PRISÃO PREVENTIVA
FINALIDADES CAUTELARES
ADEQUAÇÃO
Sumário

Há perigo de fuga quando os arguidos são dois cidadãos franceses, sem qualquer ligação ao nosso país, no qual não têm residência, trabalho ou apoio familiar, onde apenas se deslocaram para a prática dos crimes em apreço, munidos de identificações falsas.
Há perigo de perturbação da instrução probatória do processo porque há dois suspeitos ainda não identificados, os arguidos conhecem uma das vítimas e as declarações por esta prestadas, podendo, uma vez em liberdade, ajudar na fuga dos suspeitos não identificados e exercer sobre a vítima pressão ou retaliação.
Há elevado perigo de continuação da actividade criminosa porquanto os arguidos fazem da prática deste tipo de crimes modo de vida, sobretudo um deles a quem não é conhecida qualquer actividade laboral.
Há forte perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, uma vez que é imputada aos arguidos a prática de crimes de burla informática e nas comunicações, abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, associação criminosa e branqueamento de capitais, de prática fácil, frequente e geradora de prejuízos elevados.
A obrigação de permanência na habitação, como medida alternativa à prisão preventiva e com preferência sobre esta, não se mostra adequada à realização das finalidades cautelares quando se verifica perigo de continuação da actividade criminosa, porquanto a permanência na habitação, ainda que controlada electronicamente, não conseguirá impedir os arguidos da utilização das comunicações electrónicas, através de telemóveis, internet e telefone e através da eventual participação de outros membros da sua rede de contactos, de continuarem a praticar o tipo de crimes em apreço.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1 – Relatório

Nos autos de inquérito nº 842/24.1JGLSB do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo de Instrução Criminal de … - Juiz …, em sede de 1º interrogatório judicial, foi proferido despacho, datado de 10/09/2024, no qual foi aplicada aos arguidos AA e BB a medida de coação de prisão preventiva, nos termos do art.º 202º do Cód. Proc. Penal.

Por despacho datado de 1/10/24 foi indeferido o pedido de alteração da medida de prisão preventiva formulado por AA.

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Inconformados com estas decisões, vieram estes arguidos interpor recurso, pretendendo a aplicação de uma medida de coação menos gravosa, para o que cada um deles formulou as seguintes conclusões:

AA

“ 1. O douto despacho que aplicou ao arguido ora recorrente, a medida de coação prisão preventiva, viola inúmeros instrumentos internacionais vinculativos do Estado Português, bem como a Constituição da Républica Portuguesa e o Código de Processo Penal.

2. O douto despacho que manteve ao arguido ora recorrente, a medida de coação prisão preventiva, viola inúmeros instrumentos internacionais vinculativos do Estado Português, bem como a Constituição da Républica Portuguesa e o Código de Processo Penal.

3. A prisão preventiva aplicada ao arguido recorrente não é necessária, nem adequada nem proporcional.

4. Não se mostram preenchidos os pressupostos imperativos de que a lei, CPP faz depender a decretação da medida de coação prisão preventiva, nem os mesmos se mostram devidamente fundamentados.

5. O arguido é primário, muito jovem, está inserido e integrado na sociedade …, contando com o apoio familiar e económico da sua família, mantendo, no entanto, fortes laços afetivos e efetivos em Portugal.

6. Visto todo o supra exposto, a medida de coação prisão preventiva aplicada é excessiva, ilegal, violadora dos direitos humanos e individuais do arguido e deve ser substituída por outra, a caução, ou a obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância eletrónica, ou outra menos gravosa, que não permita o afastamento do arguido da ilicitude e da legalidade, consabido que é, que as prisões são escolas do crime.”

BB

“1- O douto despacho que aplicou ao arguido, aqui recorrente, a medida de coacção de prisão preventiva viola inúmeros instrumentos internacionais vinculativos do Estado Português, a Constituição da República portuguesa e o Código de Processo Penal.

2- A medida de prisão preventiva aplicada ao arguido não é necessária, adequada nem proporcional.

3- Não se mostram preenchidos os pressupostos imperativos de que a lei (CPP) faz depender a decretação da medida de prisão preventiva nem os mesmos se mostram devidamente fundamentados.

4- O arguido é primário, muito jovem, está inserido social, familiar e economicamente, conforme documentos – contrato de trabalho, já junto aos autos e atentas as suas declarações em sede de 1º interrogatório.

5- Visto todo o antecedente, a medida de prisão preventiva aplicada é excessiva, ilegal, violadora dos direitos humanos e individuais do arguido e deve ser substituída por outra, como obrigação de permanência na habitação ou outra, como a caução com possibilidade de retorno ao seu pais natal, com a condição de se apresentar perante as autoridades … e apresentar-se em Portugal, quando ou sempre que lhe for solicitado e, assim não se permitindo o afastamento do arguido do crivo do Tribunal Português.”

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Os recursos foram admitidos, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.

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O Ministério Público apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:

“1. Por decisão proferida a 10 de Setembro de 2024 os arguidos AA e BB foram sujeitos a medida de coacção de prisão preventiva.

2. Inconformados, vieram dela interpor recurso, invocando a violação de direitos de recluso e direitos humanos na execução da medida de coacção, por parte do Estabelecimento Prisional de …, o que torna, no seu entendimento, a medida de coacção desproporcional.

3. Igualmente invocam que, no geral, a medida de coacção determinada não é necessária, adequada ou proporcional.

4. Em face dos fundamentos que os recorrentes vieram invocar, contrapõe-se, em primeiro lugar, que toda a fundamentação apresentada pelos arguidos decorre da invocação de factos que terão ocorrido em momento posterior à decisão a quo, que determina a aplicação de tal medida de coacção.

5. Assim, nunca poderiam tais argumentos ter sido considerados aquando da prolação do despacho recorrido, não sendo, por consequência, passíveis de impugnar a sua motivação ou demonstrar qualquer tipo de viciação ou errónea apreciação de tal factualidade ocorrida em momento posterior.

6. Por outro lado, as questões relativas à execução, em estabelecimento prisional, da medida de coacção a que os arguidos foram sujeitos não constituem qualquer tipo de nulidade ou irregularidade processual, não sendo fundamento de qualquer invalidade ou ilegalidade da aplicação da medida de coacção;

7. Nesse seguimento, a eventual violação de exercício de direitos de recluso ou falta de condições dos estabelecimentos prisionais portugueses não é fundamento para impugnação decisão recorrida que determinou a aplicação da medida de coacção nem, sequer, para alteração da mesma.

8. O mesmo se poderá dizer quanto à invocação de violação dos artigos 1.º, 9.º e 13.º, n.º 1, da DUDH e 5.º da CEDH, assim como a invocação dos Acórdãos do TEDH Petrescu v Portugal e Badulescu v Portugal, porquanto não se vislumbra, nem é efectivamente invocada, qualquer violação de tais direitos, nem os casos invocados têm qualquer semelhança à situação dos arguidos, apenas tentando estes fazer passar por indignidade humana o facto de não poderem contactar os seus familiares nos termos (frequência e duração) que desejam.

