I. O fundamento da revisão de decisão penal condenatória, com base na alínea e) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, exige que a quebra do caso julgado, com base em provas proibidas, pressupõe a convergência de três requisitos cumulativos: a utilização de prova proibida; que ela tenha servido de fundamento à decisão que se quer rever; a natureza e a utilização da prova proibida ter sido descoberta após o julgamento inicial
III. Consistindo o vício agora invocado como motivo de revisão da decisão condenatória do requerente, na omissão da advertência consagrada no n.º 2 do art. 134.º do CPP, a testemunha enteada do arguido, independentemente da opção sobra a natureza de tal invalidade – como nulidade probatória ou proibição de valoração de prova –, sendo conhecido pelo requerente antes da decisão final e podendo ter já sido oportunamente invocado no recurso interposto para o tribunal da Relação, não pode julgar-se o mesmo procedente como motivo de revisão da decisão revidenda.
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
I.1. O requerente, AA, melhor identificado nos autos supra indicados, vem, por requerimento de 09-01-2025 (Ref.ª Citius ...72), invocando o disposto no artigo 449.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal, requerer a interposição de recurso extraordinário de Revisão (para o Supremo Tribunal de Justiça), do acórdão do Juízo Central Criminal de .../Juiz ... (doravante, também “tribunal recorrido”), de 16 de novembro de 2023 (Ref.ª Citius ...00), transitado em julgado em 15-05-2024, após a prolação, em recurso, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (doravante, também “TRC”) de 10-04-2024 (Ref.ª Citius ...32).
I.2. No termo da sua motivação, o requerente apresenta as seguintes conclusões (transcrição):
«Conclusões
1. Deverá o presente recurso extraordinário de revisão ser considerado integralmente procedente, revogando-se a decisão judicial proferida e mandando-se repetir a fase de julgamento.
2. Deverá considerar-se que foi postergado o enunciado no nº 2 do artigo 134º do Código de Processo Penal em virtude da depoente, enteada do Arguido, não ter sido advertida da possibilidade a não depor, o que constitui uma nulidade de obtenção de prova.
3. A decisão judicial condenatória teve por basear prova proibida em virtude da única prova que fundamenta o juízo condenatório alicerçar em prova nula nos termos do disposto no artigo 126º do Código de Processo Penal.
4. A decisão judicial colocada em crise é injusta e ilegal por se basear em prova proibida por ser prova nula.
5. Deverá ser mandado repetir o julgamento com a audição da depoente BB.»
I.3. O recurso foi admitido por despacho da Senhora juíza de Direito titular do processo no Juízo Central Criminal de .../J ..., de 14-01-2025 (Ref.ª Citius ...86), tendo sido prestada a seguinte informação nos termos do art. do art. 454.º do CPP:
«(…)
Exmºs Colendos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça.
Constam expressamente do artº 134º sob a epígrafe “Recusa de depoimento” quais as testemunhas que podem recusar-se a depor, sendo que da al. a) apenas constam os descendentes, que não é o caso por a testemunha não ser filha do arguido mas tão só enteada.
Assim sendo, salvo melhor opinião, tal advertência não teria que ser feita à testemunha constante do artº 134º nº 2 do CPP.
Não se verifica, em nossa opinião, a produção de qualquer prova proibida prevista no artº 126º do CPP.
Contudo, Vªs Exªas melhor decidirão.»
I.4. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor magistrado do Ministério Público aqui em funções pronunciou-se em circunstanciado parecer de 17-01-2025 (Ref.ª Citius ...88), no sentido de ser negado o pedido de revisão, o qual, dada a sua exaustividade, se transcreve em parte substancial:
« (…)
1. Quanto à verificação dos pressupostos para conceder a revisão pedida e quanto à (não) concessão da revisão:
Por economia, cingimos–nos ao que, na informação prestada e nos elementos documentais juntos, se refere quanto ao quadro factual fixado e motivação atinente da decisão revidenda, para que se remete, sem necessidade de aqui os transcrever.
A alegação do recorrente de que a condenação do arguido assentou em prova proibida (ou nula, como indistintamente também a caracteriza), deve–se ao facto de ter sido ouvida em declarações para memória futura e depois em audiência de discussão e julgamento, onde prestou depoimento, a respetiva enteada, BB, à qual não foi efetuada a advertência da faculdade de recusar o depoimento, que o artigo 134.º, n.º 2, do Código de Processo Penal impõe que seja efetuada a quem tem relação de parentesco ou equiparado, nos termos do n.º 1, do mesmo artigo.
O requerente envolve na mesma invalidade probatória (proibição de prova autêntica) as simples regras processuais probatórias que, porém, devem ser distinguidas.
Uma proibição de prova tem consequências na admissibilidade da prova. Porém, a prova não é afetada no caso de violação de uma simples regra processual probatória. Esta, na medida em que ordena um determinado procedimento, não implica inevitavelmente que se recuse como proibida a prova obtida1.
Ou seja, no caso, seria prova proibida ou meio de prova proibido valorar o depoimento de testemunha abrangida pelo n.º 1, do artigo 134.º, do Código de Processo Penal, que se tivesse recusado a depor, o que não foi o caso dos autos, pelo que a omissão da advertência não tem por consequência a proibição de prova, mas a nulidade que a norma comina., tratando–se de uma violação de uma simples regra processual probatória.
