que elaborou a participação de acidente de viação e o seu teor. Questionado sobre se os veículos tinham sido retirados do local, disse que não apurou no local que tal tivesse sucedido, por isso colocou-os no croqui. Ninguém disse que tinha mexido nos veículos, esclarecendo que, do croqui fez constar uma nota, dizendo que os veículos não constam do croqui, porque foram retirados, no entanto, trata-se de um lapso.

Analisando o croqui, considerando, mais uma vez que, a faixa de rodagem tem 7 metros, cada hemi-faixa de rodagem terá necessariamente 3,5m. Tendo o veiculo ficado a 4,70 e 4,60 face ao limite esquerdo da via - e isto considerando o seu sentido de marcha - significa que, o veiculo se encontrava posicionado, no momento do embate, na sua via de trânsito, com a traseira mais perto do eixo da via, do que a parte frontal.

É certo que, se considerarmos o esboço do veículo, este aparece, com a parte frontal mais perto do eixo da via, relativamente à parte traseira, o que não corrobora as medições. Importa porém considerar que, o croqui não está à escala, relevando aqui, porque se pretende ter a perceção da realidade, que foram feitas medições que e que não foram contestadas. E quanto a estas o veículo encontrava-se na sua via de trânsito, tal como o referiu a testemunha MM.

Neste ponto, importa referir, novamente, as declarações da testemunha GG, que mencionou que, foi ajudar o senhor que estava no chão, que esteve junto dele até chegarem as ambulâncias, e que quando voltou o veiculo já não estava no mesmo local. Afirmando que foi mexido. A testemunha HH, ficou manifestamente indeciso e baralhado, não sabendo o que dizer, referindo primeiramente que, estava muita gente em volta, não sabe se foi mexido Para terminar referindo que, do que se apercebeu não foi mexido.

A falta de credibilidade destas testemunhas, está também patente, na baralhação da testemunha HH e na incongruência das afirmações da testemunha GG.

A arguida na altura tinha 75 anos. Naturalmente, como é perfeitamente percetível, e como foi relatado pelas próprias testemunhas, estava assustada e em pânico. Não é credível que, uma pessoa nestas condições, perante uma situação tão grave, e com a idade da arguida, pense que tem que tirar o veiculo do lugar onde se encontra, e mais que isto, pense que tem que o colocar de maneira a que não seja responsável pelo sucedido.

Não é credível, que numa situação tão assustadora como esta, haja tempo e capacidade para se tomar uma decisão destas. Além de que, estando as testemunhas no local, geraria naturalmente receio que lhe fizessem alguma coisa, ou que se opusessem a que assumisse um tal comportamento. O que, ainda que a arguida tivesse pensado em alguma coisa, seria suficiente para a demover.

Estas afirmações, e em especial, a afirmação da testemunha GG, vem apenas confirmar a sua falta de isenção, falta de coerência e falta de credibilidade. Aliás, diga-se que, muito se estranha que, tendo sido, testemunhas oculares do acidente, não tenham ficado presentes para darem os seus contactos aos agentes da autoridade, surgindo com tanta informação apenas posteriormente. Nomeadamente, a testemunha GG, que diz que o carro foi mexido, não se percebe porque razão não ficou no local, para informar a autoridade de tal facto. Recorde-se que, segundo a testemunha LL, Militar da GNR, não apurou no local que as viaturas tivessem sido mexidas. Ninguém disse que tinha mexido no veiculo.

Portanto, estes depoimentos, em nada colocam em causa o que consta do croqui.

Prestou depoimento a testemunha FF, Militar da GNR, que contou que, não foi ao local no dia do acidente, mas fez a investigação, após a apresentação de queixa. Fotografou e analisou o local. Explicou que, conforme está no croqui, a viatura automóvel, estava de forma meio obliqua, tendo em atenção o eixo da faixa de rodagem. A viatura estava de frente para a saída do entroncamento, de quem vem da …. Tudo indica que, a condutora ia usar a saída do entroncamento para entrar. Analisou as fotografias do veiculo e do motociclo tiradas pela seguradora, e o embate foi meio frontal, para a esquerda do veiculo, inclusive capot. O motociclo lateral esquerda. O embate foi fronto-lateral. Questionado sobre se transpôs para o local as medições do croqui, disse que, não sabe, não se recorda. Relativamente ao facto de dizer que o veiculo estava na obliqua, disse que, na altura tentaram medir, para depois afirmar que já não se recorda se o fizeram, para depois dizer que, há uma testemunha presencial que referiu a posição do veiculo. Continuou referindo que, analisou as fotografias da seguradora, dos veículos, mas os danos nos veículos, face à projeção, posição final do veiculo e motociclo e projeção do condutor, é uma colisão fronto-lateral. Se a colisão fosse frontal, o motociclo ficava na frente do veiculo, porque não há uma projeção para cima. O condutor sim, seria projetado. Acrescentou que, apurou a posição do veiculo com base no croqui. E questionado sobre se, caso o veiculo estivesse mais para o lado, a dinâmica e projeção seria diferente.

No que respeita a este depoimento, pouco se retira do mesmo. E isto porque, como o referiu, a testemunha limitou-se a considerar o esboço do veiculo constante do croqui, de um croqui que não está à escala, sem transpor as medições para o local. Portanto, em real e em concreto, sobre o que se passou na realidade, sobre a forma exata como estava o veiculo, nada fez. Limitou-se a tirar conclusões, do esboço do veiculo no croqui, sendo certo que, do mesmo não se retira, sequer, que o veiculo estava na via contrária.

Para analisar o sucedido, e para conseguir tirar conclusões concretas e fiáveis, importava que considerasse as medições, para perceber como e em que posição estava o veiculo. Não são os anos de experiencia que referiu ter, que justificam que da mera visualização do croqui retire as conclusões que diz ter retirado…quando as mesmas não têm sustentação. Não tem também coerência dizer que, os danos e a projeção do motociclo e do ofendido, seria diferente, se o veiculo estivesse na sua via. Até porque, não sustentou sequer esta sua afirmação. Indo o motociclo ao encontro do veiculo da arguida, bate-lhe no centro, ao bater no centro, a projeção do corpo e do motociclo, é exatamente a mesma.

Prestou também depoimento a testemunha NN, …na altura o ofendido era seu subordinado. Estava de férias e soube do acidente, como tinha que reportar o que se tinha passado, foi ao local, e falou com os senhores que trabalhavam na lavagem de carros, e com o senhor da oficina. Recolheu os elementos, por ser um acidente de serviço.

A testemunha EE, …, relatou também que, foi ao local, apurar as circunstâncias do acidente, para depois reportarem. Aqui importa referir que, por esta testemunha foi dito que, quando falaram com a arguida, pela mesma foi dito ter consciência de que estava fora de mão! O que é estranho, porque, logo nas declarações que prestou, após o acidente, e que constam da participação de acidente de viação, a fls. 29, diz exatamente o inverso, ou seja, que foi o senhor da mota que foi contra si.

Portanto, em concreto, e com conhecimento direto, nada demonstraram saber.

Feita esta apreciação, cumpre-nos dizer o seguinte.

O veiculo da arguida apresenta danos na parte frontal esquerda. Em concreto do meio, para a esquerda, sendo o meio compatível com o embate da roda da mota. A mota, tem danos na roda da frente, e depois do lado esquerdo do arrastamento - cf. fls. 217 a 221, 209 a 215. Estes danos não são compatíveis com qualquer mudança de direção do veiculo para a esquerda. Estes danos, e sobretudo o embate da mota no centro do veiculo, é antes sim compatível com um embate frontal, fazendo cair o ofendido no capot do lado esquerdo. O croqui, que é também um elemento objetivo - como o são as fotografias dos veículos - e das medições constantes do mesmo - que não foram colocadas em causa -, suporta esta conclusão, dado que o veiculo da arguida aparece quase direito, na sua via de trânsito, no momento em que ocorreu o embate. Tal como o referiu a testemunha GG e tal como foi concluído pela …, no relatório de diligência que se encontra de fls. 790 e segs.

Perante a posição do veiculo conduzido pela arguida - na sua via de trânsito - tornam-se compreensíveis os danos da frente para a esquerda do veiculo. O motociclo embateu no centro do veiculo. A direito. Circulando a arguida na sua via de trânsito, teve que ser o condutor do motociclo, a invadir a via onde seguia, indo ao encontro da mesma. E não o inverso.

Pelo que, feita esta apreciação, resultam não provados os factos dos pontos A e B e provados os factos do ponto 3 e o 11 da contestação.

Por a propósito desta dinâmica não ter sido feita qualquer outra prova, resultam não provados os factos dos pontos I a N da contestação.

Prestaram também depoimento, como testemunhas, OO, PP e QQ, amigos da arguida, que nada acrescentaram aos factos em apreciação.

Os factos dos pontos 8, 9 e 10 resultam da documentação clinica de fls. 23 a 25, 32 a 36, 195 a 198, 228 a 232, autos de exame médico de fls. 90 a 92.

Não provados resultam os factos dos pontos C e D, por, conforme supra se concluiu, não ter resultado provada qualquer conduta por parte da arguida.

Não provados resultam os factos dos pontos E a H, por não ter resultado provado qualquer comportamento por parte da arguida.

Do pedido de indemnização civil deduzido por CC:

A este propósito, no que respeita aos factos do ponto 1, a prova dos mesmos resulta da apólice e respetivas condições contratuais, constante de fls. 1063 a 1087.