9. Igualmente, essa eventual falta de condições dos estabelecimentos prisionais portugueses não tem relevância na ponderação da existência de adequação, necessidade e proporcionalidade da medida de coacção aplicada;

10. Pese embora os arguidos tenham invocado que a medida de coacção que lhes foi aplicada não é necessária, adequada e proporcional, tal argumento não é válido porquanto:

11. É imputada aos arguidos a prática de um crime de burla informática, com uma moldura penal máxima de 3 (três) anos de prisão, um crime de abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, igualmente com uma moldura penal máxima de 3 (três) anos de prisão, um crime de associação criminosa, com uma moldura penal máxima de 5 (cinco) anos de prisão e um crime de branqueamento (de capitais), com uma moldura máxima de 5 (cinco) anos de prisão, mas, em face do crime subjacente (perante o número 12 do artigo 368. 0 - A, do Código Penal), estando, portanto, em causa a possibilidade de aplicação de uma pena de prisão, na sua moldura máxima, de 16 (dezasseis) anos de prisão;

12. Contudo os próprios arguidos, nas suas declarações, afirmaram ter realizado outros crimes da mesma natureza, nomeadamente tendo o arguido AA assumido ter realizado vários crimes de smishing (burla informática e nas comunicações e falsidade informática), mais tendo o arguido BB assumido ter realizado entre 20 (vinte) e 30 (trinta) apostas no jogo …, com dinheiro de terceiros, fazendo-o por ordem de terceiro que o arguido não quis identificar,

13. O que indicia, fortemente, haver outros crimes praticados pelos arguidos que permitem antever como forte a possibilidade de virem a ser condenados a penas efectivas de prisão, ainda que se aplique o Regime Especial para Jovens Delinquentes.

14. Por outro lado, a própria natureza dos crimes (que são praticados de forma telemática e com utilização de equipamentos de telefonia móvel, facilmente obtidos), determina que o perigo de continuação da actividade criminosa é real e efectivo.

15. Acresce que, no que se refere ao perigo de fuga, o arguido AA está proibido de sair do território nacional …, por medida de coacção que lhe foi aplicada e, ainda assim, e utilizando uma identidade falsa (que o próprio arguido confessou) pôde sair do país.

16. Face a esta facilidade em obter identificações falsas, é claríssima a possibilidade de fuga dos arguidos, caso sejam sujeitos a medida de coacção não privativa da liberdade,

17. Ao que acresce que a condição financeira de ambos arguidos não lhes permite a manutenção em território nacional, caso fosse alterada a medida de coacção para obrigação de permanência na habitação.

18. Assim, claramente se verifica que o tribunal a quo sujeitou os arguidos na medida de coacção adequada, necessária e proporcional, sendo devidamente ponderada e em consonância com as necessidades de prevenção da continuidade da actividade criminosa e de fuga, não tendo estes, no entendimento do Ministério Público, logrado aportar fundamentos relevantes e bastantes, perante a falta de exposição concreta de outros argumentos de facto ou de direito, que justifiquem a aplicação de uma medida de coacção diversa da aplicada,

19. Pelo que se pugna pela improcedência dos presentes recursos no que concerne à decisão de 10 de Setembro de 2024.

20. No que concerne à decisão de 1 de Outubro de 2024, que manteve a medida de coacção de prisão preventiva ao arguido AA, antes de mais não se consegue perceber qual a fundamentação destinada à impugnação da mesma, porquanto a motivação de recurso é comum, o que se estranha, porque os fundamentos das decisões recorridas é diverso, não havendo uma indicação concreta dos fundamentos ou em que medida a motivação descrita pelo arguido AA se refere à decisão de 1 de Outubro de 2024.

21. Ainda assim, apenas tem a referir-se que o arguido, no seu requerimento de alteração de medida de coacção não veio invocar qualquer alteração das circunstâncias que serviram de base à aplicação da medida de coacção, apenas invocando, tal como o fez no recurso, que os direitos humanos do arguido estavam a ser violados.

22. Desta feita, novamente, se concorda com a decisão de 1 de Outubro de 2024, recorrida, uma vez que nem aquando do requerimento de alteração da medida de coacção, nem no próprio recurso, foram invocadas quaisquer alterações de circunstâncias dos arguidos que inviabilizassem a base da sentença que determinou a aplicação aos arguidos da medida de coacção de prisão preventiva ou a sua manutenção.”

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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância, no sentido da improcedência dos recursos e da manutenção das decisões recorridas.

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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo os recorrentes vindo acrescentar ao já por si alegado.

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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.

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2 – Objecto do Recurso

Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt ).

À luz destes considerandos, as questões a decidir neste recurso consistem em saber se:

1. as medidas de coação aplicadas de prisão preventiva são excessivas e desproporcionadas;

2. as medidas de coação de obrigação de permanência na habitação sujeita a vigilância eletrónica, caução, apresentações periódicas ou outras menos gravosas são suficientes para acautelar os perigos que a decisão recorrida considerou verificados nestes autos.

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3- Fundamentação:

3.1. – Fundamentação de Facto

O Ministério Público imputou aos recorrentes a prática dos seguintes factos:

“ = FACTOS IMPUTADOS =

[TAL COMO DESCRITOS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO NA APRESENTAÇÃO DE 07.09.2024]

1. No dia 13.05.2024, CC recebeu um sms no seu telemóvel, supostamente dos CTT, solicitando que acedesse a um link para pagar tarifas alfandegárias de uma encomenda que de facto esperava; neste sentido, aquela acedeu ao link e forneceu vários dados bancários, tendo no dia seguinte detectado várias transações na sua conta que não foram efectuadas por si, perfazendo um total de € 910,00; tais transações foram efetuadas na “Tabacaria …”, sita em …, sendo que questionado o banco este respondeu que a sua conta de Mbway teria sido acedida a partir de um iPhone …, o que não correspondia ao seu, que se trata do modelo iPhone …;

2. Solicitada informação aos Jogos da Santa Casa da Misericórdia sobre as apostas efectuadas pelos arguidos que se teriam deslocado àquele estabelecimento, designadamente, o NIF utilizado, o conteúdo das apostas, a data/hora, os locais das apostas e os respectivos valores, foi obtida informação de que com o NIF em questão houve apostas desde 10.05.2024 até 29.05.2024, perfazendo um total de € 29.840,00 (vinte e nove mil, oitocentos e quarenta euros), com apostas de valores elevados no mesmo dia, num curto espaço de tempo, sendo que no mesmo dia as apostas foram efectuadas em várias papelarias na mesma localidade;

3. percorridas todas as papelarias em … onde foram efectuadas várias apostas e mostrados os fotogramas dos indivíduos suspeitos, informou o proprietário da Tabacaria … que estariam a ser constantemente visitados por indivíduos que apostavam valores elevados, pagavam através do QR CODE do telemóvel e mais tarde regressavam para levantar os talões premiados, sendo que não eram os mesmos indivíduos que efectuavam as apostas e os levantamentos;

4. obtida informação de que no dia 05.09.2024 encontrar-se-iam suspeitos (arguidos) a realizar levantamentos no interior da Tabacaria …, foi possível aos elementos da Polícia Judiciária visionar um dos mesmos com vários talões …, que realizou o levantamento dos prémios, em dinheiro, não tendo sido possível perceber para onde se deslocou após sair do estabelecimento;

5. no dia 06.09.2024, existindo novamente conhecimento de que um dos arguidos estaria na referida Tabacaria … para efectuar levantamentos de talões premiados, foi possível aos elementos da Polícia Judiciária que mais uma vez se deslocaram ao local visualizar o arguido DD a levantar em dinheiro os talões premiados, sendo que, acto contínuo, o mesmo, estando na posse do dinheiro, saiu do dito estabelecimento e entrou numa viatura com a matrícula … (…), da marca …, modelo …, de cor …, encontrando-se os demais três arguidos AA, EE e BB no seu interior, vindo todos eles a ser interceptados, logo tendo sido percepcionado ser o AA aquele, já retratado nos autos, que efectuara levantamentos/apostas na Tabacaria … …., factos esses datados de Maio do corrente ano;

