CASO JULGADO FORMAL
PRESSUPOSTOS
CONHECIMENTO OFICIOSO
Sumário

I - O caso julgado é uma daquelas questões, que é de conhecimento oficioso por parte do Tribunal, qualquer que seja a instância. Nos termos dos artigos 579.º a 581.º do Código de Processo Civil, de modo imperativo o Tribunal oficiosamente tem de conhecer destas questões, não estando dependente da alegação das partes (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
II - Existe caso julgado formal quando uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida, seja objecto de repetida decisão. Se assim for, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão.

Texto Integral

PROC. N.º[1] 1101/23.2T8PVZ-A.P1


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Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz 6

RELAÇÃO N.º 193

Relator: Alberto Taveira

Adjuntos: Anabela Andrade Miranda

Pinto dos Santos


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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

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I - RELATÓRIO.

AS PARTES


A.: A..., S.A.

RR.: B..., S.A.

C..., S.A. e

D..., S.L.


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Nos presentes autos, a 06.05.2024, foi proferido saneamento do processo, e consequentemente foram admitidos meios de prova, e na parte que interessa foi admitida a prova pericial:

Por não se revelar impertinente ou dilatória a perícia requerida pela Autora, notifique a Ré para, querendo, se pronunciar sobre o objecto da mesma nos termos e para os efeitos previstos no art. 476º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

As RR. B..., S.A. (“B...”) e D..., S.L., viram requerer a ampliação do objecto da perícia (Requerimento de 01-07-2024).

A A. por requerimento de 15.07.2024 pronunciou-se quanto à ampliação da perícia, pedindo por sua vez, também, uma ampliação do objecto da perícia.

As RR., B..., S.A. (“B...”) e D..., S.L. por requerimento de 19-07-2024 veio requerer que seja dada sem efeito a prova pericial por a A. não haver indicado o seu perito. De igual modo, veio pronunciar-se, subsidiariamente quanto à ampliação pedida pela A., requerendo a sua rejeição.


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DA DECISÃO RECORRIDA


A 03.10.2024, foi proferida DECISÃO, nos seguintes termos:

A autora requereu a produção de prova pericial, apresentando os seguintes quesitos:

a) Quais os danos existentes no camião marca Volvo com a matrícula ..-VQ-..?

b) A reparação, face à extensão dos danos, reconstitui a situação antes do sinistro?

c) Existe risco do veículo reparado apresentar problemas de funcionamento face à extensão dos danos?

Em 1/7/2024 as rés requereram a ampliação da prova pericial aditando os seguintes quesitos:

1. Quais eram os danos no camião de marca Volvo com a matrícula ..-VQ-.. pré-existentes ao incidente do dia 11/02/2020?

2. Qual era a condição do camião de marca Volvo com a matrícula ..-VQ-.. pré-existente ao incidente do dia 11/02/2020 em termos de quilometragem; desgaste; manutenção; chapa; certificação; inspeção; sinistros anteriores?

3. Quais os danos que foram efetivamente causados pelo incidente do dia 11/02/2020 no camião de marca Volvo com a matrícula ..-VQ-..?

4. Qual o valor ou qual o custo da reparação (com e sem IVA) em fevereiro de 2020 dos danos que foram efetivamente causados pelo incidente do dia 11/02/2020 no camião de marca Volvo com a matrícula ..-VQ-..?

5. Qual o tempo de duração e conclusão (em dias e meses) em fevereiro de 2020 da reparação dos danos efetivamente causados pelo incidente do dia 11/02/2020 no camião de marca Volvo com a matrícula ..-VQ-..?

6. Qual o valor real ou o valor de mercado do camião de marca Volvo com a matrícula ..-VQ-.. no dia 11/02/2020 e na condição em que se encontrava nesta data (1) antes e (2) depois do incidente?

7. Qual o valor em novo ou de mercado de um camião do tipo do camião de marca Volvo com a matrícula ..-VQ-.. no dia 11/02/2020?

Mais indicaram perito a nomear.

Notificada desse despacho veio a autora requerer a ampliação da perícia nos termos requeridos em 15/7/2024, pretendendo que os peritos respondam aos quesitos indicados pela ré tendo como referência a data de hoje.