Os factos dos pontos 2 a 7 e 10, resultam da informação clinica do Hospital de …, do relatório de alta e da nota de alta, constantes de fls. 32 a 36 e 465 a 467, do relatório do exame - AC realizado, ao chegar ao Hospital, de fls. 468 e 469, relatório operatório de fls. 470 a 472. Nestes, é descrito o estado do aqui demandante ao chegar ao Hospital, após o acidente de viação e todos os procedimentos que foram adotados e a própria reação aos mesmos, até ao dia da alta, 11.08.2017. O teor destes documentos foi corroborado pelo depoimento do médico, Dr. RR, que assistiu o ofendido, no episódio de urgência e realizou a operação e pela Enfermeira SS que, pelo menos, reconheceu a sua assinatura na nota de alta.

Desde logo, no resumo da informação clinica, de fls. 32, e consequentemente, na entrada do demandante no Hospital é referida uma contusão do ombro esquerdo, tendo sido, momento da alta - cf. relatório - transferido para o cuidado de ortopedia, para orientação e tratamento de fratura complexa da omoplata esquerda - cf. 35.

A propósito contou o demandante CC que, no Hospital de …, foi-lhe transmitido que a lesão que tinha no ombro, era grave, tendo de ser transferido para o Hospital de …. Teve receio, então conseguiu entrar em contacto com o médico, Dr. JJ, que lhe assegurou que faria a operação, na …. Assim, face à possibilidade de ir para …, e sendo uma lesão grave de recuperação difícil, e que poderia colocar em causa a sua profissão, decidiu ir para a ….

Este receio, e o procedimento que adotaram foi corroborado pela companheira do demandante, II, que demonstrou que o acompanhou em todo este procedimento. Também o Médico, Dr. JJ, referiu que era de facto uma situação complexa, estava de férias, mas o demandante esperou que chegasse, confirmando que a operação foi realizada na ….

Da unanimidade e naturalidade destes depoimentos e das declarações do assistente, que a este propósito não nos suscita dúvidas, resultam provados os factos dos pontos 8 e 9.

Na nota de alta do Hospital de …, é feita menção ao facto de, na referida data, se encontrar dependente em grau reduzido nos autocuidados higiene e vestuário, tendo o apoio diário da esposa. - cf. fls. 463. O que foi corroborado pelo demandante CC e pela companheira, II, que inclusivamente a este propósito referiu que, ele precisava de ajuda para tudo.

Resultando, assim, provados os factos do ponto 11.

Para prova dos factos dos pontos 12 a 19 e 20 a 26, releva o resumo da informação clinica, do Hospital …, de fls. 24 a 26, o registo cirúrgico de fls. 495 e a nota de alta de ortopedia de fls. 496 e 497, sendo nesta mencionadas as recomendações, e indicada data para consulta. A testemunha JJ, Médico Ortopedista, que acompanhou o demandante, corroborou esta prova documental, dizendo também que foi seguido em consulta externa. Mais referiu que, no pós operatório deu indicação para realização de fisioterapia, tendo o demandante alta em Junho de 2018, por ter cumprido as indicações. Quanto à fisioterapia, o demandante esclareceu que fez cerca de 90 sessões, tendo sido cerca de €40,00, cada uma. Ainda, em complemento, a data da consolidação médico legal das lesões foi fixada em 15 de Junho de 2018, cf. resulta do relatório de perícia de avaliação de dano corporal a fls. 90 e 92 dos autos.

De fls. 501 resulta a realização das referidas consultas externas, até 07.03.2018 e das faturas/recibos de fls. 498 a 500 - em conjugação com o depoimento do demandante o valor e pagamento das mesmas. Confirmou também o demandante o valor pago no Hospital da …, na sequencia da operação e do acompanhamento que se seguiu á mesma, até á alta, sendo este corroborado pelas faturas/recibo de fls. 484 a 494.

Explicou o demandante que a ADSE, comparticipou algumas consultas e a fisioterapia, confirmando o pagamento de €1.644,65, resultante de fls. 503 e 504, afirmando ter pago o remanescente.

Quanto à necessidade de frequentar o ginásio, o demandante referiu que, fez hidroterapia, no ginásio “ …”, para reforço muscular, tendo pago cerca de €50,00 por mês. A propósito a testemunha II contou que, o companheiro fez hidroterapia, no ginásio … e foi o próprio que suportou os valores. Apesar da coerência destes depoimentos, corrobora os mesmos a declaração passada pelo médico, Dr. JJ, em que refere que CC, beneficia por motivos de saúde da prática regular de exercício - a fls. 505. Justificando, de facto, esta declaração o exercício realizado pelo demandante. Os pagamentos foram por este confirmados e resultam também das faturas/recibo constantes de fls. 506 a 510.

Assim resultando provados os factos do ponto 27.

Quanto às deslocações realizadas, contou o demandante que, não conduzia, e como tal ou ia de táxi, ou ia com a companheira, o que foi confirmado por esta, e resulta também do que são as regras de experiência comum, face ao estado em que se encontrava. Com convicção e naturalidade, confirmou o demandante que as faturas de fls. 511 correspondem às deslocações que fez de táxi, e que pagou.

Pelo que, da conjugação desta prova resultam provados os factos dos pontos 28 e 29.

Os factos dos pontos 30 a 33, resultam das declarações prestadas pelo assistente e pela companheira, II, que de forma emotiva contaram que durante cerca de 5 meses, não conseguiu fazer nada, inclusivamente deixou de fazer as coisas da casa e de partilhar a vida dos filhos, inclusivamente de os acompanhar na natação.

A data da alta para o exercício de funções ocorreu no dia 27 de Abril de 2018, cf. resulta da junta médica de fls. 502. Explicou o assistente que, na data do sinistro era …, estando ligado aos crimes com armas de fogo. Deixou de auferir o subsidio de risco, e os subsídios de prevenção, sendo que, normalmente estaria de prevenção cerca de 12, 13 vezes ao ano, normalmente todos os meses Também estaria de piquete cerca de 6/7 vezes por ano. Confrontado com o aviso de credito de remunerações de fls. 512, confirmou o seu teor. Resultando desta prova os factos dos pontos 34 a 39.

Os factos dos pontos 40, 41 a 42, resultam do relatório da perícia de avaliação do dano corporal de fls. 90 a 92, da Junta Médica, da DD, junta aos autos a fls. 514 e do auto de junta médica a fls. 628, datado de 09.08.2018.

Também das declarações do demandante CC e do depoimento da companheira II, resulta que, aquele andava sempre de mota. Tinha prazer em andar de mota. Só não o fazia quando estava muito frio. E usava para ir para o trabalho. Agora passou a ir de carro ou transportes. Resultando assim provados os factos dos pontos 43 a 46.

Não provados, por a propósito não ter sido feita qualquer prova, resultam os factos dos pontos A e B.

Ainda relativamente à mota, o demandante contou que, foi rebocada, tendo ficado imobilizada nas instalações da empresa, e só tratou dela no final de Setembro, inicio de Outubro. Concretizou que, foi levada para a oficina da …foi dada como perda total.

Quanto ao destino da mota, se o demandante referiu que foi dada como perda total, a companheira, a testemunha II, referiu que foi vendida. Pelo que, perante esta divergência, e na ausência de outra prova, resultam provados os factos do ponto 47 e não provados os do ponto D. Não provados resultam também os factos do ponto C, por não ter sido referido o nome da empresa para onde foi levada a mota.

Referiu também o demandante que, tinha dois telemóveis no bolso, que ficaram estragados, sendo dois …, um … e outro …, sendo o valor de cada um de €700,00/€800,00. Ficou também sem os óculos de sol, no valor de cerca de €50,00, sem o capacete que tinha custado entre €100,00 a €200,00 e um top case da …, no valor de €250,00. Ficou também sem a roupa.

Da fotografia de fls. 517 e 518, resulta os óculos partidos. Nas fotografias de fls. 519 a 522 é visível o top case da mota partido, nas fotografias de fls. 523 a 527 são percetíveis várias lascas no capacete, tornando-o naturalmente inutilizável. As fotografias dos …, partidos no visor, encontram-se a fls. 166, e fazem parte do relatório de averiguação, junto aos autos pela BB. Estas fotografias corroboram o referido pelo demandante, no que respeita a estes objetos.

Os valores foram indicados pelo demandante, com convicção e conhecimento direto dos mesmos, sendo por isso credível o que referiu. Cumpre porém referir que, relativamente aos telemóveis, foram indicados valores superiores aos que constavam do pedido deduzido, sendo assim, considerados, estes valores inferiores. Ao referir o valor superior, tal permite-nos concluir que, constariam, pelo menos, os valores peticionados.

Relativamente à roupa, compreende-se perfeitamente o facto de ter ficado destruída, no entanto, não foi pelo demandante indicado qualquer valor, não tendo sido feita qualquer outra prova a este propósito.

Resultando assim provados os factos do ponto 48 e não provados os do ponto E.

Os factos do ponto 49 resultam do cartão de cidadão do demandante, que se encontra a fls. 528 e 529 dos autos.

Os factos dos pontos 60 e 61, resultam das declarações do demandante e do depoimento da testemunha II, sua companheira, que esclareceram que, apenas o mais novo ficou com os mesmos, ia para a creche, tendo os filhos mais velhos ido para …, voltando apenas em Setembro para as aulas.

Não provados resultam os factos dos pontos F e G, por a propósito dos mesmos não ter sido feita qualquer prova.

A prova dos factos dos pontos 54, 55, 56, 72 a 77, resulta do relatório da perícia de avaliação de dano corporal, sendo que, a fls. 91v, é feita a descrição das cicatrizes de que ficou a padecer o demandante. Referiu o demandante que ficou traumatizado com cicatrizes Não conseguiu fazer natação com o mais novo. Também a testemunha II, referiu que a autoestima ficou afetada, não querendo tirar a t-shirt, nem ir à piscina com o mais pequeno.

Elucidativas das cicatrizes, com que ficou o demandante, após a cirurgia à omoplata, e consequentemente também do referido pelo próprio e pela testemunhas, são as fotografias constantes de fls. 1519.

