Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
I – O dever de lealdade é um valor absoluto e inquestionável, insuscetível, por isso, de graduação, pelo que aquilo que releva não é o valor do prejuízo que adveio para a entidade empregadora do comportamento adotado pelo trabalhador, ou mesmo se adveio algum prejuízo, antes sim, a quebra irreparável da confiança que a entidade empregadora depositava naquele seu trabalhador, provocada por tal comportamento desleal e desonesto.
II – É lícito o despedimento de um supervisor de Soummelier, que, durante o horário e local de trabalho, consome bebidas alcoólicas, pertencentes à sua entidade empregadora, com outros trabalhadores e à vista de outros trabalhadores, sem o consentimento daquela entidade, que descobre tal comportamento em face da ausência de stock de bebidas sem justificação, uma vez que se verifica a quebra irreparável da confiança que devia reger a relação laboral, sendo objetivamente ilegítimo obrigar a entidade empregadora a manter tal relação.
III – A circunstância de o Autor ter um cargo de chefia, torna ainda mais gravoso o seu comportamento, revelando total indiferença à especial confiança que a entidade empregadora nele tinha depositado.
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora1
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Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
AA (trabalhador) intentou ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, manifestando, por via da apresentação do requerimento a que alude o artigo 98.º - C do Código de Processo do Trabalho, a sua oposição ao despedimento promovido por “Nozul Algarve, S.A.” (entidade empregadora).
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Realizada a audiência de partes, não foi possível resolver o litígio por acordo.
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No decurso da ação, a entidade empregadora apresentou articulado motivador, solicitando a improcedência, por não provada, da presente ação, devendo ser declarada a existência de justa causa para o despedimento do trabalhador, sendo que, caso se entenda de outro modo, sempre deverá ser excluída a integração do trabalhador, nos termos do art. 98.º J, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho.
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A esse articulado, o trabalhador veio responder, contestando e reconvindo, solicitando, a final, que o seu despedimento seja considerado ilícito e, consequentemente, seja julgada procedente, por provada, a reconvenção, sendo a entidade empregadora condenada:
c) ao pagamento das retribuições que o Autor deixou de auferir, desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal, no valor mínimo de €9.300,00;
d) ao pagamento de indemnização em substituição de reintegração na empresa, no valor mínimo de €2.200,00;
e) ao pagamento de indemnização por danos não patrimoniais no valor de €4.500,00, tudo acrescido de juros de mora até efetivo e integral pagamento; e
f) ao pagamento de custas e demais encargos com o processo.
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A entidade empregadora veio igualmente responder à reconvenção, solicitando a improcedência, por não provada, da reconvenção, devendo ser reconhecida a existência de motivo justificativo para o despedimento com justa causa.
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Proferido despacho saneador, foi admitido o pedido reconvencional, efetuado o saneamento do processo, julgada improcedente a exceção de invalidade do procedimento de despedimento e de nulidade da prova, identificado o objeto do litígio, dispensada a enunciação dos temas da prova e apreciados os requerimentos sobre os meios de prova.
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Realizada a audiência de julgamento de acordo com as formalidades legais, foi proferida a sentença em 25-10-2024, com o seguinte teor decisório:
Pelo exposto, o tribunal julga a presente ação parcialmente procedente e em consequência:
i) Declara a ilicitude do despedimento do autor;
ii) Condena a ré no pagamento ao autor das retribuições – no valor mensal de € 1.643,94 por mês, correspondentes a € 1.550, acrescidos de € 93,94 (€ 4,27 x 22) – que seriam devidas desde a data do despedimento e até ao trânsito em julgado da presente decisão – nestas se incluindo as férias e os subsídios de férias e de Natal durante todo esse período – sem prejuízo do eventual desconto das quantias a que se refere o artigo 390º, nº 2, alínea c), do Código do Trabalho, acrescidas dos juros calculados à taxa legal, desde o vencimento de cada uma das prestações, até integral pagamento;
iii) Condena a ré no pagamento ao autor de uma indemnização, em valor equivalente a vinte dias de retribuição base por cada ano ou fração de antiguidade até à data do trânsito em julgado da decisão (consignando-se que a antiguidade do autor remonta ao dia 20 de abril de 2022 e que a retribuição a atender é de € 1.550 por mês), acrescida dos juros, calculados à taxa legal, desde o trânsito em julgado da decisão, até integral pagamento;
iv) Os valores constantes dos pontos ii) e iii) deverão ser fixados em liquidação, a efetuar em sede de eventual execução de sentença, por a sua fixação depender da data do trânsito em julgado da decisão;
No mais, julga-se improcedente o pedido de indemnização por danos não patrimoniais formulado pelo autor.
Custas por autor e ré, em função do respetivo decaimento, que se fixa em ¼ para o autor e ¾ para a ré (cf. artigo 527º do Código de Processo Civil).
Fixa-se o valor da ação em € 11.500 (cf. artigo 98º-P, nº 2 do Código de Processo do Trabalho e artigo 297º, nº 1 do Código de Processo Civil)
Registe e notifique.
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Inconformada com tal sentença, a entidade empregadora veio interpor recurso de Apelação, terminando as suas alegações com as conclusões que se seguem:
I. Vem o recurso interposto da sentença proferida pelo Juiz 1, do Juízo do Trabalho de Portimão, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, sob o n.º 1378/24.6T8PTM, que julgou ilícito o despedimento com justa causa promovido pela Recorrente, com todas as legais consequências.
II. A prova produzida em audiência de julgamento impunha decisão diversa da proferida e tal decisão terá, necessariamente, de ser revogada, substituída por outra que declare a licitude do despedimento promovido pela Recorrente, sendo tal sanção a única sanção adequada face à gravidade das infrações disciplinares cometidas pelo Recorrido.
III. A revogação da sentença assenta na procedência da impugnação da matéria de facto, quanto ao facto 1.45, que deve passar a integrar os factos dados como não provados.
IV. Concretamente, o meio de prova que compõe essa decisão é o depoimento da testemunha BB (cfr. depoimento de 23.09.2024, entre 00:00 e 14:34), dado que a mesma acabou por admitir, que quem ficou afetada com o processo disciplinar de assédio – e não impugnado pelo A- - foi a própria testemunha e não o A., sendo certo que esteve já sofria de problemas relacionados com burnout, nuca tendo feito, esta testemunha, referência a sentimentos de humilhação perante colegas de trabalho do A. e agentes comerciais e, muito menos, à eventual acentuação do estado depressivo do A., na sequência do despedimento.
V. A 1.ª instância cometeu um erro claro na apreciação da prova produzida, devendo ser aditados os seguintes factos aos factos dados como provados:
VI. A) Atento o comportamento do A. ao fazer suas as bebidas alcoólicas pertencentes à R., sua entidade patronal, e a consumi-las no local de trabalho e durante o horário de trabalho, a R. perdeu toda a confiança que ainda depositava no mesmo;
B) O comportamento do A. ao fazer suas as bebidas alcoólicas pertencentes à R., sua entidade patronal, e a consumi-las no local de trabalho e durante o horário de trabalho, colocou em casa a imagem da sua entidade patronal, fazendo com que a Ré considerasse impossível a subsistência da relação laboral.
VII. Concretamente, os meios de prova que compõe essa decisão quanto ao aditamento desses dois factos ao elenco dos factos dados como provados são o depoimento do Dr. CC (diretor do departamento de Recursos Humanos da R.) – cfr. depoimento de 23.09.2024, entre 00:00 e 39:19) e da Dra. Dra. DD (Diretora de Operações da R.) - cfr. depoimento de 23.09.2024, entre 00:00 e 23:43.