As rés vieram, posteriormente, em 19/7/2024, dizer que consideram que a perícia requerida pela autora deve ser dada sem efeito uma vez que a autora não indicou ainda o seu perito ou que, subsidiariamente, a perícia prossiga como perícia singular nomeando-se apenas e só o perito indicado pelas Rés.

Dizem, ainda, que a ampliação da perícia requerida pela autora é extemporânea.

Apreciando.

Desde logo, importa considerar que nos temas de prova, que não foram alvo de qualquer reclamação por banda de qualquer das partes, ficou enunciada a matéria fáctica, relevante e controvertida, com interesse para a decisão da causa.

Logo, a subsequente fase de instrução e, por conseguinte, os respetivos meios probatórios – prova testemunhal, documental e pericial -, terão necessariamente de versar, tão-somente, sobre a factualidade controvertida.

O artigo 388º do Cód. Civil define prova pericial como aquela que “tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos às pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial».

Assim, o recurso à prova pericial fundamenta-se na necessidade de conhecimentos científicos para a perceção ou apreciação de factos, ou na necessidade de preservar a intimidade das pessoas, já que a inspeção judicial deve decorrer sempre com ressalva da vida privada e familiar e da dignidade humana (cfr. artigo 612.º, n.º 1, do Cód. Processo Civil).

Conforme resulta do art. 578.º do Cód. Processo Civil, a diligência probatória em causa pode ser rejeitada se for considerada impertinente ou dilatória.

Considerando os temas de prova elencados no despacho saneador deles resulta que nos autos impõe-se apurar as circunstâncias em que, no dia 11 de fevereiro de 2020, no ..., sito no ..., ..., em Matosinhos, ocorreram os danos no veículo e reboque da Autora e quais as consequências e danos sobrevindos para a Autora em resultado da danificação daquele seu veículo e reboque.

A autora requereu que seja realizada uma perícia ao camião marca Volvo com a matrícula ..-VQ-.. por forma a que o Sr. perito indique quais os danos existentes nesse camião, se a reparação, face à extensão dos danos, reconstitui a situação antes do sinistro e se existe risco do veículo reparado apresentar problemas de funcionamento face à extensão dos danos.

Ora, o acidente em causa nos autos ocorreu em fevereiro de 2020.

Assim, não faz qualquer sentido determinar a realização de uma perícia ao veículo para apurar os danos que o mesmo apresenta atualmente visto que decorreram já mais de 4 anos desde a data do sinistro, pelo que, obviamente, poderão ter sido causados outros danos no veículo e/ou haver já danos agravados na sequência do decurso do tempo.

Acresce que a autora não fica impedida de provar os danos que efetivamente o veículo em causa sofreu no incidente através de outros meios de prova, designadamente, prova testemunhal e documental.

A perceção e apreciação da factualidade ínsita nos temas de prova não exige particulares conhecimentos científicos que justifiquem a realização de uma perícia, não se verificando, assim, um dos requisitos necessários para a realização da perícia requerida.

Com efeito, a apreciação dos danos que sofreu o veículo no incidente de 2020 e quais as consequências desses danos, para a autora, pode ser facilmente alcançada por outros meios de prova, designadamente, através de prova testemunhal, com economia de tempo e de dinheiro.

Por outro lado, quanto à ampliação da perícia requerida pelas rés é inquestionável que os Srs. Peritos não poderão vir aos autos esclarecer quais eram os danos pré-existentes ao incidente do dia 11/02/2020, qual era a condição desse veículo antes do incidente e quais os danos causados no incidente.

E isto porque os mesmos não presenciaram o incidente e, obviamente, que não poderão atualmente distinguir, só pela visualização do veículo, que danos é que o mesmo tinha antes do acidente e depois.

Entendemos, também, que não faz qualquer sentido determinar uma perícia para determinar qual era o valor ou o custo da reparação (com e sem IVA) em fevereiro de 2020 dos danos que foram efetivamente causados pelo incidente do dia 11/02/2020 no camião e qual era o tempo de duração e conclusão (em dias e meses) em fevereiro de 2020 da reparação desses danos, nem qual era o valor de mercado do camião de marca Volvo com a matrícula ..-VQ-.. no dia 11/02/2020 e na condição em que se encontrava nesta data (1) antes e (2) depois do incidente e qual era o valor em novo de um camião do tipo do camião de marca Volvo com a matrícula ..-VQ-.. no dia 11/02/2020.

