I - A apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante (obrigatoriamente autorizada ou ordenada por juiz) pressupõe que tais dados sejam encontrados, armazenados nesse sistema informático, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a sistema informático; e, para além disso, que se afigurem de grande interesse para a descoberta da verdade ou da prova.
II - A ordem ou autorização judicial de apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, a que alude o art.º 17.º da Lei do Cibercrime, não tem de ser prévia à pesquisa de dados informáticos ordenada/autorizada pela autoridade judiciária (incluindo pelo MP) ou realizada pelos órgãos de polícia criminal, sem prévia autorização da autoridade judiciária, em determinadas situações urgentes.
III - Constituindo a reclamação para a conferência o meio processual previsto [arts. 417.º, n.º 8, e 419.º, n.º 3, al. a), ambos do CPP] para o recorrente reagir contra a decisão sumária do relator, não pode a mesma reclamação exorbitar o âmbito da apreciação do recurso, cujo objeto define-se e delimita-se pelas conclusões que o recorrente haja extraído da respetiva motivação. A reclamação para a conferência não pode ser utilizada pelo recorrente para alterar o objeto do recurso interposto e já apreciado pelo relator na decisão sumária.
Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I. Relatório
Não se conformando com a decisão sumária proferida nos presentes autos, o arguido/recorrente veio dela reclamar para a conferência, invocando os fundamentos condensados no seguinte conjunto de conclusões:
«I - Segundo o entendimento preconizado na decisão reclamada, o procedimento legal operado nos presentes autos, atinente à pesquisa em sistema informático, e consequente apreensão, nesse contexto, de mensagens de correio eletrónico e registo de comunicações de natureza semelhante, foi perpetrado de acordo com as normas em vigor. Para tanto, fundamenta a decisão reclamada que “[o]ra, analisados os autos, verificamos que o procedimento legal atrás descrito foi estritamente observado pelas autoridades judiciárias (MP e JIC). Na verdade, o telemóvel do arguido foi apreendido pelo OPC - conjuntamente com o produto estupefaciente encontrado na sua posse (cf. O auto de apreensão fls. 6) -, sendo, logo nesse dia, a apreensão validada por despacho proferido pelo MP (cf. Fls. 28), tendo esta autoridade judiciária autorizado e determinado que se procedesse a uma pesquisa de tal sistema informático, pelo prazo máximo de 30 dias, devendo o resultado de tal diligência ser reduzido a auto (cf. o despacho de fls. 35, igualmente datado de 16/03/2022)”.
II - Com todo o devido e merecido respeito pelo entendimento aduzido na decisão sumária, o problema começa precisamente neste segmento do procedimento que ora se transcreveu.
III - A competência do Ministério Público para a realização de uma pesquisa informática é indiscutível - art. 16.º da Lei do Cibercrime. Mas se o Ministério Público antevê que possam ser encontradas mensagens de correio eletrónico e/ou registos de comunicações de natureza
semelhante, terá de obter previamente autorização judicial para que então seja efetuada a respetiva apreensão dessas mensagens e registos. Nessa situação, com todo o respeito, não pode o Ministério Público ordenar a extração daqueles concretos registos de comunicações e a respetiva gravação em CD´S, selados e estando os dados encriptados, para posteriormente serem apresentados ao Juiz de Instrução Criminal para que autorize a respetiva apreensão e junção aos autos.
IV - Com efeito, outro entendimento que passe nomeadamente por considerar admissível o procedimento supra resultaria numa forma de contornar o regime legalmente previsto para a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, pois nesta hipótese, a intervenção do Juiz de Instrução traduzir-se-ia, na prática, na validação da apreensão já efetuada por determinação do Ministério Público, solução que o Tribunal Constitucional manifestamente afastou no Acórdão n.º 687/2021.
