Sumário:
I. A supressão das visitas constitui uma medida gravosa que amputa o progenitor de um direito, que é simultaneamente um dever, de conviver com os filhos em ordem a participar no seu crescimento e desenvolvimento.
II. Os laços afectivos entre filhos e pais têm de ser construídos, têm de ser alimentados e para que tal suceda com o progenitor com quem o filho não resida, ter-se-á de promover o convívio assíduo entre ambos de modo a colmatar a ausência do relacionamento diário.
III. Volvidos mais de dois anos sobre a data em que o Tribunal “a quo” decidiu, perante a “queixa” da progenitora, suspender as visitas entre a criança e o seu progenitor, não se pode manter tal decisão tendo em consideração que até à data não existem indícios sérios e consistentes de que o mesmo a tenha molestado e sem que tenha sido sequer constituído arguido no inquérito criminal pendente.
IV. O restabelecimento de convívio com o progenitor em ambiente de visitas supervisionadas protege a criança de quaisquer riscos até à decisão que vier a ser proferida no inquérito criminal.
ACÓRDÃO
I. RELATÓRIO
1. AA, progenitora da criança BB, nascida em ........2018, veio recorrer do despacho proferido em 11.11.2024 que revogou a decisão de 16.9.2022 que havia suspendido quaisquer convívios entre o progenitor CC e a sua filha, nascida em ........2018, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:
A) A Decisão Recorrida foi prolatada em violação do Código Civil, do Código de Processo Civil, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, da Convenção sobre os Direitos da Criança, da Convenção de Istambul, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e da Constituição da República Portuguesa.
B) Para garantir a segurança da criança, requer, nos termos do disposto no artigo 647.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, e do artigo 32.º, n.º 4, do RGPTC, a atribuição de efeito suspensivo ao recurso, visto que a execução imediata da decisão impugnada poderá causar dano grave e de difícil reparação.
C) É evidente que a decisão recorrida não considerou adequadamente o superior interesse da criança, conforme estabelecido no artigo 3.º da Convenção sobre os direitos da Criança, no artigo 4.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, e no artigo 1878.º do Código Civil.
D) Do processo resulta que a criança se encontra estável, adaptada e comunicativa, características que são fruto do ambiente de proteção e educação proporcionados pela mãe.
E) A Recorrente discorda da restauração dos convívios entre o progenitor e a criança, ainda que supervisionados por entidade oficial, não por obstinação, mas em razão da defesa do que está comprovado como sendo o melhor para a criança.
F) A execução da decisão recorrida representa um risco iminente e irreparável para a integridade física, psicológica e emocional da criança, atendendo às suspeitas de abuso sexual que ainda se encontram sob investigação.
G) Os relatórios e avaliações da Terapeuta Somática Dra. DD indicam sinais de stress pós-traumático na criança, consistentes com abuso sexual, os quais devem ser ponderados com maior relevância no processo decisório.
H) As perícias psiquiátricas e psicológicas realizadas aos progenitores e à criança apresentam lacunas metodológicas e não são suficientemente conclusivas para fundamentar a decisão recorrida.
I) Em conformidade com o princípio da precaução, o Tribunal deve manter a suspensão das visitas enquanto as investigações criminais não estiverem concluídas, evitando qualquer possibilidade de revitimização da criança.
J) A decisão recorrida contraria as disposições de Convenções internacionais, tais como a Convenção de Istambul e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), que exigem medidas de proteção imediata contra qualquer forma de violência e priorizam a segurança e o bem-estar da vítima.
K) A imposição de uma multa coercitiva de 3 UC é desproporcional e inadequada às circunstâncias do caso concreto, devendo, por isso, ser revogada.
L) No mais, estamos perante uma decisão ferida de nulidade porquanto, não se encontra devidamente fundamentada, em violação do estatuído no artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa.
M) Com a revogação da decisão recorrida, deve manter-se a suspensão das visitas do progenitor à criança até que as investigações criminais sejam concluídas, ou que haja prova suficiente da inexistência de risco para a criança.
N) Nesse sentido, apela-se à revogação da decisão recorrida, à manutenção da suspensão do regime de visitas supervisionadas, bem como à declaração de nulidade da cominação coercitiva por incumprimento, considerando a desproporcionalidade e ausência de fundamentação da mesma, o que consubstancia um vício por violação de lei, concretamente, o artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa.