Com efeito, os Srs. peritos apenas poderão dizer quais os danos que o camião apresenta atualmente e qual o valor que seria necessário para reparar o veículo à data de hoje.

Os mesmos, tal como acima dissemos, não poderão esclarecer que danos é que foram causados no incidente em causa nos autos e, consequentemente, não poderão discriminar qual era o valor da reparação desses danos em fevereiro de 2020.

Por todo o exposto, indefiro a prova pericial (e subsequente ampliação) requerida pelas partes.

Notifique.”.


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DAS ALEGAÇÕES

A A., A..., S.A, vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir a revogação da decisão que indeferiu a prova pericial.

Nota:

Certamente, por lapso ou erro, a apelante alude à decisão de indeferimento das declarações de parte e dos depoimentos de parte.

Não se vislumbra a necessidade de convite a aperfeiçoamento a fim de dilucidar quaisquer dúvidas, pois que este Tribunal não as tem, para efeitos de aferir qual a decisão que a apelante visa atacar com o presente recurso.


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A apelante, A., apresenta as seguintes CONCLUSÕES:

A Autora indicou vários meios de prova entre os quais a prova pericial tendo para o efeito indicado quesitos pertinentes

Sobre tal requerimento foi proferido Douto Despacho que aqui se coloca parcialmente em crise, o qual, muito sumariamente e com consequências nefastos para a Autora recorrente, determinou: (…)

È da parte do despacho: (…) que a aqui recorrente discorda em absoluto, por entender que não deveria ser rejeitado tal meio de prova,

Entendem os aqui recorrentes que não se justifica tal rejeição que lhe é penalizadora, por limitadora do seu direito de prova

A questão que se coloca, é pois a de saber se, à luz do regime vigente, a prova pericial era impertinente ou dilatória

O Douto Despacho indeferiu, no nosso modesto entender de forma ilegítima, o meio de prova quando a mesma devia ter sido admitida

Violando com tal decisão varias normas legais, que no nosso entender impunham uma outra decisão, pois tal meio de prova que pode ser crucial para o processo.

Nomeadamente do art. 411º do CPC, que versa sobre o princípio do inquisitório, e que refere que “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”

Os nºs 1 e 2 do art. 6º do CPC, referente ao Dever de Gestão Processual, que determinam que:

“1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”

10ª

E ainda o principio da cooperação previsto no art. 7º do CPC parece também apontar para a necessidade de conceder às partes a possibilidade de suprir eventuais deficiências

1 - Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.

2 - O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência.

3 - As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 417.º.

4 - Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo.”

11ª

Entende a aqui recorrente que os dois princípios acima assinalados – Do inquisitório e da cooperação - “impõem” ao magistrado que à autora provar factos por essa via

12ª

E que o dever de gestão processual lhe impõe também que determine a sua admissão.

13ª

Coarta de forma ilegítima o direito da Autora/recorrente a demonstrar por todas as formas admissíveis a legitimidade e bondade do seu pedido

14ª

Não é pelo facto de o acidente ter ocorrido em 2020, nem o facto de ser possível idêntica prova através de documentos ou testemunhas que

15º

No caso concreto não parece que o julgador disponha de conhecimentos técnicos para aferir se a reparação do veiculo é susceptivel de reconstituir a situação inicial, ou em concreto saber se a reparação é eficiente de modo a dotar a viatura de iguais características que tinha antes da ocorrência.

16º

A Decisão proferida aqui colocada em crise viola de forma incontornável e inapelável o disposto nos arts. 130º, 388º, 410º, 411º e em especial o art. 476 todos do Código de Processo Civil, acima referidos.

17º

Viola ainda tal decisão ainda o disposto no art. 20º da Constituição de Republica Portuguesa (Acesso ao Direito e Tutela Jurisdicional Efectiva), nomeadamente o consagrado direito a um processo justo e equitativo.

18º

De facto nos termos do referido art. 20º da CRP:

“1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.

3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.

4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.

5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”

19ª

E ainda viola também o nº 1 do art. 6º da Convenção Europeia, que consagra e impõe tal processo equitativo, onde não podem ser descurados os direitos dos reclamantes

20ª

Como tal, os aqui recorrentes, em tempo, vem interpor o competente recurso, quando a este segmento da decisão – indeferimento liminar das declarações de parte e depoimento de parte-, com o qual não se conformam,

21ª

Entendendo que é de Revogar a decisão apelada quanto ao indeferimento das declarações de parte a prestar pelos reclamantes e dos requeridos depoimentos de parte da cabeça de casal;

E na sequência de tal decisão, decidir-se que o Tribunal a quo deve dirigir convite à parte (aqui recorrente) para indicarem o objecto das declarações de parte e depoimentos de parte requeridos.