Os factos dos pontos 50 a 53, 57 a 59, 62 a 69, 71 e 78, resultam das declarações prestadas pelo próprio demandante, que esclareceu como se sentiu e o que sentiu após o embate e com o sucedido posteriormente, e bem assim, o que deixou de fazer, esclarecendo que efetivamente temeu pela sua morte. O que foi corroborado pela testemunha II, e pelos colegas de trabalho, NN e EE, que acompanharam o seu regresso ao trabalho e as suas dificuldades.

Os factos do ponto 70 e 79, resultam do relatório da perícia de avaliação do dano corporal de fls. 90 e segs., do relatório da alta de fls. 34 a 36 e do relato operatório, constante de fls. 470 a 472.

Não provados por a propósito não ter sido feita qualquer prova, resultam os factos dos pontos H, I e J, sendo que, quanto a este último, da documentação clinica, não é referida a necessidade de reanimar o demandante.

Mais referiu o demandante que, após as cirurgias, já por três vezes, se teve que dirigir ao Hospital, por oclusão intestinal. Faz tratamentos, fica internado, sendo o tratamento, para que o intestino se liberte. Atualmente já identifica o inicio, e vai logo para o Hospital. Fica com uma sonda gástrica durante um a dois dias, e com dores enormes. As outras duas vezes foram piores que a última. Os custos com o internamento e tratamento, foram suportadas por si.

Em complemento, prestou depoimento como testemunha TT, Médico cirurgião, que referiu que, atendeu o demandante na …, há uns anos e agora também há uns meses. Sempre por oclusão intestinal. Fez exames, e análises, e ficou internado. É feito, um tratamento conservador, não cirúrgico. E explicou, de forma perfeitamente segura, e com justificado conhecimento que, a principal causa disto é a cirurgia anterior que o demandante sofreu, que levou ao corte de parte do intestino. São como cicatrizes, que acabam por provocar a referida oclusão. Confrontado com o documento clinico de 16.02.2021, de fls. 1009, correspondente a uma nota de alta de cirurgia geral, referiu que, resume tudo o que foi feito ao demandante, numa ida às urgências e confrontado com a nota de alta do dia 01.03.2024, confirma também que se trata do que foi feito ao demandante, na última ida às urgências - cf. referência 10463247.

Finalizou o seu depoimento, referindo que, estes episódios têm como principal causa a cirurgia abdominal a que o demandante foi sujeito.

A segurança desta testemunha, e o conhecimento direto e justificado demonstrado, leva-nos a concluir que, efetivamente a oclusão intestinal, e consequentemente, a necessidade de tratamento, é proveniente da cirurgia abdominal a que o demandante foi sujeito, em consequência do acidente de viação.

Acresce que, o demandante referiu teve existido outra ida ao hospital, e como se retira da nota de alta de fls. 1372, o problema foi exatamente o mesmo.

Assim, e da conjugação desta prova com a documentação clinica e faturas/recibos de fls. 999 a 1014, 1371 a 1377, e referência 10463247, resultam provados os factos dos pontos 80 a 101.

Do pedido de indemnização civil da DD:

A este propósito os factos dos pontos 1 a 8, resultam da certidão do processo administrativo de CC, constante de fls. 618 a 634.

Das condições económicas e sociais:

A prova destes factos resulta do relatório social junto aos autos com a referência ….

Dos antecedentes criminais:

No que respeita aos antecedentes criminais, o Tribunal considerou o certificado de registo criminal emitido a 02.04.2024.

III. O DIREITO:

Enquadramento jurídico-penal

» Crime de ofensa à integridade física por negligência:

A arguida foi pronunciada pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo art.º 148.º, n.º 3 do CP.

Estatui o art.º 148.º, n.º 1, do Código Penal, que quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. (…) 3- Se do facto resultar ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

O art.º 144º do CP estatui: Ofensa à integridade física grave

Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a: a) Privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente; b) Tirar-lhe ou afetar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação ou de fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem;c) Provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou d) Provocar-lhe perigo para a vida;

(…).

O bem jurídico tutelado neste tipo de crime é a integridade física de outra pessoa, que abarca o bem estar do corpo e da saúde.

Ofensa ao corpo é todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado de uma forma não insignificante. Ofensa à saúde é toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a F. Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, págs. 205-207. É a perturbação do equilíbrio fisiológico ou psicológico da vítima.

Trata-se de um tipo legal de resultado, que se analisa em concreto na prática de ofensas a integridade física simples ou graves. Tanto pode ser preenchido por ação como por omissão, desde que, neste ultimo caso, se possa afirmar em relação ao agente a existência de um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado (art. 10°-2).

Estamos perante um tipo de crime negligente e sabido é que este tem como característica o facto de a conduta típica não aparecer definida na lei. São tipos abertos, cabendo à jurisprudência completá-los.

A nossa lei estabelece o conceito legal de negligencia no art.º 15 do CP, dispondo esta disposição legal que: "Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização; ou

b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto".

Distinguem-se, assim, na alínea a) a negligência consciente e na alínea b) a inconsciente.

Na negligência consciente o agente representa como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atua sem se conformar com essa realização —o agente previu a possibilidade do resultado, por exemplo, um acidente, e apesar disso atua, ou deixa de tomar as medidas recomendadas na situação concreta. Na negligência inconsciente o agente não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto —o agente nem sequer pensou nas consequências, embora pudesse tê-lo feito e devesse tê-las previsto.

Hoje é doutrina dominante que a negligência contém um tipo de ilícito e um tipo de culpa. Isto é, como violação de um dever de cuidado objetivo, faz parte do tipo de ilícito, como censurabilidade pessoal da falta de cuidado de que o agente é capaz, é elemento de culpa. Tal é, aliás, consagrado na própria definição legal de negligência, plasmada no referido art.º. 15° do Código Penal.

Em concreto temos que, a lesão da integridade física terá que ser objetivamente imputada a uma conduta (ou omissão) do agente. O que supõe, a violação de um dever objetivo de cuidado. Por isso importa considerar se esse dever existe, qual a sua medida, e a relação causal que entre a sua violação e o resultado produzido.

“Muito embora o legislador penal nada diga (…) acerca da medida do cuidado exigível do agente, pode afirmar-se que esta coincide com o necessário para evitar a ocorrência do resultado típico (…). A afirmação de um tal dever de cuidado far-se-á caso a caso, em função das particulares circunstâncias da atuação do agente, constituindo auxiliares importantes nessa determinação as normas jurídicas que impõem aos seus destinatários específicos deveres e regras de conduta no âmbito de atividades perigosas (por exemplo, as normas de circulação rodoviária). Mas não só se torna evidente que não são apenas essas normas as fontes do dever jurídico de cuidado, como, por outro lado, a sua violação não constitui mais do que um indicio da efetiva lesão desse dever por parte do seu destinatário, assumindo neste contexto um peso fundamental a especifica configuração do caso concreto e a sua analise (grau de perigosidade do comportamento, importância dos bens jurídicos envolvidos, entre outros fatores) ” – Vd. Paula Ribeiro de Faia, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 261.

Assim, o dever objetivo de cuidado decorre, em grande parte, das circunstâncias particulares do caso, ou de normas que visam diminuir ou limitar os riscos próprios de certas atividades, como sucede com as normas do código da estrada.

Salienta-se que o dever de cuidado é limitado pelo princípio da confiança: ninguém terá em princípio de responder por faltas de cuidado de outrem, antes se pode confiar em que as outras pessoas observarão os deveres que lhes incumbem. De acordo com este princípio, quem se comporta no tráfico de acordo com as normas deve poder confiar que o mesmo sucederá com os outros, a não ser que tenha razão fundada para pensar de outro modo. Se um condutor circular pela sua mão de trânsito, tem o direito de partir do princípio que o condutor que circula em sentido contrário também o faz. O condutor que vai na rua e vê um peão, para quem o sinal está vermelho, tem o direito de presumir que o peão não vai atravessar a rua, etc.

A previsibilidade objetiva do resultado ocorre quando, segundo as máximas da experiência e a normalidade do acontecer, o resultado produzido é consequência idónea (adequada) da conduta do agente. Objetivamente previsível tem que ser, não só o próprio resultado, como igualmente o processo causal, ainda que apenas nos seus traços essenciais.

Entramos aqui na teoria da adequação que pressupõe uma condição do resultado que não se possa eliminar mentalmente, mas só a considera causal se for adequada para produzir o resultado segundo a experiência geral. Não está em causa unicamente a conexão naturalística entre ação e resultado, mas também uma valoração jurídica. Excluem-se, consequentemente, os processos causais atípicos que só produzem o resultado típico devido a um encadeamento extraordinário e improvável de circunstâncias. Deste modo, não haverá realização causal (adequada) se a produção do resultado depender de um curso causal anormal e atípico, ou seja, se depender de uma série completamente inusitada e improvável de circunstâncias com as quais, segundo a experiência da vida diária, não se poderia contar.

Não basta para a imputação de um evento a alguém que o resultado tenha surgido em consequência da conduta descuidada do agente, sendo ainda necessário que tenha sido precisamente em virtude do carácter ilícito dessa conduta que o resultado se verificou.

Com efeito, "as ações negligentes de resultado pressupõem uma estrutura limitadora da responsabilidade que se perfila de forma dúplice: de um lado, a violação de um dever objetivo de cuidado (...), valorado também pelo critério individual e geral, e de outro, a exigência de um especial nexo, no "sentido de uma conexão de condições entre a violação do dever e o resultado". Prof. Faria Costa, O Perigo, p. 487.

No fundo, faltará o nexo de ilicitude se o resultado se teria igualmente verificado observando o agente o cuidado devido. Dizendo doutro modo: o resultado só é objetivamente imputável ao agente se assentar na respetiva ação e no nexo de ilicitude. Falta este no caso em que o resultado se teria produzido também se o agente tivesse respeitado o cuidado a que estava obrigado.