VIII. As testemunhas CC e DD são credíveis, não tendo respondido a nenhuma pergunta que não lhes tivesse sido perguntada.
IX. Não se verificou qualquer contradição entre as mesmas.
X. Verifica-se, quer pelo depoimento do Dr. CC, diretor dos Recursos Humanos, quer pelo depoimento da Dra. DD, diretora de Operações, que, com o comportamento levado a cabo pelo A. – locupletamento de bebidas alcoólicas pertencentes à R. e consumo das mesmas no local de trabalho e no seu horário de trabalho – levaram à quebra da relação de confiança que a entidade patronal depositou no A., sendo impossível a manutenção da relação laboral.
XI. O julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”.
XII. A livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência.
XIII. Pese embora o Tribunal “a quo” tenha dado como provado que o A., dois dias após a notificação do despacho final que lhe aplicou a sanção disciplinar do despedimento, já se encontrava a trabalhar para outra empresa, queda-se, na decisão, ao afirmar que “não que há proceder ao desconto previsto pelo artigo 390º, nº 2, alínea a), do mesmo Código – referente a importância auferidas com a cessação do contrato que, se não fosse o despedimento, o trabalhador não receberia, uma vez que não foram alegados, nem demonstrados, rendimentos desta natureza”.
XIV. Ao laborar para outra empresa, o A. auferiu rendimentos que não auferiria caso não tivesse sido despedido pela R., pelo que decide mal, o Tribunal, ao considerar que tais rendimentos não se provaram e que, como tal, não devem ser descontados ao valor que o A. teria direito a receber - o que não se aceita – caso o seu despedimento tivesse sido ilícito – e que não foi.
XV. Verifica-se, pois uma evidente contradição entre os factos dados como provados e a decisão, contradição essa insanável.
XVI. Existe justa causa de despedimento quando o estado de premência do despedimento seja de julgar mais importante que os interesses opostos na permanência do contrato, podendo-se concluir pela existência de justa causa, quando, em concreto e tendo em conta os factos praticados pelo trabalhador, seja inexigível ao empregador o respeito pelas garantias da estabilidade do vínculo laboral, como sucede “in casu”.
XVII. No caso em apreço, cumpre sublinhar, antes de mais, que a R. depositava no A. total confiança - ponto 1.38 dos factos provados.
XVIII. Por outro lado, temos por evidente que o A. violou, claramente, o dever de lealdade a que estava obrigada para com a ré. Para assim concluir basta atentar nos factos descritos nos pontos 1.6 a 1.12, 1.14 e 1.18, dos factos provados. Desses mesmos factos resulta, também, a reiteração do A. na prática de comportamentos lesivos do dever de lealdade para com a R.
XIX. Em pelo menos quatro dias distintos, o A., atuando de forma dolosa e consciente, fez suas as bebidas alcoólicas pertencentes à R., sua entidade patronal, consumindo-as no local de trabalho e durante o horário de trabalho, colocando em causa a imagem da R. e a possibilidade de esta perder a licença da ... (cfr. depoimento da Diretora de Operações da R., DD - 23.09.2024, entre 00:00 e 23:43, mais concretamente aos minutos 8:16.
XX. Assim, de outra forma não se pode concluir que não pela existência de um comportamento ilícito, gravíssimo e culposo por parte do A., sendo totalmente impossível a subsistência do vínculo laboral (o que seria para a imagem do Hotel se a R. permitisse que os seus colaboradores fazendo suas as bebias alcoólicas que lhe tinham sido confiadas para venda aos clientes, as consumissem em peno horário de trabalho e no local de trabalho, sem qualquer urbanidade e probidade), não havendo margem para dúvidas de que está em causa um despedimento com justa causa.
XXI. Assentando a relação laboral na cooperação e recíproca confiança entre o trabalhador e o empregador, e num clima de boa-fé, a mesma não poderá manter-se se o trabalhador destruir ou abalar, de forma irreparável, a confiança na idoneidade futura da sua conduta, o que é o caso, pelo cargo ocupado pelo trabalhador (de supervisão de sommelier) e pela especial culpabilidade da sua conduta, o que torna inexigível ao empregador a manutenção do vínculo laboral.
XXII. A quebra de confiança é tanto maior quanto mais longa for a relação laboral e as funções acometidas ao trabalhador e é um dado inultrapassável, no caso concreto, a quebra de confiança.
XXIII. Ao decretar a ilicitude do despedimento do recorrido, o Distinto Magistrado Judicial “a quo” violou o disposto nos arts. 126º, nº. 1, 128º, 351º, nºs. 1 e 3, 381º, alínea b) e 389º, nº. 1, alínea b) e a 390º, nºs. 1 e 2, alíneas a) e c).
XXIV. Termos em que aplicando o direito à factualidade provada, que deverá ser reconhecida como requerido pela Recorrente, só poderá revogar-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra que reconheça e declare a licitude do despedimento com justa causa do A., promovido pela Ré, com todas as legais consequências.
Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, requer-se que o presente recurso seja julgado procedente e, consequentemente, deve a decisão recorrida ser substituída por outra que julgue totalmente improcedente a ação, reconhecendo e declarando a licitude do despedimento com justa causa promovido pela Recorrente. V. Exas., como sempre, farão JUSTIÇA!
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O trabalhador não apresentou contra-alegações.
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O tribunal a quo admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Subidos os presentes autos a este tribunal, foi dado cumprimento ao preceituado no n.º 3 do art. 87.º do Código de Processo do Trabalho, pugnando a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer pela improcedência do recurso.
Não houve respostas ao parecer.
Foi recebido o recurso neste tribunal nos seus precisos termos, e, após terem sido colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
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II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;
2) Impugnação fáctica;
3) Licitude do despedimento; e
4) Dedução dos montantes auferidos pelo trabalhador.
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III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
1.1- O A. desempenhava, no “... Hotel”, as funções de Supervisor de Sommelier e era trabalhador deste mesmo Hotel desde 20 de abril de 2022, prevendo o seu contrato uma remuneração mensal ilíquida de € 1.550 por mês, acrescidos de € 4,27 diários de subsídio de alimentação (artº B-1º do articulado motivador da R.).
1.2- O Autor celebrou, com a empresa aqui Ré, contrato de trabalho a termo certo, com início no dia 20 de abril de 2022 e termo no dia 31 de dezembro de 2022, renovando-se no seu termo por igual período na falta de declaração das partes em contrário (artº 1º da contestação).
1.3- O seu contrato converteu-se em contrato sem termo no dia 12 de setembro de 2023 (artºs 2º e 68º da contestação e 3º da resposta).
1.4- No contrato de trabalho do A., nomeadamente na cláusula décima primeira, é referido, nomeadamente, no ponto 2, que os dados do trabalhador serão recolhidos para efeitos de “…vii) videovigilância…”, constando, inclusive, do ponto 10 da referida cláusula do contrato de trabalho outorgado com a R., que o ora A. “… declara conhecer e aceitar, comprometendo-se a respeitar, todas as normas de funcionamento interno e políticas internas em vigor, aprovadas pela Primeira Contraente.” (artºs 19º e 20º da resposta).
1.5- O A. tem conhecimento de que se encontra afixada a informação da existência de videovigilância, na entrada principal dos funcionários da R., tendo, inclusive, declarado, quando inquirido em sede de processo prévio de inquérito, que “tem conhecimento da existência das câmaras de videovigilância.” (artºs 21º e 22º da resposta).