E determinar que o Tribunal a quo, após tal convite dirigido aos reclamantes para indicarem o objecto das declarações de parte e depoimentos de parte requeridos, e uma vez cumprido tal desígnio profira nova decisão em que se pronuncie sobre a admissibilidade dos respectivos meios de prova.”.


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As RR., B..., S.A. (“B...”) e D..., S.L. (“D...”), apresentaram CONTRA-ALEGAÇÕES, pugnando pela improcedência do recurso.

Concluíram do seguinte modo.

1. Nos termos do artigo 388.º do CC, a prova pericial tem como um dos seus fins a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem e o recurso à mesma fundamenta-se, neste caso, na necessidade de conhecimentos científicos para a perceção ou apreciação de factos.

2. Nos termos do artigo 578.º do CPC, a diligência probatória em causa, a perícia, pode ser rejeitada se for considerada impertinente ou dilatória.

3. No caso vertente, a perceção e apreciação da factualidade ínsita nos temas de prova não exige particulares conhecimentos científicos que justifiquem a realização de uma perícia, não se verificando, assim, um dos requisitos necessários para a realização da perícia requerida.

4. Como o acidente ocorreu em fevereiro de 2020 não faz qualquer sentido determinar a realização de uma perícia ao veículo para apurar os danos que o mesmo apresenta atualmente visto que decorreram já mais de 4 anos desde a data do sinistro, pelo que, obviamente, poderão ter sido causados outros danos no veículo e/ou haver já danos agravados na sequência do decurso do tempo.

5. Acresce que a Autora tem sempre a possibilidade de fazer prova dos danos que efetivamente o veículo sofreu no incidente através de outros meios de prova, designadamente, prova testemunhal, com economia de tempo e dinheiro, e documental, não existindo qualquer violação do corolário previsto no artigo 20.º da CRP nem do n.º 1 do artigo 6.º da Convenção Europeia.

6. Os peritos à data de hoje não poderão esclarecer que danos é que foram causados no incidente em causa nos autos e, consequentemente, não poderão discriminar qual era o valor da reparação desses danos em fevereiro de 2020.

7. Ficou demonstrado nos autos que a perceção e apreciação da factualidade ínsita nos temas de prova não exige particulares conhecimentos científicos que justifiquem a realização de uma perícia, podendo ser feita pelo julgador por apreciação de outros meios de prova.

8. Os Excelentíssimos Senhores Venerandos Desembargadores devem assim manter a decisão do Tribunal a quo que indeferiu a perícia requerida pela Autora porque a mesma é dilatória e desnecessária.

9. Ao proferir despacho de indeferimento da perícia, o Tribunal a quo ao não viola o princípio do Inquisitório previsto no artigo 411.º do CPC de acordo com o qual juiz tem a iniciativa da prova, podendo realizar e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias para o apuramento da verdade, aferindo os pressupostos das mesmas.

10. A rejeição de perícia no caso vertente que é dilatória e desnecessária não viola o princípio do Inquisitório, cabendo sim ao julgador determinar as diligências de prova que sejam úteis e necessárias nos termos da lei e rejeitar as que não forem, como sucede no caso vertente.

11. A decisão de indeferimento da perícia também não viola o princípio da cooperação previsto no artigo 7.º do CPC que estipula que todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva, não estando em causa o mesmo com o indeferimento da perícia. A rejeição da perícia em nada se relaciona com aquele princípio.

12. O dever de gestão processual previsto no artigo 6.º do CPC obriga o Juiz a dirigir ativamente o processo e a providenciar pelo seu andamento célere, mas obviamente o indeferimento da perícia não demonstra o contrário. Pelo contrário, indeferir a perícia requerida pela Autora que se revela dilatória e desnecessária, demonstra cumprimento escrupuloso de boa gestão processual e de tal princípio normativo.

13. O facto de o Tribunal a quo indeferir a perícia não coarta de forma ilegítima o direito da Autora de demonstrar todas as formas admissíveis a legitimidade e bondade do pedido, o que poderá fazê-lo por via de outros meios de prova.

