A pesquisa de dados num sistema informático (no caso um telemóvel), em inquérito, realizada ao abrigo do disposto no artigo 15º da Lei do Cibercrime, pode ser ordenada pelo Ministério Público, competindo a essa autoridade ordenar a apreensão dos dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova revelados nessa pesquisa.
Se os dados ou documentos informáticos apreendidos pelo Ministério Público tiverem conteúdo suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respetivo titular ou de terceiro, compete ao juiz de instrução decidir se devem ser juntos aos autos, tendo em conta os interesses do caso concreto.
Quando, no decurso da mesma pesquisa, forem encontrados, armazenados no sistema informático, mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, é ao juiz de instrução que compete ordenar a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
O despacho que autoriza ou ordena a pesquisa no sistema informático tem um prazo de validade máximo de 30 dias, sob pena de nulidade. A contagem desse prazo inicia-se no momento em que o órgão de polícia criminal está em condições de realizar a pesquisa e não no momento em que o despacho é proferido. A violação do prazo determina a nulidade do ato, sujeita ao regime de arguição previsto no artigo 120º do Código de Processo Penal, e não uma proibição de prova.
1.1. Decisão recorrida
Despacho proferido em 29set2024, em que o juiz de instrução julgou nula a pesquisa informática realizada no telemóvel apreendido e em que decidiu não validar os dados resultantes da mesma e não admitir a sua junção ao inquérito, em que é investigado o arguido AA.
1.2. Recurso, resposta e parecer
1.2.1. O Ministério Público recorreu do despacho, pedindo a sua revogação e substituição por outro que considere a pesquisa válida e determine a junção ao processo dos dados informáticos obtidos.
Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:
- A pesquisa aos dados informáticos armazenados no telemóvel apreendido e posterior apresentação ao juiz de instrução, no caso de virem a ser recolhidos dados referentes a comunicações e mensagens de correio eletrónico, foi ordenada pelo Ministério Público, em conformidade com o disposto nos artigos 15º nº 1 e 17º da Lei do Cibercrime, aprovada pela Lei nº 109/2009, de 15set (doravante LC);
- Essa pesquisa não tinha de ser previamente autorizada pelo juiz de instrução.
- Sendo embora verdade que a pesquisa se realizou para além do prazo de 30 dias, previsto no artigo 15º nº 2 da LC, não sendo imputável ao Ministério Público a dilação que ocorreu, entre a autorização para a pesquisa e a entrega pelo órgão de polícia criminal em quem foram delegados os atos de inquérito, a mesma é válida.
1.2.2. O arguido respondeu, opondo-se à procedência do recurso, sinteticamente, com os seguintes argumentos:
- O recurso deve ser rejeitado porque nas conclusões não se indicam as normas jurídicas violadas.
- Sem prescindir, a ser admitido, deve ser julgado improcedente, com os fundamentos que resultam do despacho recorrido.
1.2.3. O Ministério Público na Relação emitiu parecer defendendo a procedência do recurso.
Assinalou, em síntese, que não é aplicável ao caso o regime da interceção e gravação de conversação ou comunicações telefónicas e de conversações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, mas sim a revelação para posterior apreensão de dados armazenados no telemóvel, que não carece de autorização prévia do juiz de instrução.
2. Questões a decidir no recurso
Importa em primeiro lugar, porque é prejudicial em relação ao demais, tratar da questão da admissibilidade do recurso para, num segundo momento, verificar se o despacho recorrido fez uma correta aplicação da lei e se, consequentemente, deve ser confirmado ou revogado.
3. Questão prévia – admissibilidade do recurso
Sustenta o arguido que o recurso deve ser rejeitado por falta de indicação das normas jurídicas violadas.
Não tendo o relator conhecido a questão no momento do exame preliminar a que se refere o artigo 417º do CPP, a decisão é devolvida à conferência e decidida neste acórdão.