Consequentemente, nos crimes negligentes de resultado, como o homicídio (artigo 137º) ou as ofensas à integridade física (artigo 148º), a causação do resultado e a violação do dever de cuidado, só por si, não preenchem o correspondente ilícito típico. Para além da causalidade da conduta, o resultado tem que ser "obra" do sujeito, tem que lhe ser objetivamente imputável.

Com a realização do tipo de ilícito fica indiciada a ilicitude da conduta.

Porém, a negligência supõe que o agente seja capaz de cumprir o dever de cuidado e de prever o resultado típico. Só age negligentemente quem estava em condições de satisfazer as exigências objetivas de cuidado — podendo então ser-lhe censurada a conduta violadora do dever de cuidado e o facto de ter agido não obstante a previsibilidade do resultado. Dizendo por outras palavras: para que exista culpa negligente é necessário que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que estava obrigado; deve portanto comprovar-se se o autor, de acordo com as suas qualidades e capacidade individual, estava em condições de satisfazer as correspondentes exigências objetivas. Para tanto, deve ter-se em atenção a sua inteligência, formação, experiência de vida; deve olhar-se também às especialidades da situação em que se atua.

Ao tipo de culpa dos crimes negligentes pertence assim a previsibilidade individual (subjetiva). A previsibilidade do resultado típico e do processo causal nos seus elementos essenciais deverá verificar-se não só no plano objetivo, mas igualmente no plano subjetivo, de acordo com a capacidade individual do agente. Na negligência inconsciente o agente não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto, ficando excluída a previsibilidade individual, especialmente por falhas de inteligência ou de experiência. Na negligência consciente o agente representa sempre como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime.

As condutas realizadas ao abrigo do risco permitido não são negligentes (não chegam a preencher o tipo de ilícito negligente), se o agente não criou ou incrementou qualquer perigo juridicamente relevante, não existindo sequer a violação de um dever de cuidado.

A negligência exclui-se se o agente se contém nos limites do risco permitido, maxime se, por exemplo, num atropelamento não criou nem potenciou um risco para a vida ou para a integridade física da vítima.

“Partindo agora para a análise de um grupo de casos concretos, podemos considerar que no âmbito da circulação rodoviária onde este tipo legal encontra um vasto âmbito de aplicação, não só se devera partir como ponto de referência do condutor medianamente cauteloso, tendo em conta inclusivamente o tipo de transporte em causa, como terão que se ter presente os particulares conhecimentos do agente. (…) Em todos os casos em que o perigo decorra da atuação de outras pessoas fala-se num princípio de confiança (…)” – in obra citada pág. 265.

Revertendo ao caso concreto, resultou provado que, no dia 28.07.2017, cerca das 14h56m, a arguida conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula …, pela Av. …, …, sentido EN …. Em sentido contrário circulava o ofendido CC, conduzindo o motociclo de passageiros de matrícula ….

Nisto, ocorreu um embate, entre o veiculo da arguida e o motociclo conduzido pelo ofendido CC tendo este sido projetado contra o capot do veículo conduzido pela arguida e daí para o passeio do lado direito da via, aí ficando inanimado. Mais se provou que, foi o veiculo motociclo, conduzido pelo ofendido, que foi embater no veiculo da arguida, ultrapassando o eixo central da via, logo invadindo a faixa de rodagem contrária.

Ao nível do dever objetivo de cuidado, verifica-se que a circulação rodoviária é em si mesma perigosa para determinados bens jurídicos, porém permitida atenta a sua utilidade social, pelo que se impõem especiais precauções e o escrupuloso cumprimento das normas da condução rodoviária pelos condutores, por forma a evitar a concretização do perigo.

Pode, pois, afirmar-se que, violando-se tais regras, viola-se o dever objetivo de cuidado. Como refere Paula Ribeiro de Faria “o dever de cuidado no âmbito da circulação fica em grande medida dependente das regras aí vigentes” , sendo certo que as mesmas não podem deixar de ser normas jurídicas indiciadoras de uma contrariedade ao cuidado objetivamente devido.

Estes crimes cometidos nas nossas estradas, resultam na sua quase totalidade, da elevada perigosidade que a circulação rodoviária acarreta e, consequentemente, da violação de deveres de cuidado estabelecidos por lei com vista a evitar que essa perigosidade não se concretize.

Recorrendo a algumas regras estradais.

O Código da Estrada impõe no art.º 3.º, n.º 2 que: “ As pessoas devem abster-se de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias.” Prevendo no n.º 3 que: “ Quem infringir o disposto no número anterior é sancionado com coima de (euro) 60 a (euro) 300.”

Também no C. da Estrada o art. 11.º, n.º 2 “ que os condutores devem, durante a condução abster-se de prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança.” Acrescenta o n.º 3 da mesma disposição legal que quem infringir o disposto no número anterior “ é punido com coima de € 60 a € 300.”

Ainda, e sobre a posição de circulação, dispõe o art.º 13.º do C. da Estrada que: “ 1 - A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.

2 - Quando necessário, pode ser utilizado o lado esquerdo da faixa de rodagem para ultrapassar ou mudar de direção.

3 - Sempre que, no mesmo sentido, existam duas ou mais vias de trânsito, este deve fazer-se pela via mais à direita, podendo, no entanto, utilizar-se outra se não houver lugar naquela e, bem assim, para ultrapassar ou mudar de direção.”

Sucede que, não resultou provado qualquer comportamento, por parte da arguida, que se enquadre na omissão de qualquer dever objetivo de cuidado. De facto ocorreu um embate entre o veiculo por si conduzido e o motociclo. Porém, quem sai da sua hemi-faixa de rodagem, e vai embater na arguida, é o condutor do motociclo, violando sobretudo o disposto no art.º 13.º do C. da Estrada.

Estando a arguida na sua hemi-faixa de rodagem, o embate e as consequências provenientes do mesmo, ocorrem porque o ofendido invade a hemi-faixa de rodagem contrária, onde circulava a arguida.

Como supra referimos, a lesão da integridade física terá que ser objetivamente imputada a uma conduta (ou omissão) do agente. O que supõe, a violação de um dever objetivo de cuidado. Por isso importa considerar se esse dever existe, qual a sua medida, e a relação causal que entre a sua violação e o resultado produzido.

No caso, não há qualquer relação causal entre a conduta da arguida e o embate do motociclo. A arguida circula na sua hemi-faixa de rodagem. Circula na via da direita, como se lhe impunha, sendo o outro condutor que invade a sua via, e que embate no veiculo.

Portanto, é o outro condutor, aqui assistente, que omite o dever objetivo de cuidado que se lhe impunha, e que embate na arguida, advindo deste embate a que deu causa, os danos que sofreu e que resultara provados.

Feita esta apreciação, é assim possível concluir que a conduta da arguida em nada contribuiu para a produção do acidente.

Face ao exposto, não existindo por parte da arguida a violação de qualquer dever objetivo de cuidado, causal do acidente, entendemos ser de absolver a mesma da prática do crime.

« Do crime de condução perigosa, na forma negligente, p. e p. pelo art.º 291, alínea b), n.ºs 1 e 4 do CP, por referencia aos artigos 29.º, n.º 1, 30.º, n.º 1, 35.º e 44, n.º 1 e 2 do C. da Estrada:

Prevê este artigo que:

“1 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:

b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em autoestradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;

e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

(…)

3 - Se o perigo referido no n.º 1 for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

4 - Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.”

“Com esta disposição pretendeu-se evitar, ou, pelo menos, manter dentro de certos limites, a sinistralidade rodoviária, que tem vindo a aumentar assustadoramente no nosso país, punindo todas aquelas condutas que se mostrem suscetíveis de lesar a segurança deste tipo de circulação, e que, ao mesmo tempo, coloquem em perigo a vida, a integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado” (Paula Ribeiro de Faria, in COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, PARTE ESPECIAL, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 1080).

Como refere José Faria Costa, na anotação que faz ao artigo 272º, in ob. cit., a propósito do bem jurídico protegido pelos crimes de perigo comum que integram o Capítulo III do Título IV do Código Penal, “podemos assegurar que a norma incriminadora visa defender, não só um bem jurídico mas, ao invés, três bens jurídicos.(…) O que se quer proteger é a vida, a integridade física e bens patrimoniais alheios de valor elevado”.

No tipo objetivo de ilícito descrevem-se comportamentos que no âmbito da circulação rodoviária se mostram mais suscetíveis de colocar em perigo os bens jurídicos protegidos e que se podem dividir em duas categorias, a saber: a falta de condições para a condução e a violação grosseira das regras de circulação rodoviária.

Trata-se de um crime de perigo concreto, pois pressupõe a demonstração da existência de um perigo concreto para a vida, integridade física ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado. Não basta, por conseguinte, ao preenchimento do tipo legal, a insegurança na condução, ou a violação grosseira das regras de circulação rodoviária, tornando-se necessário, que da análise das circunstâncias do caso concreto, se deduza a ocorrência desse mesmo perigo concreto.

A violação grosseira das regras de circulação rodoviária é aquela que se traduz numa atuação temerária, de ousadia perante o perigo quase certo de ocorrência de sinistro, atentas as circunstâncias do caso concreto, sendo, por isso, mais intenso o dever de evitar o comportamento - cf. Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários, ed. Universidade Católica, 1ª edição, 1996, p. 46.

