EXCEÇÃO DE CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Sumário

I – O caso julgado afirma-se negativamente como exceção e positivamente como autoridade.
II – Na sua função negativa e como exceção impede pronunciamento judicial posterior entre as mesmas partes, sobre o mesmo objeto (pedido e causa de pedir).
III – Na sua função positiva e como autoridade, projeta os efeitos da respetiva decisão em ações posteriores conexas com aquela em que foi formado e que venham a decorrer entre as mesmas partes sem necessidade de total correspondência e identidade objetiva entre umas e outras.
IV – Sendo certo que o caso julgado se imporá por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objeto da segunda ação mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                                                                    *

1 – RELATÓRIO

AA e marido, BB, propuseram a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra a “ASSEMBLEIA DE COMPARTES DO BALDIO DA ...” e a “UNIÃO DE FREGUESIAS ... E ...”, apresentando como causa de pedir a incerteza da linha divisória entre o prédio de que são proprietários [identificado no art. 1º da p.i como «“... ou ...”, também conhecida por “...” ou “...”, terreno inculto com a área de 10.666 m2, a confrontar do norte e nascente com o Baldio de ..., poente Baldio da ... e do sul com CC, inscrito na matriz sob o artigo rústico ...33 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha ...82/...»], e os terrenos baldios cujos limites foram estabelecidos pelos RR., tendo, a final, formulado o pedido de que deve ser julgada procedente, por provada a ação e, por via dela:

«- Condenar os Réus a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre os prédios identificados em 1.º da P.I.

- Condenar os Réus a reconhecer que a linha divisória entre o prédio dos Autores identificado em 1.º desta P.I e o terreno baldio que lhe fica a norte, nascente e poente é aquela que vem definida nos artigos 15.º, 16.º, 17.º e 18.º desta P.I.

Subsidiariamente, para a hipótese de não proceder o anterior pedido, deve o tribunal fixar aquela linha divisória e determinar a colocação de marcos, por perito, nos termos daquela fixação da linha divisória, a expensas, em partes iguais, por autores e réus.»

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Acontece que anteriormente os mesmos DD e marido, BB, haviam instaurado uma outra ação declarativa de condenação, então com processo ordinário, a qual correu termos sob o nº 303/06...., na Instância Central/Secção Cível – J... – do T.J. da Comarca de Viseu, contra “A... Ldª”, “FREGUESIA ...” (hoje “UNIÃO DE FREGUESIAS ... E ...”), “B... S.A.”, e o “MUNICÍPIO ...”, pedindo que na procedência da ação sejam todos os Réus condenados a reconhecerem o direito de propriedade dos Autores sobre prédios identificados na petição inicial, as Rés “A... Lda.” e “C... S.A.” a retirarem, no prazo de 30 dias a contar da sentença, as torres, hélices, cabos eléctricos e demais equipamento e material colocado nos referidos prédios e ainda a, em idêntico prazo, retirarem dos mesmos prédios todas as pedras, pedregulhos, entulho e bem assim a repor o coberto vegetal de tais prédios através da colocação de terra vegetal, a Ré “A...” a pagar aos Autores uma indemnização pela utilização abusiva dos ditos prédios, cujo valor deve ser liquidado em execução de sentença e ainda todos os Réus a absterem-se de praticar qualquer acto que ofenda o direito de propriedade dos Autores sobre os referidos prédios rústicos.

Em fundamento de tal pretensão alegaram a sua propriedade sobre um conjunto de prédios rústicos que são identificados [mais concretamente como «1- “...”, terreno inculto com a área de 4400 m2, a confrontar do norte, nascente e poente com a Junta de Freguesia, do sul com CC, inscrito na matriz sob o artigo rústico ...33 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha ...82/...»; «2- “...”, terreno inculto com a área de 4660 m2, a confrontar do norte e poente com Junta de Freguesia, nascente com EE e sul com FF, inscrito na matriz sob o artigo ...20 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha ...96/...»; «3-“MALHADA ...”, terreno inculto com a área de 1400 m2, a confrontar do norte e nascente com o caminho; sul com GG e do poente com a Junta de Freguesia, inscrito na matriz sob o artigo ...83 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha ...68/...; 4-“MALHADAS ...”, terreno inculto com a área de 3750 m2, a confrontar do norte, nascente e sul com a Junta de Freguesia e do poente com FF, inscrito na matriz sob o artigo ...85 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha ...81/...», todos com registo de aquisição a favor de DD, aí Autora], explicando como entraram na sua posse – partilhas, sem embargo de alegarem os pertinentes factos, visando a sua aquisição por usucapião, tendo sucedido, muito em síntese, que a Ré A..., em execução do Parque eólico denominado “Caramulo”, aprovado pelo R. MUNICÍPIO e outras entidades, invadiu terreno dos prédios dos Autores, acrescendo que tal invasão ocorreu por indicação da Ré FREGUESIA.