O) Nos termos do artigo 646.º do Código de Processo Civil, requer-se a extração das certidões das peças processuais essenciais para remessa ao Tribunal Superior com o recurso, nomeadamente, as já indicadas no requerimento do presente recurso, a saber: (…)
P) Solicita, por fim, nos termos do artigo 651.º do Código de Processo Civil, a junção de Parecer Técnico e de relatórios terapêuticos e médico já nos autos (oito documentos).
NESTES TERMOS, NOS MELHORES DE DIREITO E SEMPRE COM MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO-SE A DECISÃO RECORRIDA COM AS INERENTES CONSEQUÊNCIAS:
A) MANTENDO-SE A SUSPENSÃO DAS VISITAS DO PROGENITOR À CRIANÇA ATÉ QUE AS INVESTIGAÇÕES CRIMINAIS SEJAM CONCLUÍDAS, OU QUE HAJA PROVA SUFICIENTE DA INEXISTÊNCIA DE RISCO PARA A CRIANÇA, TUDO NOS TERMOS FACTUAIS E LEGAIS INVOCADOS.
B) DECLARANDO-SE A NULIDADE DA DECISÃO RECORRIDA, NOS TERMOS E PELOS MOTIVOS INVOCADOS, NOMEADAMENTE DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE QUANTO A IMPOSIÇÃO DE MULTA COERCITIVA DE 3 UC POR INCUMPRIMENTO DAS VISITAS SUPERVISIONADAS, BEM COMO, POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO LEGAL, O QUE CONSUBSTANCIA UM VÍCIO POR VIOLAÇÃO DE LEI, CONCRETAMENTE, O ARTIGO 205.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA.
Só assim se fazendo a tão acostumada JUSTIÇA!”.
2. Contra-alegou o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:
A. Nos termos do disposto no artigo 32º, n.º 4 do RGPTC, a interposição de recurso nesta sede tem efeito meramente devolutivo, a menos que justificação ponderosa imponha a atribuição de efeito suspensivo da decisão recorrida, a qual assumirá sempre caráter excecional.
B. Desde 16.09.2022 que, por decisão judicial, a BB, agora de 6 anos, não tem qualquer contato com o progenitor.
C. Decorrido cerca de 2 anos e 4 meses desde a notícia da existência de um alegado abuso sexual por parte do progenitor à BB, foram desencadeadas diversas diligências probatórias, nomeadamente obtenção de documentação clínica da BB e realização de perícias médico-legais aos progenitores e à BB, sem que daí tenha resultado apurado um qualquer indício e muito menos prova que possa sustentar a denúncia apresentada pela progenitora da BB.
D. Nunca, em momento algum, a BB relatou às entidades independentes, isentas, por quem foi vista, qualquer mau trato pelo progenitor e muito menos abusos sexuais.
E. No sentido da existência de tais abusos, apenas existe nos autos a afirmação da progenitora de que a BB lhe confidenciou que mexeu na “pilinha” do pai e o pai mexeu no “pipi”, sem que a criança, repetimos, tenha alguma vez verbalizado tal coisa junto de outras pessoas ou entidades isentas.
F. A terapeuta somática, Dra. DD, foi contratada pela progenitora e o teor dos seus relatórios estão longe de atestar a existência dos abusos em causa, além de nem sempre fazerem muito sentido.
Vide relatório de 24.05.2024 junto cm as alegações de recurso, onde numa primeira abordagem a expressão da BB “aham” (comummente usado como resposta afirmativa) serve como resposta afirmativa, mas numa segunda abordagem, o mesmo “aham” já lhe é atribuído um significado negativo, sem qualquer contextualização para essa mudança de interpretação da palavra.
G. Inexiste, assim, um qualquer fundamento que sustente o alegado pela recorrente no sentido que: “A execução da decisão recorrida representa risco iminente e irreparável para a integridade física, psicológica e emocional da criança, considerando as graves suspeitas de abuso sexual.”
H. Além do que, o efeito suspensivo da execução da decisão acarreta grave prejuízo quer para a BB, quer para o progenitor, pois fará perdurar, por tempo indeterminado, a
existente proibição de convívio – que já não tem fundamento - sendo o convívio entre ambos um direito dos mesmos.
I. Deve, por isso, improceder o pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso a que ora se reponde, mantendo-se o efeito meramente devolutivo, nos termos legais.