Ainda que exista controvérsia jurisprudencial a propósito do tipo de invalidade, trata–se de uma nulidade sanável, aplicando–se–lhe o regime estabelecido no artigo 120.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal ou mesmo de uma mera “irregularidade” como o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 108/2024 impropriamente a designa2.
Porém, a invalidade que é cominada pela norma não tem por finalidade salvaguardar os direitos do arguido, designadamente o seu direito de defesa – que lhe é alheia – mas antes está dirigida à testemunha, à qual a lei confere no artigo 134.º, n.º 1, do Código de Processo Penal uma faculdade ou prerrogativa de que é titular a própria testemunha e não qualquer outro sujeito ou participante processual, pois o que a norma tutela são os vínculos de solidariedade existentes ou normativamente relevantes entre testemunha e arguido, com o propósito imediato de evitar situações em que tais pessoas sejam postas perante a alternativa de mentir ou, dizendo a verdade, contribuírem para a condenação do seu familiar.
Em suma, o que é tutelado pela norma do artigo 134.º, n.º 1, do Código de Processo Penal é o interesse da testemunha em não ser constrangida a prestar declarações, protegendo as relações de confiança e solidariedade que se creditam às relações familiares ou equiparadas.
O que ressalta do acórdão do TC citado3 e mesmo da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça é que, sendo a faculdade de recusa depoimento uma prerrogativa ou faculdade conferida à testemunha abrangida na previsão da norma do artigo 134.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, só esta teria legitimidade para invocar a invalidade ou vício da omissão da advertência imposta pelo n.º 2, do mesmo artigo (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-6-2018, no processo n.º 1014/11.0PHMTS-B.P1.S1, relator: Raúl Borges).
Portanto, no caso, não só o arguido já não está em tempo para arguir qualquer nulidade sanável reportada ao depoimento da enteada com omissão da advertência para a faculdade de se recusar a depor, como não tem ou teria qualquer legitimidade para invocar essa nulidade nos momentos processuais em que esse depoimento foi recebido e, por maioria de razão, não tem legitimidade para o invocar como fundamento do presente recurso extraordinário de revisão.
Por via do exposto, julgamos demonstrada a sem razão do recorrente, o que é bastante para que o recurso improceda.
Ainda que assim não fosse, o fundamento previsto na alínea e) do n.º 1, do artigo 449.º do Código de Processo Penal, que remete para o disposto no artigo 126.º, n.º 1 e n.º 3, do Código de Processo Penal, importa a conclusão de que não são quaisquer provas proibidas as que aí se referem, mas apenas as que estão previstas nos normativos referidos em decorrência do artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, i.e, são proibidas e nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações e só essas.
Além de não ser imposta qualquer prévia valoração que assim qualifique as provas como proibidas, enquanto condição de aceder à revisão de sentença, são apenas as provas taxativamente indicadas que são proibidas e não outras.
Portanto, tratam–se de provas que, pela gravidade inerente à sua forma de obtenção, atentam contra direitos fundamentais que nem o caso julgado sana, como afirma Germano Marques da Silva, in Colóquios do Supremo Tribunal de Justiça, Processo Penal–Recursos, maio de 2022, p. 100, disponível em URL<livro-digital-coloquio-processo-penal-2022.pdf (stj.pt)>.
Ora, na decisão revidenda, qualquer que seja o esforço que se faça, não se encontram provas da natureza das proibidas pela lei e pela Constituição.
Não se bastando a revisão de sentença com a mera alegação de provas proibidas, sem demonstração de que tenham existido para lá da convicção e semântica do requerente, a evidência de que nenhuma prova que fundamentou a condenação se reconduz ao disposto no artigo 126.º, n.º 1 e n.º 3, do Código de Processo Penal é bastante para que também o recurso improceda e, no máximo, para acantonar os argumentos do recorrente à invocação de um erro de julgamento, insuscetível de ser sindicado em sede de revisão de sentença.
Ainda que assim não fosse, sempre a rigorosa e exigente jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça a ser seguida vedaria a admissibilidade de recurso extraordinário de revisão ao abrigo da al. e) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal, pois é pacificamente entendido que não basta que possam ter servido de fundamento à condenação “provas proibidas”, sendo ainda necessário que tal qualificação resulte da descoberta de factos ou circunstâncias que não constassem do processo no momento do trânsito em julgado da sentença a rever (assim, entre muitos, cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-04-2022, proc. n.º 105/16.6GBALD.C1-A.S1).
Ora, tudo o que o recorrente alega e qualifica como prova proibida (e/ou nula) é reconduzido e limitado ao que já constava do processo.
Resta apenas acrescentar que a invocação de nulidades ou de erro judiciário imputados à decisão revidenda, são também inconsequentes, na economia da argumentação apresentada e no quadro jurídico deste recurso extraordinário, pois, quanto às nulidades, o trânsito em julgado da decisão revidenda, enquanto pressuposto do presente recurso, importa a sanação de todas as nulidades, sejam relativas ao processo ou à sentença, pois uma decisão transitada em julgado já não se anula; e quanto ao erro de julgamento, a eventual convicção errada sobre os meios de prova atendidos na decisão revidenda é matéria que, no âmbito do presente recurso extraordinário, está subtraído aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, que não pode sindicar a ratio decidendi da decisão revidenda ou renovar valorações probatórias, como se de um recurso ordinário se tratasse e como se um recurso extraordinário de revisão pudesse ser sucedâneo daquele.