14. A Autora requereu logo com a apresentação da Petição Inicial (julho 2023 ou há um ano) a realização de perícia, onde indicou logo os quesitos a responder em sede de perícia, mas sem nomear perito, bem como não o fez no seu requerimento probatório.

15. O tempo ou a oportunidade que a Autora tinha para indicar o seu perito já passou, estando precludida a faculdade de o fazer conforme o disposto nos artigos 475.º n.º 1 e 476.º e artigo 468.º n.º 1, alínea b) e n.º 3 todos do CPC, levando a que a perícia fique sem efeito.

16. Mais, caso a perícia devesse prosseguir na forma singular com o perito indicado pelas Rés, ou em forma colegial, com o perito cuja indicação há muito deveria ter ocorrido pela Autora, a ampliação requerida pela Autora deve ser rejeitada, devendo apenas ser admitida a ampliação das Rés, que se reitera.

17. A Autora, ao requerer a realização da perícia, deveria fazê-lo indicando desde logo a totalidade do objeto da perícia que pretendia ver esclarecida pelos Senhores Peritos, sob pena de rejeição, cabendo depois às Rés, e a convite, ampliarem, querendo, o objeto da perícia, tudo por força do disposto no artigo 476.º n.º 1 do CPC, o que fizeram em tempo.

18. A Autora pretende que os peritos se debrucem sobre o valor ou o custo da reparação, sobre a sua duração e sobre o valor de mercado do veículo, usado e novo, vigentes à data de hoje, devendo tal ampliação ser rejeitada.

19. A eventual situação a reconstituir reporta-se ao incidente de Fevereiro de 2020, sendo este o momento temporal onde se situa a realidade a reconstituir e sendo este o hiato de tempo em que importa determinar qual seria o valor da reparação, a sua duração e o valor de mercado do veículo, novo e usado, vigente àquela data, e não quaisquer valores vigentes atualmente.

20. Se os valores atuais fossem usados pelo Tribunal a quo para determinação da medida da responsabilidade, e fossem estes manifestamente diferentes e mais elevados dos que os estavam vigentes em 2020, seria desrazoável, ilegal e ilegítimo fazer repercutir sobre as Rés esse custo mais elevado, que apenas resultou e decorreu do fato de a Autora não ter reparado o veículo logo na altura, o que demoraria poucos meses a concluir, e seria feito a um custo muito menor, como o deveria ter feito nos termos do artigo 562.º do CC.

21. Assim, ainda que os Exmos. Desembargadores admitam a perícia revogando a decisão do Tribunal a quo, o pedido de ampliação do objeto da perícia requerido pela Autora deverá ser indeferido, seja porque a Autora, que requereu a perícia, não pode ampliar objeto que foi já ampliado pelas Rés, parte que não a requereu, seja porque o objeto ampliado não releva para a discussão dos autos, devendo apenas admitir-se a ampliação levada a cabo tempestivamente pelas Rés, que se reitera.


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Neste Tribunal foram as partes notificadas do seguinte despacho:

A fim de evitar decisão surpresa, ordeno a notificação da apelante e apeladas, de que se irá conhecer do objecto do recurso com fundamento no caso julgado formal – artigo 652.º, n.º 1, 3.º, n.º 3 e 655.º do Código de Processo Civil (a prova pericial foi admitida por despacho não recorrido – cfr. decisão de 13.06.2024).

No caso dos autos, será objecto de apreciação a existência de caso julgado, que é fundamento não suscitado pelas partes nesta instância de recurso.

Em consequência, ordena-se a audição das partes.

As apelantes vieram pronunciar-se pela não verificação de caso julgado, argumentando que tal questão (caso julgado) não pode ser objecto de conhecimento, por extravasar o objecto do recurso.

Por sua vez a apelada veio pronunciar-se no sentido do caso julgado ser de conhecimento oficioso.


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II-FUNDAMENTAÇÃO.


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, as questões a decidir, são as seguintes:

A) A decisão conheceu de questão que já havia sido conhecida, verificando-se caso julgado

B) Em caso negativo, verificação dos requisitos de indeferimento/rejeição do meio de prova pericial – saber se é impertinência e dilatória.

Como decorrência dos princípios do inquisitório e da cooperação impunham que fosse admitido tal meio de prova.