Por perigo entende-se a suscetibilidade de ocorrer lesão de determinados bens jurídicos tutelados por lei, ou como referem Leal-Henriques e Simas Santos, citando Germano Marques da Silva “é a potência de um fenómeno para ocasionar a perda ou diminuição de um bem”, isto é, “o dano provável”. (in Código Penal Anotado, 3.ª edição, 2.º volume, parte especial, Editora Rei dos Livros, 2000, pág. 1330). Os crimes de perigo concreto inserem-se nos crimes de perigo comum, no âmbito dos quais o perigo se expande relativamente a um número indiferenciado e indiferenciável de objetos de ação sustentados ou iluminados por um ou vários bens jurídicos, sendo, portanto, que nos crimes de perigo concreto, como é o caso do que ora nos ocupa, esse perigo é elemento do tipo.

A punibilidade pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário existirá quer o agente actue com dolo relativamente à intervenção que coloca em perigo o trânsito, quer de forma negligente. Podendo, igualmente, esse perigo ser criado intencionalmente - sempre que o agente conheça as circunstâncias das quais emana o perigo e o aceite nos seus contornos concretos – ou de forma negligente - o agente sabe, tem plena consciência da sua incapacidade para conduzir ou de que viola as regras de circulação rodoviária, mas não representa (negligência inconsciente) ou representa e afasta a possibilidade (negligencia consciente), da criação de um perigo para os bens jurídicos em causa, cf. Paula Ribeiro de Faria, in ob. cit. pg. 1088.

Este tipo legal, pela sua natureza suscita alguns problemas dentro do âmbito da doutrina do concurso, nomeadamente: a) quando o comportamento do agente realize por mais de uma forma o tipo; b) quando no âmbito de um trajeto o agente o agente preencha sucessivamente os modos de atuação do artigo criando várias situações de perigo e c) ainda no que concerne a eventual concurso com contra ordenações estradais praticadas.

No que respeita ao tipo subjetivo, o n.º 1 do art.º 291 exige um duplo dolo da parte do agente: o condutor tem de atuar dolosamente e tem de ter dolo relativamente à criação do perigo para o bem jurídico. É suficiente o dolo eventual. O dolo do agente abrange a insegurança da condução que é provocada pelo estado de embriaguez, e sob o ponto de vista do resultado, tem de abranger também a criação de um perigo concreto para as outras pessoas. O tipo subjetivo do n.º 3 desta norma assenta na combinação entre o dolo e a negligencia do agente. O condutor tem de praticar dolosamente a conduta perigosa, atuando de forma negligente em relação à criação do perigo. “ Isto significa que o condutor quer, ou conforma-se, com a condução perigosa do veiculo, mas não representa ( negligencia inconsciente), ou representa mas não se conforma ( negligencia consciente), com a criação de um perigo concreto para os bens jurídicos protegidos.” – Paula Ribeiro Faria, in obra citada, pág. 677.

Por fim o n.º 4 corresponde à combinação negligência-negligência.

Regressando ao caso concreto, da matéria de facto provada, não resulta que a arguida tenha violado qualquer regras de circulação rodoviária.

Pelo que, necessariamente, se absolve a mesma da prática deste crime.

» Do pedido de indemnização civil do ofendido CC:

Com base na responsabilidade civil pela prática de factos ilícitos, foi pelo demandante deduzido contra a BB, um pedido de indemnização civil, que primeiramente fixou em €117.500,77, acrescido de juros de natureza civil, até efetivo e integral pagamento. Pedido este que ampliou. Na primeira ampliação peticionou € 676,04, na segunda € 515,84 e na terceira € 236,46, valores com o respetivo acréscimo de juros, sendo a final, o total peticionado de €118.929,11. Respeita este valor a danos patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo demandante, como consequência do acidente de viação.

Também, no âmbito da última ampliação, requereu a condenação da demandada a título de danos patrimoniais futuros, de todas as despesas de assistência médica, medicamentosa, consultas de especialidade, internamento hospitalar, intervenções cirúrgicas, sessões de fisioterapia e todas as despesas relativas a exames complementares, em consequência do acidente de viação sofrido pelo Demandante.

Vejamos:

A norma contida no art. 377.º, n.º 1, do CPP, na interpretação fixada no Acórdão 7/99, de 17-06, implica que, mesmo nos casos de absolvição pelo crime, o tribunal deva conhecer do pedido de indemnização civil e condenar o arguido sempre e desde que se comprove a respetiva responsabilidade extracontratual por factos ilícitos (ou pelo risco).

O Professor Germano Marques da Silva in “Curso de Processo Penal”, Volume I, Universidade Católica Editora, p. 79 extrai de tal preceito a autonomia da responsabilidade civil da responsabilidade criminal, não obstante vigorar no nosso processo penal o princípio da adesão obrigatória. Ainda que a indemnização de perdas e danos pedida no âmbito do processo penal deva ter como causa a prática do crime, tal como decorre do citado artigo 71.º do Código de Processo Penal e do artigo 129.º do Código Penal, a verdade é que a absolvição do arguido da prática do crime não implica necessariamente a absolvição do pedido de indemnização civil, devendo o julgador apurar da verificação em concreto dos pressupostos gerais da responsabilidade civil extracontratual.

De acordo com o artigo 129º do Código Penal, a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil, pelo que ter-se-á que atender ao que esta estatui quanto à responsabilidade civil extracontratual.

Dispõe o artigo 483.º do Cód. Civil que "aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".

São assim pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, o facto voluntário do agente, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Conforme evidência Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", Vol. I, o elemento básico da responsabilidade é o facto do agente, que consiste, em regra, num facto positivo. O referido facto, importa, pois, a violação de um dever geral de não ingerência na esfera de ação do titular do direito absoluto, bastando, para fundamentar a responsabilidade civil, a possibilidade de controlar o ato, não sendo necessária uma conduta predeterminada e orientada para certo fim.

O segundo pressuposto é a ilicitude, que consiste na violação de um direito de outrem e na violação de uma lei que protege interesses alheios. O facto ilícito, é, assim, de acordo com Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", Vol. I, o comportamento de uma pessoa, por ação ou omissão, controlável pela vontade, que se consubstancia na violação de um direito de outrem, designadamente qualquer direito absoluto, em que se incluem os direitos de personalidade.

Como terceiro pressuposto, exige-se a culpa, que “pode ser definida como um comportamento reprovado por lei”. Agir com culpa significa, assim, como explanou Antunes Varela, in ob. cit., Vol. II, atuar de uma forma censurável ou reprovável, sendo que, o juízo de censura ou de reprovação da conduta do agente terá que ser aferido em função das circunstâncias concretas do caso, perante a verificação de que o obrigado não só devia, como podia ter agido de outro modo. Nestes termos, a culpa exprime, um juízo de reprovação da conduta do agente.

Por outro lado, como evidência Antunes Varela, in ob. cit., Vol. I, "para haver obrigação de indemnizar, é condição essencial que haja dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a outrem". Este pressuposto constitui o próprio parâmetro da indemnização.

Por último, exige-se ainda o nexo de causalidade entre o facto e o dano, pois, apenas os danos resultantes do facto do agente são por ele indemnizáveis.

Dispõe o artigo 71.º do Código de Processo Penal, que “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo (...) ”, devendo, nos termos do artigo 74.º, n.º 1 do mesmo diploma, ser deduzido pelo lesado, “entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente”.

Regressando ao caso concreto, resultou provado que, ao tempo do acidente, a responsabilidade civil pelo veículo de matrícula … — veículo tripulado pela Arguida - havia sido transferida para a BB, aqui Demandada, nos termos do disposto no DL 291/2007, de 21 de agosto, através de contrato de seguro titulado pela apólice n…., válida e eficaz à data do acidente.

Sucede porém que, não resultou provada a prática de qualquer facto ilícito típico por parte da arguida. Antes, quem agiu, de forma negligente, omitindo os cuidados e diligência que normas do Código da Estrada lhe impunham no exercício da condução, foi o demandante CC, no momento em que saiu da sua hemi-faixa de rodagem, e invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária. É certo que, deste embate, resultaram vários danos, que em concreto correspondem aos factos provados do pedido por este deduzido e que se encontram dos pontos 1 a 105. Porém, foi a sua própria conduta ilícita, que causalmente, levou à violação do seu próprio direito.

Consequentemente, na ausência de qualquer facto ilícito, por parte da arguida, a aqui demandada não é responsável pelos danos causados ao demandante.

No que respeita à responsabilidade pelo risco, acrescentamos que, estando demonstrado que o acidente se deveu exclusivamente à conduta do lesado, entendemos que, não é, possível equacionar a hipótese de concurso da culpa do lesado com responsabilidade pelo risco (e, designadamente, considerar a aplicabilidade do artigo 505.º do CC).

Face ao exposto, não se verificando os pressuposto da responsabilidade civil, absolve-se a demandada do pedido deduzido pelo demandante.

» Do pedido deduzido pela DD:

A DD requer a condenação da BB, no montante de €14.587,13, correspondente ao capital de remição que pagará a CC, como reparação do acidente ocorrido no dia 28 de Julho de 2017, acrescido de juros.

Fundamenta este pedido no disposto no art.º 46.º do DL n.º 503/99 de 20 de Novembro, que sob a epigrafe “ Responsabilidade de Terceiros”, no seu n.º 3, prevê que: “ 3 - Uma vez proferida decisão definitiva sobre o direito às prestações da sua responsabilidade, a DD tem direito de regresso contra terceiro responsável, incluindo seguradoras, por forma a dele obter o valor do respetivo capital, sendo o correspondente às pensões determinado por cálculo atuarial.”

Sucede que, não tendo resultado provada a prática, pela arguida, no âmbito da condução do veiculo, de qualquer facto ilícito, a companhia de seguros, aqui demandada, não pode ser responsabilizada pelo pagamento de qualquer valor, exatamente porque não se trata de um terceiro responsável.

Razão pela qual se absolve a demandada do valor, a este titulo, peticionado.».