Em suma, não se verificam os pressupostos da revisão da sentença requerida pelo recorrente nesta providência, sendo manifestamente infundado o presente recurso extraordinário.
5. CONCLUSÃO:
Em conformidade, somos de parecer que deve ser negada a revisão.
PROMOÇÃO (artigo 456.º, do Código de Processo Penal): além das custas, deve o recorrente ser acrescidamente condenado a pagar quantia a fixar, entre 6 e 30 UC, por ser manifestamente infundado o pedido de revisão formulado, se assim também for entendido.»
I.5. Foi observado o contraditório (art. 3.º, n.ºs 1 e 3, do CPC aplicável ex vi art. 4.º, do CPP), tendo o requerente sido notificado para, querendo, se pronunciar, tendo, em 03-02-2025 (Ref.ª ...23), reiterado o pedido de revisão, alegando, em suma:
«Teremos igualmente que afirmar que consideramos que a função normativa da possibilidade de recusa tem a dupla função de proteger quer quem depõe quer contra quem a pessoa poderá ou não depor, pois que as relações familiares ou análogas que visa a norma jurídica não são unidimensionais, mas bilaterais, estando intrinsecamente ligadas à vida privada e familiar do depoente e de contra quem poderá recusar depor, e não poderá a Testemunha recusar, validamente, o depoimento se não tiver conhecimento dessa possibilidade legal, por nunca lhe ter sido explicada e informada essa possibilidade.
O Recorrente nos presentes autos não visa “tirar um coelho da cartola”, mas antes colocar para sindicância jurisdicional uma situação que reputa por altamente injusta, que merece ser apreciada superiormente e cujas formalidades inerentes à tramitação processual foram devidamente cumpridas, sendo certo que foi indicado pela Meritíssima Juiz da 1ª Instância que efetivamente não foi cumprida a formalidade patente no artigo 134º do Código de Processo Penal e indicada a fundamentação que na sua ótica afasta a necessidade de cumprimento da advertência legalmente estipulada, pelo que não se considera que a situação atual implique a condenação acrescida, invocada na parte final do Parecer em caso de pedido manifestamente infundado.»
I.6. Colhidos os vistos legais, teve lugar a conferência, cumprindo apreciar e decidir o presente recurso extraordinário de revisão.
I.7. Admissibilidade e objeto do recurso
Verifica-se que a decisão revidenda – o acórdão do Juízo Central Criminal de .../Juiz ..., de 16-11-2023, transitou em julgado em 15-05-2024 (art. 449.º, n.º 1, do CPP).
O objeto da providência é a autorização da revisão da decisão (acórdão) suprarreferida.
O tribunal de revisão é o competente (artigos 55.º, al. e), da Lei n.º 62/2013, de 26-08, 11.º, n.º 4, al. d), 451.º, 452.º e 455.º do CPP).
Foi prestada, pela Senhora juíza de Direito titular do processo, a informação sobre o mérito do pedido, prevista no art. 454.º do CPP, encontrando-se a ser tramitado por apenso e nos demais termos legais.
O recurso foi introduzido por pessoa condenada, representada por advogado, relativamente a «sentença [condenatória]» – art. 450.º, n.º 1, alínea c) do CPP.
II. Fundamentação
II.1. Delimitação do objeto da revisão
A pretensão do requerente no sentido de ser autorizada a revisão fundamenta-se no disposto na alínea e) do n.º 1 do art. 449.º do Código de Processo Penal: descoberta de que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos números 1 a 3 do artigo 126.º [do CPP].
O pedido do requerente estrutura-se, essencialmente, em torno da alegação de que a testemunha BB, enquanto sua enteada, não foi, nem aquando da prestação de declarações para memória futura – em 18-10-2022 (Ref.ª Citius ...20) –, nem na sessão de audiência de julgamento – em 02-11-2023 (Ref.ª Citius ...35) – advertida da faculdade de se recusar a depor, ao abrigo do disposto no art. 134.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, o que constituiria prova proibida, que inquinou todo o julgamento e a decisão condenatória.