É verdade que o artigo 412º nº 2 al. a) do CPP determina que o recurso deve terminar pela formulação de conclusões e que nestas o recorrente deve indicar as normas jurídicas violadas. Trata-se de um ónus de alegação que visa, por um lado, permitir que os sujeitos afetados pelo recurso e o tribunal compreendam as razões da discordância da decisão recorrida e a pretensão do recorrente e, por outro lado, circunscrever o objeto do recurso que delimita o poder de cognição do tribunal superior. Esta norma não pode ser objeto de uma interpretação formalista rígida, mais desenhada para rejeitar recursos do que para assegurar o princípio constitucional do acesso à justiça e do direito ao recurso. O que importa, na verdade, é que a pretensão do recorrente seja percetível.
A consequência da falta de indicação das normas jurídicas, ao contrário do que se alega, não determina a rejeição do recurso, mas apenas um convite para o aperfeiçoamento – artigo 417º nº 2 do CPP.
No caso, porém, não há necessidade de aperfeiçoamento do recurso porque a indicação das normas jurídicas que nele consta é suficiente para compreender a pretensão do recorrente e para delimitar o objeto do recurso. Essa compreensibilidade, aliás, está bem patente na resposta do arguido, que não ficou impedido de perceber o seu sentido e de tomar posição sobre todas as questões.
O recurso indica as normas dos artigos 15º, 16º e 17º da LC e do artigo 179º do CPP e defende que elas devem ser interpretadas e aplicadas com um significado contrário à decisão recorrida. Logo, decorre daqui, sem margem para qualquer dúvida, que para o recorrente as normas jurídicas violadas são aquelas.
Um convite ao aperfeiçoamento teria apenas como efeito o completamento das conclusões, com a enunciação de uma qualquer fórmula usual que nada acrescentaria de interesse, além da perda de tempo.
Conhecemos, portanto, o recurso.
4. Fundamentação
4.1. Factualidade processual, relevante para a apreciação do recurso
- Em 12ago2022, o órgão de polícia criminal (OPC) que deteve o arguido em flagrante delito apreendeu o telemóvel de que o mesmo era portador, vindo o mesmo a ser depositado nos serviços do Ministério Público;
- Em 16ago2022, por despacho, o Ministério Público validou essa apreensão;
- Em 3nov2022, o OPC em quem o Ministério Público delegou a investigação informou que considerava necessária a pesquisa e recolha de eventuais fotos e vídeos que se encontrassem gravados no telemóvel e pediu autorização para o efeito;
- Em 1fev2023, o Ministério Público proferiu o seguinte despacho:
Vem o OPC solicitar autorização para realizar pesquisa ao telemóvel apreendido ao arguido AA, apreendido e identificado a fls. 29
Em face dos factos denunciados e descritos no Auto de Notícia, conjugados com o testemunho recolhido a fls. 26, a pesquisa de ficheiros de imagem gravações em formato vídeo e áudio é indispensável à descoberta da verdade material e cabal esclarecimento dos mesmos.
Assim, ordeno, nos termos do disposto artigo 15.º, n.º 1 e 16.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime), a pesquisa informática no telemóvel apreendido ao arguido, e apreensão dos dados informáticos/ficheiros considerados relevantes.
Caso venham a ser recolhidos no decurso da pesquisa informática dados cujo conteúdo, para além daquele que se revele fundamental para a prova nos autos, pode igualmente incluir dados referentes a registos de comunicações e mensagens de correio electrónico, nos termos do disposto no artigo 17.º da Lei do Cibercrime, deverão ser tais dados extraídos em suporte autónomo, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 7 e n.º 8 do artigo 16.º da referida Lei do Cibercrime, efectuando cópias em duplicado, digitalmente encriptadas, as quais serão seladas, uma para entrega ao secretário judicial e outra entregue para posterior promoção da apreensão dos dados informáticos, sem visualização prévia, ao Juiz de Instrução Criminal.
Caso venham a ser recolhidos no decurso da pesquisa informática dados cujo conteúdo, para além daquele que se revele fundamental para a prova nos autos, pode igualmente incluir dados susceptíveis de revelar informação de natureza pessoal ou íntima dos visados, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 16.º da Lei do Cibercrime, deverão ser tais dados identificados e extraídos nos termos do disposto na alínea b) do n.º 7 e n.º 8 do artigo 16.º da referida Lei do Cibercrime, efectuando cópias em duplicado, digitalmente encriptadas, as quais serão seladas, uma para entrega ao secretário judicial e outra entregue para determinação da sua apreensão e posterior apresentação ao Juiz de Instrução Criminal, para ponderação da sua junção aos autos.