V - De facto, após um estudo naturalmente exaustivo, exarou o Tribunal Constitucional no citado acórdão n.º 687/2021: “[o] correio eletrónico é, pois, uma realidade complexa, convocando elementos atinentes à proteção jurídica da correspondência postal, bem como elementos relativos à tutela das telecomunicações, como se confirma pelas hesitações, divergências doutrinais, e evolução das conceções dogmáticas e jurisprudenciais sobre a aplicação a este tipo de mensagens das disposições processuais penais relativas quer à apreensão de correspondência, quer à apreensão de documentos, quer, ainda, à intercetação de telecomunicações.
VI - De toda a maneira, é importante notar que está em causa, na apreensão das mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante, acima de tudo, o acesso a dados de conteúdo, em termos análogos aos que estão em causa na correspondência; porém, inclui-se igualmente o acesso a dados de tráfego, em termos muito mais amplos do que estão em causa na comunicação postal.
Efetivamente, a simples visualização de uma “caixa de correio eletrónico”, sem que sequer se abra cada uma das mensagens individuais aí gravadas, pode permitir o conhecimento não apenas de elementos respeitantes à concreta comunicação ou mensagem (como, por exemplo, o “assunto”), como também de elementos relativos ao emissor e destinatário das mensagens, número de interações comunicativas, suas data e hora, volume de dados transmitidos, ou IP de origem, que se configuram como dados de tráfego. Ou seja, se no caso de apreensão de correspondência postal passa a ser do conhecimento das autoridades o remetente, o destinatário e a data do carimbo de correio, no caso do correio eletrónico a informação de tráfego disponível é bastante mais vasta, sendo possível saber, por exemplo, a data e hora específicas a que um e-mail foi enviado, se continha, ou não, documentos anexos, se se dirigia a mais destinatários (e quais) e se constituiu resposta a ou reencaminhamento de mensagens anteriores.
VII - Por outro lado, é verosímil pensar que, em boa parte dos casos, a escolha das mensagens de correio eletrónico a apresentar ao juiz, para o controlo ex post previsto no n.º 4 da nova versão artigo 17.º da Lei do Cibercrime, exigirá algum tipo de pré-seleção por parte do Ministério Público, com recurso não só a dados de tráfego (emissor, destinatário), mas também a buscas através de palavras-chave que permitam delimitar o conjunto de mensagens relevantes através do seu assunto ou de trechos de conteúdo significativos. Nestes termos, e se é verdade que a intervenção nos direitos fundamentais aqui em causa não se transformou, por força das normas questionadas, num espaço livre de controlo jurisdicional, tal não evitará, porém, eventuais apreensões abusivas, nem a tomada de conhecimento indevida de dados de conteúdo e de tráfego relativos ao correio eletrónico de eventuais arguidos ou de terceiros, por parte do Ministério Público ou dos Órgãos de Polícia Criminal. Tais intervenções no domínio de direitos fundamentais não são passíveis de integral reparação, quando abusivas – ao contrário do que acontece, por exemplo, na maioria dos casos, com a apreensão de objetos, que podem ser devolvidos incólumes ao legítimo proprietário –, na medida em que a violação de privacidade que podem implicar, quer quanto à violação do sigilo das comunicações, quer quanto à reserva de dados pessoais, não pode ser desfeita. O que o Ministério Público ou o Órgão de Polícia Criminal atuante viu, indevidamente, não pode deixar de ser visto, mesmo que a informação não seja junta aos autos”.
VIII - A decisão sumária não ponderou que, no caso dos presentes autos, conforme se colhe do despacho proferido pelo Ministério Público (ref. 434601098, proferido a 16-03-2022), esta autoridade judiciária, pela qual, note-se, se nutre estima e respeito, determinou o seguinte: “[s]olicite à Guarda Nacional Republicana a realização das seguintes diligências: i. que averigue e informe em prazo não superior a 30 dias de testemunhas que tenham conhecimento que o arguido venda produto estupefaciente, designadamente consumidores. ii. que proceda à pesquisa dos telemóveis apreendidos, redigida a auto, nomeadamente, dos números constantes nas agendas telefónicas, todas as chamadas efetuadas e recebidas, todas as mensagens escritas, enviadas e recebidas, e eventual dados constantes na memória do aparelho, com relevância para o processo, a qual se autoriza nos termos do disposto nos arts. 1.º e 15.º da Lei n.º 109/2009, de 15.09.