1.6- Desde, pelo menos, o início do mês de dezembro de 2023 até 27 de janeiro de 2024, por várias vezes o A., AA, consumiu bebidas alcoólicas pertencentes ao “... Hotel”, em horário de trabalho e local de trabalho (artº B-4º do articulado motivador da R.).
1.7- As bebidas que o A. consumiu com mais frequência e, em, pelo menos, três dias distintos, foram cocktails preparados pelo trabalhador EE (artº B-5º do articulado motivador da R.).
1.8- No dia 01 de dezembro de 2023, pelas 20:32 horas, o trabalhador EE, sem que nenhum cliente o solicitasse, preparou duas bebidas com rum, vodka ou gin, misturadas com gelo e Pepsi Cola, tendo os dois copos ficado separados dentro do balcão, sendo que uma delas foi consumida pelo aqui A., AA (artº B-6º do articulado motivador da R.).
1.9- No dia 25 de janeiro de 2024, pelas 19:58 horas, o A., AA, bebeu um copo com bebida alcoólica, juntamente com o trabalhador EE, por detrás do forno de pizzas (artº B-7º do articulado motivador da R.).
1.10- No dia 25 de janeiro de 2024, pelas 20:59 horas, o A., AA consumiu, juntamente com o trabalhador EE, uma bebida alcoólica, atrás do bar (artº B-8º do articulado motivador da R.).
1.11- No dia 27 de janeiro de 2024, pelas 19:00 horas, o trabalhador EE pegou uma garrafa de destilado na adega, serviu duas taças e bebeu, juntamente com o aqui A., junto ao forno de pizza, o que foi visto pelo trabalhador FF (artº B-9º do articulado motivador da R.).
1.12- O A. consumiu as bebidas alcoólicas, não obstante ter conhecimento de que tais bebidas eram pertença da sua entidade patronal (artº B-10º do articulado motivador da R.).
1.13- Aquando do fecho do inventário do mês de janeiro de 2024, o diretor financeiro do Hotel, GG, apercebeu-se da existência de divergências quando elaborou as reconciliações dos bens consumidos com base nos itens contados fisicamente, contra o relatório do sistema de vendas, dado que, na prática, não existiam vendas, desperdício, nem ofertas registadas, que suportassem o consumo das garrafas no Restaurante “"1"” e no Restaurante “"1"” (artº B-2º do articulado motivador da R.).
1.14- Iniciada uma investigação por parte da equipa de segurança do “... Hotel”, surgiu a suspeita de que determinados colaboradores que prestavam os seus serviços no Restaurante “"1"” e no Restaurante “"1"”, utilizavam as garrafas, durante o horário de trabalho e no local de trabalho, para consumo próprio, entre eles, o aqui A. AA (artº B-3º do articulado motivador da R.).
1.15- Ocorreu, no dia 2 de fevereiro de 2024, uma reunião com a equipa de segurança, no âmbito da investigação do motivo da ausência de stock de bebidas sem justificação (artºs 30º e 31º da resposta).
1.16- Por deliberação de 14 de fevereiro de 2024 da Direção de Nozul Algarve, S.A., com o NIPC ..., com sede na ..., freguesia de ..., em ..., foi decidido instaurar processo prévio de inquérito a quatro trabalhadores do Nozul Algarve, S.A., entre eles o aqui A., AA, atenta a necessidade de se apurar os factos participados por GG, Diretor do Departamento Financeiro da R. (artº A-1º do articulado motivador da R.).
1.17- Dando cumprimento ao despacho de 14 de fevereiro de 2024, a fim de proceder as averiguações e se obter uma e completa versão dos factos, foram ouvidos GG, HH, II, AA, JJ, KK, LL, MM, os quais prestaram as
declarações que entenderam por convenientes e que foram reproduzidas no processo prévio de inquérito (artº A-2º do articulado motivador da R.).
1.18- Tendo a R. considerado que dos depoimentos recolhidos resultou prova bastante de que determinados trabalhadores, entre os quais o aqui A., sem qualquer consentimento da entidade patronal, faziam suas as bebidas alcoólicas pertencentes à entidade patronal, consumindo-as no local de trabalho e durante o horário de trabalho, a instrutora do processo determinou que o departamento de segurança procedesse à visualização das câmaras de videovigilância existentes no Restaurante "1", elaborando o respetivo relatório (artºs A-3º do articulado motivador da R., 40º da contestação e 28º da resposta).
1.19- Após ter ocorrido, no dia 2 de fevereiro de 2024, a reunião com a equipa de segurança referida em 15 destes factos provados, a visualização e recolha das imagens ocorreu no dia 15 de fevereiro de 2024 (artºs 30º e 31º da resposta).
1.20- Nessa sequência, no dia no dia 19 de fevereiro de 2024, foram juntos aos autos de processo prévio de inquérito dois relatórios referentes à visualização das câmaras que existem no Restaurante "1", aos dias 01.12.2023, pelas 20:32 horas; 25.01.2024, pelas 19:58 horas e 20:59 horas; e 27.01.2024, pelas 19:00 horas (artºs A-4º do articulado motivador da R. e 38º da contestação).
1.21- Atento o teor do relatório do procedimento prévio de inquérito elaborado pelos responsáveis do processo prévio de inquérito, por despacho datado de 21 de fevereiro de 2024, a Direção da Nozul Algarve, S.A. ordenou a instauração de processo disciplinar ao aqui A. – processo disciplinar n.º 03/2024 – com intenção de proceder à aplicação da sanção de despedimento (artº A-5º do articulado motivador da R.).
1.22- Mais deliberou suspender preventivamente o referido trabalhador do exercício das suas funções, sem prejuízo da sua remuneração, por se ter considerado que, tendo em conta os indícios de factos imputáveis ao mesmo, a presença deste na empresa se mostrava inconveniente para apuramento dos factos (artº A-6º do articulado motivador da R.).
1.23- Foi, ainda, deliberado nomear como responsáveis pelo referido processo disciplinar os Advogados, Drs. NN e OO, podendo atuar conjunta e/ou separadamente (artº A-7º do articulado motivador da R.).
1.24- No dia 21 de fevereiro de 2024, a instrutora do aludido processo disciplinar, determinou a apensação do processo prévio de inquérito aos autos de processo disciplinar, dando por integralmente reproduzida quer a prova testemunhal, quer a prova documental ali recolhida (artº A-8º do articulado motivador da R.).
1.25- Foi elaborada Nota de Culpa, que se encontra de fls. 15 a 19 do processo disciplinar junto como documento nº 2 com o articulado motivador da R. e que aqui se dá por integralmente reproduzida (artº A-9º do articulado motivador da R.).
1.26- A referida Nota de Culpa, conjuntamente, com cópias da deliberação inicial e demais documentação foram entregues ao autor por protocolo de entrega de documento em mão própria e foi-lhe, igualmente remetida através de carta registada com aviso de receção, em 23 de fevereiro de 2024, tendo então sido informado de que no processo disciplinar nº 03/2024, era acusado da prática de infrações, baseadas em imagens captadas por meios de videovigilância existentes no local de trabalho, em que lhe são imputados factos como: “…Locupletar-se de bebidas alcoólicas pertencentes à sua entidade patronal.” e “Consumir tais bebidas no local de trabalho e em pleno horário de trabalho...” (artºs A-10º do articulado motivador da R. e 13º da contestação).
1.27- A nota de culpa faz referência “… quanto ao locupletamento as bebidas alcoólicas pertencentes à entidade patronal”, nos itens 4, 10 e 12 (artºs 14º e 15º da resposta).