Prazo: 30 dias.
após a realização da pesquisa informática, deverá ser efectuado o respectivo relatório, a apresentar para validação da apreensão de dados informáticos no prazo de setenta e duas (72) horas, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 16.º da Lei da Cibercrime e do n.º 5 do artigo 178º do Código de Processo Penal.
Comunique ao OPC, com cópia do presente despacho.
- Em 11fev2023, o despacho foi notificado ao OPC;
- E 23fev2023, o telemóvel foi entregue ao OPC para cumprimento do despacho;
- De 29jan2024 a 2fev2024, o OPC procedeu ao exame do telemóvel;
- Em 29fev2024, o OPC remeteu ao inquérito o relatório do exame e três CD selados com os dados informáticos recolhidos;
- Em 15mar2024, o Ministério Público ordenou a remessa dos CD ao juiz de instrução para proceder à respetiva abertura e análise;
- Em 12set2024, os CD foram remetidos ao juiz de instrução;
- Em 26set2024, o juiz de instrução proferiu o seguinte despacho recorrido:
O Digno Magistrado do Ministério Público veio remeter os autos, para que se proceda à abertura de “DVD’s”, nos termos do disposto no artigo 179.º do Código de Processo Penal.
Vejamos.
De acordo com o previsto no artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, “Quando no decurso do processo se tornar necessário à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho que se proceda a uma pesquisa nesse sistema informático, devendo, sempre que possível, presidir à diligência.”.
Depois, o n.º 2 do citado artigo prevê um prazo máximo de 30 dias para a realização dessa pesquisa, sob pena de nulidade.
No caso dos autos, em primeiro lugar, cumpre constatar que não foi proferido despacho prévio pelo Juiz a autorizar a apreensão de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhante, o que entendemos essencial – cfr. artigos 11.º, n.º 1, alínea c), 15.º, n.º 1, 16.º e 17 da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, e no artigo 179.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Em segundo lugar, foi proferido despacho, pelo Ministério Público, em 01/02/2023, a determinar a pesquisa informática em causa, tendo o prazo de 30 dias decorrido 01/03/2023. Não existiu qualquer outro despacho a determinar nova pesquisa. Após, veio o OPC competente apresentar relatório de pesquisa, iniciada em 29/01/2024. Ou seja, tal pesquisa ocorreu dez meses depois de terminado o prazo concedido.
Por fim, e em terceiro lugar, em 15/03/2024 o Ministério Público determinou a remessa dos autos ao Juiz de Instrução, tendo os mesmos sido efetivamente remetidos em 13/09/2024.
Assim, não só porque não existiu autorização prévia do Juiz para a realização da apreensão de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhante (artigos 11.º, n.º 1, alínea c), 15.º, n.º 1, 16.º e 17 da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, e artigo 179.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), mas também porque a mencionado pesquisa informática foi realizada muito após o terminus do prazo concedido, sem qualquer renovação (artigo 15.º, n.º2, da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro), não pode o Juiz validar tais pesquisas e apreensões, porquanto são nulas.
Pelo exposto, e nos termos das normas legais citadas, julgam-se nulas as pesquisas informáticas realizadas e, em consequência, decide-se não validar os dados resultantes daquelas, não se determinando a sua junção aos autos.
Notifique e devolva.
4.2. Mérito do recurso
O despacho recorrido rejeitou a pretensão do Ministério Público com três fundamentos distintos: primeiro, a falta de autorização judicial prévia para apreensão de correio eletrónico e registos de comunicações semelhantes: segundo, a nulidade resultante do facto de ter sido realizada para além do prazo de 30 dias: terceiro, a demora entre a ordem de envio do processo ao juiz de instrução e a sua efetivação pelos serviços do Ministério Público.