*

4. FUNDAMENTAÇÃO:

4.1 Recurso da matéria de facto

Sustenta o recorrente que deverá julgar-se como não provada a matéria de facto dos pontos A., B., C., D., E., F., G., H da pronúncia e como não provados os factos 3 e 11 da contestação da arguida, impondo-o as declarações do assistente, das testemunhas FF, EE, GG e HH, os danos documentados nos veículos, bem como as declarações da arguida prestadas em sede de instrução e o croqui do acidente.

Para apreciar se a decisão recorrida padece de erro de julgamento, convém relembrar alguns conceitos a respeito do recurso sobre a matéria de facto.

O erro de julgamento da matéria de facto ocorre quando o tribunal considera como provado determinado facto, sem que o mesmo tenha sido objeto de comprovação na audiência de julgamento ou dá por não provado facto que, perante a prova produzida, deveria ter sido considerado como provado. Trata-se de erro no processo de valoração da prova por parte do Tribunal e tem que ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação constante do art. 127.º do Cód. Processo Penal.

De acordo com o art. 428.º do Cód. Processo Penal, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito, mas os seus poderes de cognição são limitados. O recurso tem sido qualificado como um remédio jurídico, permitindo a verificação e fiscalização, por parte de um tribunal superior, de eventuais erros na decisão da matéria de facto, mas não equivale a um novo julgamento do objeto do processo.

Por isso se considera que a reapreciação, com vista a detetar erros de julgamento de facto, é limitada aos pontos de facto concretos que o recorrente considera julgados de forma incorreta e às razões concretas invocadas para sustentar essa discordância.

O mecanismo de impugnação da matéria de facto aqui previsto visa corrigir erros manifestos, ostensivos de julgamento, por apelo à prova produzida e que se extraíam do registo da mesma, não legitimando a repetição do julgamento pelo tribunal ad quem.

O tribunal de recurso, ao apreciar os fundamentos da impugnação da matéria de facto, deve verificar se o tribunal de 1ª instância apreciou os meios de prova de acordo com as regras de experiência comum, não retirando deles conclusões ilógicas, irrazoáveis, sem sentido ou contrárias à lei. E, fora destes casos, deve respeitar a livre convicção do tribunal recorrido, em obediência ao princípio expresso no art. 127.º, do Cód. Processo Penal, não se encontrando em posição privilegiada para sindicar a credibilidade atribuída a depoimentos orais. Tal ocorre na medida em que o princípio da imediação não tem no Tribunal de recurso a sua expressão ideal. Aqui, apenas se mostra possível a audição dos registos e não a visualização de todo o depoimento, perdendo-se os gestos, as expressões, os trejeitos e até a confrontação com os documentos na sua plenitude.

Mas tal não significa que a livre apreciação da prova corresponda a livre arbítrio.

O art. 127.º, do Cód. Processo Penal, complementado com o art. 374.º, n.º 2, do mesmo diploma, impõe limites à discricionariedade, uma vez que a livre convicção não se confunde com a íntima convicção do julgador: o ato de julgar está delimitado pelas regras da experiência comum e pela lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, impondo que se extraía das provas um convencimento lógico e motivado.

Porque o art. 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal exige o “exame crítico das provas” é que o tribunal deve fundamentar a decisão em operações intelectuais que permitam explicar a razão das opções e da convicção do julgador, a sua lógica e raciocínio e deve observar as normas processuais relativas à prova, segundo o aludido princípio geral da livre apreciação, mas respeitando as proibições de prova (arts. 125.º e 126.º, do Código de Processo Penal), as nulidades de prova, as regras de valoração de alguns tipos de prova como a testemunhal (arts 129.º e 130.º do Código de Processo Penal) pericial (art. 163.º do Código de Processo Penal) e a documental (167.º a 169.º do Código de Processo Penal).

Em suma, no recurso cumpre verificar a prova e o respetivo processo de aquisição probatória, nomeadamente a observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação e contraditório, mas privilegiando-se a valoração da prova efetuada pela 1.ª instância.

Na génese do art. 412.º, n.º3, al. b), do Cód. Processo Penal, não basta que se apure a possibilidade de ocorrência de uma versão distinta. A imposição de decisão diversa, em que a norma se sustenta, implica que a decisão de facto recorrida está errada, que se mostra impossível ou é destituída de toda e qualquer lógica ou razoabilidade (de acordo com as regras de experiência comum), que o tribunal recorrido fez uso de meios de prova não idóneos ou que existem contradições nas provas produzidas, que levaram à formação de uma convicção inaceitável e que, por isso, não se poderá manter.

O conhecimento dos factos por parte do Tribunal Superior é, como referimos, limitado, apenas podendo introduzir alterações quando exista erro manifesto ou a audição dos registos de prova permita, com toda a segurança, afirmar que foram violadas as regras da experiência comum, não se encontrando em posição privilegiada para sindicar as convicções do tribunal recorrido no que respeita à prova oral produzida.

E a diferente valoração do recorrente quanto à prova produzida também não sustenta a existência de erro de julgamento.

Quando impugne a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas (art. 412.º, n.º 3 do Cód. Processo Penal).

Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do art. 412.º do Cód. Processo Penal fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no art. 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação1.

No recurso da matéria de facto o recorrente tem o ónus de isolar e individualizar quais os factos que impugna e bem assim as provas que fundamentam a sua impugnação e, se for o caso, quais as que pretende ver renovadas e discutidas.

Necessário se mostra que o recorrente, discuta os elementos probatórios de suporte ao pretenso erro de julgamento face aos restantes e demonstre que o raciocínio lógico do tribunal recorrido não tem suporte na análise global da prova, impondo-se decisão diversa.

O que se espera do recorrente que invoca a existência de erro de julgamento é que aponte na decisão os segmentos que impugna e que os coloque em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas (se tal for o caso), quais os documentos ou outros elementos probatórios que pretende que sejam reexaminados, assim evidenciando a verificação do erro judiciário a que alude.

O recorrente cumpriu as exigências da impugnação ampla, sendo percetível os concretos factos que visa sindicar e as partes da prova documental e gravada que, em seu entender, impunham distinta decisão.

Apreciando os fundamentos invocados, analisada e ouvida a prova sindicada, resulta, contudo, que não lhe assiste razão.

Estão em causa os factos atinentes à dinâmica do acidente de viação que ocorreu no dia 28/07/2017, na Avenida…, no …, envolvendo o veículo de matrícula …, conduzido pela arguida e o motociclo de passageiros de matrícula …, conduzido pelo aqui recorrente.

A decisão recorrida concluiu que o embate ocorreu porque o veículo conduzido pelo recorrente ultrapassou o eixo central da via, invadindo a hemi-faixa de rodagem de sentido contrário, embatendo no veículo da arguida, o que o recorrente contesta, sustentando ter sido esta a invadir faixa de rodagem por onde circulava.

Mas o croqui do acidente, ao contrário do que o recorrente alega, não sustenta decisão distinta daquela a que chegou a primeira instância. Não dispondo a via de delimitação, por marcação, das hemi-faixas de rodagem, constata-se efetivamente que “a faixa de rodagem tem 7 metros, cada hemi-faixa de rodagem terá necessariamente 3,5m. Tendo o veiculo ficado a 4,70 e 4,60 face ao limite esquerdo da via - e isto considerando o seu sentido de marcha - significa que, o veiculo se encontrava posicionado, no momento do embate, na sua via de trânsito”.

E nada indica que os veículos, em particular o da arguida, tenham sido reposicionados após o embate e antes de a GNR chegar ao local.

É certo que a testemunha GG afirmou que o veículo tripulado pela arguida havia sido mexido. E também a testemunha HH foi, de modo titubeante, dando conta de tal movimentação (dizendo não ter visto o embate, mas que o veículo da arguida “saiu um pouco da faixa dela”, “ descaiu uns milímetros para trás”).

Mas não podemos deixar de partilhar da escassa credibilidade atribuída a estas testemunhas pelo Tribunal a quo.

Na verdade, as testemunhas apenas são identificadas pelos agentes da…, colegas do recorrente que nos dias seguintes se dirigem ao local, e não se apresentaram à GNR, quando a mesma se deslocou ao local logo após o acidente. Tendo relevante informação, como referem, seria expetável que o tivessem feito, tanto mais que disseram estar no local no momento da chegada da GNR. Não tendo presenciado o acidente, acudindo ao mesmo após o embate, é pouco credível que a testemunha HH se apercebesse que o veículo tenha descaído “milímetros” do local do mesmo (sendo certo que tal razão de medida assumiria escassa relevância em relação à posição do veículo documentada no croqui). E o relato da testemunha GG nem sequer é consentâneo com a descrição do acidente por parte do recorrente. Este refere ter visto um veículo automóvel a circular a direito na hemi-faixa de rodagem de sentido contrário e que, de repente e sem que nada o fizesse prever, virar à esquerda e invadir a faixa de rodagem por onde seguia. Já a testemunha menciona ter visto a arguida numa condução errática e que a mesma invade a faixa de rodagem de frente. Não falamos da mesma dinâmica!. E tendo o assistente referido que o seu corpo embateu no capot da viatura e que a mota embate no carro apenas de lado, já a testemunha refere que o assistente “passou por cima do capot” e que o “pneu” da mota bateu na frente, lado esquerdo, do veículo automóvel. Nem percecionou a testemunha a existência de um passageiro transportado no veículo automóvel.

No mínimo, esta testemunha não teve a perceção cabal de toda a dinâmica do acidente, o que pode ter a sua explicação na árvore e vedação que referiu condicionarem a visibilidade, pelo que nenhum reparo merece a decisão do Tribunal a quo quando desvalorizou o respetivo depoimento.