Invoca o recorrente que:
«(…)
5. Antes da enteada do Arguido/Recorrente prestar declarações, quer para memória futura, quer em audiência de discussão e julgamento – cuja gravação acima se menciona e se pretende ser escrutinada, é liquido constatar que a depoente não foi advertida de que poderia não prestar declarações atenta a sua relação familiar com o Arguido,
6. Efetivamente em nenhum dos momentos processuais em que a depoente prestou declarações – quer para memória futura, quer em audiência de julgamento – foi a depoente advertida nos termos do disposto no artigo 134º do Código de Processo Penal que se poderia recusar a depor,
7. O que constitui nulidade nos termos do nº 2 do citado artigo 134º do Código de Processo Penal,
8. Não tendo sido a depoente advertida de que poderia recusar depoimento o que a Testemunha depôs foi realizado sem o concreto conhecimento/consciência da possibilidade de que poderia, legalmente, nada dizer e votar-se legalmente ao silêncio, por não ter sido advertida nos termos do disposto no nº 2 do artigo 134º do Código de processo Penal,
9. Possibilidade legal e direito ao silêncio, inerente à sua relação familiar com o Arguido, de que não foi em nenhum momento em a testemunha depôs foi esclarecida,
10. O que constitui a obtenção de um meio de prova proibido nos termos do disposto no artigo 126º do Código de Processo Penal,
11. E que equivale a afirmar que a decisão judicial condenatória teve por base prova nula, pelo que a decisão judicial proferida pelo Douto Tribunal de 1ª Instância está ferida de nulidade e é injusta, repugna o direito e deverá ser revogada, o que desde já se requer,
12. Estamos assim perante uma decisão judicial ferida de injustiça e legalidade por ser assente em prova ferida de nulidade, e como tal inquinada,
(…) prova ferida de nulidade, nulidade que se invoca e se pretende ver declarada para todos os devidos efeitos legais,
16. E a única forma de expurgar os autos da apontada nulidade é com a repetição da fase se julgamento em que se conceda a possibilidade da depoente recusar depoimento, nos termos legais, se assim julgar fazer, o que desde já se requer, dando-se provimento ao recurso, (…).»
II.2. Factos provados e não provados
Os factos provados e não provados, pelo acórdão recorrido – e que não sofreram modificação pelo acórdão do TRC de 10-04-2024 –, relevantes para a apreciação do presente recurso, são os seguintes:
«1.A menor BB nasceu a ... de ... de 2006, sendo filha de CC e de DD.
2.Com a separação dos pais a menor ficou a residir com a mãe, na Rua da ..., perdendo o contacto com o pai.
3.Cerca de 2016 ou 2017 o arguido AA passou a integrar o agregado, enquanto companheiro da mãe da menor.
4.Em 16-07-2019 o arguido e a mãe da menor casaram, mantendo-se a residência inalterada.
5. Em 2021, em data não concretamente apurada, mas sita depois de a menor ter completado os 15 anos de idade, o arguido, aproveitando estar sozinho em casa com ela, da parte da tarde, após ela vir da escola, passou a convidá-la para o acompanhar na sala, pedindo-lhe então para colocar em exibição os filmes pelo mesmo escolhidos, de conteúdo pornográfico.
6.Acedendo a menor a colocar esses filmes e a ficar a assistir aos mesmos com o arguido, ainda que contra a sua vontade, o arguido, numa primeira ocasião, na sala, em data não concretamente apurada, colocou as suas mãos no corpo da menor e apalpou-lhe os seios e a vagina, por cima da roupa.
7.A partir daí, em datas não concretamente apuradas, o arguido, encontrando-se os referidos filmes a passar na televisão, por ordem sua, passou a deitar a menor no sofá e a despi-la, despindo-se depois a si próprio e colocando o seu corpo em cima do da menor, de frente para ela, apalpando-a com as mãos nos seios e na vagina, introduzindo o seu pénis na vagina dela e com ela mantendo relações sexuais vaginais.
8.Para além de ocorrerem na sala, as mesmas situações passaram a ocorrer também no quarto do arguido, para onde ele atraía a menor dizendo que precisava que ela o ajudasse a fazer algo.
9.Por ocasião das relações sexuais o arguido ejaculava fora do corpo da menor.
10.A conduta do arguido de manter relações sexuais com a menor e de a apalpar nos seios e na vagina, ocorreu pelo menos 20 (vinte) vezes, sempre no interior da residência e não se encontrando mais ninguém em casa.
11. A mesma apenas cessou em dezembro de 2021, quando a menor contou o sucedido à mãe, indo depois viver para casa dos avós paternos, onde ainda se encontra.
12.O arguido agiu ciente da idade da me e aproveitando-se da circunstância de residir no mesmo agregado familiar.
13.O arguido agiu ainda ciente de que conhecendo a menor a confiança que a sua mãe depositava nele não teria coragem de contar o que se estava a passar à mãe, por esta não ir acreditar, o que, efetivamente, veio a acontecer.
14.O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, indiferente ao que sabia ser o caráter proibido e punido da sua atuação e ao sofrimento que sabia estar a causar à menor.
15. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.
16. O arguido e a mulher trabalham ambos numa fábrica, auferindo cada um deles 770€.
17. O casal vive numa casa de renda pela qual paga 230 euros atualmente
18. O arguido tem dois filhos sendo que para um deles ainda contribui com 130 mensais.
19. O arguido tem o 6º ano de escolaridade.
20. A menor BB, teve de sair de casa, o que lhe causou tristeza e a fez sentir-se abandonada.
Factos não provados:
Com interesse para a decisão da causa, não se provou que:
1. A menor tenha afastado as mãos do arguido.
2. O arguido também chegou a entrar no quarto da menor dizendo-lhe que “queria fazer”, mantendo com a mesma relações sexuais vaginais e apalpando-a com as mãos nos seios e na vagina.
3. Mercê da relação entre o arguido e a sua mãe, da insistência desta para que a menor gostasse do padrasto e da ausência do seu próprio pai, a menor sentiu que tinha no arguido “um pai”, tratando-o como tal e tratando-a esta como se assim fosse.