No mais,
J. A decisão recorrida não merece reparo, pois visa restituir à BB e ao progenitor o direito de ambos a conviver, como pai e filha, decorridos que estão mais de 2 anos sem que tenha sido recolhido um só indício (sério) da existência dos abusos sexuais relatados pela progenitora.
K. Ainda que o inquérito crime associado aos factos denunciados não tenha findado, decorrido todo este tempo, o progenitor não foi constituído arguido, nem existe notícia ali, tal como aqui, da recolha de um qualquer indício que sustente a alegação da progenitora, impondo-se o juízo da presunção de inocência.
L. Todos os exames efetuados por entidades independentes, vão no sentido da inexistência de indícios do mencionado abuso sexual, apenas a Sra. Dra. DD, terapeuta somática contratada pela progenitora, entende haver indícios de que a BB sofre de stress pós-traumático em consequência de um eventual abuso sexual, sem que da leitura dos seus relatórios resulte sustentação das conclusões a que chega.
M. O relatório da médica que examinou a BB aquando do surgimento do prurido vaginal no qual, além do mais, a progenitora sustenta os alegados abusos sexuais, junto a 08.03.2023, é esclarecedor “A minha observação, naquele dia, a região genital apresentava muito discreta hiperemia, sem lesões associadas, sem fissuras, sem hemorragia local ou outras alterações de relevo. A hiperemia genital, com esta localização, e uma situação muito frequente nas crianças desta faixa etária podendo estar associada a múltiplos fatores nomeadamente limpeza inadequada após as micções, discretas perdas de urina durante o dia, entre outros. Durante a observação a jovem foi extremamente colaborante, não pareceu mostrar-se inibida ou chorosa a observação da região genital.
Não apresentava, nessa altura, outras alterações clínicas que me fizessem suspeitar de abuso sexual.
Por esse motivo não foram desencadeados os procedimentos próprios da situação.”
N. É de realçar o facto de, ante a crença séria de que a filha havia sido abusada sexualmente pelo pai, em momento algum, a progenitora requer ou diligencia de alguma forma que a filha seja sujeita a perícia médico-legal que pudesse comprovar tais factos.
O. Ainda, do boletim de urgência pediátrica do dia 10.09.2022 (pedido e junto pelo progenitor, não pela progenitora), dia em que a progenitora levou a BB às urgências por alegados sinais de abuso sexual (o prurido vaginal), consta que os sintomas começaram 4 dias antes (ou seja, a 06.09.2022) e, segundo o progenitor, a criança já estava com a mãe há 8 dias (após período de visitas com o pai) – facto relativamente ao qual a recorrente foi expressamente notificada para se pronunciar e não o fez, pelo que não o contradisse.´
P. É de realçar que os áudios que a progenitora, também ela psicóloga, junta aos autos no Requerimento de 16/09/24, com ref.ª 2304737, mormente o segundo áudio, demonstram a condução das respostas da BB ao que aquela oportunisticamente vai perguntando e gravando.
Q. Os relatórios periciais efetuados aos progenitores e à BB, revelam que esta disse gostar do pai, mas não ter saudades dele, que o pai nunca a magoou e que lhe fazia festinhas nos sítios comuns; quanto à progenitora referem que esta apresentou postura inflada, a atitude categórica e um contacto ansioso e controlador, um discurso totalmente centrado no progenitor, sempre com apreciações negativas e não fala das características da filha. Parece ter fraca capacidade de crítica relativamente aos seus próprios comportamentos. Quanto ao progenitor, não apresenta sintomatologia do foro psiquiátrico, não apresenta indicadores de psicopatologia geral ou alterações no funcionamento da personalidade que possam, per si, ter eventual interferência nas necessidades e responsabilidade parentais do examinando.
R. O que o Tribunal “a quo” decidiu foi o reinício de visitas supervisionadas em sítio neutro e não a entrega, tout court da mesma ao progenitor, o que, em nosso entendimento, salvaguarda a sua integridade física, psíquica e emocional.
S. Inexiste, assim, atualmente, uma qualquer razão para que os contatos entre a BB e o progenitor não sejam restabelecidos, de forma gradual e analítica e em local neutro.
T. Sendo a privação de convícios uma exceção à regra dos convívios, a mesma tem que ser fundamentada e, em face a tudo o que se disse, à data, inexistem fundamentos para manutenção de tal medida de exceção.