Em tal ação, após realização de audiência de julgamento, veio a ser em 6.02.2015 proferida sentença de mérito, transitada em julgado em 14.10.2015, na qual, além do mais se considerou que «[V]ale isto por dizer que não se apurou que as obras da Ré A..., ao nível das torres B7, B10 e B11 tenham ocupado, com a sua plataforma, sapatas, cabos subterrâneos ou ainda as pás, em rotação, qualquer dos prédios dos Autores, isto é, havemos de concluir que não ficou provada nenhuma da materialidade essencial ou substancial que contendia com a causa de pedir da acção principal, acima descrita», sendo certo que era aos AA. que competia provar os factos constitutivos do seu direito, e que não o tendo feito na aludida parte, a ação tinha de improceder na medida correspondente, assim se finalizando com o seguinte concreto dispositivo:

«Termos em que por todo o exposto DECIDO julgar a acção parcialmente PROCEDENTE e consequentemente decido reconhecer que os AA DD e marido BB são proprietários dos prédios identificados na alínea a) da materialidade, condenando os Réus A... Ldª, UNIÃO DE FREGUESIAS ... E ... e o MUNICÍPIO ... a reconhecerem tal direito.

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No mais ABSOLVO OS IDENTIFICADOS RÉUS DOS DEMAIS PEDIDOS.

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Custas da acção pelos Autores visto o principio da sucumbência na sua interpretação lata.

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Notifique e Registe.»

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Na sequência processual e após a realização de inspeção ao local, foi pelo Exmo. Juiz de 1ª instância proferido em 05.07.2022 nos presentes autos, e para o que ora diretamente releva, o seguinte despacho:

«(…)

Estão igualmente assegurados os pressupostos processuais relativos às partes, nomeadamente a legitimidade passiva através da intervenção dos proprietários dos prédios confinantes naquelas extremas Norte, Poente e Nascente.

(…)

Os autos não contêm ainda os necessários elementos para conhecer, total ou parcialmente, do mérito da ação, incluindo a invocada exceção do caso julgado - que, como se deixou já dito no processo, se trata verdadeiramente da questão da autoridade do caso julgado - uma vez que, para além da questão da amplitude do direito de propriedade - na dimensão espacial - se pretende a delimitação das extremas do prédio dos autores, uma e outra, questões interdependentes e carecidas de prova. A eventual violação da autoridade do caso julgado, essa só se poderá aferir na decorrência daquilo que se julgar provado nesta ação e do que se julgou no anterior processo.»

                                                           *

Contudo, por despacho posterior de 17/05/2024, no dia designado para a realização da audiência de julgamento, entendeu o Exmo. Juiz de 1ª instância julgar parcialmente procedente a exceção do caso julgado nos termos seguintes:

«Por despacho de 05/07/202022 foi considerado que os autos não continham ainda os elementos necessários para conhecer da invocada exceção de caso julgado, uma vez que para além da questão da amplitude do direito de propriedade, na dimensão espacial, se pretende a delimitação das extremas do prédio dos Autores. Uma e outra, questões independentes e carecidas de prova.

Mais se referindo em nota de rodapé, sem prejuízo do valor extra processual das provas produzidas no processo nº 303/06...., de que os Réus declararam nos articulados querer aproveitar.

Por último refere-se ainda, no dito despacho, que a eventual violação da autoridade do caso julgado só poderá ser aferida na decorrência daquilo que se julgar provado nesta ação e do que se julgou no anterior processo.

O referido despacho não nos vincula quanto à questão do conhecimento da exceção do caso julgado, sendo que se discorda com o vertido na parte final do mesmo.

De facto, não nos parece que, para aquilatar da autoridade do caso julgado, tenhamos que produzir prova neste processo e, depois, confrontar a mesma com o objeto de julgamento no referido processo 303/06.....

(…)

Por conseguinte, contrariamente ao entendimento sufragado no dito despacho, entende-se que justamente pela autoridade do caso julgado se encontrará limitada a produção de prova que no presente processo se pretende fazer, quanto aos fatos que naquela ação foram já dados como provados e não provados, constituindo objeto de apreciação judicial, encontrando-se, por isso, assentes.

Assim sendo, analisadas as peças processuais das partes e a sentença proferida no referido processo 303/06...., a qual se encontra há muito transitada em julgado, considera-se que a decisão proferida, em função da prova aí produzida, relativa à localização das torres B7, B10 e B11, sua implementação no terreno, rotação e localização de cabos subterrâneos, constitui, nos termos sobre ditos, questão prejudicial para os presentes autos pela autoridade do caso julgado que relativamente a tal matéria se formou com o trânsito em julgado da dita decisão.

Em consequência, o direito dos Autores à demarcação do seu prédio, direito indiscutível, deverá nos presentes autos ser conformado com a dita decisão relativa à não implantação das torres nos limites da propriedade dos prédios dos Autores.

De outra forma, estar-se-ia nos presentes autos a contornar, ainda que de forma indireta, o que na dita ação foi decidido, podendo vir a dar-se como assente uma delimitação dos prédios dos Autores que incorporasse na sua área o local onde as ditas torres, rotação e cabos subterrâneos se encontram implantados, o que por força da autoridade do caso julgado e da dita decisão, não mais poderá ter lugar.

Deste modo conhece-se da invocada exceção nos termos supra enunciados, a qual, por isso, se julga parcialmente procedente, por parcialmente provada, seguindo os autos os seus termos com vista à delimitação dos prédios dos Autores, mas em respeito do decidido e transitado em julgado no dito processo.