1.28- O A., apresentou resposta à nota de culpa, enviada por carta registada, dirigida à entidade empregadora, em 8 de março de 2024, tendo junto documentos e indicado a audição de duas testemunhas, não indicando a que factos da nota de culpa pretendia que as mesmas fossem inquiridas (artºs A-11º do articulado motivador da R. e 16º da contestação)
1.29- Nessa sequência, por carta registada com aviso de receção, datada de 13 de março de 2024, a instrutora do processo notificou-o para indicar a que factos da nota de culpa pretendia que tais testemunhas fossem inquiridas, tendo, desde logo, designado a data, hora e local para a inquirição das mesmas, alertando o A. que cabia ao mesmo assegurar a comparência daquelas testemunhas no dia, hora e local designados (artº A-12º do articulado motivador da R.).
1.30- Através de carta registada, datada de 19 de março de 2024, o A. requereu a “inquirição de PP quanto à matéria de facto alegada no art.º 2º da nota de culpa e no art.º 35º da resposta à nota de culpa” (artº A-13º do articulado motivador da R.).
1.31- As testemunhas PP e QQ, indicadas pelo A., não compareceram na data designada para a sua inquirição (artº A-14º do articulado motivador da R.).
1.32- O Autor na sua resposta à nota de culpa, alegou a invalidade do procedimento disciplinar nos termos do art.º 353º nº 1, conjugado com o art.º 382º nº 2 al. a) do Código do Trabalho, por esta não conter uma descrição circunstanciada dos factos que lhe eram imputados, bem como dos meios de prova (artº 16º da contestação).
1.33- Entendendo que o processo se encontrava instruído com os documentos necessários e relevantes e não existirem mais diligências de carácter probatório que devessem ser realizadas, foi pela R. dada por concluída a instrução do processo disciplinar e elaborado o relatório final referente ao procedimento disciplinar nº 03/2024 (artº A-15º do articulado motivador da R.).
1.34- A 9 de abril de 2024 foi proferido o despacho final no âmbito do processo disciplinar, deliberando-se pela aplicação da sanção disciplinar de despedimento sem qualquer indemnização ou compensação, ali se fazendo constar, designadamente, que a R. entendeu existir “…quebra da relação de confiança subjacente e essência ao contrato de trabalho, tornando imediata e impossível a subsistência do vínculo laboral” (artº A-16º do articulado motivador da R.).
1.35- Decisão esta que foi comunicada ao trabalhador, por missiva datada de 09 de abril de 2024, e enviada registada com aviso de receção para a morada conhecida do trabalhador (artº A-17º do articulado motivador da R.).
1.36- No dia 15 de abril de 2024 foi elaborado o auto de encerramento do processo disciplinar nº 03/2024, sendo o mesmo constituído por 68 (setenta e seis páginas), do qual faz parte integrante o processo prévio de inquérito anexo ao mesmo, composto por 43 (quarenta e três) páginas (artº A-18º do articulado motivador da R.).
1.37- Não obstante o referido nos nºs 6 a 12 destes factos provados, no mais, o Autor exercia as suas funções de Sommelier no Restaurante "1" com zelo, nunca tendo sido registado, nomeadamente, que se apresentasse ao serviço alcoolizado (artºs 3º e 4º da contestação).
1.38- A Ré confiava no Autor e no seu desempenho no exercício das suas funções, ao longo de mais de dois anos de vínculo laboral (artºs 5º e 53º da contestação).
1.39- O seu bom desempenho era reconhecido pelos colegas de trabalho (artº 6º da contestação).
1.40- O Autor conhece os padrões e nível de exigência dos clientes deste setor empresarial e consequentemente, da empresa, pela sua experiência neste setor (artº 7º da contestação).
1.41- O seu desempenho na categoria profissional que exerce como Sommelier já fora objeto de reconhecimento público, tendo o A. sido mencionado em artigo da publicação especializada em turismo “Condé Nast Traveller” (artº 8º da contestação).
1.42- O A. cumpria as ordens e instruções dos seus superiores hierárquicos durante o tempo laboral, não se escusando a fazer horas extraordinárias (artºs 9º e 12º da contestação).
1.43- O Autor à data de janeiro de 2024, não tinha pendente qualquer processo disciplinar (artº 44º da contestação).
1.44- O A. chegou a ter pendente, posteriormente à data referida em 43 destes factos provados, um processo disciplinar, instaurado contra si, devido a uma denúncia anónima de terceiro por assédio sexual, tendo-lhe sido aplicada a sanção disciplinar de perda de dois dias de férias (artºs B-11º do articulado motivador da R. e 10º da resposta).
1.45- O Autor sentiu-se humilhado perante os seus colegas e agentes comerciais face ao motivo do despedimento e, em consequência dos processos disciplinares de que foi alvo, viu o seu estado de saúde afetado, com ansiedade e acentuação de estado depressivo (artºs 57º a 63º e 71º da contestação).
1.46- Ao ser suspenso, o A. foi acompanhado por um segurança do hotel até ao seu cacifo, para que este procedesse à revista, tendo sido acompanhado até à saída do edifício pelo segurança do hotel (artºs 64º e 65º da contestação).
1.47- O A., passados dois dias do recebimento do despacho final proferido no âmbito do processo disciplinar questionado nos presentes autos e que lhe aplicou a sanção disciplinar de despedimento com justa causa, já se encontrava a trabalhar para outra empresa (artº 2º da resposta).
1.48- E publicou, na rede social Facebook, que começou a trabalhar no Restaurante "2", em ..., no dia 14 de abril de 2024 (artº 11º da resposta).
1.49- A R. não tem o “... Hotel” no mercado imobiliário para venda, nem tem pouco tem essa pretensão (artº 8º da resposta).
…
E deu como não provados os seguintes factos:
2.1- Durante a ausência do Gerente do Restaurante, e nos dias suprarreferidos, o ora A. consumiu, uma quantidade considerável de bebidas alcoólicas, durante o atendimento, à vista dos clientes.
2.2- No período de 2 a 19 de fevereiro de 2024, o Autor esteve em gozo de recuperação de dias e folgas, sendo forçado pelo diretor SS, da Food and Beverage, a elaborar todo o planeamento para o ano em curso, sem qualquer contrapartida financeira ou de descanso.
2.3- O trabalhador cumpriu sempre para a melhoria da produtividade da empresa.
2.4- As testemunhas cuja inquirição o Autor na resposta à nota de culpa requereu, PP e QQ, trabalhadores na empresa, não compareceram à inquirição, porque o primeiro teve receio de retaliações por parte da aqui Ré e o segundo por ter sido, também ele, despedido da empresa, não apresentando condições psicológicas para o ato de inquirição.
2.5- Na nota de culpa a entidade empregadora, aqui Ré, nada alega quanto ao locupletamento de bebidas alcoólicas pertencentes à entidade patronal.
2.6- A visualização das imagens de videovigilância foi iniciada no dia 2 de fevereiro de 2024, antes da abertura do inquérito disciplinar, instaurado pela Instrutora do Processo.
2.7- O Autor nunca consumiu quaisquer bebidas alcoólicas e muito menos “garrafas” no período laboral e no seu local de trabalho.
2.8- A pretensão do despedimento visa objetivos, nomeadamente, de carácter económico ou imobiliário, sendo público que a Ré tem o hotel no mercado imobiliário, e o despedimento do Autor e de outros trabalhadores consubstanciam-se em factos irreais e provas ilícitas com a intencionalidade de vender o hotel, pretendendo a ré extinguir o posto de trabalho do Autor e desse modo “ver-se livre” do mesmo.
2.9- A Ré sabe que o Autor não consumiu reiteradamente bebidas alcoólicas pertencentes à entidade patronal e que inexiste fundamento para o despedimento.