Vamos analisá-los por esta ordem.
4.2.1. A questão da prévia autorização judicial
Resulta do disposto nos artigos 15º, 16º e 17º da LC, com relevância para o caso em apreço, o seguinte:
- Se num inquérito for necessário à produção de prova obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático, o Ministério Público autoriza ou ordena por despacho que se proceda a uma pesquisa nesse sistema informático (artigo 15º nº 1);
- Esse despacho tem um prazo de validade de 30 dias, sob pena de nulidade (artigo 15º nº 2);
- Quando, no decurso daquela pesquisa informática, forem encontrados dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova, o Ministério Público ordena por despacho a respetiva apreensão (artigo 16º nº 1);
- Se os dados ou documentos informáticos apreendidos pelo Ministério Público (ou pelo OPC nos casos do artigo 16º nº 2) tiverem conteúdo suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respetivo titular ou de terceiro, são apresentados ao juiz de instrução, sob pena de nulidade, para ponderação da sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto (artigo 16º nº 3);
- Quando, no decurso da mesma pesquisa informática, forem encontrados, armazenados no sistema informático, mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz de instrução ordena, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a aprova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no artigo 179º do CPP (artigo 17º).
Estas normas fazem uma distinção muito clara entre a pesquisa de dados ou documentos num sistema informático e a apreensão dos dados ou documentos que essa pesquisa revele. A pesquisa pode ser autorizada ou ordenada no inquérito pelo Ministério Público, que é a “autoridade judiciária competente” a que se refere o artigo 15º nº 1. A apreensão, para junção aos autos, dos dados e documentos revelados na pesquisa, será em regra da competência do Ministério Público. Porém, na situação especial prevista no artigo 16º nº 3, a junção aos autos terá de ser decidida pelo juiz de instrução. E na situação especial prevista no artigo 17º, a apreensão terá de ser autorizada ou ordenada pelo juiz de instrução, aplicando-se, com as devidas aplicações o regime do artigo 179º do CPP.
Daquela remissão para o regime da apreensão de correspondência em processo penal não resulta que a pesquisa do sistema informático a que se refere o artigo 15º da LA tenha de ser previamente ordenada pelo juiz de instrução, nos casos previstos no seu artigo 17º Isso sucede por quatro razões:
- Em primeiro lugar, a letra da lei é clara. O artigo 15º refere-se expressamente à pesquisa no sistema informático e os artigos 16º nº 3 e 17º à junção aos autos e à apreensão de documentos e dados informáticos revelados nessa pesquisa – a pesquisa precede a junção e a apreensão e estas são consequência daquela.
- Em segundo lugar, a norma seria de aplicação impossível. Antes da pesquisa informática não haveria maneira de saber se lá se encontram armazenados dados ou documentos com o conteúdo que é objeto da proteção estabelecida nos artigos 16º nº 3 e 17º para se poder exigir uma autorização judicial prévia.
- Em terceiro lugar, a norma do artigo 15º, que se refere à autoridade judiciária competente, ficaria vazia de conteúdo. Se tivesse de haver autorização prévia do juiz de instrução para a realização da pesquisa informática, seria inútil a lei referir-se à “autoridade judiciária competente”.
- Em quarto lugar, a remissão para o regime do artigo 179º do CPP refere-se apenas aos requisitos formais e materiais, aos limites da apreensão e à junção aos autos ou restituição. A norma abarca a apreensão de cartas, encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra correspondência, num processo comunicacional ainda não concluído, por não ter chegado ao destinatário, em, que não é necessária uma pesquisa informática prévia como aquela prevista no artigo 15º da LA.
Ora, no caso em análise, a pesquisa informática foi ordenada pelo Ministério Público e executada pelo OPC. Não houve junção aos autos nem apreensão de quaisquer documentos ou dados informáticos pelo Ministério Público. O que o Ministério Público fez foi apresentar ao juiz de instrução os documentos e dados informáticos revelados naquela pesquisa, em três CD selados, para que o juiz os verificasse e, caso todos ou alguns fossem daqueles que nos termos dos artigos 16º nº 3 e 17º da LA necessitam de validação judicial, decidisse em conformidade, determinando a sua junção aos autos ou apreensão.