Notifique.»

                                                           *

Inconformados com essa decisão, apresentaram os Autores recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes “conclusões”:

«1ª/ O presente recurso pretende ver apreciado o despacho proferido a 17/05/24, que julgou parcialmente procedente a exceção de caso julgado, e, como consequência, limitou a produção de prova a realizar nos presentes autos.

2ª/ A 05/07/22, tinha sido proferido despacho a remeter o conhecimento da exceção de caso julgado para a decisão final por não existirem elementos necessários para conhecer da mesma.

3ª/ Agora, o Tribunal a quo decidiu julgar parcialmente procedente a exceção de caso julgado nos seguintes termos: “(…) considera-se que a decisão proferida [no processo 303/06....], em função da prova aí produzida, relativa à localização das torres B7, B10 e B11, sua implementação no terreno, rotação e localização de cabos subterrâneos, constitui, nos termos sobre ditos, questão prejudicial para os presentes autos pela autoridade do caso julgado que relativamente a tal matéria se formou com o trânsito em julgado da dita decisão. Em consequência, o direito dos Autores à demarcação do seu prédio, direito indiscutível, deverá nos presentes autos ser conformado com a dita decisão relativa à não implantação das torres nos limites da propriedade dos prédios dos Autores.”

4ª/ Discordamos por completo do despacho recorrido, desde logo, porque existe omissão de pronúncia pois não é mencionado se se verificam, e como, os requisitos da exceção de caso julgado.

5ª/ Nos termos do art. 581.º do CPC, para se verificar a exceção de caso julgado temos que estar presente a uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, pedido e à causa de pedir.

6ª/ Ora, analisando os presentes autos e aqueles da ação de processo 303/06...., verificamos em primeiro lugar que os sujeitos, no caso os RR, não são os mesmos.

7ª/ Na ação precedente eram RR a sociedade A..., Lda., a FREGUESIA ..., a sociedade B..., S.A. e o MUNICÍPIO ...; na presente ação são RR a Assembleia de Compartes do Baldio da ... e a UNIÃO DE FREGUESIAS ... e ....

8ª/ Para além de serem pessoas diferentes, a qualidade jurídica em que atuam também é distinta pois na primeira ação os RR estavam a ser demandados como responsáveis pela prática de atos ofensivos ao direito de propriedade dos AA e na presente ação os RR estão a ser demandados por se arrogarem titulares do direito de uso e fruição dos prédios contíguos aos AA.

 9ª/ Quanto aos pedidos, verifica-se que também não existe identidade pois na primeira ação os AA peticionavam que: a) fosse reconhecido o direito de propriedade dos mesmos sobre vários prédios; b) que dois dos RR fossem condenados a retirar dos prédios dos AA torres eólicas, cabos elétricos e demais equipamento; c) que a Ré A... Lda. fosse condenada a pagar uma indemnização aos AA; e d) que todos os RR fossem condenados a absterem-se de praticar qualquer ato que ofendesse o direito de propriedade dos AA; enquanto que na presente ação os AA peticionam que: a) sejam condenados os RR a reconhecer o direito de propriedade dos AA sobre vários prédios; e b) sejam condenados a reconhecer a linha divisória entre o prédios dos AA e terreno baldio a norte deste nos termos explanados na P.I.. Subsidiariamente, em caso de improcedência do pedido b), foi peticionado que o Tribunal fixe a linha divisória e determine a colocação de marcos.

10ª/ Existe apenas identidade no pedido de reconhecimento do direito de propriedade dos AA., cujo âmbito será sempre definido pela linha divisória, no entanto, as partes são diferentes e nunca tinha sido a Ré Assembleia de Compartes do Baldio da ... demandada e portanto condenada a reconhecer o direito de propriedade dos AA..

11ª/ Finalmente, e como não podia deixar de ser tendo em conta a distinção dos pedidos, a causa de pedir também é diferente em cada uma das ações: na ação precedente a causa de pedir era constituída por atos ofensivos do direito de propriedade dos AA; na presente ação a causa de pedir é constituída pela incerteza da linha divisória.

12ª/ Não se verifica pois a exceção de caso julgado, sendo certo que o despacho recorrido é omisso acerca da verificação (ou não) destes requisitos, limitando-se a versar sobre matéria de direito sem a aplicar à matéria de facto.

13ª/ Por esse motivo, o despacho é nulo, nos termos do art. 615.º, aplicável por força do art. 595.º, n.º 1, al. b) e n.º 3, in fine, do CPC, pois não obstante não estarmos perante um despacho saneador, apreciou a exceção de caso julgado, conhecendo em parte do mérito da causa.

14ª/ O Tribunal a quo distingue autoridade do caso julgado de exceção de caso julgado, mas parece esquecer-se que a autoridade do caso julgado só vale se estivermos perante a exceção de caso julgado, i. é, se tiverem cumpridos os requisitos prescritos na lei.