6. foi apreendido ao arguido BB: € 638,40 em dinheiro, um telemóvel …, modelo …, um telemóvel …, modelo …, quarenta e quatro talões de apostas no … no valor de € 2005,00, com reporte ao NIF …, apostas efectuadas no dia 05.09.2024, nove talões de apostas no … no valor de € 555,00, com reporte ao NIF …, apostas efectuadas no dia 05.09.2024, e um talão com o NIF …;

7. foi apreendido ao arguido EE: € 4800,00 em dinheiro, um telemóvel da marca …, de cor …, e nove talões de caixa referentes a levantamentos de prémios da …;

8. foi apreendido ao arguido DD: € 596,00 em dinheiro, um telemóvel da marca e modelo .., um cartão … e dois talões de caixa da Santa Casa da Misericórdia com data de 06.09.2024;

9. foi apreendido ao arguido AA: € 3.070,00 em notas, € 121,00 em moedas, um cartão bancário da entidade bancária …, vinte e seis talões de apostas do jogo …, vinte e quatro talões de caixa do jogo …, um telemóvel da marca …, de cor …, um telemóvel da marca …, de cor …, um telemóvel da marca …, de cor …, e um telemóvel da marca …, modelo …, de cor …;

10. efectuada busca à viatura em que os arguidos se deslocavam, conduzida pelo AA, foi apreendido, para além do próprio veículo: espalhados pelo interior da viatura, onze talões de apostas/levantamentos referentes aos jogos …; e no porta bagagens, um saco de compras da marca … que continha no seu interior três embalagens de cartão envoltas com fita adesiva, contendo uma delas quatro conjuntos (individualizados em saco de plástico) de telemóveis, um conjunto de elásticos e um conjunto de cabos e carregadores de telemóveis, uma segunda embalagem um conjunto de telemóveis, dois conjuntos de cabos e dois conjuntos de carregadores e uma última embalagem seis conjuntos de telemóveis, dois conjuntos de cabos e um conjunto de carregadores;

11. efectuada busca domiciliária ao apartamento … onde os arguidos pernoitavam, localizado na Rua …, União das Freguesias de …), porta n.º …, …, foi apreendido: num open space com kitchenette, um saco desportivo de cor … da marca …, com roupas, pertencente ao arguido BB, contendo um saco de moedas, num total de € 80,75, um telemóvel da marca …, modelo …, número de série …, IMEI 1 n.º … e IMEI 2 n.º …, um telemóvel da marca …, modelo …, IMEI 1 n.º … e IMEI 2 n.º …, e um telemóvel de cor … da marca …, modelo …, IMEI n.º …; num quarto do lado esquerdo da porta de entrada, um saco da marca .. com roupas, pertencente ao arguido BB, contendo um maço de notas, num total de € 4.730,00; numa mochila de cor … da marca …, com roupas, pertencente ao arguido EE, dois envelopes fechados contendo maços de notas, num total de € 5.000,00; num saco desportivo de cor …, com roupas, pertencente ao arguido DD, um envelope fechado, contendo um maço de notas, num total de € 2.365,00; e num quarto do lado direito da porta de entrada, onde dormia o arguido AA, num saco desportivo de cor …, com roupas, pertencente ao mesmo arguido, quatro envelopes fechados, contendo maços de notas e um maço de notas solto, num total de € 13.080,00;

12. foi apurado junto dos Jogos Santa Casa, relativamente aos NIF indicados nos talões das apostas na posse dos arguidos, nomeadamente, NIF …, NIF …, NIF … e NIF …, que os mesmos NIF foram usados para efectuar apostas no período entre 01.12.2023 e 06.09.2024, perfazendo como total do valor das apostas € 508.773,00 e como total do valor em prémios € 372.050,00;

13. os arguidos fazem parte de uma rede criminosa especializada em burlas informáticas, designadamente, através da técnica conhecida como “smishing” e consequente uso de dados bancários recolhidos através desse meio, sendo que posteriormente efectuam o registo do serviço de MbWay nos equipamentos na sua posse e realizam apostas em jogos do … com o intuito de levantar os prémios dos talões ganhadores e dessa forma branquear, dissimular e converter os valores ilicitamente adquiridos em numerário irrastreável, sendo que o dinheiro assim obtido iria ser levado para fora do país, tendo os arguidos consigo os comprovativos (talões premiados) para fazer (aparentemente) prova de que o dinheiro era lícito, sendo que na sequência da sua detenção foram encontrados na sua posse um total de € 34.481,22€ (trinta e quatro mil, quatrocentos e oitenta e um euros e vinte e dois cêntimos), pelo menos 10 telemóveis em utilização e cerca de 60 telemóveis acondicionados em sacos de transporte, aparelhos esses que poderiam usar para continuar a actividade criminosa noutros países, dificultando o rastreamento da origem de tais aparelhos;

14. actuaram os arguidos com o propósito concretizado de obter um ganho patrimonial ilícito, causando às vítimas (entre as quais CC) prejuízo do mesmo montante, o que fizeram mediante a supra aludida técnica “smishing” e o consequente uso de dados bancários recolhidos através desse meio, sendo que esses dados das ditas vítimas foram utilizados à revelia destas, logrando, por tal meio, efectuar, a final, com reporte às apostas efectuadas/registadas, o levantamento dos correspondentes prémios;

15. mais actuaram os arguidos integrando um grupo de pessoas que, agindo concertadamente, tinham como objectivo levar a cabo a acima descrita actividade, tendo-se associado entre si com semelhante propósito, sendo que visavam disfarçar e iludir a origem ilícita das quantias em dinheiro que obtiveram, como se de verbas licitamente obtidas se tratassem, dificultando, assim, a acção da Justiça, nomeadamente, no que concerne à descoberta da sua ilegítima proveniência;

16. todos os arguidos agiram em conjugação de esforços e vontades entre si, com a intenção de levar a cabo os factos supra descritos, de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo então os mesmos arguidos serem (todas) as suas condutas proibidas e punidas por lei.

Os factos resultam indiciados dos seguintes meios de prova:

Expediente de fls. 6-9 v.º, 28-36, 38, 52-54, 56-61, 130-132 e 162-175, Auto de Denúncia de fls. 12-14 e expediente anexo de fls. 15-16 v.º, Autos de Diligência de fls. 26, 62-63, 77, 78-81 e 136-153, DVD de fls. 41, Auto de Visionamento de Registo de Imagens de fls. 42-49, Documentos de fls. 64-73, 88, 102-103 e 111-112, Autos de Revista e Apreensão de fls. 85-87, 94/94 v.º, 100-101, 109-110 e 120-122, Autos de Busca e Apreensão de fls. 118-119 e 154-156, Reportagem Fotográfica de fls. 123-127, Auto de Apreensão de Veículo de fls. 128 e Auto de Inquirição de fls. 158-161.”

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É a seguinte a decisão recorrida, relativamente aos recorrentes:

“(…) À luz dos princípios constitucionais conformadores do sistema processual penal, as medidas de coação não significam uma antecipação do juízo de responsabilização e punição penal, pois são, somente, um meio de tutela de necessidades cautelares que permitem impor restrições à liberdade de alguém que ainda se presume inocente, mas sobre quem recaem fortes indícios da prática de um crime.

É atendendo a esta máxima, bem como ao princípio da proibição do excesso (nas vertentes da necessidade, adequação e proporcionalidade), que se determinará se há lugar, nesta fase, à aplicação de uma medida de coação, qual e por que motivos.

Para que seja possível privar alguém da sua liberdade pessoal – valor fundamental expresso no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa – tem de estar verificada:

i) existência de processo-crime contra pessoa regular e previamente constituída como arguido (cf. artigos 58.º, n.º 1, alínea b) e 192.º, n.º 1, ambos do CPP);

ii) indícios fortes ou fundados da prática de um crime e de quem são os seus agentes;

iii) perigos/necessidades cautelares sentida por exigências processuais ou pessoais do próprio visado e/ou da sua conduta (cf. artigo 204.º, in fine, do CPP);

iv) inexistência de causas de isenção de responsabilidade criminal ou de extinção do procedimento crime (cf. artigo 192.º, n.º 6 CPP).