U. Neste pressuposto, é do superior interesse da BB reatar o convívio com o pai e não o inverso.
V. Termos em que deve o recurso interposto ser julgado improcedente, por não provado, mantendo-se a decisão recorrida nos exatos termos em que foi proferida.
Nestes termos e nos melhores de direito cabíveis, deve o recurso a que ora se responde ser julgado improcedente, por não provado e em consequência manter-se a decisão recorrida, nos exatos termos em que foi proferida.
Fazendo, assim, V. Excelências, a costumada JUSTIÇA!”.
3. OBJECTO DO RECURSO
Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil – a única1 questão cuja apreciação as mesmas convocam consiste em saber se se justifica manter a suspensão do regime de visitas do progenitor em razão da queixa-crime efectuada pela progenitora pela prática de crime de abuso sexual alegadamente perpetrado por aquele sobre a pessoa da menor.
II. FUNDAMENTAÇÃO
4. A factualidade a ter em consideração para a decisão do recurso é a que emerge do relato antecedente, sendo o seguinte o teor do despacho recorrido:
“ FIXAÇÃO DE REGIME PROVISÓRIO
AA intentou, em 14.06.2022, a presente providência de alteração das
responsabilidades parentais contra CC, visando as responsabilidades parentais da criança BB, nascida em ...-...-2018.
Foi realizada conferência de pais em 04.07.2022 e as partes foram remetidas para a mediação familiar.
Por despacho datado de 16.09.2022 foi determinada a suspensão do direito de visitas e contactos a qualquer título do progenitor com a menor, nos termos do artigo 28º do RGPTC, em face das suspeitas de abuso sexual de menores alegadamente praticada pelo progenitor contra a criança BB.
Em 24.06.2024, foi realizada a conferência subsequente à ATE/mediação familiar, sendo que, nesse seguimento foram notificadas as partes para alegarem.
Em 16.07.2024 foi proferido despacho a admitir certos requerimentos probatórios a serem tidos em conta em sede de audiência de julgamento.
Em 19.09.2024, foi proferido um despacho no qual determinou a realização da perícia complementar na sequência do relatório intercalar de 21.09.2023, determinou o acompanhamento psicológico da criança e solicitou informação atualizada sobre o estado do processo de promoção e proteção e do inquérito, ambos a correr termos no Ministério Público, em que se investigam alegados abusos sexuais praticados pelo progenitor contra a criança.
Por despacho datado de 29.10.2024 determinou-se a insistência junto dos serviços do Ministério Público.
Nessa sequência e uma vez advindo tais informações, por despacho datado de 06.11.2024, este Tribunal determinou contraditório quanto à eventual fixação de um regime provisório mediante convívios supervisionados junto da EMAT da área de residência da criança.
Nesse seguimento, o progenitor através de requerimento datado de 12.11.2024 informou que tem disponibilidade para realização de convívios supervisionados, não tendo nenhuma condicionante quanto às mesmas, pelo que, poderão ser agendadas em qualquer dia da semana e em qualquer horário.
Em 18.11.2024, a progenitora veio opor-se alegando, em suma, que “a gravidade dos factos que determinaram a suspensão do direito de visitas e contatos do progenitor com a menor, a qualquer título, até a conclusão da investigação dos referidos factos, a Requerente reitera a sua posição pela manutenção dessa medida, nos termos do douto despacho de 16/09/2022” e que é do superior interesse da criança, protegê-la, evitando todo e qualquer tipo de contacto com o progenitor.
Em vista ao Ministério Público, este promoveu, em 08.12.2024, no sentido de serem fixados convívios supervisionados com o progenitor.
Importa, por conseguinte, proceder à fixação de um regime provisório.
Com relevo para apreciação da presente questão, e tendo por base toda a prova carreada para estes autos e para os seus apensos bem como, da certificação CITIUS, resultam verificadas as seguintes ocorrências processuais e indiciariamente provado que:
1. BB nasceu em ...-...-2018 e encontra-se registada como filha de AA e CC (assento de nascimento).
2. Em 23.07.2021 foram reguladas as responsabilidades parentais da BB, na Conservatória, tendo-se estabelecido, em suma e além do mais, que a criança ficaria a residir com a progenitora, que as questões de particular importância Processo: 50/22.6...-A competiam a ambos os progenitores e que o progenitor passaria fins de semana alternados com a BB (acordo junto com a petição inicial dos presentes autos).