Estando a arguida em visível estado de nervosismo (o que por todos quanto ocorreram ao local foi percecionado) e rodeada de pessoas, afigura-se pouco provável, como refere a decisão de primeira instância, que tenha aproveitado a ocasião para mover a viatura e que o pudesse ter feito sem desencadear reação dos demais presentes.

Não existe, por isso, motivo válido para desconsiderar as informações que constam do croqui e que colocam, sem margem para dúvidas, o local do embate na hemi-faixa de rodagem do veículo automóvel.

E esta conclusão não interfere, ao contrário do referido pelo recorrente, com a consideração das declarações do assistente. Este tem, podemos dizer, um interesse direto na causa, o que pode condicionar a sua objetividade, mas não é a circunstância de as respetivas declarações não se coadunarem aos dados objetivos do processo, no que diz respeito à dinâmica do acidente, que lhe retira credibilidade. O assistente relatou aquela que foi a sua perceção do evento, que é sempre, pela respetiva intervenção direta e traumática na dinâmica dos factos, parcelar.

Mas nada impõe que o Tribunal considere, em bloco, este depoimento.

O Tribunal deu por provada uma dinâmica não coincidente com o relato do assistente, justificando-o. Alicerçou-se, essencialmente, nos documentos e relatório pericial, sem que para tal tenha que desvalorizar totalmente o depoimento do recorrente, que valorou noutros aspetos, pelo que nenhum erro ou infração das regras de apreciação da prova se deteta neste conspecto.

Nem o depoimento da testemunha FF, que na realidade parece se ter limitado à análise da prova documental já recolhida, aportou elementos relevantes. Retira do croqui conclusões quanto à dinâmica do acidente que (tal como o Tribunal a quo) não conseguimos perceber, pois parte de premissas que não resultam do mesmo e não as soube explicar.

Mais refere o recorrente ter o Tribunal incorrido em erro de julgamento, ao não considerar as declarações da arguida prestadas em sede de instrução. Mas, como bem refere o Ministério Público, não tendo tais declarações sido reproduzidas em audiência, nunca poderiam ser relevadas.

A audiência teve lugar na ausência da arguida, por razões de saúde da mesma.

Dispondo o art. 355.º, n.º 1, do Cód. Processo Penal que não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência, só com a reprodução das declarações nas condições previstas nos arts. 356.º e 357.º, do Cód. Processo Penal, o que não ocorreu, poderiam aquelas ser valoradas.

Vale aqui a jurisprudência do STJ no AUJ n.º 3/2023: “As declarações feitas pelo arguido no processo perante autoridade judiciária com respeito pelo disposto nos artigos 141.º, n.º 4, al. b), e 357.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, podem ser valoradas como prova desde que reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento.”

Não é este o caso, pelo que bem andou o Tribunal a quo, ao não valorar as declarações prestadas pela arguida na fase de instrução.

E também nenhum erro se deteta na circunstância de o Tribunal ter valorado as declarações que a arguida (na altura ainda não investida nessa qualidade) prestou após o acidente e que constam da participação do acidente de viação, para desvalorizar o depoimento da testemunha EE, na parte em que reproduziu em audiência as declarações que a arguida lhe teria prestado quando falou com a mesma.

Embora da participação do acidente conste referência às declarações que a condutora da viatura automóvel prestou a quem elaborou a mencionada participação, não estamos perante o conceito de “declarações de arguido”, no sentido em que estas se encontram regulamentadas em sede processual penal.

E a proibição de valoração de declarações anteriores prestadas pelo arguido visa os testemunhos que colocam em causa, suprindo-o, o respetivo direito ao silêncio, pelo que será inócua em situações, como a presente, em que a declaração documentada (quanto à dinâmica do acidente) em nada desfavorece a declarante.

A atividade investigatória preliminar (por prévia à instauração de inquérito), tem cobertura legal (art. 249.º, do Cód. Processo Penal), não estando as declarações que os intervenientes em acidente de viação prestem às autoridades que após o acidente ocorreram ao local sujeitas às restrições dos arts. 356.º e 357.º do Cód. Processo Penal. Trata-se de prova legal, sendo que, em concreto, o Tribunal não fez uso da mesma para formar a respetiva convicção quanto à dinâmica do acidente.

A referência contestada pelo recorrente surge a propósito das declarações da testemunha EE, quando o mesmo refere ter, dias após o acidente, falado com a arguida que lhe teria admitido “estar na outra faixa”, o que o Tribunal estranha por a arguida ter dado indicação contrária a agente de autoridade dias antes e logo após o acidente.

Mas a consideração, naquela parte, do referido depoimento, como pretendido pelo recorrente, é que sempre seria de questionar, não se tratando de situação em que o art. 129.º do Cód. Processo Penal permita a valoração de depoimento indireto.

Para o recorrente, no fundo, as anteriores declarações da arguida são de utilizar na formação da convicção do Tribunal não por obediência às regras processuais de apreciação da prova, mas sim consoante abonam a sua pretensão.

Mas regendo-se o Tribunal pelas regras de apreciação da prova, vemos que as mesmas foram integralmente respeitadas.

O Tribunal valorizou os elementos objetivos que constam do processo – croqui e fotos das viaturas intervenientes no acidente – chegando à conclusão que o veículo tripulado pela arguida não invadiu a faixa de rodagem contrária e que o embate ocorreu na hemi-faixa de rodagem daquele, conclusão que é reforçada pelo relatório pericial, sem que se detete a inobservância das regras da lógica ou da experiência.

O recorrente não concorda com a apreciação que o Tribunal fez do conjunto da prova, mas tendo aquele respeitado as regras de apreciação da mesma, nenhum reparo merece, neste aspeto, a decisão.

Pretende o recorrente, ainda, no âmbito do pedido de indemnização civil, que os factos não provados A, B, E, F e G, sejam considerados provados, em face das declarações do assistente e da testemunha II.

Mas, com exceção dos danos na roupa, nenhum dos depoimentos comprova cabalmente estes factos alegados no pedido de indemnização civil.

O referido em A é meramente conclusivo pelo que, em nosso entender, nem mereceria pronúncia concreta do Tribunal.

No que respeita ao alegado em B), não resulta, nesta concreta dimensão, das declarações quer do assistente, quer da respetiva companheira.

A testemunha não atribui qualquer valor à roupa e calçado e o assistente não lhe atribuiu o valor indicado no pedido de indemnização. Contudo, fala na roupa que ficou danificada atribuindo-lhe um valor entre 50 a 100€, valor que também refere para os óculos de sol. Assim, seguindo o critério do Tribunal a quo no que concerne aos óculos, também este valor deverá ser considerado, ainda que pelo mínimo, determinando-se nesta parte a alteração da decisão.

No mais, não foi feita prova cabal da data em que o filho mais novo do assistente iniciou a marcha (podendo ter ocorrido quando voltou a ver o pai e na situação que descreveu), nem de que tenha perdido o início do ano escolar dos filhos mais velhos, ou que fosse evento a que habitualmente comparecesse (F e G).

Em suma, destes elementos probatórios, afigura-se-nos que, com a apontada exceção, não resulta erro de julgamento que justifique a intervenção do Tribunal de recurso.

Na verdade, o que realmente se depreende é a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal alcançou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127.º, do Cód. de Processo Penal.

Mas o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum.

Ao tribunal superior cumpre verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respetiva produção, nomeadamente, no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório e publicidade, verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. E só em caso de inexistência de provas para se decidir num determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório (nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica) cometida na respetiva valoração feita na decisão da primeira instância, esta pode ser modificada, nos termos do artigo 431.º, do Código de Processo Penal.

Mas observada a decisão recorrida e ouvida a prova, verificamos que o Tribunal a quo, de forma que não nos merece reparo, demonstrou o processo do seu convencimento, indicando os meios probatórios e os motivos por que foram esses meios determinantes para a sua convicção, fazendo-o em conformidade com as boas regras de apreciação da prova.

Em conclusão, analisada a prova produzida em audiência, os juízos dados como assentes apresentam-se plenamente legítimos, face ao princípio da livre apreciação da prova, sendo a versão dada como provada plenamente plausível, face às provas em análise, não revelando ter havido qualquer arbítrio, ou discricionariedade na sua apreciação, nem atentado contra a lógica, ou as regras da experiência comum.

Temos, pois, que a conjugação de todos os elementos probatórios recolhidos e devidamente explicitados na decisão do Tribunal a quo permite inferências suficientemente seguras no sentido do juízo sobre a matéria de facto, não se vislumbrando qualquer razão de sentido divergente que justifique, e muito menos que imponha (com a apontada exceção), solução diferente daquela a que chegou o Tribunal recorrido.

*

Não merecendo deferimento a alteração da matéria de facto, resultando da mesma que o acidente de viação não é imputável à atuação da arguida, nenhum reparo merece a decisão no que concerne ao não preenchimento das condutas típicas e consequente absolvição, bem como a improcedência dos pedidos de indemnização civil deduzidos contra a demandada, por não preenchimento dos respetivos pressupostos.

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5. DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em:

a) Julgar parcialmente procedente o recurso interposto, alterando a matéria de facto provada, com acréscimo ao ponto 48 de “50,00€ (cinquenta euros) pela roupa”;

b) No mais, julgar improcedente o recurso interposto pelo assistente CC, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo assistente fixando-se a taxa de justiça em 4 Uc´s (arts. 515º, nº1, al. b), do Cód. Proc. Penal).

Notifique.

*

Évora, 25 de fevereiro de 2025

Mafalda Sequinho dos Santos

Manuel Ramos Soares, vencido pelas razões que passo a enumerar sinteticamente:

O acidente não pode ter acontecido da maneira que se considerou na sentença recorrida: foi o condutor do motociclo que saiu da sua mão de transito e embateu no automóvel que seguia em sentido contrário (facto provado 11), de frente (motivação dos factos provados).