Apurando-se as referidas circunstâncias, ao Juiz de Instrução cabe a tarefa de escolher que medida de coação é adequada ao caso concreto do Arguido, movendo-se nas previstas no Código de Processo Penal (artigos 196.º a 202.º do CPP) e na legislação avulsa, partindo sempre da medida de coação menos gravosa para a mais gravosa, em cumprimento do princípio da subsidiariedade, explicando as razões da sua escolha.

III – Factos indiciados

Resultam fortemente indiciados os seguintes factos:

1. Todos os factos elencados na promoção do MP [acima descritos e constantes de Ref.: …, 07-09-2024], que foram dados a conhecer aos arguidos e que aqui se dão por reproduzidos por remissão, nos termos dos artigos 141.º, n.º 4, alínea d) 164.º, n.º 6, alínea d) e 97.º, n.º 5, todos do Cód. Proc. Penal.

Ficou ainda indiciado, quanto às condições pessoais do Arguido AA:

2. O Arguido foi assim constituído em 06-09-2024.

3. Vive com a mãe e com a irmã mais nova em … – ….

4. Não trabalha, vive de apostas.

5. Tem antecedentes criminais em 2023, por crimes de branqueamento de capitais participação numa operação de investimento dissimulação ou conversão do produto de uma burla cometida no âmbito de uma organização criminosa/participação numa associação criminosa com vista à preparação de uma infração punível com 10 anos de prisão/burla cometida no âmbito de uma organização criminosa/introdução fraudulenta de dados num sistema de tratamento automatizado de dados/dissimulação de bens provenientes de uma infração punível com uma pena não superior a 5 anos de prisão/manutenção fraudulenta de um sistema de tratamento automatizado de dados/recolha de dados pessoais por meios fraudulentos, meios desleais ou ilegais – informação fornecida pelas autoridades ….

6. Declarou ter um processo-crime a correr em …, no qual lhe foi aplicada medidas de proibição de sair do país e obrigação de apresentação periódica.

7. Estudou até ao 12.º ano de escolaridade.(…)

Ficou ainda indiciado, quanto às condições pessoais do Arguido BB:

18. O Arguido foi assim constituído em 06-09-2024.

19. Vive com a mãe em … – ….

20. Trabalhava como … em instalações fabris, auferindo € 2.000,00 mês.

21. Não tem antecedentes criminais em … (apenas um arquivamento em 2019).

22. Estudou até ao 12.º ano de escolaridade, encontrando-se a frequentar o ensino superior em sistema ….

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Nada mais se tendo indiciado ou havendo a considerar, não se tendo apurado a existência de qualquer causa de isenção de ilicitude ou de extinção do procedimento criminal que seja de considerar (cf. artigo 192.º, n.º 6 CPP).

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IV – Elementos probatórios disponíveis

A prova analisada sedimentou a convicção do Tribunal quanto à força dos indícios de crime, designadamente, a informação prestada pela queixosa CC a fls. 13 (auto de notícia de 21.05.2024) e as informações do Banco da vítima de fls. 7-9verso e de fls. 16, dos movimentos detetados pela SIBS referente aos € 910 usados na Tabacaria … em … (vide fls. 29-36).

Nas imagens de videovigilância recolhidas na papelaria … (DVD fls. 41) visualiza-se o Arguido AA a entrar acompanhado de outro indivíduo de chapéu cor-de-rosa e a fazerem as apostas ao balcão no dia 14.05.2024 pelas 16:25, o que está alinhado com os pagamentos que saíram da conta da queixosa CC no mesmo dia e janela horária (confronto com fls. 16 SMS de confirmação da realização do MBWay e com informações do … de fls. 56 e 58 assinaladas a amarelo).

Através da informação obtida da Santa Casa da Misericórdia a fls. 58, constam todas as apostas … feitas no distrito de … no dia 14.05.2024, sendo que nas papelarias … e …, os arguidos foram positivamente identificados como sendo os apostadores ou levantadores de prémios.

A vigilância feita a 05.09.2024 (fls. 77 e 80) permite visualizar-se o Arguido DD a levantar prémios em dinheiro na papelaria ….

As apreensões feitas aos Arguidos estão refletidas nos autos de fls. 85 (Arguido AA com 24 talões do …. 4 telemóveis e mais de € 3.000 em dinheiro), fls. 94 (Arguido BB com 53 talões do …, 2 telemóveis e € 638 em dinheiro), fls. 100 (Arguido EE com 9 talões do …, 1 telemóvel e € 4.800 em dinheiro) e a fls. 109 (Arguido DD com 2 talões do …, 1 telemóvel e € 595 em dinheiro). Sendo que no carro conduzido pelo Arguido AA, onde seguiam os restantes Arguidos, foram encontrados vários telemóveis e mais talões de jogo (vide fotogramas de fls. 123-127), assim como na casa alugada … foram localizados mais telemóveis e talões … (vide fotogramas de fls. 137-153 e lista da apreensão a fls. 155-156), tendo a reserva sido feita pelo Arguido AA, mas usando o nome de FF.

O depoimento do dono da papelaria …, o Sr. GG (ouvido a 06.09.2024 a fls. 158-159) relatou que foi avisado por telefone que tinha sido feito um pagamento na sua papelaria minutos antes contra a vontade do dono da conta bancária em causa e que, à cautela, guardou as imagens de CCTV onde consta um indivíduo a fazer apostas/recolher prémios, tendo anotado a existência de 3 homens e 1 mulher a fazer este tipo de apostas, de valores elevados e a levantar prédio com muitos talões na mão, todos falando … e pagamento com o telemóvel.

E foi ainda considerada a versão apresentada pelos Arguidos no dia 09.09.2024, quando foram ouvidos em sede de declarações em 1.º interrogatório judicial, onde o Arguido AA confessou os factos, explicou como integrou a comunidade criminosa através do chat de mensagens instantâneas …, como combinou dividir lucros com o …, pessoa que lhe criava o site fraudulento para onde as vítimas eram remetidas para dar os seus dados bancários e depois como fazia as apostas através do …, tendo escolhido Portugal porque não havia limite de valores a apostar e porque na zona da … aceitavam pagamentos com apple pay ou através de telemóvel, ideal para o esquema em causa.

Os restantes Arguidos, em clara reverência ao AA, olhavam para ele antes de responder, dizendo que apenas tinham sido pagos para ir fazer apostas e recolher os prémios, recebendo depois um valor por esse trabalho.

Certo é que o envolvimento de cada um dos coarguidos – à exceção de AA que assumiu a organização da rede – parece demasiado passivo, como se nada soubesse e apenas estivessem a ajudar um amigo, o que não colhe, já que além do QRCode com a aposta, também lhes era dado um telemóvel para fazer o pagamento e depois alguém esperava o dinheiro gerado com a aposta, sendo que todos foram intercetados com muito dinheiro e vários talões do …, não tendo querido assumir para quem “trabalhavam”.

Foram encontrados mais de € 34.000, 114 talões do…, entre apostas e recibos de prémio, 10 telemóveis em utilização e 60 telemóveis acondicionados em sacos de transporte que seriam levados para …, assim dificultando a tarefa de rastreamento e localização dos aparelhos, além de fazer sair do país dinheiro obtido de forma ilícita, que acompanhado dos talões premiados fazia parecer que o dinheiro tinha sido ganho no jogo e, portanto, provinha de fonte lícita.