15ª/ Caso se considere estarmos efetivamente perante caso julgado material, o que não se aceita, sempre se dirá que não basta olhar para o dispositivo da sentença proferida anteriormente mas também para a fundamentação que levou ao julgamento da matéria de facto, como se decidiu no Ac. do STJ de 05/12/2017, no âmbito do processo n.º 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1.

16ª/ Na sentença proferida no processo 303/06, julgou-se como facto não provado que “os prédios referidos em A) [da matéria de facto dada como provada] têm as confrontações aí referidas e as áreas que aí constam”; e consequentemente, por não se poder aferir as áreas e limitações dos prédios, foi dado como não provado nas subsequentes alíneas que tivessem sido realizadas obras ou colocado objetos naqueles prédios.

17ª/ Isto é, o Tribunal que proferiu a sentença no âmbito do processo 303/06 não podia dar como provado a existência de obras ou objetos nos prédios pois desconhecia as limitações ou áreas destes.

18ª/ Concluiu o Tribunal na ação precedente, dado as limitações da prova produzida: “Perante a conjugação destes elementos forçosamente havemos de concluir que a prova pericial não teve possibilidade de facultar ao julgador elementos concretos, objectivos e indiscutiveis acerca da delimitação dos terrenos ou, dito de modo diverso, relativamente aos reais contornos dos prédios em causa, seja área como confrontações, para a final se concluir da violação -ou não -do direito de propriedade dos Autores, pelas torres, cabos subterrâneos ou pás, quando em rotação” (p. 24 da sentença)

19ª/ Como decorre da fundamentação daquele sentença, a prova nos autos 303/06 revelou-se insuficiente para aferir da realidade material.

20ª/ No entanto, tal não significa que o mesmo vá suceder nos presentes autos.

21ª/ Convém relembrar que o pedido da presente ação é de fixação de linha divisória, sendo este o objeto do litígio cujos meios de prova devem incidir; enquanto que na ação precedente (embora a questão da limitação dos prédios fosse questão que dependesse - como dependeu - a procedência da ação) tal não era a questão principal pois o pedido era manifestamente diferente.

22ª/ O Tribunal a quo a julgar desde já a exceção de caso julgado está a dizer, sem produção de prova, que as áreas e limitações do prédio serão definidas de modo a que excluam torres, cabos, hélice, seja o que for, de estarem inseridas naquele prédio, ainda que tal não corresponda à realidade material, o que não se compreende por ser manifestamente ilógico.

23ª/ O despacho recorrido fez incorreta aplicação da lei e do direito, violando os arts. 580.º e 581.º do CPC. TERMOS EM QUE deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e a final ser revogado o despacho proferido a 17/05/2024, substituindo-se por outro que julgue improcedente a exceção de caso julgado.»

                                                           *

Contra-alegou a Ré “BALDIOS DA ...”, finalizando as alegações que apresentou no sentido de «Razão pela qual o douto despacho recorrido se deve manter na íntegra, julgando-se improcedente o recurso interposto pelos AA,

Para a realização da costumada

Justiça!»

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No despacho de admissão do recurso, o Exmo. Juiz a quo sustentou a não verificação da arguida nulidade.

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Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                           *

2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos Autores nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- nulidade da decisão por omissão de pronúncia [«(…) nos termos do art. 615.º, aplicável por força do art. 595.º, n.º 1, al. b) e n.º 3, in fine, do CPC, pois não obstante não estarmos perante um despacho saneador, apreciou a exceção de caso julgado, conhecendo em parte do mérito da causa»];

- errada subsunção jurídica da decisão recorrida ao considerar que operava quanto à presente ação o efeito (positivo) da autoridade de caso julgado da sentença proferida no proc. nº. 303/06.....

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3 - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a ter em consideração para a decisão são, no essencial, os que decorrem do relatório supra.

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4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 - A primeira questão que importa solucionar no presente recurso é a que se traduz na alegada nulidade da sentença.

Vejamos então do dito argumento da nulidade da decisão por omissão de pronúncia [«(…) nos termos do art. 615.º, aplicável por força do art. 595.º, n.º 1, al. b) e n.º 3, in fine, do CPC, pois não obstante não estarmos perante um despacho saneador, apreciou a exceção de caso julgado, conhecendo em parte do mérito da causa»].

Nos termos da dita al. d), verifica-se a nulidade da sentença quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Com referência à 1ª parte desta citada al.d), do nº1, do art. 615º do n.C.P.Civil, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – art. 608º, nº2 do mesmo n.C.P.Civil.

Sendo que a decisão padece do vício da nulidade quer no caso de o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, quer quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Será então que o Exmo. Juiz de 1ª instância não podia ter deixado de mencionar – como sustentado nas alegações recursivas para substanciar esta arguição de nulidade! –  se se verificam, e como, os requisitos da “exceção” de caso julgado?

Temos como critério e diretriz que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – art. 608º, nº2 do mesmo n.C.P.Civil.

Sendo que a decisão padece do vício da nulidade quer no caso de o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, quer quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Ora, tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, que apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “thema decidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.

Questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.

Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do art. 615º nº1, al.d), do n.C.P.Civil…

Dito isto, importa concluir que não houve efetivamente omissão de pronúncia sobre esse aspeto dos requisitos da “exceção” de caso julgado, pois que foi expressamente esclarecido no despacho/decisão recorrida relativamente ao “instituto do caso julgado”, que «[C]omo é reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, o instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. A função positiva é exercida através da autoridade do caso julgado e a função negativa é exercida através da exceção dilatória do caso julgado», sendo que, na circunstância, era como “autoridade” do caso julgado que a questão era enquadrada.

Ora se assim é, não havia que escalpelizar ou aprofundar o aspeto da tríplice identidade a que alude o art. 581º, do n.C.P.Civil [para a verificação positiva da “exceção” do caso julgado (de sujeitos, pedido e causa de pedir)], na medida em que existe um entendimento jurídico consolidado (quer a doutrinal, quer jurisprudencial) no sentido de que a “autoridade” do caso julgado pode funcionar independentemente da verificação da referida tríplice identidade.[2]

Assim sendo, uma pronúncia específica, concreta e aprofundada sobre os requisitos da “exceção” de caso julgado era perfeitamente dispensável e desnecessária, apreciação essa que, a ser feita, seria perfeitamente redundante e inócua. 

Dito de outra forma: na sentença, essa dita questão dos requisitos da “exceção” de caso julgado não era uma questão sobre a qual tivesse que haver pronúncia!

Nestes termos e sem necessidade de maiores considerações, importa concluir pela improcedência do alegado vício recursivo da sentença.

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4.2 – Vejamos, de seguida, a questão mais substantiva da alegada errada subsunção jurídica da decisão recorrida ao considerar que operava quanto à presente ação o efeito (positivo) da autoridade de caso julgado da sentença proferida no proc. nº. 303/06.....

Está portanto em causa aferir se foi ou não correta a invocação da “autoridade” de caso julgado na circunstância, isto tendo como referência a sentença proferida no proc. nº. 303/06.....

Que dizer?

Importa começar por referir que está mais concretamente em causa nos autos o efeito da autoridade do caso julgado formado pela decisão proferida em ação anterior [no proc. nº 303/06...., da Instância Central/Secção Cível – J... – do T.J. da Comarca de Viseu], a qual havia corrido termos entre os aqui AA. e a co-Ré “UNIÃO DE FREGUESIAS ... E ...”, sendo que, considerando-o operante, a decisão recorrida determinou que os autos prosseguiriam «(…) os seus termos com vista à delimitação dos prédios dos Autores, mas em respeito do decidido e transitado em julgado no dito processo».

Sendo certo que, no nosso entender, o fez corretamente.

Vejamos.

Começaremos por esclarecer que em nosso entender é claro que as RR. na presente ação [“ASSEMBLEIA DE COMPARTES DO BALDIO DA ...” e a “UNIÃO DE FREGUESIAS ... E ...”] assumiram e sucederam a posição jurídica [designadamente de gestão e representação do(s) baldio(s)] que ao tempo do proc. nº 303/06.... pertencia à “FREGUESIA ...” (rectius, “UNIÃO DE FREGUESIAS ... E ...”), sendo que são elas agora as demandadas por força das regras de legitimidade processual (passiva) decorrentes da superveniente vigência da Lei dos Baldios [Lei nº 68/93, de 4 de setembro, alterada nomeadamente pela Lei 72/2014, de 2 de dezembro e pela Lei nº 75/2017, de 17 de agosto].

Sendo certo que o despacho de 5.07.2022 (1º segmento, supra transcrito), através do qual se afirmou a legitimidade processual passiva das RR. nestes autos, não foi nem é questionado por qualquer das partes…

Passando ao demais, dispõe o art. 619º, nº1, do n.C.P.Civil que «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º».

Esta disposição legal reporta-se e delimita os contornos do caso julgado material, ou seja, o caso julgado que se forma relativamente à decisão (sentença ou saneador) que, decidindo do mérito da causa, define a relação ou situação jurídica deduzida em juízo (a relação material controvertida), determinando que tal decisão tem força obrigatória dentro e fora do processo (dentro dos limites estabelecidos nos arts. 580º e 581º do mesmo n.C.P.Civil) e impedindo, dessa forma, que a mesma relação material venha a ser definida em moldes diferentes pelo tribunal ou qualquer outra autoridade.

Relativamente a tal, já nos foi doutamente ensinado que o caso julgado material «consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão».[3]

Sendo certo que, conforme resulta do disposto na norma citada, o caso julgado material vigora dentro dos limites estabelecidos nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sendo, portanto, delimitado através dos elementos que identificam a relação jurídica definida na sentença (as partes, o pedido e a causa de pedir) e é a definição dessa concreta relação jurídica (delimitada pelos referidos elementos) que se impõe por força da autoridade do caso julgado.

A esta luz, temos, portanto, que a concreta relação material controvertida que foi objeto da decisão não pode voltar a ser discutida entre as mesmas partes e não pode vir a ser contrariada – antes deverá ser respeitada – por qualquer outra decisão.[4]

Mas o caso julgado assim formado e delimitado pode impor-se e produzir os seus efeitos por duas vias: pode impor-se, na sua vertente negativa, por via da exceção de caso julgado no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada e pode impor-se, na sua vertente positiva, por via da autoridade do caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas.