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OS FACTOS


Os factos com interesse para a decisão da causa e a ter em consideração são os constantes no relatório, e bem como aqueles que constam da decisão ora em crise.

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DE DIREITO.

A)


A decisão conheceu de questão que já havia sido conhecida, verificando-se caso julgado

Em primeiro lugar, importa afirmar, que não há dúvidas que o caso julgado é uma daquelas questões, que é de conhecimento oficioso por parte do Tribunal, qualquer que seja a instância. Nos termos dos artigos 579.º a 581.º do Código de Processo Civil, de modo imperativo o Tribunal oficiosamente tem de conhecer destas questões, não estando dependente da alegação das partes (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil. Tanto assim, que independentemente do valor da causa e ada sucumbência é sempre admissível recurso com fundamento na ofensa de caso julgado (artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil).

Deste modo, impõe-se a este Tribunal o seu conhecimento.

O artigo 620.º do Código de Processo Civil com a epígrafe “Caso julgado formal”, dispõe:

1 - As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.

2 - Excluem-se do disposto no número anterior os despachos previstos no artigo 630.º.

Por sua vez, o artigo 625.º do Código de Processo Civil com a epígrafe, Casos julgados contraditórios, dispõe o seguinte:

1 - Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.

2 - É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual. “.

Pressuposto essencial do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida seja objecto de repetida decisão. Se assim for, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão. “, in Ac do Supremo Tribunal de Justiça 1306/14.7TBACB-T.C1.S1, de 08.03.2018, relatado pelo Cons FONSECA RAMOS.

No mesmo sentido Ac Tribunal da Relação do Porto 1320/14.2TMPRT.P1, de 17.05.2022, relatada pelo Des JOÃO RAMOS LOPES, “O caso julgado consubstancia-se ‘na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário’, tornando indiscutível o conteúdo da decisão “.

Quanto ao que seja caso julgado socorremo-nos dos seguintes ensinamentos:

1. A repetição da causa ocorre quando é proposta uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, sendo essa tripla identidade crucial para a verificação de alguma das exceções dilatórias de caso julgado e de litispendência. Contudo, apesar da aparente simplicidade do preceito, que foi ao ponto de definir cada um dos elementos (subjetivo e objetivo) da instância, a sua aplicação suscita enormes dificuldades, que resultam bem transparentes da leitura de arestos jurisprudenciais e de elementos doutrinais (RC 12-12-17, 3435/16).

2. A identidade de sujeitos não supõe a mera identidade física ou nominal, verificando-se ainda quando as partes sejam as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, ou seja, não apenas aquelas que intervieram formalmente no processo, mas ainda, designadamente, "aquelas que assumiram, mortis causa ou inter vivos, a posição jurídica de quem foi parte na causa depois de a sentença ter sido proferida e transitada em julgado" (Maria José Capelo, A Sentença Entre a Autoridade ca Prova, p. 324). (…)

4. Também ocorre a identidade dos sujeitos quando os mesmos são portadores do mesmo interesse substancial quanto à relação jurídica em causa (STJ 9-7-15, 896/09), solução que também foi assumida em STJ 22-2-15, 915/09, onde se refere que "para averiguar o preenchimento do requisito da identidade de sujeitos, deve atender-se, não a critérios formais ou nominais, mas a um ponto de vista substancial, ou seja, ao interesse jurídico que a parte concretamente atuou e atua no processo". A identidade de sujeitos, com os limites assim definidos, constitui o pressuposto básico para a invocação quer da exceção de caso julgado (vertente negativa), quer para a afirmação dos limites do caso julgado (vertente positiva). Não é possível de modo algum extrair efeitos de uma decisão judicial relativamente a um sujeito que não possa considerar-se vinculado nos termos anteriormente referidos.

5. A identidade de pedidos afere-se pela circunstância de em ambas as ações se pretender obter o mesmo efeito prático-jurídico, não sendo de exigir uma adequa ção integral das pretensões (ST) 24-2-15, 915/09, STJ 14-12-16, 219/14 e STJ6-6-00, 00A327). Assim, se a forma como o autor se expressou na petição inicial e o modo como tal se refletiu na sentença são importantes para a aferição da identidade do pedido que foi formulado e apreciado, não deixa de ser importante o que, numa perspetiva substancial, está contido explicitamente e, por vezes, até implicitamente nessas formulações, seguindo sempre um critério orientador segundo o qual, para além de ser dispensável a repetição da mesma causa entre os mesmos sujeitos, deve vedar-se a possibilidade de ocorrer, com a sentença que venha a ser proferida, uma contradição decisória.