Além do mais, como o próprio Arguido AA admitiu, enfrenta um processo-crime por revenda de dados bancários em …, pelo qual cumpre apresentações periódicas, além de estar proibido de sair do seu país natal, o que o Arguido incumpre de dupla forma: saiu de … de carro para não ser rastreado nos aeroportos e praticou factos criminosos em Portugal relacionados também com cibercrime.

Estes Arguidos personificam aquilo que é o perigo de fuga, vieram para Portugal apenas e tão só para praticar estes factos, tendo chegado antes para sondar o mercado português e depois voltaram para pôr em prática o esquema de roubo de dados bancários e apostas para branquear o dinheiro recebido das vítimas, entrando a saindo do país de automóvel com matrícula …, para não acionarem alarmes nos aeroportos ou gares de comboios.

Além do mais, o Arguido AA – como o próprio admitiu – já tem um processo-crime em … por factos muito semelhantes aos presentes, voltando a praticá-los antes mesmo de o processo … terminar, além de ter a ousaria de ir a … ser ouvido no dia 23.05.2024, voltando depois a Portugal para continuar a fazer apostas com dinheiro de outras pessoas uns dias depois, nada o demovendo ou parando, nem mesmo outro encontro judicial.

É evidente que há ainda outras pessoas envolvidas nesta rede, sejam elas a pessoa que aparece de boné cor-de-rosa nas imagens gravadas a fls. 41, seja a pessoa do sexo feminino que a testemunha GG identificou a fls. 158, pelo que há um elevado perigo de perturbação do inquérito, facultando informações às restantes pessoas da rede, caso os Arguidos se consigam conectar ao … [aplicação de mensagens instantâneas] e informar a rede que deve mudar o modus operandi ou alguma coisa outra coisa que permita às polícias identificá-los.

Os perigos neste caso concreto são todos elevados e o alarme social deste tipo de “nova” criminalidade é o que impõe a aplicação de uma medida coativa contentora, por ser a única adequada ao caso – conforme sobejamente explicado na gravação da decisão em sede de 1.º interrogatório.

*

VII – Decisão de Medidas de Coação Aplicadas

Por todo o exposto, determina-se que os Arguidos AA, EE, DD e BB aguardem os ulteriores termos do processo sujeitos a:

1) TIR, já prestado (artigo 196.º CPP)

O termo de identidade e residência significa que o(a) Arguido(a) está obrigado(a) a comunicar ao processo qualquer alteração de morada e/ou deslocação para o estrangeiro superior a 5 dias, indicando morada e contactos telefónicos do local onde possa ser encontrado, para que o Tribunal saiba sempre onde o encontrar.

2) Prisão preventiva (artigo 202.º CPP)

A prisão preventiva, sendo a mais gravosa das medidas, exige que mais nenhuma medida seja adequada ao caso, que hajam fortes indícios de crime doloso punível com prisão superior a 5 anos ou crime de burla informática (com pena superior a 3 anos – que é o caso).

É reexaminada de 3 em 3 meses e durará, no máximo, 4 ou 8 meses, caso haja instrução (podendo ser de 6 e 10 meses em caso de crimes mais graves) e sempre que seja proferida decisão que conheça do objeto do processo (acusação ou pronúncia).

Pode ser suspensa por doença grave, gravidez ou puerpério. (…)”

*

Com data de 1/10/24 foi proferido o seguinte despacho:

“ Veio o arguido AA (referência …) expor que, após ser sujeito a medida de coação de prisão preventiva, não lhe terá sido dada a possibilidade de contactar com familiares ou a possibilidade de receber visitas, nomeadamente através de meios de comunicação à distância. Em resultado, requerer a alteração de medida de coação, de prisão preventiva para obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica.

Concorda-se integralmente com os bem estruturados e doutos fundamentos da promoção que antecede, pelo que se dão os mesmos por integralmente reproduzidos.

Com efeito, e para além daquela desconstrução dos argumentos do arguido, não existe qualquer fundamento para a revogação ou alteração do estatuto coativo do arguido, porquanto os pressupostos de facto e de direito que sustentaram a decisão de sujeição do arguido à mais gravosa das medidas de coação permanecem fundamentalmente atuais: nada nos autos permite concluir que as circunstâncias supra aludidas tenham sofrido alteração de modo a estar em causa a revogação da medida coativa ou a substituição por outra.

Assim, indefere-se o requerido por inadmissibilidade legal.”

*

Este despacho incidiu sobre a seguinte promoção, datada de 26/09/24:

“Vem o arguido AA expor que, após ser sujeito a medida de coacção de prisão preventiva, não lhe foi dada a possibilidade de contactar com familiares, não tendo, ainda, a possibilidade de receber visitas, nomeadamente através de meios de comunicação à distância.

Nesse seguimento e perante essa impossibilidade, veio o mesmo requerer a alteração de medida de coacção, de prisão preventiva para obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica.

Em primeiro lugar, ainda que possa haver algum tipo de impossibilidade de realização de comunicações entre o arguido e seus familiares, não é verdade que não tenham sido realizadas as respectivas diligências para comunicar a aplicação de medida de coacção aos familiares dos arguidos, como comprova a comunicação da mesma à Embaixada de … em Portugal, aliás, em cumprimento do artigo 230.º, n.º 1, do Decreto Lei 51/2011, de 11 de Abril, Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais (em diante RGEP).

Em segundo lugar há a referir que, com efeito e por lei, pode o recluso realizar contactos telefónicos com terceiros, porém, tais contactos não são realizados de forma livre, só podendo os reclusos contactar (e como descreve o próprio arguido) com pessoas que tenham prestado autorização nesse contacto, tal como decorre do disposto no artigo 133.º, n.º 1 e 2, e 234.º, n.º 1, ambos do RGEP.

Ora, se, tal como o arguido vem invocar, “(…) não podia efectuar chamadas telefónicas, a não ser que fosse entregue cópia da factura do número de contacto em nome da pessoa a quem pretendia telefonar, bem como autorização da mesma, por escrito, para o efeito (…)”, tais contactos telefónicos apenas não se efectivaram por falta de requisitos de segurança próprios do estabelecimento prisional e legalmente estabelecidos. Não pode o arguido invocar ter-lhe sido coartado um direito quanto o mesmo não diligenciou, pelo menos com a celeridade devida para o efeito pretendido, pelo cumprimento dos requisitos impostos para a realização de contactos telefónicos.

Lembra-se que a situação de reclusão, ou neste caso de prisão preventiva, a ser cumprida em estabelecimento prisional, pressupõe a limitação de liberdades pessoais dos reclusos e o cumprimento de regras, entre as quais normas que regulam os contactos telefónicos e que visam um maior controlo da segurança da população prisional.

Neste sentido, o facto de o arguido, nas circunstâncias descritas, não poder encetar as suas comunicações telefónicas com familiares não está em violação dos direitos que lhe são concedidos, apenas consubstanciando, como o próprio assume, o incumprimento, por sua parte, dos requisitos legais para realização de tais contactos. Cumpridos tais requisitos, o arguido poderá, com as limitações regulamentares estabelecidas, proceder às suas comunicações com as pessoas que autorizaram que o mesmo as contactasse.

Também invoca o arguido que, desde que foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, não beneficiou de qualquer visita, presencial ou por meio de videoconferência ou de comunicação à distância, apesar de as ter requerido.

Contudo, logo de seguida, veio o arguido informar que o pedido de visita por videoconferência havia sido deferido, havendo já data para realização da mesma.

Mais invoca que requereu a acumulação de dois períodos de visita, sem que, até à data do requerimento, tivesse sido respondida a sua pretensão. Ora, não se conhece em que data o arguido requereu tal acumulação, sendo certo que, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 111.º, n.º 3, do RGEP, tal pedido tem de ser realizado com 8 (oito) dias de antecedência, até mesmo para permitir que tal requerimento possa, atempadamente, chegar ao conhecimento do director do estabelecimento prisional, que decide sobre tal matéria.