Daqui resulta que no despacho recorrido se confundiu a pesquisa e a apreensão de documentos e dados informáticos. Ao contrário do decidido em primeira instância, a lei não condiciona a pesquisa informática realizada em inquérito a prévia autorização judicial. Condiciona, isso sim, a junção aos autos e apreensão dos documentos e dados informáticos aí revelados, mas foi precisamente para isso que foram apresentados ao juiz de instrução.
Não existe, em conclusão, qualquer nulidade processual pelo facto de o Ministério Público ter ordenado a pesquisa informática no telemóvel do arguido e de ter pretendido sujeitar a junção aos autos e apreensão dos documentos e dados informáticos aí armazenados a decisão do juiz de instrução.
4.2.2. A questão da violação do prazo para a realização da pesquisa informática
O artigo 15º nº 2 dispõe que o despacho que autoriza ou ordena a pesquisa no sistema informático tem um prazo de validade máximo de 30 dias, sob pena de nulidade. Esta norma, aplicável à cibercriminalidade é igual à prevista no artigo 174º nº 4 do CPP, relativa ao despacho que autoriza ou ordena uma revista ou uma busca.
O objetivo da norma é garantir que uma ação de investigação, que por definição implica sempre a violação da reserva da vida privada, se execute apenas em momento em que seja processualmente justificada e proporcional. O asseguramento dessa garantia resultará da proximidade temporal entre a ordem para a realização do ato, tomada em função da avaliação dos indícios existentes nesse momento, e a sua execução. Por outro lado, visou também o legislador acabar com práticas que existiam antes da lei ter fixado aquele prazo, com a realização de buscas meses e por vezes anos depois da respetiva autorização, sem que a autoridade judiciária competente pudesse avaliar a subsistência dos indícios e a necessidade e proporcionalidade da intrusão na privacidade no momento em que os OPC decidiam dar cumprimento aos mandados (ver Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 3ª Edição, Tomo II, anotação ao artigo 174º, parágrafo 23).
Muito embora aquele artigo 15º nº 3 não regule o momento a partir do qual se conta o prazo de 30 dias, tendo em vista que o mesmo se refere à execução da pesquisa, é de considerar que se inicia apenas no momento em que o OPC está em condições de a realizar e não no momento em que o despacho é proferido. A lei tem uma redação deficiente, pois o que perde validade não é o despacho – o despacho há de manter-se no processo – mas sim a autorização dele resultante. Neste sentido, da contagem do prazo se iniciar apenas no momento em que a autorização pode ser executada pelos OPC, pode consultar-se o acórdão TRE, de 11set2018, no processo 12/16.2GAPMT.E1, em www.dgsi.pt.
No caso em análise, é por demais evidente que o prazo foi largamente ultrapassado. O telemóvel para examinar foi entregue ao OPC em 23fev2023 e o exame só se realizou entre 29jan2024 e 2fez2024.
Ao contrário do sustentado pelo Ministério Público no recurso, o facto de a demora não ser imputável aos seus serviços, mas sim aos do OPC, é irrelevante para a determinação da validade jurídica do ato processual. A lei comina a violação do prazo de 30 dias com a nulidade, independentemente de saber a quem a mesma deve ser imputada. Para as finalidades que o legislador fixou, a violação daquele prazo de 30 dias será, até, em regra, por razões óbvias, no plano da garantia da inviolabilidade da reserva da vida privada, mais grave se tiver ocorrido por demora do OPC e não do Ministério Público.
Nesta parte o despacho recorrido está correto quando assinalou que a pesquisa informática se realizou fora do prazo legal.
Já não está, porém, na consequência que daí retirou.
A violação do prazo previsto no artigo 15º nº 3 da LA deve ter as mesmas consequências da violação do prazo do artigo 174º nº 4 do CPP. Não há razão para que não seja assim. A letra da lei é exatamente igual e a consequência da violação do prazo numa pesquisa informática não pode ser mais grave do que a violação do prazo para a realização de uma busca domiciliária, que é muito mais intrusiva.