3. Em 04.02.2022, CC intentou providência de incumprimento contra a progenitor AA alegando, em suma, que a mesma não estava a cumprir o regime de visitas (petição inicial do apenso de incumprimento).
4. No apenso de incumprimento, a progenitora, em 23.02.2022, juntou alegações nas quais alegou que incumpriu por conta de alegada violência doméstica praticada pelo progenitor, sendo que, à altura, corria um inquérito (alegações de 23.02.22 do apenso de incumprimento).
5. Em 17.05.2022, foi junto no apenso de incumprimento o despacho de arquivamento no qual se concluiu pela insuficiência de indícios (despacho de arquivamento do apenso de incumprimento).
6. O apenso de incumprimento encontra-se pendente, tendo as partes sido remetidas para audiência técnica especializada (despacho de 19.09.2024, proferido no apenso de incumprimento).
7. Em 14.06.2022, a progenitora intentou a presente providência de alteração das responsabilidades parentais e em 04.07.2022 realizou-se a primeira conferência de pais (certificação CITIUS).
8. No dia 10.09.2022, a progenitora levou a criança aos serviços de urgência do Hospital Distrital de ... e narrou que a criança lhe terá dito que “mexeu na pila do pai e que ele mexeu no seu pipi”, tendo tais factos dado origem ao inquérito n.º296/22.7..., ao que se acresce que, até à presente data o progenitor não foi constituído arguido (informação de 31.10.2024 junta aos presentes autos).
9. Encontra-se pendente um processo de promoção e proteção junto dos serviços do Ministério Público, com o n.º 152/23.1..., estando pendente a realização de relatório social, a fim de indagar da necessidade do processo (informação de 05.11.2024 junta aos presentes autos).
10. Por despacho datado de 16.09.2022 foi determinada a suspensão do direito de visitas e contactos a qualquer título do progenitor com a menor, nos termos do artigo 28º do RGPTC (certificação CITIUS).
11. Desde 16.09.2022 que o progenitor não contacta com a filha, a qualquer título, estando a criança a residir a tempo permanente com a progenitora.
12. Em 09.01.2024, a progenitora e a criança mudaram de residência para ... (requerimento da progenitora de 09.01.2020, dos presentes autos).
13. Em 24.10.2024, o progenitor passou a residir em ..., sendo que anteriormente vivia em ... (requerimento e contrato de arrendamento de 24.10.2024).
14. O progenitor não apresenta sintomatologia do foro psiquiátrico que permita realizar diagnóstico de doença mental codificável na International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10) - relatório de 02.01.2023 dos presentes autos.
15. O progenitor não apresenta indicadores de psicopatologia geral ou alterações no funcionamento da personalidade que possam, per si, ter eventual interferência nas necessidades e responsabilidade parentais do examinando - relatório de 04.03.2024 dos presentes autos.
16. BB é uma menina com um correto desenvolvimento estaturo-ponderal adequado à idade, com adequado desenvolvimento psico-emocional e maturidade dentro do esperado para a faixa etária. Não demonstrou défices cognitivos qualitativos major que pusessem em causa as suas competências intelectuais. Apresentou um discurso adequado à idade e não demonstrou sinais ou sintomas de psicopatologia no momento da avaliação - relatório de 18.10.2023.
17. A progenitora apresenta uma postura inflada, a atitude categórica e um contacto ansioso e controlador. Está orientada em todas as referências, o discurso é fluente, rápido, rico em detalhes, mas por vezes disperso e nem sempre situado temporalmente. O discurso está totalmente centrado no Progenitor, descrevendo detalhadamente os alegados comportamentos negativos do Progenitor ao longo do relacionamento, o alegado abuso sexual da filha, defendendo como prova desse abuso, o prurido vaginal da criança após um dia de praia; as sessões da “terapeuta somática” e a descrição que a criança faz dos toques nos órgãos genitais. A examinanda não descreve quaisquer qualidades positivas do Progenitor, fazendo apenas apreciações negativas. Não se apura sintomatologia psicótica. O humor está eutímico. Os afetos são congruentes com o conteúdo expresso. A examinanda não fala das características da filha. Parece ter fraca capacidade de crítica relativamente aos seus próprios comportamentos - relatório de 21.09.2023.
18. Encontra-se ainda pendente o relatório psicológico complementar à progenitora (certificação CITIUS e despacho de 19.09.2024).