4. Os factos aconteceram em 2000 quando a menor tinha 14 anos.
5. Quando o arguido agia sobre a menor, esta sentia-se congelada e incapaz de reagir.
6. Por força dos factos a menor BB passou a sofrer de depressão e a ter dificuldades em dormir, para o que tem de tomar medicação, bem como o seu aproveitamento diminuiu.
7. Os factos praticados pelo réu diminuíram ainda a auto-estima da menor, bem como reduziram a sua capacidade de confiar no próximo, tornando-a ainda
numa pessoa que facilmente tem crises de choro o que antes não acontecia.»
O arguido AA foi, em consequência, absolvido e condenado nos autos principais, pelo acórdão de 16-11-2023, confirmado pelo acórdão do TRC de 10-04-2024 (Ref.ª Citius ...32), nos seguintes termos:
- Absolvido da imputada prática de um crime de abuso sexual de menores dependentes previsto e punido pelos artigos 170º, 171.º, n.º 3 al. a), 172º nº 2 e 177.º, n.º 1, alíneas a) todos do Código Penal.
- Condenado pela prática de 20 (vinte) crimes de abuso sexual de menores dependentes, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1 e 2, 172º nº1 al. b) e 177.º, n.º 1, alíneas b), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão pela prática de cada um.
- Condenado o arguido em cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão aplicadas, nos termos do artº 77º do Código Penal na pena única de 6 (seis) anos de prisão;
Foi ainda julgado parcialmente procedente, o pedido de indemnização civil formulado pelo Mº Pº, e, em consequência, condenado o demandado AA, a pagar à menor BB a quantia de 10.000,00 (dez mil euros) acrescidos dos respetivos juros de mora, a título de danos não patrimoniais, absolvendo-o do demais peticionado.
Tal decisão transitou em julgado em 15-05-2024.
II.3. Breves considerações de ordem geral
A revisão de sentença penal é admitida nos casos taxativamente previstos no art. 449.º do CPP, que constitui norma excecional na medida em que prevê a quebra do caso julgado e, portanto, um sério desvio aos princípios da estabilidade das decisões judiciais e da segurança jurídica inerente ao Estado de Direito; tal desvio é permitido e mesmo garantido pelo artigo 29.º, n.º 6, da CRP ao cidadão injustamente condenado (no que aqui releva), nos termos que a lei prescrever, e ainda pelo artigo 4.º, n.º 2 do Protocolo Adicional n.º 7 à CEDH (relativamente a decisão penal condenatória), sempre com base em novos elementos que ponham seriamente em causa a justiça de decisão transitada em julgado, elementos que, porém, devem constituir «(…) circunstâncias “substantivas e imperiosas” (substancial and compeling)», autorizando assim, «…a quebra do caso julgado, de modo a que este recurso extraordinário se não transforme em uma “apelação disfarçada” (…)» (cfr. Damião da Cunha e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos [Paulo Pinto de Albuquerque, Org.], vol. II, 5.ª ed. atualizada, Lisboa, UCP Ed., 2023, p. 755 bem como a jurisprudência do STJ e do TEDH e a doutrina aí citadas).
O valor da certeza e da segurança jurídicas, assegurado pelo instituto do caso julgado, é condição fundamental da paz jurídica que todo o sistema judiciário prossegue, como condição da própria paz social. As exceções devem, pois, assumir um fundamento material evidente e incontestável, insuscetível de pôr em crise os valores assegurados pelo caso julgado, designadamente o princípio do Estado de direito (art. 2.º da CRP) (cfr., J.J. Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 1998, pp. 256-257).
A consagração constitucional da admissibilidade do recurso de revisão funda-se na necessidade de salvaguardar as exigências da justiça e da verdade material, pois também elas comportam valores relevantes que constituem, igualmente, condição de aceitação e legitimidade das decisões jurisdicionais, e, afinal, daquela mesma paz jurídica.
Por outras palavras: se a incerteza jurídica provoca um sentimento de insegurança intolerável para a comunidade, a intangibilidade, em obediência ao caso julgado, de uma decisão que vem a revelar-se claramente injusta perturbaria, em não menor grau, o sentimento de confiança coletiva nas instituições judiciárias.
O recurso de revisão, afastando assim o princípio de utilidade, e não de justiça, de res judicata pro veritate habetur, constitui, pois, um meio de repor a justiça e a verdade, derrogando o caso julgado. Mas essa derrogação, para não envolver nenhum dano irreparável na confiança da comunidade no próprio sistema jurídico, terá de ser circunscrita a casos excecionais, taxativamente estabelecidos, e apenas quando um forte interesse material o justificar, ou seja, aqueles casos julgados que Alberto dos Reis considerou terem sido formados “em condições anormais”, em que “ocorreram circunstâncias patológicas susceptíveis de produzir injustiça clamorosa.” (Código de Processo Civil Anotado, Coimbra: Coimbra Editora, p. 158).