O presente despacho de autorização tem nos termos do disposto no artigo 15.º, n.º 2 da referida lei, o prazo de 30 dias, sem prejuízo de vir a ser prorrogado a solicitado da Guarda Nacional Republicana, caso não consiga proceder a tais exames no prazo estabelecido”.
IX - Por isso, em nossa humilde opinião, é inequívoco que estando em causa a eventual apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, é ao juiz de instrução, na fase de inquérito, a quem compete em exclusivo autorizar ou ordenar previamente as mencionadas apreensões. Efetivamente, é o próprio n.º 4 do art. 32.º da Lei Maior que prevê: “[t]oda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos atos instrutórios que se não prendam diretamente com os direitos fundamentais”.
X - E foi precisamente partindo desta lógica que o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência ao sufragar: “[n]a fase de inquérito, compete ao juiz de instrução ordenar ou autorizar a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de outros registos de comunicações de natureza semelhante, independentemente de se encontrarem abertas (lidas) ou fechadas (não lidas), que se afigurarem de ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, nos termos do art. 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15/09.” (nota de rodapé 7: Ac. STJ, N.º 10/2023, datado de 11/10/2023)
XI - Em abono do que humildemente temos vindo a tecer e por forma a que se perceba que, realmente, é só o Juiz de Instrução que, por força do princípio da reserva do juiz (art. 32.º n.º 4 da CRP), pode ordenar previamente a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, vertemos o decido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 387/2019:
XII - “Antes do mais cumpre notar que entre as reservas de juiz no inquérito para intervenção restritiva em direitos fundamentais que se encontram previstas no CPP é possível distinguir a reserva para atos materiais (reserva de atos a praticar pelo juiz) e a reserva de atos decisórios (reserva de decisão judicial). Dentro dos atos decisórios é possível identificar a ordem judicial (ex. artigo 179.º, n.º 1, CPP), a autorização judicial (ex. artigo 179.º, n.º 1, CPP); a concordância judicial (ex. artigo 281.º, n.º 1, do CPP) e a confirmação (ou convalidação) judicial (ex. artigo 174.º, n.º 6, ou artigo 252.º, n.º 3, CPP ou artigo 4.º, n.º 5 da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro).
XIII - Em função do momento da intervenção do juiz podemos distinguir reservas prévias (primárias) e reservas subsequentes (secundárias). As primeiras traduzem a obrigatoriedade de intervenção do juiz em momento anterior à realização da medida. Nas segundas, diferentemente, o juiz intervém já depois do início da sua execução.
XIV - Na configuração que constitucionalmente tomam, as reservas de juiz apresentam-se como concretizações dos direitos fundamentais e encontram a sua razão de ser no estatuto de independência que os juízes têm e na distância que mantêm relativamente à atividade investigatória.
XV - Subjacente à transferência de competências para autorizar certas medidas de investigação do titular do inquérito para um juiz, encontra-se a garantia de neutralidade judicial. A independência da magistratura judicial e o seu maior distanciamento em relação à atividade investigatória, conferem ao juiz de instrução uma maior disponibilidade funcional e estatutária para, com objetividade, decidir os limites toleráveis do sacrifício dos direitos fundamentais em favor do interesse da realização da justiça penal».
XVI - Como consabido, o Ministério Público e o Juiz de Instrução têm natureza e funções substancialmente diferentes, decorrentes dos seus estatutos, do estatuído na Constituição e na própria lei processual penal.