2.10- O Autor perdeu o seu posto de trabalho, na época do ano (final de abril de 2024), época em que existe uma maior dificuldade na procura de trabalho por já se encontrarem preenchidas as vagas nas empresas do sector, uma vez que a abertura da época estival já se iniciou.
2.11- O estado de ansiedade do A. se agravou, sendo que a tristeza e a vergonha com que vive diariamente, devido ao arrastamento deste penoso processo, têm contribuído para o seu isolamento e mal-estar frequente, tendo insónias frequentemente e não conseguindo dormir durante a noite, do mesmo passo que perdeu o gosto de estar com as pessoas, particularmente com os seus amigos e familiares desinteressando-se completamente de fazer a sua vida social habitual.
2.12- Foi o próprio A. que contou o sucedido a colegas de trabalho, a pessoas exteriores à R. e, inclusive, tendo enviado uma mensagem a um dos proprietários do Hotel.
2.13- A testemunha indicada pelo A. em sede de processo disciplinar, PP, bem como todos os estantes trabalhadores, não foram alvo pela R. de qualquer atitude persecutória para com os mesmos, interessando-lhe, isso sim, que qualquer situação que surja seja resolvida de acordo com a verdade.
2.14- O A. continua a ter uma vida social normal, exibindo a sua boa disposição e bem-estar de forma pública.
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IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso são as questões supra elencadas.
1 – Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão
Entende a recorrente que existe uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão da sentença recorrida, uma vez que consta dos factos provados 1.47 e 1.48 que o Autor, passados dois dias do recebimento do despacho final proferido no âmbito do processo disciplinar, já se encontrava a trabalhar para outra empresa, e, apesar destes factos, consta da decisão que “não que há proceder ao desconto previsto pelo artigo 390º, nº 2, alínea a), do mesmo Código – referente a importância auferidas com a cessação do contrato que, se não fosse o despedimento, o trabalhador não receberia, uma vez que não foram alegados, nem demonstrados, rendimentos desta natureza”.
Apesar de a recorrente não o mencionar expressamente, a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão determina, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, a nulidade da sentença.
Apreciemos, então.
Dispõe o art. 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, que:
1 - É nula a sentença quando:
[…]
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
Para que tal nulidade se mostre verificada é fundamental que exista contradição entre os fundamentos e a decisão, isto é, que os fundamentos apontem num sentido e a decisão seja tomada em sentido oposto ou, pelo menos, diferente.
Conforme resulta dos ensinamentos de Lebre de Freitas em A Acção Declarativa Comum: À Luz do Código de Processo Civil de 2013:2
(…) se na fundamentação da sentença o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição é causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica, ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade.
De igual modo, como bem sustentaram Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil,3 esta nulidade reporta-se “à contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão. (…) Nestes casos (…), há um vício real de raciocínio do julgador (e não um simples lapsus calami do autor da sentença): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”.
Cita-se ainda a este propósito o acórdão do STJ, proferido em 30-05-2013:4
I- A contradição a que a lei impõe o efeito inquinatório da sentença como nulidade, é a oposição entre os fundamentos e a decisão – art.º 668º, nº 1, al. d) do CPC.
II- Porém, para que tal ocorra, não basta uma qualquer divergência inferida entre os factos provados e a solução jurídica, pois tal divergência pode consubstanciar um mero erro de julgamento (error in judicando) sem a gravidade de uma nulidade da sentença. Como escreve Amâncio Ferreira «a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica nem, tão pouco, a uma errada interpretação dela. Situações destas configuram-se como erro de julgamento» (A. Ferreira, Manual de Recursos em Processo Civil, 9ª edição, pg. 56).
III- A contradição entre os fundamentos e a decisão prevista na alínea c) do nº 1 do art.º 668º, ainda nas palavras do citado autor, verifica-se quando «a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo Juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente»
No caso em apreço, é notório que inexiste qualquer contradição entre a fundamentação expressa na sentença e a sua parte decisória, uma vez que a fundamentação, errada ou não, é coincidente com a decisão proferida. Na realidade, aquilo que a recorrente invoca é um erro na fundamentação jurídica, a que erradamente intitula de decisão, em face da matéria fáctica que foi dada como assente. Ora, tal contradição, conforme consta da doutrina e jurisprudência citadas, a existir, sempre consubstanciaria erro de julgamento, já não nulidade da sentença.
Pelo exposto, improcede a invocada nulidade da sentença por contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
2 – Impugnação fáctica
Considera a recorrente que o facto provado 1.45 deve passar a não provado e que devem ser acrescentados aos factos provados dois novos factos, tudo em face do depoimento das testemunhas BB, CC e DD.
Em primeiro lugar, importa referir que a recorrente deu integral cumprimento aos requisitos exigidos, nos termos do art. 640.º do Código de Processo Civil, para que seja admitida a impugnação fáctica em sede recursiva, pelo que passaremos à sua análise.
a) Facto provado 1.45
Consta deste facto que:
1.45- O Autor sentiu-se humilhado perante os seus colegas e agentes comerciais face ao motivo do despedimento e, em consequência dos processos disciplinares de que foi alvo, viu o seu estado de saúde afetado, com ansiedade e acentuação de estado depressivo (artºs 57º a 63º e 71º da contestação).
Pretende a recorrente que este facto seja dado como não provado, uma vez que a testemunha BB não o confirmou.
Decidamos.
Este facto foi apreciado em sede de sentença recorrida, aquando do pedido formulado pelo trabalhador relativo à indemnização por danos não patrimoniais, pedido este que veio a ser julgado improcedente, sendo que nessa apreciação se fez igualmente constar que tal facto foi tido “em devida conta na fixação da indemnização atribuída em substituição da reintegração, não se tendo provado outros factos que venham acrescentar a esse dano óbvio e evidente que se concretiza na perda do posto de trabalho”.
Deste modo, este facto mostra-se relevante quanto a um pedido formulado pelo trabalhador que foi julgado improcedente, bem como quanto à fixação do valor da indemnização atribuída em substituição da reintegração do trabalhador. Ora, quanto ao primeiro pedido, a recorrente, por ser a parte beneficiada pela improcedência do pedido, não possui legitimidade recursiva; e quanto ao segundo pedido, porque não interpôs recurso do valor indemnizatório em que foi condenada, a eventual procedência da impugnação fáctica, quanto a este facto, em nada afetaria o presente recurso.
Estamos, assim, perante um facto inútil quanto às questões colocadas no presente recurso.
Cita-se a este propósito, o acórdão deste Tribunal, proferido em 28-06-2023:5 6
II -Factos que se revelem inócuos para a boa decisão da causa, não devem ser objeto de reapreciação da prova, atento o princípio da limitação dos atos, consagrado no artigo 130.º do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, uma vez que a apreciação deste facto é um ato inútil e, por isso, nos termos do art. 130.º do Código de Processo Civil, proibido, não procederemos à sua apreciação.
b) Novos factos
Pretende a recorrente que sejam acrescentados aos factos provados os seguintes factos:
A) Atento o comportamento do A. ao fazer suas as bebidas alcoólicas pertencentes à R., sua entidade patronal, e a consumi-las no local de trabalho e durante o horário de trabalho, a R. perdeu toda a confiança que ainda depositava no mesmo;
B) O comportamento do A. ao fazer suas as bebidas alcoólicas pertencentes à R., sua entidade patronal, e a consumi-las no local de trabalho e durante o horário de trabalho, colocou em causa a imagem da sua entidade patronal, fazendo com que a Ré considerasse impossível a subsistência da relação laboral.
Fundamenta este seu pedido nos depoimentos das testemunhas CC e DD.