Conforme se diz no acórdão do STJ de 07-04-2021 (proc. n.º 921/12.8TAPTM-J.S1 – relator: Cons. Nuno Gonçalves): «Traço marcante do recurso de revisão é, desde logo, a sua excecionalidade, ínsita na qualificação como extraordinário e no regime, substantivo e procedimental, especial. Por isso, somente os fundamentos firmados pelo legislador podem legitimar a admissão da revisão da condenação transitada em julgado. Regime normativo excecional que admitindo interpretação extensiva não comporta aplicação analógica – art.11º do Código Civil». Por outro lado, como se sustenta ainda no Ac. STJ de 26-09-2018, «do carácter excecional deste recurso extraordinário decorre necessariamente um grau de exigência na apreciação da respetiva admissibilidade, compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização, a banalização dos recursos extraordinários.»
São fundamentos da revisão da decisão penal transitada em julgado, que pode ser concedida pelo Supremo Tribunal de Justiça, de acordo com o art. 449.º do CPP, as hipóteses taxativas ali previstas:
“1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:
a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;
b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como prova do crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;
c) Os factos que serviram de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;
d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;
f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;
g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.
2 - Para o efeito do disposto no número anterior, à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.
3 - Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão como único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.
4 - A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida.” (negritos nossos).
Importa aplicar este esquemático enquadramento normativo ao caso em apreço.
II.4. Mérito do recurso
O recorrente pugna pela concessão da revisão, no caso vertente, fazendo apelo, conforme se referiu supra, ao disposto na alínea e) do n.º 1 do art. 449.º do CPP.
Veio, em suma, alegar a existência de prova proibida, que suporta a condenação, a qual consiste no facto de a testemunha, sua enteada, não ter sido advertida da faculdade prevista no art. 134.º, n.º 2, do CPP, ou seja, da faculdade de não depor, quer no momento das declarações para memória futura, quer no da audiência de julgamento.
A Senhora juíza titular do processo, na sua informação, sustenta a não obrigatoriedade de tal advertência, pelo que a pretensão do requerente deve improceder.
O Senhor magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal da Justiça, pugna igualmente pela improcedência da pretensão do recorrente, por motivos distintos.
Apreciemos.
A valoração [na decisão revidenda] de provas proibidas é o primeiro dos novos casos de revisão, introduzido pela Reforma Penal de 2007, através da Lei n.º 48/2007, de 29-08, ao artigo 449.º, n.º 1, do CPP, conquanto já anteriormente fosse reclamado por significativa parte da doutrina. Nos casos em que se provassem factos através de meios de prova proibidos pela Constituição e como tal incriminados pela lei, o valor da segurança jurídica, logrado com o trânsito em julgado, deveria, mesmo na ausência de uma norma expressa, ceder: se o processo não pudesse, depois, ser revisto, a violação da proibição poderia equivaler à efetiva execução da pena (injusta ou obtida através de meios ilícitos).
A nova solução legal destina-se a implementar processualmente a opção do legislador constituinte que declarou «nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações» (art. 32.º, n.º 8).
A Constituição, embora salvaguarde o valor do caso julgado (v.g. acórdãos do TC n.ºs 310/2005, 151/2015, 680/2015 ou 542/2019), consagra o direito fundamental à revisão da sentença penal condenatória injusta (art. 29.º, n.º 6, da CRP), limitando a tutela daquele aos casos em que ele é justo: a menos que se defenda que a Lei fundamental de um Estado de direito pode tolerar a segurança do injusto (neste sentido, cfr., João Conde Correia, O “Mito do Caso Julgado” e a Revisão Propter Nova, Coimbra, Coimbra Ed., 2010, p. 491; ac. STJ de 11-02-2015: rel. Cons. Helena Moniz). Em suma, seria paradoxal que num [verdadeiro] Estado de direito se pudesse defender um “encarniçamento” da segurança jurídica à custa da justiça.
A quebra do caso julgado, com base em provas proibidas pressupõe a convergência de três requisitos cumulativos: a utilização de prova proibida; que ela tenha servido de fundamento à decisão que se quer rever; a natureza e a utilização da prova proibida ter sido descoberta após o julgamento inicial [ac. STJ de 11-07-2023; rel. Cons. Ana B. Brito). Apenas a sua verificação sucessiva permite a quebra do caso julgado; não no caso de ter sido efetivamente apreciada, ou suscetível de apreciação antes da decisão.
Mas apenas se acham abrangidas pela garantia de revisão as provas proibidas consideradas pelo legislador de gravidade superlativa (artigos 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º do CPP); não o estarão aquelas que, como a jurisprudência do STJ vem entendendo, resultarem do mero desrespeito pela estrutura processual (v.g. art. 355.º), da omissão da advertência contida no art. 134.º, n.º 2 (acs. STJ de 04-07-2018: rel. Cons. Maia Costa, de 20-06-2018: rel. Cons. Raúl Borges, de 11-02-2015: rel. Cons. Helena Moniz, de 11-02-2015: rel. Cons. Helena Moniz, de 21-10-2009: rel. Cons. Isabel Pais Martins), da valoração do depoimento indireto (ac. STJ de 23-06-2022: rel. Cons. Orlando Gonçalves), da valoração do silêncio do arguido ou de declarações que proferiu ou prestou anteriormente à audiência de julgamento e que ali não podiam ser lidas em seu desfavor (ac. STJ de 16-10-2014: rel. Cons. Manuel J. Braz). Ou seja, há que distinguir as situações de proibição de prova daqueloutras de prova nula (que pode, inclusivamente, ser sanada em contadas circunstâncias).