XVII - Destarte, e por ter sido esse o entendimento alcançado na decisão sumária proferida, deverá ser declarada a inconstitucionalidade da norma dos arts. 15.º, 16.º e 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro quando interpretadas no sentido de poder o Ministério Público determinar, sem a prévia autorização do Juiz de Instrução, a pesquisa dos telemóveis apreendidos, redigida a auto, nomeadamente, dos números constantes nas agendas telefónicas, todas as chamadas efetuadas e recebidas, todas as mensagens escritas, enviadas e recebidas, e eventual dados constantes na memória do aparelho (ou seja, a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante) de um cidadão arguido, por violação dos direitos fundamentais à inviolabilidade da correspondência e das comunicações (art. 34.º n.º 1 da CRP), à proteção dos dados pessoais no âmbito da utilização informática (art. 35.º n.º 1 e 4 da CRP), enquanto refrações específicas do direito à reserva de intimidade da vida privada (art. 26.º n.º 1 da CRP) em conjugação com o princípio da proporcionalidade (art. 18.º n.º 2 da CRP) e, ainda, por violação do art. 32.º n.º 4 da CRP.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXAS. MUI SABIAMENTE SUPRIRÃO, PELO FACTO DO RECURSO INTERPOSTO NÃO SE MOSTRAR MANIFESTAMENTE IMPROCEDENTE, DEVERÁ A PRESENTE RECLAMAÇÃO SER ATENDIDA, TUDO COM AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS!
Deverá, ainda, ser declarada a inconstitucionalidade das normas dos arts. 15.º, 16.º e 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro quando interpretadas no sentido de poder o Ministério Público determinar, sem a prévia autorização do Juiz de Instrução, a pesquisa dos telemóveis apreendidos, redigida a auto, nomeadamente, dos números constantes nas agendas telefónicas, todas as chamadas efetuadas e recebidas, todas as mensagens escritas, enviadas e recebidas, e eventual dados constantes na memória do aparelho (ou seja, a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante) de um cidadão arguido, por violação dos direitos fundamentais à inviolabilidade da correspondência e das comunicações (art. 34.º n.º 1 da CRP), à proteção dos dados pessoais no âmbito da utilização informática (art. 35.º n.º 1 e 4 da CRP), enquanto refrações específicas do direito à reserva de intimidade da vida privada (art. 26.º n.º 1 da CRP) em conjugação com o princípio da proporcionalidade (art. 18.º n.º 2 da CRP) e, ainda, por violação do art. 32.º n.º 4 da CRP.
A questão fundamentalmente suscitada pelo arguido/reclamante prende-se com o invocado desacerto da decisão sumária proferida nos presentes autos, no segmento relacionado com a validade da prova digital obtida a partir da pesquisa dos dados informáticos constantes do telemóvel do arguido, previamente apreendido.
Escreveu este Tribunal, na decisão sumária agora reclamada, o seguinte (segue transcrição parcial):
«Considera o arguido, no seu recurso, que as mensagens alegadamente trocadas com pretensos consumidores de produtos estupefacientes, por via de plataformas como o «Facebook», configuram prova proibida, nos termos estatuídos no art.º 126.º, n.º 3 do CPP, na medida em que a apreensão dos seus telemóveis - e extração das mensagens nela constantes – não foi precedida de necessária autorização pelo juiz de instrução criminal competente.
Vejamos se lhe assiste razão, analisando as normas legais pertinentes e as especificidades do caso concreto.
De acordo com a jurisprudência obrigatória fixada pelo STJ, no acórdão n.º 10/2023, de 10 de novembro, «Na fase de inquérito, compete ao juiz de instrução ordenar ou autorizar a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de outros registos de comunicações de natureza semelhante, independentemente de se encontrarem abertas (lidas) ou fechadas (não lidas), que se afigurem ser de grande interesse para descoberta da verdade ou para a prova, nos termos do art.º 17.º, da Lei n.º 109/2009, de 15/09 (Lei do Cibercrime)».
O artigo 17.º da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15/9), sob a epígrafe «Apreensão de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhante» estabelece que «Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal».
A Lei do Cibercrime é uma legislação especial que veio estabelecer disposições penais materiais e processuais relativas ao domínio do cibercrime e da recolha de prova em suporte eletrónico para fazer face a novas realidades e inerentes especificidades, tais como a dos dados informáticos e do correio eletrónico, justificando-se o sacrifício do interesse individual numa comunicação livre de interferências alheias, em prol do exercício do “ius puniendi” estadual.