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
Tratando-se de um conceito genérico, o interesse superior da criança deve ser apurado/encontrado em cada caso concreto, embora tendo sempre presente a ideia do direito da criança ao seu desenvolvimento são e normal, no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade, ou seja, a ideia de que, dentro do possível, tudo deverá ser feito de modo a contribuir para desenvolvimento integral da criança em termos harmoniosos e felizes. – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08.05.2019, processo n.º148/19. 8T8CNT-A.C1, em www.dgsi.pt.
No caso dos autos, resulta indiciariamente evidenciado que o progenitor detém competências parentais, ao nível psicológico e psiquiátrico, para providenciar pelos cuidados devidos à BB.
Além disso, resulta evidenciado que a BB está a ter um crescimento saudável e adequado à sua faixa etária, sem que esteja comprometido, em alguma medida, o seu desenvolvimento, por alegados episódios ocorridos no passado.
Mais resulta indiciado que a progenitora assume uma postura controladora com um discurso totalmente centrado na figura do progenitor, com falta de espírito crítico e sem qualquer foque nas qualidades da sua filha BB.
Além disso, não se poderá deixar de ponderar os meios de prova até agora coligado, mormente, o ofício de 08.03.2023 e o relatório pericial da criança de 18.10.2023.
No primeiro, a médica que observou a BB aquando do alegado abuso, afirmou que “A minha observação, naquele dia, a região genital apresentava muito discreta hiperemia, sem lesões associadas, sem fissuras, sem hemorragia local ou outras alterações de relevo. A hiperemia genital, com esta localização, e uma situação muito frequente nas crianças desta faixa etária podendo estar associada a múltiplos fatores nomeadamente limpeza inadequada após as micções, discretas perdas de urina durante o dia, entre outros. Durante a observação a jovem foi extremamente colaborante, não pareceu mostrar-se inibida ou chorosa a observação da região genital. Não apresentava, nessa altura, outras alterações clínicas que me fizessem suspeitar de abuso sexual. Por esse motivo não foram desencadeados os procedimentos próprios da situação.”
Quanto ao segundo, consta que, além do mais, que a BB “[r]eferiu há muito tempo não ver o pai, negando ter saudades dele, mas assumindo que gosta do progenitor. BB não conseguiu explicitar melhor a ambivalência dos seus sentimentos acerca do pai, no entanto, a perita entende falta de vínculo seguro com o progenitor. Questionada acerca de se alguém alguma vez a tinha magoado, BB falou de um colega de escola a ter empurrado.
Aproveitando a sua descrição e tendo BB entendido a pergunta, a perita questionou diretamente se alguma vez o pai a magoou, por exemplo com um empurrão, ao que BB riu e negou. Em tom de brincadeira, e atendendo à curta idade da menina, BB foi questionada ao longo corpo nos locais onde o pai magoava ou fazia festinhas. BB respondeu não ter sido magoada em nenhum local do seu corpo pelo pai. Quanto às festinhas, BB referiu que o pai lhe fazia festinhas na cabeça, nas bochechas, nos braços e fazia-lhe cócegas na barriga e nas axilas.”
Por outro lado, como assinalou a Digníssima Procuradora no seu parecer que antecede “o tempo da investigação num inquérito crime, ainda mais respeitando a factos sensíveis envolvendo crianças, não se compadece com o tempo da criança, cuja formação, crescimento e desenvolvimento é constante e diário, importando salvaguardar que esse crescimento acontece num ambiente são, de afeto e orientação, onde lhe são prestados, idealmente por ambos os progenitores, todos os cuidados necessários e salvaguardados todos os seus interesses.”
E neste ponto não se pode deixar de assinalar dois aspetos importantes.
O primeiro de que decorridos mais de 2 anos (!) - 10.09.2022 - o Ministério Público, pese embora todas as diligências investigatórias adotadas ainda nem sequer conseguiu fundar um juízo de fundada suspeita sobre a pessoa do progenitor (artigo 58.º, n.º 1, alínea a) do Código Processo Penal), não tendo constituído o progenitor enquanto arguido em tais autos.
Não havendo tal juízo, muito menos haverá, pelo menos, por ora, um juízo de suficiência de indícios, nos termos constantes do artigo 283.º do Código Processo Penal.
O segundo ponto é o de que não se pode fazer letra morta do basilar e estruturante princípio consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa – o princípio da presunção da inocência, com todas as implicações daí decorrentes.