O facto A, relativo à perda de confiança da recorrente no Autor, seu trabalhador, mostra-se alegado nos factos 3, 6 e 11 do articulado motivador; e o facto B, relativo ao prejuízo na imagem da Ré que o comportamento do Autor causou, mostra-se alegado no facto 4 do articulado motivador.
Em primeiro lugar, e quanto ao facto A, importa referir que a circunstância de a Ré ter perdido “toda a confiança que ainda depositava no Autor” não releva para a apreciação do disposto no art. 351.º, n.º 1, do Código do Trabalho, visto que aquilo que importa apreciar não é o sentimento de confiança, necessariamente subjetivo, que a Ré possa ter tido, ou deixado de ter, quanto ao Autor, antes sim, a confiança que um empregador objetivo e razoável, colocado naquela concreta situação, sentiria em face do comportamento adotado pelo Autor.
Nesta conformidade, por tal facto ser inútil, nos termos do art. 130.º do Código de Processo Civil, não o apreciaremos.
Quanto ao facto B, a menção “fazendo com que a Ré considerasse impossível a subsistência da relação laboral” é inútil, uma vez que aquilo que releva, nos termos do art. 351.º, n.º 1, do Código do Trabalho, não é a posição subjetiva da Ré quanto a esta matéria, antes sim, o entendimento sobre a possibilidade, ou não, de subsistência da relação laboral de um empregador objetivo e razoável, colocado na mesma situação.
Assim, esta parte não será apreciada.
Já relativamente ao prejuízo na imagem da Ré que o comportamento do Autor possa ter causado, por relevante, iremos proceder à sua apreciação.
Quanto a esta matéria, apenas a testemunha DD se referiu, sendo que mencionou que se a ... soubesse que tinham empregados a beber bebidas alcoólicas durante o horário de trabalho, o hotel podia perder a licença. Referiu ainda que uma pessoa que está a consumir álcool pode ser um perigo para a saúde pública, para os empregados e pode estar a por a imagem da empresa em risco.
Na realidade, esta testemunha apenas mencionou a possibilidade, em abstrato, que o comportamento do Autor podia causar na imagem da Ré, já não que tal comportamento efetivamente tivesse causado uma má imagem da Ré.
Assim, improcede a pretensão da recorrente também quanto ao facto B.
Em conclusão, improcede na íntegra a impugnação fáctica pretendida pela recorrente.
3 – Licitude do despedimento
Entende a recorrente que o comportamento adotado pelo recorrido, ao ter, pelo menos, em quatro dias diferentes, feito suas, bebidas alcoólicas pertencentes àquela, consumindo-as no local de trabalho e durante o horário de trabalho, constitui manifesta e indesculpável violação do dever de lealdade para com a recorrente, criando no espírito desta uma dúvida insanável acerca da sua idoneidade futura.
Concluiu, assim, que o despedimento do Autor foi lícito.
Dispõe o art. 128.º do Código do Trabalho que:
1 - Sem prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve:
a) Respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa, com urbanidade e probidade;
b) Comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade;
c) Realizar o trabalho com zelo e diligência;
d) Participar de modo diligente em acções de formação profissional que lhe sejam proporcionadas pelo empregador;
e) Cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias aos seus direitos ou garantias;
f) Guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios;
g) Velar pela conservação e boa utilização de bens relacionados com o trabalho que lhe forem confiados pelo empregador;
h) Promover ou executar os actos tendentes à melhoria da produtividade da empresa;
i) Cooperar para a melhoria da segurança e saúde no trabalho, nomeadamente por intermédio dos representantes dos trabalhadores eleitos para esse fim;
j) Cumprir as prescrições sobre segurança e saúde no trabalho que decorram de lei ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.
2 - O dever de obediência respeita tanto a ordens ou instruções do empregador como de superior hierárquico do trabalhador, dentro dos poderes que por aquele lhe forem atribuídos.
Estipula ainda o art. 351.º do Código do Trabalho que:
1 - Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
2 - Constituem, nomeadamente, justa causa de despedimento os seguintes comportamentos do trabalhador:
a) Desobediência ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente superiores;
b) Violação de direitos e garantias de trabalhadores da empresa;
c) Provocação repetida de conflitos com trabalhadores da empresa;
d) Desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho a que está afecto;
e) Lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa;
f) Falsas declarações relativas à justificação de faltas;
g) Faltas não justificadas ao trabalho que determinem directamente prejuízos ou riscos graves para a empresa, ou cujo número atinja, em cada ano civil, cinco seguidas ou 10 interpoladas, independentemente de prejuízo ou risco;
h) Falta culposa de observância de regras de segurança e saúde no trabalho;
i) Prática, no âmbito da empresa, de violências físicas, injúrias ou outras ofensas punidas por lei sobre trabalhador da empresa, elemento dos corpos sociais ou empregador individual não pertencente a estes, seus delegados ou representantes;
j) Sequestro ou em geral crime contra a liberdade das pessoas referidas na alínea anterior;
l) Incumprimento ou oposição ao cumprimento de decisão judicial ou administrativa;
m) Reduções anormais de produtividade.
3 - Na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.
Estatui, por fim, o art. 330.º, n.º 1, do Código do Trabalho, que:
1 - A sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor, não podendo aplicar-se mais de uma pela mesma infracção.
Do disposto no n.º 1 do art. 351.º do Código do Trabalho resulta, assim, que a justa causa de despedimento implica a verificação cumulativa de três requisitos:
a) um comportamento culposo do trabalhador (requisito de natureza subjetiva);
b) a impossibilidade de subsistência da relação laboral (requisito de natureza objetiva);
c) a existência de um nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade de subsistência da relação laboral.
Deste modo, para que se esteja perante uma justa causa de despedimento torna-se necessário, não só que tenha havido um comportamento culposo (ativo ou omissivo) por parte do trabalhador, como também que a gravidade de tal comportamento seja de tal ordem que impossibilite a subsistência da relação laboral.
Esse comportamento culposo implica a violação dos deveres a que o trabalhador se encontra sujeito, emergentes do vínculo contratual existente entre si e a entidade empregadora, designadamente dos deveres constantes do art. 128.º do Código do Trabalho, no entanto, não se basta com tal violação de deveres, tornando-se necessário, para que seja legítima a imputação da mais violenta das sanções disciplinares, que a gravidade da violação desses deveres, aferida segundo critérios de objetividade e razoabilidade, tenha levado à quebra da relação de confiança que o empregador tinha para com aquele trabalhador, tornando impossível a subsistência de tal relação laboral, por representar a continuidade dessa relação uma injusta imposição ao empregador.
Resulta ainda do disposto no n.º 3 do art. 351.º do Código do Trabalho que a entidade empregadora (e a entidade judiciária nas ações de impugnação da regularidade e licitude do despedimento), na apreciação da justa causa, deve atender, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.
Conforme bem refere Pedro Furtado Martins na obra Cessação do Contrato de Trabalho:7
É indispensável reconduzir os factos que estão na base da justa causa – o «comportamento culposo do trabalhador» - a uma dada situação; a situação de «impossibilidade de subsistência da relação de trabalho». Impossibilidade entendida não em sentido material, mas em sentido jurídico e como sinónimo de inexigibilidade: a verificação da justa causa pressupõe que não seja exigível ao empregador que prossiga na relação.
Cita-se ainda a este propósito o sumário do acórdão do STJ, proferido em 01-03-2018:8
III – Para que se verifique justa causa de despedimento, é necessário um comportamento culposo e ilícito do trabalhador e que desse comportamento, na medida em que tenha quebrado a relação de confiança, decorra como consequência necessária a impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral.