Pelo que antecede, na sua exposição, apesar de invocar a violação do seu direito a contactos e visitas, o arguido veio responder às suas próprias questões:

a. Não pôde fazer chamada telefónicas para familiares porque não existia autorização, por parte dos seus familiares, para que o mesmo os pudesse contactar;

b. Solicitou a realização de visita por videoconferência, tendo a mesma sido deferida pelo director do estabelecimento prisional, marcando data para o efeito;

c. Parece (não havendo factos, na exposição que esclareçam tal situação) que não foi solicitada, atempadamente, a acumulação de tempos de visita.

Restaria o facto de o arguido poder comunicar a sua situação a entidade diplomática ou consular, tendo tal comunicação sido realizada pelo tribunal (conforme ref.ª …).

Porém, questão mais premente é colocada, quando o arguido vem requerer que, por causa de tal “(…) gritante violação dos direitos do arguido (…)”, que se entende não mais ter sido que um incumprimento por parte do arguido das normas legais aplicáveis, seja decretada “(…) a imediata substituição da medida de coacção Prisão Preventiva, pela medida de coacção Obrigação de Permanência na Habitação (…)”, sendo, para tal efeito, “(…) carreada para os autos com a maior brevidade, informação atinente à morada em que o arguido permanecerá para cumprimento da medida de coacção Obrigação de Permanência na Habitação (…)”.

Acreditando-se, por mero exercício académico, ter havido a violação de direitos que o arguido invocou, a mesma não obsta, em absoluto, aos motivos, fundadamente constantes em despacho, que levaram à aplicação da medida de coacção mais gravosa ao arguido.

Em nenhum momento veio o arguido invocar qualquer tipo de alteração de circunstâncias referentes aos factos ou aos perigos de fuga e continuação da actividade criminosa que aquele representa.

Mui doutamente foi fundamentado pela Mma. Juiz de Instrução Criminal, e que se cita: “Além do mais, como o próprio Arguido AA admitiu, enfrenta um processo-crime por revenda de dados bancários em …, pelo qual cumpre apresentações periódicas, além de estar proibido de sair do seu país natal, o que o Arguido incumpre de dupla forma: saiu de … de carro para não ser rastreado nos aeroportos e praticou factos criminosos em Portugal relacionados também com cibercrime.

Estes Arguidos personificam aquilo que é o perigo de fuga, vieram para Portugal apenas e tão só para praticar estes factos, tendo chegado antes para sondar o mercado português e depois voltaram para pôr em prática o esquema de roubo de dados bancários e apostas para branquear o dinheiro recebido das vítimas, entrando a saindo do país de automóvel com matrícula …, para não acionarem alarmes nos aeroportos ou gares de comboios.”.

Em nenhum momento na exposição do arguido veio este abalar, no mais mínimo que fosse, a convicção de que, podendo, aquele encetaria diligências com vista à sua fuga. Aliás, face à preocupação que demonstra quanto à sua família, a convicção sobre a existência de perigo de fuga adensa-se, porquanto se depreende que, nem que fosse só por isso, pela companhia da sua família, o arguido fugiria para os encontrar.

Por outro lado, a acrescer, o arguido, e conforme constas do despacho que se citou “(…) admitiu, enfrenta um processo-crime por revenda de dados bancários em …, pelo qual cumpre apresentações periódicas (…)”, continuando “ (…) o Arguido AA – como o próprio admitiu – já tem um processo-crime em … por factos muito semelhantes aos presentes, voltando a praticá-los antes mesmo de o processo … terminar, além de ter a ousaria de ir a … ser ouvido no dia 23.05.2024, voltando depois a Portugal para continuar a fazer apostas com dinheiro de outras pessoas uns dias depois, nada o demovendo oi parando, nem mesmo outro encontro judicial.”.

Tal fundamento demonstra claramente a existência de perigo de continuação da actividade criminosa, a mesma que financiava a estadia do arguido em Portugal.

Ora, não se conhecendo ao arguido outra actividade, nem podendo (caso lhe fosse deferido o requerimento de alteração de medida de coacção para obrigação de permanência na habitação) o mesmo exercer uma qualquer actividade profissional, e vendo-se na obrigação de manter uma morada, uma residência, em território nacional para cumprir tal medida de coacção, pergunta-se o ora signatário, como poderia o arguido financiar a continuação da sua estadia e cumprimento de medida de coacção.

A exposição, conforme se disse e se entende firmemente, não veio, em nada, abalar os fundamentos em que se baseou a decisão de aplicação de medida de coacção, tendo, muito pelo contrário, fortalecido essa fundamentação.

Não tendo o arguido raízes familiares no nosso território, permanecendo no mesmo através de pernoita em estabelecimentos de hotelaria, não se lhe conhecendo, em Portugal, qualquer residência fixa, não se conhecendo qualquer actividade rentável (além da prática criminosa) que permitisse sustentá-lo, não se pode, de todo, antever que, a ser-lhe dada tal possibilidade, o arguido cumprisse a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação.

Neste sentido, em face dos fundamentos apresentados pelo arguido, que não configuram qualquer alteração das circunstâncias, não se demonstram susceptíveis de configurar qualquer violação de direitos do arguido, nem invocam qualquer vício ou ilegalidade na aplicação de medida de coacção, entende-se não haver fundamento legal para alteração ou substituição da medida de coacção, mais se entendendo que a manutenção da medida de coação de prisão preventiva, actualmente aplicada, é a única que garante as necessidades processuais e de salvaguarda da paz social e defesa dos bens jurídicos (nomeadamente patrimoniais) de terceiros, pelo que se promove que a mesma não seja alterada para obrigação de permanência na habitação, indeferindo-se o requerido pelo arguido e mantendo-se o arguido a aguardar os ulteriores termos do processo, sujeito a medida de coacção de prisão preventiva e termo de identidade e residência, já prestado nos autos.”

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3.2.- Mérito do recurso

Nos presentes autos foram os recorrentes indiciados pela prática de:

- 1 crime de BURLA INFORMÁTICA E NAS COMUNICAÇÕES, p. e p. pelo art.º 221º, nºs 1 e 5, alínea b), do Cód. Penal, com pena de prisão de 2 a 8 anos;

- 1 crime de ABUSO DE CARTÃO DE GARANTIA OU DE CARTÃO, DISPOSITIVO OU DADOS DE PAGAMENTO, p. e p. pelo art.º 225º, nº 1, alínea d) e nº 5, alínea b) do Cód. Penal, com pena de prisão de 2 a 8 anos;

- 1 crime de ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA, p. e p. pelo art.º 299º, nºs 1 e 2 do Cód. Penal, com pena de prisão de 1 a 5 anos;

- 1 crime de BRANQUEAMENTO (DE CAPITAIS), p. e p. pelo art.º 368º-A, nºs 1, alínea b), e nº 3 do Cód. Penal, com pena de prisão até 12 anos.

Os recorrentes não põem em causa a existência nos autos de fortes indícios de terem praticado estes crimes, nem questionam a qualificação jurídica dos factos indiciados pelo Tribunal a quo, tanto mais que confessaram a sua prática, embora o arguido BB não tenha assumido a sua participação na integralidade dos factos. Entendem, porém, que as medidas de coação de prisão preventiva que lhes foram aplicadas não são proporcionais, nem adequadas, sendo suficiente a aplicação de caução, da medida de obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância eletrónica, ou de outra medida menos gravosa, pretendendo ainda o arguido BB que lhe seja aplicada uma medida de apresentações periódicas em Portugal e em … e que lhe seja permitido o regresso a este último país. O arguido AA vem também recorrer do despacho datado de 1/10/24 que indeferiu o seu pedido de alteração da medida de prisão preventiva a que se encontrava sujeito.