Poder-se-á dizer, em suma, que quando o objeto da segunda ação é idêntico e coincide com o objeto da decisão proferida na primeira ação, o caso julgado opera por via de exceção (a exceção de caso julgado), impedindo o Tribunal de proferir nova decisão sobre a matéria (nesse caso, o Tribunal limitar-se-á a julgar procedente a exceção, abstendo-se de apreciar o mérito da causa que já foi definido por anterior decisão); o caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objeto da segunda ação mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objeto da ação, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objeto da primeira decisão).

A este propósito já foi doutamente sublinhado o seguinte:

«Esta distinção tem justamente por pressuposto que, na autoridade de caso julgado, existe uma diversidade entre os objectos dos dois processos e na excepção uma identidade entre esses objectos. Naquele caso, o objecto processual decidido na primeira acção surge como condição para apreciação do objecto processual da segunda acção; neste caso, o objecto processual da primeira acção é repetido na segunda.

Na excepção, a repetição deve ser impedida, uma vez que só iria reproduzir inutilmente a decisão anterior ou decidir diversamente, contradizendo-a.

Na autoridade, há uma conexão ou dependência entre o objecto da segunda acção e o objecto definido na primeira acção, sem que aquele se esgote neste. Aqui, impõe-se que essas questões comuns não sejam decididas de forma diferente, devendo a decisão da segunda acção acatar o que foi decidido na primeira, como pressuposto indiscutível.»[5]

Daí que se considere que, ao contrário do que acontece com a exceção de caso julgado (cujo funcionamento pressupõe a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir – cfr. artigo 580º, nº 1, do n.C.P.Civil), a invocação e o funcionamento da autoridade do caso julgado dispensam a identidade de pedido e de causa de pedir.[6]

Já quanto à identidade de sujeitos, ocorre uma concreta especificidade, a saber, é ela imprescindível.

Atente-se, quanto a este particular, no que já foi sublinhado em douto aresto:

«A função positiva do caso julgado manifesta-se como autoridade quando decide o mérito ou fundo da causa, ou seja, quando decide a relação material controvertida entre as partes, reconhecendo ou negando os direitos destas; o caso julgado expresso pela sentença transitada (o mesmo é dizer, os acórdãos transitados) em julgado que decida a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora do processo, nos limites fixados pelos art.s 497º e 498º (ou seja, delimitada pelo pedido e pela causa de pedir) e nos precisos limites e termos em que julga, isto é, em que decide e responde à pretensão que lhe foi apresentada (art. 673º CPC).

Significa isto que, transitada uma decisão judicial, o caso julgado formado pela mesma se manifestam, não só na obrigação de o juiz se abster de ulteriormente apreciar as mesmas questões (pedido e causa de pedir) entre as mesmas partes, mas sobretudo na de respeitar a decisão já proferida, vergando-se à força e à autoridade dela.

O problema coloca-se quando o processo intentado em segundo lugar não coincide nos seus elementos identificadores (sujeitos, pedido e causa de pedir) com o primeiro, maxime quando em segundo processo entre as mesmas partes mas com objecto diverso se suscitem algumas questões conexas com as já decididas no primeiro processo.

Neste caso, e desde que o segundo processo corra entre as mesmas partes do primeiro, o tribunal não pode deixar de respeitar a decisão das questões já tomada no referido primeiro processo.

Se o segundo (ou terceiro, quarto, etc) processo não é reprodução do primeiro, pois os seus objectos essenciais são distintos, o tribunal desse processo posterior no caso de a questão que lhe incumbe resolver incluir elementos já decididos em sentença transitada anterior proferida entre os mesmos sujeitos, deverá ater-se ao conteúdo de tal sentença sem contradizer o que ela dispõe, mas antes tomando-a como um ponto de partida indiscutível.

Esta função positiva e prejudicial do caso julgado afirma-se, pois, quando, sendo as partes as mesmas, o objecto do segundo processo é parcialmente idêntico ou conexo com o do anterior.

Assente a identidade subjectiva, que deverá concorrer sempre, a função positiva operará quando o que foi decidido no primeiro processo seja prejudicial relativamente às questões colocadas no segundo processo, isto é, quando a relação jurídica de que se trata no segundo processo esteja dependente da definida no primeiro. Trata-se, portanto, de evitar que duas relações jurídicas, conexas entre si, sejam decididas de modo contraditório, seja quando uma delas integre os pressupostos fácticos da outra, seja quando para decidir sobre a segunda se tenha que decidir (de novo) sobre a primeira, não obstante esta já haver sido decidida em processo anterior (cfr. Montero Aroca, Proceso y Garantia, 2006, p. 385-386).»[7] [sublinhados nossos]

Aliás, a este respeito – da necessidade da “identidade subjetiva” entre as duas ações, para poder operar a autoridade do caso julgadomuito concretamente já se esclareceu o seguinte:

«A autoridade de caso julgado é um conceito que tem sido usado para extrair efeitos de uma sentença em determinadas situações em que não se verifica a conjugação dos três elementos de identidade: sujeitos, pedido e causa de pedir.