A quebra do caso julgado motivada pela utilização de provas proibidas, nomeadamente por ofensa da integridade moral da testemunha através de coação (art. 126.º, n.ºs 1 e 2, al. e) do CPP), não se confunde com a quebra determinada por falsidade do depoimento, eventualmente por medo dos depoentes sofrerem retaliações dos familiares do arguido ou do ofendido (cfr., neste sentido, ac. STJ de 01-10-2014; rel Cons. Maia Costa, CJASTJ, 2014, t. 3, p. 191), que apenas poderá ocorrer se demonstrada por sentença transitada em julgado (alínea a) do n.º 1 do art. 449.º do CPP).
Por outro lado, de acordo com a jurisprudência preponderante, a descoberta da violação destas proibições de produção e de valoração de prova só constitui fundamento de revisão se for posterior ao trânsito em julgado, logo, insuscetível de ter sido invocado em sede de recurso ordinário (neste sentido, cfr. acs. STJ de 26-10-2023: rel. Cons. Jorge Gonçalves, de 17-07-2023: rel. Cons. Ana B. Brito, de 11-07-2023: rel. Cons. Pedro Branquinho, de 04-07-2018: rel. Cons. Maia Costa e de 20-06-2018: rel. Cons. Raúl Borges).
Retomando o caso em apreço, devemos, preambularmente, reconhecer que se dá como estabelecido na factualidade provada que o arguido-requerente casou com a mãe da testemunha e vítima BB em 16-07-2019 (facto provado 4.).
A testemunha é, assim, enteada do arguido.
Como tal, a filha do cônjuge do arguido é afim deste, no primeiro grau da linha reta, nos termos do estatuído nos artigos 1580.º, 1581.º, 1584.º e 1585.º, todos do Código Civil, definindo o penúltimo preceito legal citado afinidade como “o vínculo que liga cada um dos cônjuges aos parentes do outro” e sendo o parentesco “o vínculo que une duas pessoas, em consequência de uma delas descender da outra ou de ambas procederem de um progenitor comum” – cfr. artigo 1578.º, do mesmo diploma legal. Ao abrigo do disposto no art. 134.º, n.ºs 1, al. a) e 2, do CPP, a testemunha BB deveria ter sido advertida da faculdade que lhe assistia de não prestar depoimento como testemunha.
Dá-se com adquirido, conforme emerge do teor das respetivas atas, que nem aquando da diligência de prestação de declarações para memória futura (em 19-10-2022) nem na sessão da audiência de julgamento (em 02-11-2023), foi feita a advertência à testemunha, nos termos e para os efeitos do art. 134.º, n.º 2, do CPP.
Tais circunstâncias foram do conhecimento do arguido e de seu defensor quer na primeira quer na segunda dessas diligências processuais.
O vício que tais omissões configuraram poderia ter sido arguido enquanto invalidade processual ou enquanto proibição de prova, por serem circunstâncias que foram do conhecimento do arguido antes da decisão final.
Inválido é, como se sabe, todo o ato desconforme ao modelo legalmente previsto (assim, José M. Damião da Cunha, «Algumas considerações sobre as invalidades de atos processuais – nulidades e irregularidades: especialmente as “nulidades principais”», RMP, jan.-mar. 2024, N.º 177, p. 13).
Há nulidades suscetíveis de conhecimento oficioso e a todo o tempo (até ao trânsito em julgado da decisão) e nulidades relativas, que apenas aos interessados cabe arguir, dentro de certo prazo e com o ónus da proibição de venire contra factum proprio. Nessa medida, não se acha muito apropriada a dicotomia ainda acolhida no próprio Código de Processo Penal, no sentido de se distinguirem as nulidades entre sanáveis e insanáveis, uma vez que todas são, num certo sentido, sanáveis pelo trânsito em julgado da decisão, sendo preferível a distinção entre nulidades absolutas e relativas (assim, J. Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, t. 1, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 1270-1271; também assim, José M. Damião da Cunha, loc. cit., p. 14).
É, na verdade, discutida a classificação jurídica da omissão da advertência prevista no n.º 2, do citado artigo 134.º, do Código de Processo Penal, não se ignorando a divergência jurisprudencial e doutrinal quanto à natureza desta nulidade, controvérsia extensamente documentada no estudo do saudoso Senhor juiz Desembargador José Manuel Cruz Bucho (cfr. «A Recusa de Depoimento de Familiares do Arguido: o Privilégio Familiar em Processo Penal (notas de estudo)», pp. 153-163, disponível no sítio do Tribunal da Relação de Guimarães em: www.dgsi.pt/jtrg).
Em suma, para alguns, aquela nulidade deve ser qualificada como uma proibição de valoração a convocar a correspondente proibição de prova (ac. STJ de 11-02-2015: rel. Cons. Helena Moniz; ac. STJ de 23-06-2022: rel. Cos. Eduardo Loureiro); para outros, corporizando uma violação de formalidades de prova, convoca o regime da nulidade relativa ou dependente de arguição.