Vejamos se lhes assiste razão.

O direito à liberdade pessoal, enquanto liberdade de movimentos, é um direito fundamental reconhecido na Constituição da República Portuguesa, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, instrumentos internacionais estes que são aplicáveis na ordem jurídica interna.

Consagra-se em todos estes diplomas o direito à liberdade individual, que se traduz no facto de ninguém poder ser arbitrariamente detido ou preso, o qual, por não ser um direito absoluto, admite as limitações resultantes da lei, com vista ao reconhecimento e ao respeito dos direitos e liberdades de outrem e à satisfação das exigências de ordem pública que se mostrarem justas.

No contexto das limitações ao direito à liberdade de movimentos surgem as medidas de coação, as quais são «meios processuais de limitação da liberdade pessoal … dos arguidos … e têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias» (Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal II“, págs. 285 e 286, 4.ª ed.).

Nos termos do art.º 191º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, as medidas de coacção estão sujeitas ao princípio da legalidade, o que quer dizer que a liberdade das pessoas só pode ser limitada se existirem necessidades processuais de natureza cautelar, resultantes da ocorrência dos perigos ou de algum dos perigos enunciados no art.º 204º do mesmo diploma, a saber:

a) Fuga ou perigo de fuga;

b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

A conciliação do princípio de que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória com a necessidade da sua sujeição a medidas de coacção antes da condenação, pressupõe que o recurso aos meios de coacção em processo penal tem que respeitar os princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade e da intervenção mínima.

Segundo Castro e Sousa, estes princípios «nada mais são do que emanação do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido que impõe que qualquer limitação à liberdade do arguido anterior à condenação com trânsito em julgado deva não só ser socialmente necessária mas também suportável» ( in, “ Os meios de coacção no novo código de processo penal”, Jornadas de direito processual penal. O novo código de processo penal, Centro de Estudos Judiciários, Coimbra, Livraria Almedina, 1995, pág. 150).

Os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade encontram-se consagrados no art.º 193º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, onde se estabelece que as medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias, adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

O princípio da necessidade tem subjacente uma ideia de exigibilidade, no sentido de que só através da aplicação daquela concreta medida de coação se consegue assegurar a prossecução das exigências cautelares do caso.

Já o princípio da adequação exige que a medida seja apta e idónea para satisfazer as exigências cautelares do caso, devendo ser escolhida de acordo com estas exigências.

Como ensina Germano Marques da Silva, uma medida é adequada «se realiza ou facilita a realização do fim pretendido e não o é se o dificulta ou não tem absolutamente nenhuma eficácia para a realização das exigências cautelares» (in “Curso de Processo Penal”, II, 4.ª edição, Verbo, Lisboa, 2008, pág. 303).

Este princípio afere-se por um critério de eficiência, através da comparação entre o perigo que justifica a imposição da medida de coação e a previsível capacidade desta para o neutralizar ou conter.

A adequação é, assim, qualitativa (aptidão da medida, pela sua natureza, para realizar os fins cautelares pretendidos) e quantitativa (no que toca à sua duração ou intensidade).

O princípio da adequação é ainda integrado pelo princípio da proporcionalidade, que impõe que a medida seja proporcional à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada.

O princípio da proporcionalidade assenta, pois, num conceito de justa medida ou de proibição do excesso entre os perigos que se pretendem evitar e a aplicação da medida de coação escolhida.

O art.º 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa prevê que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, pelo que, em matéria de aplicação das medidas de coação, o princípio da proporcionalidade também terá de ser decomposto «em três subprincípios constitutivos: o princípio da conformidade ou da adequação; o princípio da exigibilidade ou da necessidade e o princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito» (GOMES CANOTILHO, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, pág. 264).

Assim, no que respeita ao princípio da proporcionalidade, exige-se que, em cada fase do processo, exista uma relação de idoneidade entre a medida de privação da liberdade individual aplicada, a gravidade do crime praticado e a natureza e medida da pena em que, previsivelmente, o arguido virá a ser condenado.

Tal gravidade deverá ser ponderada em função do modo de execução do crime, dos bens jurídicos violados, da culpabilidade do agente e, em geral, de todas as circunstâncias que devam ser consideradas em sede de determinação da medida concreta da pena.

Estes princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade são uma emanação do princípio jurídico-constitucional da presunção de inocência, constante no art.º 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

Em estreita ligação a estes princípios está o princípio da subsidiariedade da prisão preventiva, consagrado no art.º 193º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, em conformidade com o art.º 28º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, mediante o qual a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção previstas na lei.

Neste sentido decidiu o Acórdão do TRL de 19/06/2019, no processo nº 207/18.4PDBRR.L1-3, em que foi relator João Lee Ferreira, in www.dgsi.pt), onde se pode ler que: «Respeitar o princípio da adequação significa escolher a medida que poderá constituir o melhor instrumento para garantir as exigências cautelares do caso (…). Para respeitar o princípio da proporcionalidade, a medida de coação escolhida deverá manter uma relação direta com a gravidade dos crimes e da sanção previsível, cabendo ponderar elementos como o juízo de censurabilidade da conduta, o modo de execução, a importância dos bens jurídicos atingidos. O respeito pelo princípio da subsidiariedade impõe considerar sempre a prisão preventiva como uma medida de natureza excecional que só pode ser aplicada como extrema ratio, quando nenhum outro meio se perfile ou anteveja como adequado e suficiente.»

São ainda pressupostos da aplicação de uma medida de coação a existência de um processo penal, a verificação de indícios da prática de um crime, a inexistência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal e a constituição do visado como arguido.

A aplicação de qualquer uma das medidas de coação, com exceção do termo de identidade e residência, pressupõe também a verificação, cumulativa ou não, dos perigos enunciados no art.º 204º do Cód. Proc. Penal.

Em suma, a medida de coação de prisão preventiva só deverá ser aplicada em face de pelos menos um dos perigos previstos neste último preceito legal e se nenhuma outra medida de coação, menos gravosa, se mostrar apta a acautelá-lo.

No que concerne à prisão preventiva, exige ainda o art.º 202º do mesmo diploma a verificação de “fortes indícios” da prática de determinado tipo de crimes como condição sine qua non para a sua aplicação.

Os “fortes indícios” devem ter-se por verificados, quando, com base nos mesmos, a probabilidade de condenação é maior do que a de absolvição, reportada à fase da audiência de discussão e julgamento (cf. GERMANO MARQUES DA SILVA, in “ Curso de Processo Penal”, Vol. II, 3ª Edição, Editorial Verbo, 2002, pág. 261).

Assim sendo, os indícios só serão fortes quando o seu grau de certeza acerca do cometimento do crime e da identidade do seu autor é próximo do que é exigido na fase do julgamento, apenas com a diferença de que, aquando da aplicação da medida de coação, os elementos probatórios têm uma maior fragilidade, resultante da ausência do contraditório, da imediação e da oralidade, característicos da fase do julgamento da causa.

No caso dos autos, resulta das conclusões dos recursos que os recorrentes não põem em causa os factos indiciados, nem a sua qualificação jurídica feita pelo Tribunal a quo, com a qual se conformam, pelo que nada há a referir quanto a estas matérias. Como se viu, nos termos do art.º 202º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, a aplicação da medida de coação de prisão preventiva pressupõe a inadequação ou insuficiência das medidas de coação previstas nos artigos anteriores (196º a 201º) e o juízo de forte indiciação da prática de um dos crimes aí elencados, nos quais se incluem, nas alíneas a) e c), por referência ao art.º 1º, alínea m) do mesmo diploma, os crimes em causa nos presentes autos.