Se o embate tivesse sido frontal, os danos no automóvel e no motociclo não podiam ser aqueles que se verificaram. Por um lado, não faz qualquer sentido que o condutor de um motociclo, sem qualquer razão que o explique (e a prova não fornece qualquer indício de explicação para uma coisa tão atípica e anormal), passe a circular fora de mão e vá embater de frente num automóvel que circula em sentido contrário, em pleno dia, com bom tempo, boa visibilidade e sem trânsito. Mas, para além disso, é fisicamente impossível um motociclo bater de frente num automóvel, com uma velocidade tal que faz com que o seu condutor seja projetado para cima do capot e depois para a estrada (velocidade, que, portanto, não podia ser despicienda) e não ficar com um único dano relevante na roda da frente (proteção da roda partida, suspensão torta, pneu rebentado, jante empenada – qualquer coisa). E também é fisicamente impossível que um embate desses deixe no automóvel apenas danos muito ligeiros no para-choques, compatíveis com um embate de raspão. Com os dados apurados, é impossível que aqueles dois veículos tivessem embatido frontalmente.

A tese da sentença, segundo a qual, para o acidente se ter dado como o assistente o relatou, isto é, com o automóvel já a virar à direita, invadindo a metade da faixa de rodagem contrária, os danos teriam de ser na frente direita do automóvel, não tem qualquer sentido. Isso só aconteceria se a condutora do automóvel tivesse virado à esquerda descrevendo uma trajetória em ângulo reto de 90º, como o Código da Estrada manda fazer. Só que, como é do conhecimento comum, ninguém faz isso. E se olharmos para as características do local, quando a condutora do automóvel quis virar à esquerda, na parte errada do entroncamento (ver relatório pericial …), circulando pela esquerda da placa aí existente, então o mais provável e conforme às regras da experiência é que o tivesse feito (ou melhor, no caso, tentado fazer) obliquamente em relação ao eixo imaginário da via e ao sentido de circulação do motociclo. Isso é que é compatível com as características do local, com a idade da condutora (que, de resto, de acordo com o relatório social, é pessoa com doenças graves e muito debilitada) e com a hesitação que a testemunha GG viu na sua condução. O local tem características especiais e uma condutora com as condições da arguida, que queria virar à esquerda e hesitava sobre como e onde o fazer, pode bem atrapalhar-se, sem saber se o deve fazer pela esquerda ou pela direita da placa existente no entroncamento.

Há outra afirmação na sentença, para descredibilizar o depoimento das testemunhas, que igualmente não tem grande sentido. Dizer-se que a condutora não tinha razão para hesitar no que fazer antes de chegar ao entroncamento, porque antes da primeira entrada havia casas e não tinha para onde virar, é ignorar que os acontecimentos no trânsito são dinâmicos e rápidos. Uma pessoa que vai a conduzir e quer virar à esquerda começa a preparar essa manobra antes de lá chegar e se o entroncamento é confuso a atrapalhação pode bem começar uns metros antes.

Sendo assim, se o acidente não pode ter sido como o tribunal recorrido considerou, então, obviamente, teve de ser de outra maneira qualquer.

A razões apontadas pelo tribunal para descredibilizar as declarações do assistente e sobretudo os depoimentos das testemunhas GG, HH e MM não são convincentes. No fundo, o que o tribunal disse, sem o dizer por estas palavras, é que as testemunhas foram “preparadas” pelo assistente para dizerem coisas que não viram e que não aconteceram.

Não tem nada de extraordinariamente estranho que pessoas que estão no local de um acidente e que o presenciaram, na confusão que se gera no tempo até à chegada da polícia, não se vão oferecer como testemunhas. Aliás, a experiência diz-nos que a regra é ao contrário: as pessoas tendem a não querer “dar o nome” como testemunhas. Sendo um dos intervenientes no acidente um …, que na altura ficou incapacitado, também não é inverosímil que dias depois lá vá um colega tentar apurar se alguém tinha visto o acidente e que tivesse localizado aquelas testemunhas. Pode ser um pouco “irregular”, mas é compreensível e normal. Daí até se concluir que as testemunhas foram mentir para o tribunal é um grande passo no escuro que a sentença não explica convincentemente.

Claro que se o que as testemunhas disseram não batesse certo com os dados que conhecem, se aceitaria facilmente essa conclusão. Só que no caso é ao contrário. O que aquelas testemunhas disseram é que bate certo com os factos que se conhecem e com as ilações lógicas que deles se podem retirar, que podem ajudar a explicar o acidente.

De que factos e ilações se trata?

- Os danos no automóvel e no motociclo são compatíveis apenas com um embate ligeiro de raspão e com o automóvel oblíquo em relação à direção do motociclo. Portanto, se o automóvel estivesse, na sua mão de trânsito, de frente, como consta na participação do acidente e no relatório pericial …, o motociclo tinha de vir a circular da direita para a esquerda do automóvel (considerando o sentido de circulação deste). Ou seja, naquela estrada, em que não havia qualquer acesso da direita, tinha de vir aos ziguezagues, fora de mão, de frente para o automóvel. Um comportamento “suicida” que para ter ocorrido teria de ter alguma explicação que está longe de ter sido, sequer, indiciada em julgamento. O que parece muito mais plausível é que o automóvel estivesse a virar à esquerda, já com a frente fora de mão, como disse o assistente e como disse a testemunha GG.

- O automóvel, para estar onde a participação do acidente e o relatório pericial … o colocaram, teve de mudar de lugar entre o momento do embate e a chegada da polícia. Sendo impossível o acidente frontal e altamente inverosímil um embate oblíquo com o automóvel naquela posição, não há outra possibilidade de explicação. Isso foi, de resto, dito pelas testemunhas GG (ela recuou o carro) e HH (o carro descaiu para trás). E foi também dito pela própria arguida nas declarações que prestou em instrução, pois admitiu que depois do embate o carro de moveu – moveu, claro, para trás, ou seja, de volta à faixa de rodagem que lhe pertencia. Na sentença diz-se que uma pessoa com a idade da arguida no local e momento do embate não ia ter a frieza de recuar o automóvel. Não se vê porquê. Isso acontece a toda a hora. Uma pessoa que provoca um embate e vê que estava mal colocada, na confusão que se gera, com as pessoas no imediato mais atentas à vítima no chão, pode bem recuar o automóvel uns metros antes de sair. A experiência comum diz que muitas fazem isso e até ligam o pisca-pisca.

Estes elementos de ponderação, mesmo sem considerar o que disse a arguida em instrução, mostram que a sentença não pode estar certa.

Mas, se considerarmos as declarações da arguida prestadas na instrução, que estão gravadas e disponíveis para o tribunal de recurso, mais se confirma a possibilidade de haver erro de julgamento da matéria de facto.

A arguida disse insistentemente que estava no eixo da via, parada, a fazer pisca para a esquerda, quando veio o motociclo e lhe bateu de frente – o que já se viu que não pode ter sido. Curiosamente, a certa altura “descaiu-se” e disse o seguinte: “queria virar para o lado esquerdo, ia fazer a manobra, começar a fazer a manobra, estava parada e o senhor bateu-me”. Ora, começar a fazer a manobra indicia o automóvel em movimento, isto é, já a virar à esquerda. Se estivesse parada não dizia que estava a começar a fazer a manobra.

Disse também que só viu o motociclo quando vinha aos ziguezagues, imediatamente antes do embate. Isso só pode significar que ela vinha a conduzir distraída – ou atrapalhada a hesitar, como disseram as testemunhas. Se estivesse atenta ao trânsito contrário, numa reta, com claridade, bom tempo e sem outros veículos, tinha de ter visto o motociclo bem mais cedo. Ora, se só o viu imediatamente antes do embate, porque vinha distraída (não há outra explicação), não é crível que tivesse parado a fazer o pisca-pisca antes de virar. As pessoas só fazem isso quando vão atentas e se apercebem de veículos em sentido contrário.

O tribunal recorrido, perante a ausência da arguida em julgamento, ignorou as declarações prestadas em instrução, que eram, como acabado de ver, relevantes e podiam ser valoradas se fossem analisadas em audiência. Se o objetivo do julgamento é obter uma decisão que aproxime o tribunal o mais possível da verdade material, não pode estar certo, porque não é justo, ignorar um depoimento relevante e não acionar os mecanismos de investigação e oficiosidade e investigação que o artigo 340º do CPP põe à disposição do tribunal.

Mesmo que o tribunal estivesse convencido da inocência da arguida, face à prova que ouviu no julgamento, não podia ignorar declarações válidas e valoráveis por ela prestadas que apontavam no sentido contrário.

O tribunal de recurso não pode sindicar o erro de julgamento com base em provas que não podem ser valoradas (as declarações da arguida, para serem valoráveis, tinham de ser analisadas em audiência). Mas pode considerá-las fundamento de omissão de pronúncia, se entender que deviam ter sido objeto de análise e valoração.

É isso que sucede no caso. Considero que a sentença é nula por omissão de pronúncia. Face às regras de oficiosidade no apuramento da verdade, o tribunal estava obrigado a analisar as declarações da arguida em audiência para delas tirar as conclusões que se impusessem. Ao não o fazer, deixou de tomar conhecimento de uma questão a que estava obrigado e impossibilitou que o tribunal de recurso pudesse sindicar a decisão da matéria de facto na posse de todos os elementos relevantes.

Teria, em conclusão, anulado a sentença, para que o tribunal recorrido reabrisse a audiência, analisasse as declarações da arguida, se necessário produzindo outras provas que entendesse necessárias, para depois completar a sentença em conformidade com o juízo que formulasse, na posse de todos as provas e não só de algumas.

Jorge Antunes

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1 AUJ n.º 3/2012, in D.R. 18/04/2012 “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no art. 412.º, n.º 3, al. b) do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta de início e termo da declaração”.