Contudo, e como se observa no acórdão do TRL de 11/5/2023 [1], a apreensão (mesmo gozando de legitimidade formal pela existência de prévia autorização ou ordem judicial de apreensão) não legitima, “per si”, a valoração dos elementos probatórios assim conseguidos. Para o efeito, é ainda necessário que o Juiz seja a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo apreendido, conhecimento esse que não tem de ser obrigatoriamente completo/total.
Depois, os elementos apreendidos podem ser enviados pelo Juiz ao Ministério Público para que este, dada a estrutura acusatória do processo penal, emita proposta/parecer sobre a relevância, ou não, para a descoberta da verdade ou para a prova dos factos em investigação. Então o Juiz estará em condições de melhor aferir qual o conteúdo relevante e ponderar da necessidade, ou não, da sua junção aos autos como meios de prova e, em caso afirmativo, com a inerente compressão de direitos constitucionais.
É, assim, inequívoco que a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante compete exclusivamente ao juiz de instrução, na sua qualidade de juiz das liberdades e de garante dos direitos fundamentais dos diversos intervenientes no processo penal. Além disso, a lei impõe, sob pena de nulidade, que o juiz de instrução tome conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida (cf. os artigos 179.º, n.º 3 e 268.º, n.º 1, d), ambos do CPP).
Contudo, e como bem salienta a magistrada do Ministério Público na resposta ao recurso, a apreensão de telemóveis e de equipamentos semelhantes é realidade diversa da apreensão dos dados neles contidos, incluindo as mensagens de correio eletrónico e registos de comunicações semelhantes, pois a apreensão de objetos, nos termos do artigo 178.º e ss. do Código de Processo Penal, não tem apenas por fim a recolha de prova, mas também abarca a apreensão de objetos que possam vir a ser declarados perdidos a favor do Estado por constituírem instrumentos da prática do crime.
Deste modo, a apreensão do aparelho, que deve ser feita em conformidade com o artigo 178.º do Código de Processo Penal, distingue-se claramente da apreensão das mensagens que nele se contêm, regulada no artigo 17.º da Lei do Cibercrime, porque a primeira ocorre antes da verificação da existência das mensagens de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, enquanto a segunda pressupõe a comprovação dessa mesma existência.
A apreensão de telemóveis, podendo ser efetuada por um órgão de polícia criminal, como a GNR, está sujeita a validação por uma autoridade judiciária no prazo de 72 horas (artigo 178.º, n.ºs 1, 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal), autoridade esta que não é apenas o juiz de instrução criminal, mas, também, o Ministério Público (artigo 1.º, alínea b) do Código de Processo Penal).
Uma vez validada a apreensão dos telemóveis pela autoridade judiciária, independentemente do destino que a tais objetos, enquanto eventuais instrumentos dos crimes, lhes possa vir a ser dado, pode o Ministério Público determinar que se proceda à pesquisa de dados que neles, eventualmente, se contenham, nos termos do artigo 15.º da Lei do Cibercrime. Após, terá de requerer ao Juiz de instrução, nos termos do artigo 17.º da mesma lei, a apreensão de dados de correio eletrónico e de registos de comunicações de natureza semelhante, que venham a ser detetados no decurso de tais pesquisas e se mostrem relacionados com a prática dos crimes em investigação ou que possam servir a prova, com cumprimento do regime da apreensão de correspondência previsto no artigo 179.º Código de Processo Penal [2].
Ora, analisados os autos, verificamos que o procedimento legal atrás descrito foi estritamente observado pelas autoridades judiciárias (MP e JIC). Na verdade, o telemóvel do arguido foi apreendido pelo OPC – conjuntamente com o produto estupefaciente encontrado na sua posse (cf. o auto de apreensão de fls. 6) -, sendo, logo nesse dia, a apreensão validada por despacho proferido pelo MP (cf. fls. 28), tendo esta autoridade judiciária autorizado e determinado que se procedesse a uma pesquisa de tal sistema informático, pelo prazo máximo de 30 dias, devendo o resultado de tal diligência ser reduzido a auto (cf. o despacho de fls. 35, igualmente datado de 16/3/2022).