Ainda assim, Manuel de Andrade excluía da eficácia externa do caso julgado os terceiros interessados, isto é os terceiros relativamente aos quais a sentença determina um “prejuízo jurídico, invalidando a própria existência ou reduzindo o conteúdo do seu direito”, exclusão ainda mais absoluta tratando-se de “terceiros que são sujeitos de uma relação ou posição jurídica independente e incompatível” (Noções Elementares de Processo Civil, págs. 311 e 312).

Noutros casos a afirmação da “autoridade de caso julgado” é usada para atribuir relevo não apenas ao segmento decisório mas também aos fundamentos da decisão ou aos pressupostos de que o Tribunal necessariamente partiu para a afirmação do resultado declarado.

Tal pode ocorrer, segundo Teixeira de Sousa, quando os “fundamentos de facto, considerados em si mesmos (e, portanto desligados da respectiva decisão), adquirem valor de caso julgado”, o que sucede quando “haja que respeitar e observar certas conexões entre o objecto decidido e outro objecto”, mencionando uma diversidade de arestos que têm relevado para o efeito as questões que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da sentença. Ainda assim, acrescenta o mesmo autor, “a extensão de caso julgado a relações de prejudicialidade ou sinalagmáticas apenas se pode verificar quando no processo em que a decisão foi proferida forem concedidas, pelo menos, as mesmas garantias às partes que lhe são concedidas no processo em que é invocado o valor vinculativo daqueles fundamentos” (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., págs. 580 e 581). Acresce que todos os exemplos apresentados acerca dos efeitos da sentença relativamente a terceiros (efeitos directos ou efeitos reflexos) não encontram qualquer paralelo com a concreta situação dos autos.

O cuidado com que é tratada a eficácia externa do caso julgado também é bem visível em Antunes Varela que, depois de abordar a problemática dos efeitos da sentença relativamente a terceiros juridicamente indiferentes, acrescentou, relativamente aos terceiros titulares de uma relação jurídica incompatível com a litigada, que “nenhuma razão há, de acordo com o espírito da norma que prescreve a eficácia relativa do caso julgado, para impor a sentença ao terceiro, titular da posição incompatível com a declarada na sentença transitada” (Manual de Processo Civil, 2ª ed. pág. 727). Nas demais situações cobertas pelas regras gerais, a invocação da “autoridade de caso julgado” formado num processo não pode conduzir a que se produzam na esfera de terceiros efeitos com que este não poderia contar, pelo facto de emergirem de um processo em que não teve qualquer intervenção.»[8]

Tendo presente estes ensinamentos, não podemos deixar de concluir no sentido de que, a invocação da figura da “autoridade de caso julgado”, emergente de sentença proferida numa ação, no proc. nº 303/06...., da Instância Central/Secção Cível – J... – do T.J. da Comarca de Viseu, é legitimamente suscetível de ser invocada na ação donde emerge o recurso ora em apreciação, em que são partes, A. e RR., os mesmos sujeitos.[9]

Atente-se que em nosso entender está precisamente em causa a conexão ou dependência entre o objeto da presente ação e o objeto que resultou (não) definido naquela primeira ação.

Na verdade, na anterior ação os AA. não pediam só a condenação dos RR. no reconhecimento do direito de propriedade daqueles sobre os prédios em causa, mas também que os mesmos tinham uma determinada área e implantação geo-espacial, sendo da alegada violação dessa área e implantação geo-espacial que decorreria a restante pretensão condenatória (de respeito pelo direito, de restauração natural e de indemnização).

Sucede que, como visto, nessa anterior ação, apenas lograram os AA. a condenação dos RR. no reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio que também agora está em causa[10], posto que, quanto aos demais pedidos, foram os RR. absolvidos, atendendo a que não se provaram os pressupostos para tanto, mais concretamente, porque «(…) não se apurou que as obras da Ré A..., ao nível das torres B7, B10 e B11 tenham ocupado, com a sua plataforma, sapatas, cabos subterrâneos ou ainda as pás, em rotação, qualquer dos prédios dos Autores, isto é, havemos de concluir que não ficou provada nenhuma da materialidade essencial ou substancial que contendia com a causa de pedir da acção principal, acima descrita».

Ora se assim é, essa decisão absolutória traduz-se em decisão de questão fundamental que constitui precedente lógico indiscutível do pedido de fixação da linha divisória pretendida/reclamada pelos AA. na presente ação.

Atente-se que, como já nos foi doutamente ensinado, «não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão».[11]

Assim como que «a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa» e abrange, «para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado».[12]

Revertendo estes ensinamentos ao caso ajuizado, temos que o objeto de anterior ação [proc. nº 303/06....] se inscreveu como pressuposto indiscutível, no objeto desta posterior ação ora em recurso.

Dito de outra forma: a autoridade de caso julgado da referida sentença absolutória impõe o seu acatamento, obstando a que a relação jurídica ali discutida [ou seja, que o local e área de implantação de qualquer uma das torres eólicas (B7, B10 ou B11) tenha ocupado, com a sua plataforma, sapatas, cabos subterrâneos ou ainda as pás, em rotação, qualquer dos prédios dos AA., designadamente o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo rústico ...33 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha ...82/...], venha a ser apreciada, de novo, na presente ação de demarcação/fixação da linha divisória.