Por sua vez, como vem sendo entendido na jurisprudência nacional, o dever de lealdade é um valor absoluto e inquestionável, insuscetível, por isso, de graduação, pelo que aquilo que releva não é o valor do prejuízo que adveio para a entidade empregadora do comportamento adotado pelo trabalhador, ou mesmo se adveio algum prejuízo, antes sim, a quebra irreparável da confiança que a entidade empregadora depositava naquele seu trabalhador, provocada por tal comportamento desleal e desonesto.
Cita-se, a este propósito, o acórdão do STJ, proferido em 02-12-2013:9
III - É de afirmar a justa causa para o despedimento – atenta a violação do dever de lealdade por parte do trabalhador, dever que tem subjacente o valor absoluto da honestidade - quando está demonstrado que o trabalhador furtou duas garrafas de vinho do restaurante do seu empregador, onde prestava serviço, levando-as para casa, e aí as consumindo, não relevando, para o efeito, o seu valor pecuniário.
Conforme bem se fundamentou em tal acórdão
Como é repetidamente proclamado na Jurisprudência deste Supremo Tribunal[8], a subtracção de um objecto/bem ou valor do empregador, por parte de um seu trabalhador dependente, constitui violação do dever de lealdade, correspondente a uma obrigação acessória de conduta conexionada com a boa fé, que tem subjacente o valor absoluto da honestidade, e, porque assim, em pouco ou nada releva o montante/valor concreto da apropriação.
Daí que, como também em uníssono se entende, não releve o prejuízo efectivo no património do empregador.
Determinante é, antes, a afectação, ofensa ou quebra da infrangível confiança na pessoa do trabalhador, cuja factualizada actuação fundamenta, no caso, a pertinente dúvida sobre a idoneidade da sua conduta futura[9]
De igual modo, se cita o acórdão do STJ, proferido em 23-10-1987:10
III - O dever de lealdade não é susceptivel de graduações constituindo um valor absoluto, pelo que, qualquer infidelidade a ele envolve falta grave, eliminando a confiança depositada ate ao momento da sua comissão pela entidade patronal no infractor.
IV - A quebra da "fidutia" e sempre gravemente perturbadora da relação de trabalho, independentemente, do montante pecuniário em jogo.
V - Violado o dever de lealdade e de fidelidade, traída a confiança que a entidade patronal depositou no trabalhador, tornou-se, só por isso, impossível a subsistência da respectiva relação de trabalho.
Também sobre esta questão, a seção social deste Tribunal da Relação se tem pronunciado no sentido de que o “dever de lealdade é um valor absoluto e inquestionável, insuscetível, por isso, de graduação”11 12.
Posto isto, apreciemos a situação dos autos.
Assim, resultou provado que:
- O Autor desempenhava, no “... Hotel”, as funções de Supervisor de Sommelier e era trabalhador deste mesmo Hotel desde 20 de abril de 2022 (facto provado 1.1);
- Desde, pelo menos, o início do mês de dezembro de 2023 até 27 de janeiro de 2024, por várias vezes, o Autor, AA, consumiu bebidas alcoólicas pertencentes ao “... Hotel”, em horário de trabalho e local de trabalho (facto provado 1.6);
- As bebidas que o Autor consumiu com mais frequência e, em, pelo menos, três dias distintos, foram cocktails preparados pelo trabalhador EE (facto provado 1.7);
- No dia 01 de dezembro de 2023, pelas 20:32 horas, o trabalhador EE, sem que nenhum cliente o solicitasse, preparou duas bebidas com rum, vodka ou gin, misturadas com gelo e Pepsi Cola, tendo os dois copos ficado separados dentro do balcão, sendo que uma delas foi consumida pelo aqui Autor (facto provado 1.8);
- No dia 25 de janeiro de 2024, pelas 19:58 horas, o Autor bebeu um copo com bebida alcoólica, juntamente com o trabalhador EE, por detrás do forno de pizzas (facto provado 1.9);
- No dia 25 de janeiro de 2024, pelas 20:59 horas, o Autor consumiu, juntamente com o trabalhador EE, uma bebida alcoólica, atrás do bar (facto provado 1-10);
- No dia 27 de janeiro de 2024, pelas 19:00 horas, o trabalhador EE pegou uma garrafa de destilado na adega, serviu duas taças e bebeu, juntamente com o Autor, junto ao forno de pizza, o que foi visto pelo trabalhador FF (facto provado 1.11);
- O Autor consumiu as bebidas alcoólicas, não obstante ter conhecimento de que tais bebidas eram pertença da sua entidade empregadora (facto provado 1.12);
- Aquando do fecho do inventário do mês de janeiro de 2024, o diretor financeiro do Hotel, GG, apercebeu-se da existência de divergências quando elaborou as reconciliações dos bens consumidos com base nos itens contados fisicamente, contra o relatório do sistema de vendas, dado que, na prática, não existiam vendas, desperdício, nem ofertas registadas, que suportassem o consumo das garrafas no Restaurante “"1"” e no Restaurante “"1"” (facto provado 1.13);
- Iniciada uma investigação por parte da equipa de segurança do “... Hotel”, surgiu a suspeita de que determinados colaboradores que prestavam os seus serviços no Restaurante “"1"” e no Restaurante “"1"”, utilizavam as garrafas, durante o horário de trabalho e no local de trabalho, para consumo próprio, entre eles, o Autor (facto provado 1.14);
- No dia 2 de fevereiro de 2024, ocorreu uma reunião com a equipa de segurança, no âmbito da investigação do motivo da ausência de stock de bebidas sem justificação (facto provado 1.15);
- Após investigação, a Ré apurou que determinados trabalhadores, entre os quais o Autor, sem qualquer consentimento da entidade empregadora, faziam suas as bebidas alcoólicas pertencentes à entidade empregadora, consumindo-as no local de trabalho e durante o horário de trabalho (facto provado 1.18);
- Na Nota de Culpa, o Autor era acusado da prática de infrações, baseadas em imagens captadas por meios de videovigilância existentes no local de trabalho, em que lhe são imputados factos como: “…Locupletar-se de bebidas alcoólicas pertencentes à sua entidade patronal.” e “Consumir tais bebidas no local de trabalho e em pleno horário de trabalho...” (facto provado 1.26);
- Não obstante o referido nos nºs 6 a 12 destes factos provados, no mais, o Autor exercia as suas funções de Sommelier no Restaurante "1" com zelo, nunca tendo sido registado, nomeadamente, que se apresentasse ao serviço alcoolizado (facto provado 1.37);
- A Ré confiava no Autor e no seu desempenho no exercício das suas funções, ao longo de mais de dois anos de vínculo laboral (facto provado 1.38);
- O bom desempenho do Autor era reconhecido pelos colegas de trabalho (facto provado 1.39);
- O Autor conhece os padrões e nível de exigência dos clientes deste setor empresarial e consequentemente, da empresa, pela sua experiência neste setor (facto provado 1.40);
- O seu desempenho na categoria profissional que exerce como Sommelier já fora objeto de reconhecimento público, tendo o A. sido mencionado em artigo da publicação especializada em turismo “Condé Nast Traveller” (facto provado 1.41); e
- O Autor cumpria as ordens e instruções dos seus superiores hierárquicos durante o tempo laboral, não se escusando a fazer horas extraordinárias (facto provado 1.42).
Ora, da matéria dada como provada resulta, de forma evidente, que o Autor, para além de consumir bebidas alcoólicas durante o horário de trabalho e no local de trabalho, as bebidas consumidas eram pertença da sua entidade empregadora, sabendo bem o Autor que as mesmas não lhe pertenciam e que o fazia sem qualquer autorização.