Num outro ponto resulta evidente aos autos que o progenitor pretende fazer parte da vida da BB, tanto que mudou de residência de ... para ... por forma a poder estar com a sua filha.
Além disso, a BB precisa de um pai e de uma mãe presentes e colaborantes por forma a que possa ter um são e integral desenvolvimento, mostrando-se necessário fomentar e incrementar os laços existentes com o progenitor, os quais se estão a perder fruto da privação de convívios desde 16.09.2022.
Ademais a persistência da privação de convívios afigura-se-nos excessiva e desproporcional como forma de acautelar a eventual situação ocorrida.
Na verdade, ainda que se possa conceber a pendência do processo crime e o facto de a situação do alegado abuso ainda estar a ser apurado, a verdade é que a situação da BB ficará devidamente acautelada caso os convívios sejam na presença e companhia de outros adultos (EMAT), os quais, por certo, não deixarão o progenitor fazer qualquer mal à criança.
*
Em face do exposto, nos termos do artigo 28.º e 38.º da RGPTC, fixo o seguinte regime provisório para perdurar até ao fim dos presentes autos ou até decisão em contrário, nos seguintes termos:
1. Revogo o regime fixado no despacho datado de 16.09.2022.
2. Fixo convívios entre o progenitor e a criança BB, às quartas-feiras e às sextas- feiras, a serem supervisionados pela EMAT da área de residência da criança, observando o horário de funcionamento da EMAT (mormente no que diz respeito a feriados e festividades).
3. Solicito à EMAT que remeta relatório mensal a descrever como tem decorrido os convívios.
O presente regime entrará em vigor a partir do dia 18 de dezembro de 2024 (próxima quarta-feira).
Notifique, inclusive a EMAT.
A progenitora no dia 18 de dezembro de 2024 deve fazer comparecer a criança na EMAT da área de residência desta sob cominação legal de 3 UC.
Comunique ao inquérito pendente.”.
5. Do mérito do recurso
Volvidos mais de dois anos sobre a data em que o Tribunal “a quo” decidiu, perante a “queixa” da progenitora da BB, suspender as visitas entre a criança e o seu progenitor, entendeu-se no despacho recorrido, fundamentadamente, revogar tal suspensão.
E bem, diga-se de passagem.
É que a criança, que actualmente tem 6 anos de idade, está, há mais de dois anos, privada de todo e qualquer convívio com o seu pai por causa de uma queixa da mãe sobre alegados abusos sexuais que teriam sido perpetrados por este contra a menor.
E isto sem que até à data existam indícios sérios e consistentes da prática de tais condutas – como a decisão recorrida bem o evidencia - e sem que o progenitor haja sequer sido constituído arguido no inquérito criminal pendente.
Não nos podemos esquecer que a regra é que seja “ estabelecido um regime de visitas que regule a partilha de tempo com a criança, podendo o tribunal, no interesse desta e sempre que se justifique, determinar que tais contactos sejam supervisionados pela equipa multidisciplinar de assessoria técnica, nos termos que forem ordenados pelo tribunal” e que só “excepcionalmente, ponderando o superior interesse da criança e considerando o interesse na manutenção do vínculo afetivo com o visitante, pode o tribunal, pelo período de tempo que se revele estritamente necessário, ordenar a suspensão do regime de visitas” ( cfr. nº2 e nº3 do art.º 40º da Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro - REGIME GERAL DO PROCESSO TUTELAR CÍVEL).
Outrossim, no artigo 1906.º, n.º 1, do Cód.Civil se estabelece o princípio de que, em caso de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento, as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.
E, de acordo com o n.º 7 do mesmo artigo 1906.º do Cód. Civil, o tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidades entre eles.
E, por isso, a supressão de visitas constitui uma medida gravosa que amputa o progenitor de um direito, que é simultaneamente um dever, de conviver com os filhos em ordem a participar no seu crescimento e desenvolvimento.
Aliás, até se pode considerar que “ [o] verdadeiro beneficiário do direito de visita é o menor, um direito nato resultante da relação biológica de manter a afetuosidade entre os filhos e ambos os progenitores (…)”2 .
Os laços afectivos entre filhos e pais têm de ser construídos, têm de ser alimentados e para que tal suceda com o progenitor com quem o filho não resida, ter-se-á de promover o convívio assíduo entre ambos de modo a colmatar a ausência do relacionamento diário.