Sendo nesta medida que o objeto processual decidido na primeira ação surge como condição para apreciação do objeto processual da presente ação.

De referir que, s.m.j., com a ação de onde emerge o recurso ora em apreciação os AA. visam replicar, ainda que indiretamente[13], o pedido que haviam formulado na ação correspondente ao dito proc. nº 303/06...., mas sempre visando o mesmo e único objetivo – afirmar a propriedade dos AA. sobre a faixa de terreno abrangida pelo funcionamento da torre eólica em causa (o que foi autorizado contratualmente pela antecessora das RR.).

Sendo certo que ambas as ações assentam, em último termo, no mesmo e repetido fundamento, a saber, que uma concreta torre eólica foi implantada e se encontra a ocupar o prédio dos AA. (à revelia destes e contra a sua vontade)…

 Com este mesmo sentido e significado se aduziu argutamente o seguinte na decisão recorrida:

«(…)

Por conseguinte, contrariamente ao entendimento sufragado no dito despacho, entende-se que justamente pela autoridade do caso julgado se encontrará limitada a produção de prova que no presente processo se pretende fazer, quanto aos fatos que naquela ação foram já dados como provados e não provados, constituindo objeto de apreciação judicial, encontrando-se, por isso, assentes.

Assim sendo, analisadas as peças processuais das partes e a sentença proferida no referido processo 303/06...., a qual se encontra há muito transitada em julgado, considera-se que a decisão proferida, em função da prova aí produzida, relativa à localização das torres B7, B10 e B11, sua implementação no terreno, rotação e localização de cabos subterrâneos, constitui, nos termos sobre ditos, questão prejudicial para os presentes autos pela autoridade do caso julgado que relativamente a tal matéria se formou com o trânsito em julgado da dita decisão.

Em consequência, o direito dos Autores à demarcação do seu prédio, direito indiscutível, deverá nos presentes autos ser conformado com a dita decisão relativa à não implantação das torres nos limites da propriedade dos prédios dos Autores.

De outra forma, estar-se-ia nos presentes autos a contornar, ainda que de forma indireta, o que na dita ação foi decidido, podendo vir a dar-se como assente uma delimitação dos prédios dos Autores que incorporasse na sua área o local onde as ditas torres, rotação e cabos subterrâneos se encontram implantados, o que por força da autoridade do caso julgado e da dita decisão, não mais poderá ter lugar.

(…)»

Em suma, entendemos que existe autoridade do caso julgado da primeira ação [proc. nº 303/06...., da Instância Central/Secção Cível – J... – do T.J. da Comarca de Viseu], face à presente ação, nos moldes e dimensão assinalados.

Termos em que, brevitatis causa, fatalmente improcedem as alegações recursivas e o recurso.

                                                           *                                                          

5 - SÍNTESE CONCLUSIVA

(…)

                                                           *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final julgar totalmente improcedente o recurso, com a consequente manutenção da decisão recorrida.

Custas pelos AA./recorrentes.

                                                           *                                                                                                                                             Coimbra, 25 de Fevereiro de 2025

      Luís Filipe Cravo

         Fonte Ramos

         Vítor Amaral


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fonte Ramos
  2º Adjunto: Des. Vítor Amaral
[2] Cf., inter alia, o acórdão do STJ de 08.01.2019, proferido no proc. nº 5992/13.7TBMAI.P2.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[3] Assim por MANUEL DE ANDRADE, in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, a págs. 305.
[4] Sem embargo de que, em conformidade com o disposto no artigo 625º, nº 1, do n.C.P.Civil, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, haverá que cumprir a que passou em julgado em primeiro lugar.
[5] Assim no acórdão do STJ de 26/02/2019, proferido no proc. nº 4043/10.8TBVLG.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[6] Neste sentido, inter alia, os acórdãos do STJ de 29/05/2014 (proferido no proc. nº 1722/12.9TBBCL.G1.S1), de 07/03/2017 (proferido no proc. nº 2772/10.5TBGMR-Q.G1.S1) e de 26/02/2019 (proferido no proc. nº 4043/10.8TBVLG.P1.S1), todos igualmente acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[7] Citámos agora o acórdão do STJ de 12.09.2013, proferido no proc. nº 239/09.3TBVRS.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[8] Trata-se do acórdão do STJ de 18.06.2014, proferido no proc. nº 209/09.1TBPTL.G1.S1, também ele acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[9] Dando-se aqui por reproduzido o já sustentado supra quanto à identidade subjetiva das RR.!
[10] Trata-se do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo rústico ...33 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha ...82/....
[11] Assim por MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA in “Objecto da Sentença e Caso Julgado Material”, publicado no BMJ, nº 325, a págs. 171-179.
[12] Citámos agora o acórdão do STJ de 22.02.2018, proferido no proc. nº 3747/13.8T2SNT.L1.S1; no mesmo sentido vide o acórdão do STJ de 20.06.2012, proferido no proc. nº 241/07.0TLSB.L1.S1; ambos os arestos estão acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[13] E sendo ora no pressuposto de que o prédio tem a área de 10.666 m2…