6. A identidade de pedidos pode, aliás, ser apenas parcial e, ainda assim, ser bastante para que se considerem verificadas a exceção de litispendência ou de caso julgado. Por exemplo, em face de uma anterior sentença que julgou improcedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre um determinado prédio, com base num determinado fundamento (ação de simples apreciação positiva), existe repetição da causa se for proposta uma ação de reivindicação na qual, com base no mesmo fundamento, se pretenda ainda a condenação do réu na restituição do bem (cf. sobre a delimitação e características do pedido, cf. anot. aos arts. 3º, 1869 e 552).” in Código de Processo Civil Anotado, ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS PIRES DE SOUSA, 2018, em anotação ao artigo 581.º do Código de Processo Civil.

LEBRE DE FREITAS, RIBEIRO MENDES E ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, 3ª ed., em anotação ao artigo 629.º, pág., 28, afirmam:

A ofensa de caso julgado, por seu turno, pressupõe que a decisão impugnada tenha contrariado outra decisão anterior, já transitada em julgado (arts. 619 e 620; cf. arts. 580 e 581), não se aplicando a norma com fundamento em o acórdão recorrido se ter baseado em ofensa do caso julgado que o recorrente pretenda que não se verificou.

No ac. do STJ de 18.12.13 (ABRANTES GERALDES), proc. 1801/10, decidiu- -se que ocorre ofensa de caso julgado quando a Relação, no âmbito do recurso de apelação interposto pelo autor, haja modificado ex officio o decidido na 1.ª instância, objeto de recurso, em termos que se revelem mais desfavoráveis para o apelante, com desrespeito pelo que dispõe o art. 635-5. Ver ainda os acs. do STJ de 17.11.15 (SEBASTIÃO POVOAS), proc. 34/12, e de 15.2.17 (NUNES RIBEIRO), proc. 2623/11.

Feita estas precisões, voltando ao caso dos autos, é de concluir que a questão ora suscitada pela apelante, tem que ser decidida pela ocorrência de caso julgado formal.

Na realidade, a recorrente na fase do saneamento discordando do decidido interpôs recurso. A final não teve vencimento, pelo que se impõe o que antes foi decidido. Na realidade, o Tribunal a quo decidiu, em momento próprio tendo já proferido decisão.

Face aos considerados, ponderando os ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais referidos, não há dúvidas que a decisão que se mantém no processo é aquele proferido aquando do despacho saneador e de admissão dos meios de prova, de a 06.05.2024 – transcrito supra.

Esta decisão foi devidamente notificada às partes.

Deste despacho, nenhuma das partes, veio insurgir-se. Tanto mais, que ambas as partes apresentaram pretensões quanto a objecto pericial e natureza da perícia (singular ou colegial).

Portanto, tal decisão transitou em julgado.

Em conclusão, tendo transitado em julgado a decisão de 06.05.2024, em consequência, é tal decisão que se impõe no processo com força de caso julgado.

Questões distintas e não objecto deste recurso dizem respeito a saber se estamos perante perícia singular ou colectiva e qual o objecto pericial.

A pretensão da apelante terá de vencimento, ainda que por distinto fundamento, impondo-se a revogação da decisão que indeferiu a prova pericial.


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B)


Em caso negativo, verificação dos requisitos de indeferimento/rejeição do meio de prova pericial – saber se é impertinência e dilatória.

Como decorrência dos princípios do inquisitório e da cooperação impunham que fosse admitido tal meio de prova.

Em consequência, do atrás decidido, perante a revogação da decisão proferida sobre o meio de prova pericial, nada mais cumpre apreciar, pois perdeu razão de ser o conhecimento das questões suscitadas, ie, haverá que ocorrer decisão quanto à natureza da perícia, singular ou colegial, e bem como a fixação do seu objecto (conhecimento dos pedidos de ampliação).


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III DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão de indeferimento da prova pericial, devendo os autos prosseguir nos termos supra apontados.

Custas pelas apeladas (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).


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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.

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Porto, 25 de Fevereiro de 2025
Alberto Taveira
Anabela Miranda
Pinto dos Santos
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.