Nessa sequência, em relatório datado de 24/3/2022 informava a autoridade policial que «No decorrer do exame foram encontradas mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, pelo que as referidas mensagens foram exportadas sem a sua leitura ou visualização para o Exame nº 537/2022, gravado num suporte digital autónomo, que foi devidamente selado para apresentação à Autoridade Judiciária» (cf. documento constante de fls. 87 a 93), levando o Ministério Público a determinar, por despacho de 25/10/2022, que os autos fossem remetidos «ao Sr. Juiz de Instrução Criminal, a quem se requer se digne tomar conhecimento dos conteúdos e ponderar, e decidir, se a junção aos autos será relevante para a descoberta da verdade ou para a prova dos factos em investigação» (cf. fls. 94).
Procedeu-se à abertura dos suportes informáticos (DVD) que se encontravam selados, no âmbito de diligência designada para o efeito e presidida pelo JIC, que deles declarou tomar conhecimento, como resulta do teor do auto constante de fls. 101.
Após análise do «relatório de análise a conteúdos (análise a aparelhos telefónicos)» elaborado pelo OPC (junto de fls. 122 a 178 dos autos), nos moldes previamente determinados pelo JIC, foi por este proferido o despacho, datado de 9/2/2023, com o seguinte teor: «Tendo em conta que no equipamento analisado se encontram elementos, a que alude o relatório do OPC sob a referência 345695515, com grande interesse para a descoberta da verdade e para a prova dos factos investigados (atinentes à prática de crime tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos arts. 21.º, nº1, e 25.º do DL 15/93, de 22/01), autoriza-se a apreensão e junção aos autos de tais elementos, nos termos do art. 17.º da Lei 109/2009, de 15/09, e 179.º do C.P.P. Devolva os autos ao Ministério Público».
Mostra-se, assim, inequívoco que a apreensão dos elementos contidos no telemóvel apreendido ao arguido, com relevo para a prova dos factos e descoberta da verdade, foi precedida da necessária autorização judicial, tendo sido preservada a sua integridade até que deles o JIC, em primeira mão, tomou conhecimento.
Não se verifica, assim, qualquer nulidade e consequente proibição de prova, sendo a prova digital obtida a partir da apreensão do telemóvel do arguido/recorrente perfeitamente válida e suscetível de valoração pelo tribunal».
Como é salientado no AUJ n.º 10/2023, o regime legal da apreensão de correspondência e, em particular do correio eletrónico, contende com o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, concretizado nos termos do artigo 34.º n.º 4, da C.R.P., que consagra uma proibição de "ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal". Por isso, a apreensão de correio eletrónico e de outros registos de comunicações de natureza semelhante terá de ser sempre autorizada ou ordenada pelo juiz de instrução, pelo que, sendo encontradas num sistema informático ou em suporte autónomo legitimamente acedidos, mensagens de correio eletrónico ou realidades análogas cuja aquisição tenha grande interesse para a investigação e descoberta da verdade, terá de ser requerida ao juiz autorização para a sua apreensão.
Com efeito, a norma prevista do artigo 17.º da Lei do Cibercrime (LCC) não deixa dúvidas quanto à competência judicial da autoridade que autoriza ou ordena a diligência processual e, caso houvesse dúvidas, os artigos 179.º, n.º 1 e 269.º, n.º 1, alínea d), do CPP, que se aplica subsidiariamente a este regime, são claros quanto à competência para autorizar a apreensão de correio eletrónico e de registos de comunicação de natureza semelhante atribuída, de modo, exclusivo ao juiz de instrução na fase de inquérito, na sua qualidade de «juiz das liberdades».
O princípio da reserva de juiz é expresso e tem sido reiteradamente salientado pela doutrina e pela jurisprudência dos tribunais superiores, não suscitando, por isso, qualquer dúvida.