Aliás, a necessidade de estabelecer um regime de visitas e contactos com o progenitor com quem a criança não resida, é, de alguma sorte, imposta pelo art.º 36º da Constituição da República , mais precisamente nos seus nºs 5 e 6, que estabelecem que os pais têm o direito e o dever de educar e manter os filhos, não podendo estes deles ser separados, excepto quando os pais não cumprirem os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.
Decorre igualmente do artº 9º da Convenção Sobre os Direitos da Criança que as crianças não devem ser separadas de seus pais, a menos que não estejam sendo tratadas adequadamente e que as crianças cujos pais não moram juntos devem manter contato com os dois “a menos que isso possa prejudicar a criança.”.
Como explica Clara Sottomayor3: “O direito de visitas consiste no direito de pessoas unidas entre si, por laços familiares ou afectivos estabeleceram relações pessoais. Num contexto de divórcio, o direito de visitas significa a possibilidade de o progenitor sem guarda e a criança se relacionarem e conviverem entre si, uma vez que tais relações não podem desenvolver-se, no dia a dia, em virtude da falta de coabitação. O direito de visitas tem uma forte componente humana e subjazem-lhe realidades afectivas que o direito não pode ignorar.”.
“O objecto do direito de visitas abrange, assim, um conjunto de relações, desde contactos esporádicos por algumas horas, os quais consistem na expressão mínima do referido direito a estadias por várias semanas e ainda qualquer forma de comunicação (correspondência por escrito, telefone, electrónica, etc.).” (…) “O exercício do direito de visitas por parte do progenitor não guardião funciona como um meio de este manifestar a sua afectividade pela criança, de ambos se conhecerem reciprocamente e partilharem os seus sentimentos de amizade, as suas emoções, ideias, esperanças e valores mais íntimos. Alguns autores referem-se, sugestivamente à visita como um “acto de puro amor puramente gratuito” que constitui “a essência dos direitos parentais para o progenitor não guardião”. Se é importante que na ordem familiar e humana que a criança não veja a sua vida amputada de carinho, contacto, relação e comunicação, o mesmo acontece no plano jurídico. O direito não pode ficar indiferente a esta profunda realidade humana, simultaneamente biológica e psíquica” (…) “O aspecto mais importante desta figura e o seu fundamento reside na relação afectiva que une a criança ao progenitor, a qual merece tutela jurídica por consistir numa manifestação da personalidade da criança e do seu direito ao livre desenvolvimento.” 4.
Revertendo ao nosso caso, não cremos que a manutenção da supressão do direito de visitas da criança ao seu pai, à míngua de quaisquer indícios sérios de que ele a tenha molestado, salvaguarde o superior interesse da BB; antes se revela atentatório do seu desenvolvimento harmonioso pois que a impede de construir laços afectivos e emocionais com ele.
Além disso, a decisão recorrida estabeleceu tal direito em ambiente de visitas supervisionadas, o que determina, como bem aí se salienta, que a situação da BB fique devidamente acautelada até à decisão que vier a ser proferida no inquérito criminal, já que a presença e companhia de outros adultos (EMAT) impedirão o progenitor de fazer qualquer “mal” à criança.
Em suma: Não há fundamento sério para revogar a assisada decisão recorrida.
III. DECISÃO
Por todo o exposto se acorda em julgar improcedente a apelação e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Évora, 27 de Fevereiro de 2025
Maria João Sousa e Faro
Ricardo Miranda Peixoto
Maria Adelaide Domingos
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1. Efectivamente, a questão da nulidade da decisão, por falta de fundamentação, na parte em que determina que a “progenitora no dia 18 de dezembro de 2024 deve fazer comparecer a criança na EMAT da área de residência desta sob cominação legal de 3 UC” , mostra-se ultrapassada em razão de tal cominação ter ficado sem efeito por força do despacho datado de 16.12.2024 como o Tribunal “ a quo” explicou no seu despacho de 8.1.2025.↩︎
2. Neste sentido, Viviane Gaspar Esteves de Almeida; Como os tribunais da Relação portugueses estão a decidir o futuro dos filhos do divórcio?; Universidade Católica Portuguesa; 2017, p. 53.↩︎
3. In “Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio, 7ª edição, 2021, pág. 95”.↩︎
4. Idem, autora e ob. cit., pág. 128 e seg.↩︎