Na anotação a esta norma, no parágrafo 39 do Comentário Judiciário do Código de Processo Penal acima referido, defendeu-se que a violação do prazo de 30 dias para a realização de uma busca ou revista não tem a mesma consequência da realização dessa diligência sem autorização judicial. Nesta está em causa uma proibição de prova, por aplicação do disposto no artigo 32º nº 8 da CRP e no artigo 126º nº 3 do CPP, por causa da intromissão abusiva na vida privada. Já, tratando-se de uma busca ou revista autorizada, mas realizada fora do prazo legal, ocorre apenas nulidade do ato, sujeita ao regime previsto no artigo 120º do CPP.
No mesmo sentido se decidiu no acórdão do TRE, de 11set2018, referido atrás.
E em abono desta interpretação podemos convocar ainda, por maioria de razão, o acórdão do STJ de uniformização de jurisprudência nº 1/2018, que, embora a propósito do prazo de validação das escutas telefónicas, decidiu igualmente que a sua violação acarreta apenas uma nulidade dependente de arguição e não uma proibição absoluta de utilização da prova recolhida.
O mesmo regime deve aplicar-se à realização de uma pesquisa informática com violação do prazo previsto no artigo 15º nº 2 da LA. Não está em causa a realização de uma diligência intrusiva na reserva da vida privada sem autorização da autoridade judiciária competente. Esse fundamento que justifica as proibições de prova está protegido pela existência de uma autorização que foi efetivamente concedida pela autoridade competente para tal, depois da avaliação dos requisitos de necessidade e proporcionalidade. A violação do prazo não afeta com a mesma intensidade o bem jurídico protegido pelas normas que estabelecem as proibições de prova.
Sendo assim, concluindo-se que a nulidade da pesquisa informática do telemóvel do arguido depende de arguição, fica já evidente que o tribunal recorrido não a podia ter declarado oficiosamente, pois não lhe tinha sido arguida por qualquer um dos sujeitos processuais.
Donde resulta que a violação do prazo do artigo 15º nº 2 da LA, nas condições em que o processo se encontrava quando foi apresentado ao juiz de instrução, não era fundamento para recusa de eventual apreensão e junção aos autos dos documentos e dados informáticos existentes nos CD.
4.2.3. A questão da demora da remessa dos autos ao juiz
O despacho recorrido usou também este argumento para recusar a pretensão do Ministério Público, embora sem se perceber exatamente com que alcance e porquê.
De todo o modo, é de considerar que se trata de um argumento sem relevância.
O prazo em causa refere-se à execução da pesquisa informática pelo OPC e visa proteger a reserva da privacidade contra intromissões abusivas – por excessiva dilação entre a ordem da autoridade judiciária e a execução pelo OPC.
A dilação temporal entre o momento em que o Ministério Público determina a remessa do inquérito ao juiz de instrução para a prática de qualquer ato da sua competência e o momento em que essa ordem é cumprida pelos serviços não tem qualquer consequência para a validade dos atos em causa. Não há norma jurídica de onde se possa extrair tal conclusão, ainda que remotamente.
4.2.4. Conclusão
O despacho recorrido não aplicou corretamente a lei e por isso tem de ser revogado.
O tribunal não pode declarar a nulidade da pesquisa informática por falta de autorização judicial prévia, que a lei não existe, nem por violação do prazo, que está sujeita ao regime do artigo 120º do CPP.
O tribunal tem, isso sim, de aceitar a entrega dos CD que contêm os documentos e dados informáticos revelados na pesquisa ao telemóvel do arguido, de os verificar e depois decidir em conformidade com o disposto nos artigos 16º nº 3 e 17º da LA.
5. Decisão
Julga-se o recurso procedente, revoga-se o despacho recorrido e determina-se a sua substituição por outro que admita a entrega dos CD para posterior verificação e decisão em conformidade com o disposto nos artigos 16º nº 3 e 17º da LA.
Não há lugar ao pagamento de custas.
Évora, 25fev2025
Manuel Soares
Carla Oliveira
Jorge Antunes