Mostrando-se, assim, preenchido o pressuposto específico do art.º 202º do Cód. Proc. Penal, vejamos agora se se mostram também preenchidos os pressupostos constantes do art.º 204º do mesmo diploma.

Dos factos indiciados, resulta a verificação, em concreto, dos perigos de fuga, de perturbação do inquérito, de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

Quanto ao perigo de fuga, este é real e concreto, na medida em que estamos em presença de dois cidadãos …, sem qualquer ligação ao nosso país, no qual não têm residência, trabalho ou apoio familiar, pelo que na primeira oportunidade seguramente que tentarão regressar ao seu país de origem, conforme os próprios, aliás, expressaram.

Resulta das declarações dos arguidos que apenas se deslocaram ao nosso país para a prática dos crimes em apreço, por aqui tal actividade ser de execução mais fácil, tendo no entretanto se deslocado a … e regressado a Portugal.

Os arguidos, apesar da sua jovem idade, agem com sentimento de impunidade e movimentam-se entre os dois países com total à vontade.

Para além disto, há que ter em conta que o arguido AA está proibido de sair do território nacional …, por medida de coacção que ali lhe foi aplicada e, ainda assim, utilizando uma identidade falsa, que o próprio confessou, saiu daquele país.

Atenta esta facilidade em obter identificações falsas, é real a possibilidade de fuga dos arguidos, caso sejam sujeitos a medida de coacção não privativa da liberdade.

Quanto ao perigo de perturbação da instrução probatória do processo, este é maior nas fases preliminares do processo e diminui com o decurso do tempo e com a realização das diligências mais importantes.

O que importa acautelar é não só a prova já produzida, mas também a que resultar de futuras diligências de investigação, uma vez que o perigo de perturbação em causa se prende com a aquisição, a conservação ou a veracidade da prova e tanto pode ocorrer no decurso da fase de inquérito, como nas fases posteriores, de instrução e julgamento.

A manutenção do perigo de perturbação da instrução probatória também é justificada pelo tipo de crimes imputados e pela extrema complexidade da investigação em causa nos autos.

Uma vez que o inquérito ainda está em curso, assim como a investigação, e há, pelo menos, dois outros suspeitos ainda não identificados e diligências a efectuar, é real o perigo de os arguidos, conhecedores da vítima e das declarações por aquela prestadas, uma vez em liberdade, poderem exercer sobre a mesma alguma pressão ou retaliação e também ajudar na fuga dos outros suspeitos não identificados ou na ocultação de provas ainda não apreendidas. Mais resultou indiciariamente provado que os arguidos fazem da prática destes crimes modo de vida, sobretudo o arguido AA, a quem não é conhecida qualquer actividade laboral.

Daqui decorre, efectivamente, um elevado perigo de continuação da actividade criminosa por parte dos recorrentes, como forma de custear as suas despesas, sendo que os crimes em apreço, pela frequência e facilidade da sua prática e pelo montante dos prejuízos que causam, são geradores, por si só, de forte perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas.

Face à quantidade de artigos apreendidos e à gravidade dos crimes em apreço, não é de excluir a condenação dos recorrentes numa pena de prisão efectiva, não obstante poder vir a ser ponderada a aplicação aos recorrentes do regime penal especial para jovens delinquentes, sendo ainda de realçar que o arguido AA tem antecedentes criminais pela prática do mesmo tipo de crimes e violou uma medida de coação que lhe foi aplicada em França.

Impõe-se, assim, concluir que a prisão preventiva é a única medida coactiva que se mostra apta a suprimir os supracitados perigos, sendo necessária e adequada às exigências cautelares que o caso requer, revelando-se proporcional à gravidade dos crimes em apreço e às sanções que previsivelmente serão aplicadas aos recorrentes, tudo em conformidade com o disposto nos arts.º 193º, 202º, nº 1, alíneas a) e c) e 204º, nº 1, alíneas a), b) e c) todos do Cód. Proc. Penal.

Entendem os recorrentes que a sua sujeição a prisão preventiva é excessiva e desproporcionada, sendo suficiente a aplicação de uma medida cautelar de obrigação de permanência na habitação, de caução ou de outra medida menos gravosa.

No entanto, existem situações em que a obrigação de permanência na habitação, como medida alternativa à prisão preventiva e com preferência sobre esta, não se mostra adequada à realização das finalidades cautelares visadas.

É o que sucede quando se verifica perigo de continuação da actividade criminosa, que entendermos ser real e efectivo no caso dos autos.

Se o que se pretende é afastar a possibilidade de repetição de comportamentos semelhantes, a permanência na habitação, na prática, ainda que controlada electronicamente, não conseguirá impedir os recorrentes da utilização das comunicações electrónicas, através de telemóveis, internet e telefone, quer através da eventual participação de outros membros da sua rede de contactos, de continuarem a praticar o tipo de crimes em apreço na habitação.

A isto acresce que os recorrentes não têm qualquer apoio logístico e familiar no nosso país que permita que lhes seja aplicada uma medida de permanência na habitação.

Também a caução não se mostra adequada, tendo em conta a ausência de rendimentos lícitos do arguido AA e os baixos rendimentos declarados do arguido BB, que não lhes permitiriam pagar uma caução de valor adequado, em face dos prejuízos causados já conhecidos.

Em conclusão, o despacho que aplicou as medidas de coação de prisão preventiva aos recorrentes mostra-se suficientemente fundamentado e encontram-se preenchidos os pressupostos, quer os de carácter geral, quer os de carácter específico, legalmente exigidos para que aos recorrentes pudesse ser aplicada a medida de coação de prisão preventiva, medida essa que, de entre o elenco das medidas de coação que a lei prevê, é a única que, por ora, se mostra capaz de satisfazer de forma adequada e suficiente as exigências cautelares que o caso requer.

Quanto ao recurso do despacho datado de 1/10/24, por parte do arguido AA, não se destacam nas conclusões de recurso quais as questões que este recorrente suscita relativamente ao referido despacho.

O que resulta da motivação do recurso de ambos os recorrentes é que os mesmos não se conformam com a aplicação da medida de prisão preventiva, nem o arguido BB com a manutenção da mesma pelo despacho datado de 1/10/24, assim como não se conformam com as condições em que se encontram detidos, nem com a frequência das visitas e das chamadas telefónicas autorizadas para os seus familiares.

Sucede que este recurso não é o meio próprio para reclamar das circunstâncias da execução da medida cautelar de prisão preventiva, para além do que as mesmas são de verificação posterior à aplicação das medidas de coação em apreço, não se descortinando qualquer nulidade ou irregularidade no despacho recorrido.

Por outro lado, constata-se que entre a data em que foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva ao arguido AA e a data do despacho datado de 1/10/24, não foram indiciados nos autos factos que permitissem infirmar os fundamentos da medida de coação aplicada a este recorrente.

Verifica-se, assim, que os despachos impugnados não violaram qualquer um dos instrumentos legais ou das normas invocadas pelos recorrentes, pelo que se impõe julgar os recursos totalmente improcedentes e manter os recorrentes sujeitos às medidas de coação de prisão preventiva que lhes foram aplicadas.

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4. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam as Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedentes os recursos apresentados por AA e BB, e, em consequência, mantêm as decisões recorridas que determinaram a sujeição dos recorrentes às medidas de coação de prisão preventiva.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.

Comunique-se de imediato à 1ª instância, com cópia.

Évora, 25 de Fevereiro de 2025

(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)

Carla Francisco

(Relatora)

Anabela Simões Cardoso

Laura Goulart Maurício

(Adjuntas)