A divergência com a decisão sumária proferida nos autos, assinalada pelo reclamante, prende-se unicamente, e se bem compreendemos, com a circunstância de saber se a ordem/autorização judicial de apreensão da prova digital [3] em questão deveria ser prévia ou, pelo menos, contemporânea da pesquisa de dados informáticos prevista no art.º 15.º da Lei do Cibercrime, cuja competência não é exclusiva do juiz, podendo igualmente ser determinada pelo Ministério Público na fase de inquérito (tal como deixámos assinalado na decisão objeto da reclamação e o recorrente/reclamante reconhece – cf. conclusão XXI da motivação do recurso).
Ora, apesar de se reconhecer que a remissão para o regime de apreensão de correspondência previsto no C.P.P. não é isenta de dificuldades e tem gerado dúvidas, quer na doutrina quer na jurisprudência – levando o STJ a afirmar, no mencionado AUJ, que «não sendo a lei totalmente clara, dada a diversidade de regimes que se sobrepõem, levantando problemas de conjugação, deveria merecer, no futuro, uma especial atenção, tendo em vista uma desejável clarificação» - consideramos inexistir fundamento para modificar a decisão sumária proferida.
Com efeito, o artigo 17.º da Lei do Cibercrime – sob a epígrafe «Apreensão de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhante» - estabelece que, «Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal».
A apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante (obrigatoriamente autorizada ou ordenada por juiz) pressupõe, assim, que tais dados sejam encontrados, armazenados nesse sistema informático, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a sistema informático; e, para além disso, que se afigurem de grande interesse para a descoberta da verdade ou da prova.
Em nenhum momento o legislador exigiu que o juiz de instrução autorizasse previamente à pesquisa informática a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, determinando unicamente que, realizada tal pesquisa e sendo encontrados tais dados, armazenados no sistema informático, o juiz (e não o Ministério Público) autorize ou ordene, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
Parece-nos evidente que esta é a melhor interpretação da norma em apreço, pois a apreensão judicialmente determinada apenas incide sobre dados (1º) encontrados e (2º) relevantes para a prova ou descoberta da verdade.
A prévia autorização judicial de apreensão, reclamada pelo arguido/reclamante, revelar-se-ia estéril, pois, das duas uma: ou, na sequência da pesquisa informática, nenhum dado é encontrado, situação em que aquela autorização judicial previamente concedida ficaria desprovida de objeto; ou, sendo encontrados dados na sequência de tal pesquisa, a respetiva apreensão, judicialmente ordenada ou autorizada, não dispensaria nova tomada de posição por parte do juiz competente, uma vez que a apreensão apenas incide sobre os dados que devam ser considerados relevantes, tornando, por isso, redundante a primeira ordem de apreensão (que sempre teria de ser repetida após análise dos dados encontrados por forma a aquilatar do respetivo interesse para a investigação).
Cremos, para além disso, que a exigência de anterioridade da ordem ou autorização judicial da apreensão não se concilia – antes conflitua - com a possibilidade, expressamente prevista pelo legislador, de realização da pesquisa de dados informáticos pelos órgãos de polícia criminal, sem prévia autorização da autoridade judiciária, em determinadas situações urgentes («Nos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa» - artigo 15.º, n.º 3, b), da LCC).
Deste modo, tendo sido escrupulosamente observados todos os formalismos legais relacionados com a apreensão dos dados contidos no telemóvel apreendido ao arguido, considerados relevantes pelo JIC para a investigação, não encontramos motivos válidos para divergir da posição sustentada na decisão sumária, que se nos afigura válida e, por isso, decidimos manter.
Finalmente, a declaração de «inconstitucionalidade das normas dos arts. 15.º, 16.º e 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro quando interpretadas no sentido de poder o Ministério Público determinar, sem a prévia autorização do Juiz de Instrução, a pesquisa dos telemóveis apreendidos, redigida a auto, nomeadamente, dos números constantes nas agendas telefónicas, todas as chamadas efectuadas e recebidas, todas as mensagens escritas, enviadas e recebidas, e eventual dados constantes na memória do aparelho (ou seja, a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante) de um cidadão arguido, por violação dos direitos fundamentais à inviolabilidade da correspondência e das comunicações (art. 34.º n.º 1 da CRP), à proteção dos dados pessoais no âmbito da utilização informática (art. 35.º n.º 1 e 4 da CRP), enquanto refrações específicas do direito à reserva de intimidade da vida privada (art. 26.º n.º 1 da CRP) em conjugação com o princípio da proporcionalidade (art. 18.º n.º 2 da CRP) e, ainda, por violação do art. 32.º n.º 4 da CRP», também pretendida pelo reclamante, excede o âmbito das questões conhecidas na decisão sumária, tal como configuradas pelo reclamante no recurso, razão pela qual não pode ser conhecida.