Acresce que o Autor era o supervisor de Sommelier da Ré, o que demonstra a especial confiança que esta depositava naquele. Porém, indiferente à especial responsabilidade que o cargo de chefia lhe impunha, atuou, de forma desleal e desonesta, juntamente com outro trabalhador (o trabalhador EE), em frente de outros (concretamente, do trabalhador FF), transmitindo, desse modo, e enquanto supervisor, um péssimo exemplo para os demais trabalhadores da Ré.
Na realidade, se para um Sommelier13 já é bastante desadequado se colocar, durante o horário de trabalho e no local de trabalho, a beber bebidas alcoólicas, sobre as quais é suposto ser especialista, já não bebê-las enquanto exerce a sua profissão, o que pensar do supervisor de Sommelier e do exemplo que é dado para todos os supervisionados?
Este comportamento consubstancia, assim, a violação do dever de realizar o trabalho com zelo e diligência, e isto independentemente de o Autor aguentar bem a bebida e não demonstrar comportamentos alcoólicos (atente-se que se comprovou que, no dia 25-01-2024, o Autor bebeu, no espaço de uma hora, por duas vezes), bem como a violação do dever de cumprir as ordens e instruções do empregador respeitante à execução do trabalho e à segurança e saúde no trabalho, e isto, independentemente de existir, ou não, uma regra expressa por parte da Ré de que não é permitido o consumo de bebidas alcoólicas durante o horário de trabalho e no local de trabalho. É evidente, em face do elevado padrão e nível de exigência dos clientes do hotel, padrão e exigência que eram do conhecimento do Autor, que a Ré não poderia compactuar com os comportamentos de desleixo e imaturidade adotados pelo Autor ao consumir bebidas alcoólicas durante o horário de trabalho e no local de trabalho. Aliás, não é por acaso que se provou que tais consumos eram efetuados junto ou detrás do forno de pizzas ou atrás do bar.
No entanto, para além da violação dos mencionados deveres, as bebidas alcoólicas que o Autor consumiu não eram suas, mas sim, da sua entidade empregadora, sendo que a apropriação de tais bens pertencentes à Ré, quer pelo Autor, quer por outros funcionários da Ré, levaram esta a aperceber-se, no mês de janeiro de 2024, aquando do fecho do inventário, da ausência de stock de bebidas sem justificação, o que determinou a investigação que se veio, posteriormente, a realizar.
Este comportamento do Autor, numa estrutura como a da Ré, com vários restaurantes, em que o supervisor de Soummelier apropria-se dos bens que melhor deveria saber conservar, dadas as suas funções, viola inquestionavelmente o dever de lealdade que lhe era exigido para com a sua entidade empregadora, bem como viola o dever de zelar pela conservação e boa utilização de bens relacionados com o trabalho, que lhe foram confiados pelo empregador.
Verifica-se, assim, por parte do Autor, a violação dos deveres previstos no art. 128.º, n.º 1, als. c), e), f) e g), do Código do Trabalho, violação essa que constitui justa causa de despedimento, uma vez que o comportamento de um supervisor de Soummelier, que, durante o horário e local de trabalho, consome bebidas alcoólicas, pertencentes à sua entidade empregadora, com outros trabalhadores e à vista de outros trabalhadores, sem o consentimento dessa entidade, que descobre tal comportamento em face da ausência de stock de bebidas sem justificação, determina a quebra irreparável da confiança que devia reger a relação laboral, sendo objetivamente ilegítimo obrigar a entidade empregadora a manter tal relação.
Na realidade, para além da violação do disposto nas als. a) e h) do n.º 2 do art. 351.º do Código do Trabalho, a desonestidade e deslealdade do comportamento do Autor tornou impossível a manutenção da relação laboral, por uma justificada quebra da confiança da entidade empregadora naquele seu empregado, a quem, até então, depositara especial confiança.
E, se é verdade que no caso de violação do dever de lealdade inexiste graduação, não sendo sequer necessária a existência de prejuízo, na situação dos autos, ainda que não se tenha apurado o valor do prejuízo, apurou-se a sua existência, visto que foi exatamente devido a tal prejuízo que se iniciaram as investigações levadas a cabo pela Ré.
Pelo exposto, sendo legítima a criação no espírito da Ré de dúvidas sobre a idoneidade, lealdade e honestidade da conduta futura do Autor, apenas nos resta concluir pela procedência do recurso, sendo lícito o despedimento do Autor, devendo, em consequência, a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que determine a absolvição da Ré dos pedidos formulados pelo Autor.
Tendo tido procedência a pretensão da recorrente sobre a licitude do despedimento, fica prejudicada a apreciação da questão relativa à dedução dos montantes auferidos pelo trabalhador nos montantes de retribuições intercalares em que a Ré tinha sido condenada a pagar ao Autor.
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V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente e, em consequência, determinam a revogação da sentença recorrida, declarando, em sua substituição, a licitude do despedimento do Autor AA, absolvendo-se a Ré “Nozul Algarve, S.A.” dos pedidos a que tinha sido dado procedência.
Custas pelo recorrido, ainda que não tenha apresentado contra-alegações (art. 527.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil).14
Notifique.
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Évora, 27 de fevereiro de 2025
Emília Ramos Costa (relatora)
João Luís Nunes
Paula do Paço
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1. Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: João Luís Nunes; 2.ª Adjunta: Paula do Paço.↩︎
2. 3.ª ed., p. 333.↩︎
3. 2.ª ed., pp. 689-690.↩︎
4. No âmbito do processo n.º 660/1999.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.↩︎
5. No âmbito do processo n.º 603/22.2T8PTG.E1, acessível em www.dgsi.pt.↩︎
6. No mesmo sentido, igualmente os acórdãos desta Relação proferidos em 13-01-2022 no âmbito do processo n.º 2220/17.0T8PTM.E1 e em 20-04-2023 no âmbito do processo n.º 1999/20.6T8FAR.E1, consultáveis em www.dgsi.pt.↩︎
7. 4.ª edição, 2017, Princípia Editora, Parede, p. 168.↩︎
8. No âmbito do processo n.º 1010/16.1T8SNT.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.↩︎
9. No âmbito do processo n.º 1445/08.3TTPRT.P2.S1, consultável em www.dgsi.pt.↩︎
10. No âmbito do processo n.º 001632, consultável em www.dgsi.pt.↩︎
11. Acórdão proferido em 15-06-2023, no âmbito do processo n.º 512/22.5T8TMR.E1, consultável em www.dgsi.pt.↩︎
12. Em idêntico sentido, os acórdãos deste tribunal proferidos, em 07-02-2012 no âmbito do processo n.º 238/10.2TTFAR.E1, publicado em www.dgsi.pt; em 14-07-2021 no âmbito do processo n.º 2225/20.3T8STR.E2; em 13-05-2021 no âmbito do processo n.º 8262/19.3T8STB.E1; em 14-07-2020, no âmbito do processo n.º 2610/19.3T8FAR.E1; em 21-11-2019 no âmbito do processo n.º 359/19.6T8EVR.E1; em 14-02-2019 no âmbito do processo n.º 8546/17.5T8STB.E1; e em 15-11-2018 no âmbito do processo n.º 32/18.2T8BJA.E1; todos não publicados.↩︎
13. Responsável por cuidar da carta de bebidas.↩︎
14. Vide TRG, proferido em 18-01-2024 no âmbito do processo n.º 2440/21.2T8VCT.G1, consultável em www.dgsi.pt.↩︎