Com efeito, a reclamação para a conferência, prevista no artigo 417.º, n.º 8, do CPP, tem por função substituir a opinião singular do relator, quanto à questão tratada, pela decisão coletiva do tribunal. Deste modo, a reclamação para a conferência configura apenas um pedido para que o objeto do recurso rejeitado mediante a decisão sumária seja reapreciado pela conferência para salvaguarda da colegialidade. [4]
Como se observa no acórdão do STJ, de 6/7/2017 [5], «Constituindo a reclamação para a conferência o meio processual previsto [arts. 417.º, n.º 8, e 419.º, n.º 3, al. a), ambos do CPP] para o recorrente reagir contra a decisão sumária do relator, não pode a mesma reclamação exorbitar o âmbito da apreciação do recurso, cujo objeto define-se e delimita-se pelas conclusões que o recorrente haja extraído da respetiva motivação. A reclamação para a conferência não pode ser utilizada pelo recorrente para alterar o objeto do recurso interposto e já apreciado pelo relator na decisão sumária».
Improcede, assim, a reclamação apresentada pelo arguido/recorrente, mantendo-se integralmente a decisão sumária proferida.
*
Em face do exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a reclamação apresentada, mantendo-se a decisão sumária proferida no processo.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça devida em 2 UC.
Notifique.
Liliana Páris Dias (Desembargadora Relatora)
Fernanda Sintra Amaral (Desembargadora 1ª Adjunta)
João Pedro Pereira Cardoso (Desembargador 2º Adjunto)
______________________________
[1] Relatado pela Desembargadora Paula Penha e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[2] Como se sumaria no acórdão do TRL de 6/2/2018 (relatado pelo Desembargador João Carrola, in www.dgsi.pt), «Aplicando-se assim o regime de apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal, este encontra-se disciplinado no art.º 179º, o qual estabelece desde logo no n.º 1 que tais apreensões sejam determinadas por despacho judicial, “sob pena de nulidade” expressa (n.º 1), e que “o juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida”, o que se aplica ao correio eletrónico já convertido em ficheiro legível, o que constitui ato da competência exclusiva do Juiz de Instrução Criminal, nos termos do art.º 268º n.º 1 alínea d) do CPP, o qual estabelece que “compete exclusivamente ao juiz de instrução, tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida”, o que se estendeu ao conteúdo do correio eletrónico, por força da subsequente Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro, constituindo a sua violação nulidade expressa absoluta e que se reconduz, a final, ao regime de proibição de prova».
[3] Considerando-se prova digital a informação relevante para fins probatórios produzida/obtida a partir de dados em formato digital (na forma binária, em que todas as quantidades se representam pelos números 0 ou 1) armazenados, processados ou transmitidos através de sistemas informáticos ou armazenados em suportes informáticos, muitas vezes com utilização de redes de comunicações eletrónicas (cf. o AUJ n.º 10/2023).
Como dá conta o STJ no mencionado acórdão de fixação de jurisprudência, em termos latos, abrange uma grande panóplia, como os SMS, EMS e MMS, conversações no Messenger, mensagens de voz relativas a comunicações ou arquivos de som e/ou imagem via Whatsapp, Viber, Skipe, Snapshat, Telegram, Facebook, etc.
[4] Cf. o acórdão do TRG, de 2/9/2022, relatado pelo Desembargador Paulo Correia Serafim, publicado na CJ n.º 321, Ano XLVII, Tomo IV/2022.
[5] Relatado pela Conselheira Isabel São Marcos e consultável em www.dgsi.pt.