Como se refere no aludido estudo do Senhor Desembargador Cruz Bucho, “Os vínculos de parentesco, afinidade e adopção podem sofrer vicissitudes. Entre o momento da data da prática do facto delituoso e o momento da prestação de depoimento, as relações familiares podem constituir-se ou extinguir-se (v.g. nascimento de um filho ou de um irmão, casamento, adopção, divórcio, etc.). Suscita[ndo]-se, deste modo, a questão de saber qual o momento a que deve atender-se para o exercício do direito a que alude o artigo 134º do CPP. No que se refere ao parentesco, à afinidade e à adopção, atendendo à ratio do artigo 134.º do CPP, afigura-se-nos que o momento a que deve atender-se para determinar a vigência daqueles vínculos deve ser o momento em que há-de prestar-se o depoimento, independentemente da data da prática dos factos investigados ou imputados ao arguido (tempus commissi delicti), por ser no momento da inquirição que se manifesta a dura alternativa de faltar à verdade ou de comprometer gravemente os interesses de entes queridos. A existência do vínculo entre o arguido e os parentes e afins indicados na alínea a) do n.º 1 do artigo 134.º do CPP deve, assim, ser aferida no momento do depoimento e não no momento da prática do delito. Deste princípio é possível extrair três regras. 1ª- No momento da prestação do depoimento os familiares do arguido mencionados na alínea a) do n.º 1 do artigo 134.º do CPP, podem recusar-se a depor, mesmo se à data da prática dos factos o vínculo de parentesco, afinidade ou adopção ainda não estivesse constituído. 2ª- Inversamente, se à data da prestação do depoimento já não subsiste o vínculo por entretanto se ter extinguido, a testemunha está obrigada a depor, mesmo que à data da prática dos factos fosse parente, afim, adoptante ou adoptado do arguido ou posteriormente mas antes do momento da prestação do depoimento tivesse deixado de o ser. 3ª- Se os factos foram praticados após a extinção do vínculo de parentesco, afinidade ou adopção não há, evidentemente, direito de recusa.” (loc. cit., pp. 60 - 62).
No mencionado estudo do Senhor Juiz Desembargador Cruz Bucho, em suma, resulta, também, inequivocamente, que “Da omissão do dever de advertência não resulta, pois, qualquer proibição de valoração. Em conclusão: a omissão da advertência constitui nulidade (processual) sanável que, de acordo com o estatuído no artigo 120.º, n.º 3, al. d) do CPP, deve ser arguida até à conclusão do depoimento” (loc. cit. p. 163).
Como enquadramento genérico, pode dizer-se que as proibições de prova – vício mais grave que afeta qualquer possibilidade de apreciação da prova (proibida): “são nulas, não podendo ser utilizadas” (art. 126.º, n.ºs 1 e 3, do CPP) – respeita a provas obtidas mediante violação de direitos fundamentais, com tutela constitucional: “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações” – art. 32.º, n.º 8 da CRP.
O pensamento doutrinário e a prática jurisprudencial não têm sido uniformes na delimitação do universo das proibições de prova e na definição da fronteira com as nulidades de prova. A prática judiciária suscita dificuldades de distinção das situações e nem sempre é linear situar as contrariedades às normas processuais que regem em matéria de prova. Daí que Costa Andrade, após assinalar a “acentuada tensão para o concreto” a que obedece o direito das proibições de prova, considere escapar “tanto ao legislador como à doutrina”, “de todo em todo, a possibilidade de antecipar e de antecipadamente modelar normativamente as «miríades de casos que a vida segrega»” (Costa Andrade, Sobre as proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra: Coimbra Ed., 1992, p. 115). A propósito da temática em apreciação, existem distintas posições, doutrinárias e jurisprudenciais, que não cumpre desenvolver aqui e que se encontram tratadas, por exemplo, no já referido estudo de Cruz Bucho.
Sobre a “delimitação do instituto das proibições de prova”, de que cumpre partir, considera-se pertinente a posição de Helena Morão, quando defende: “Assim, parece-nos que a proibição de prova em sentido próprio no sistema processual penal português é somente aquela norma probatória proibitiva cuja violação possa redundar na afectação de um dos direitos pertencentes ao núcleo eleito no art. 32/8 da Lei Fundamental e que o artigo 126 do Código de Processo Penal manteve, sem alargar. Não basta a mera violação de uma proibição legal em matéria probatória, como na lei italiana, nem a violação de um qualquer direito fundamental, como na lei espanhola. Deste modo, a título meramente exemplificativo, não estaremos diante de uma proibição de prova quando ocorre uma violação da proibição do testemunho de ouvir dizer (artigo 129 do Código de Processo Penal). Efectivamente, quando se verifica uma ultrapassagem dos limites previstos para o depoimento indirecto, nenhum dos valores protegidos pelo artigo 32/8 da Lei Fundamental é posto em causa, mas apenas o direito fundamental do arguido a um processo dotado de estrutura acusatória, com garantias de respeito pelos princípios da imediação e do contra-interrogatório na fase de julgamento.
Neste caso é uma outra garantia constitucional que é atingida, a que vem prevista no nº 5 do artigo 32º da Constituição, e, para esta situação, vigora o regime geral das nulidades processuais penais (artigo 118º e segs. do Código de Processo Penal), vocacionado para a resolução das questões respeitantes à normal ponderação de valores inerente ao processo penal, que é ele próprio, em grande medida, Direito Constitucional concretizado. Assim, se o critério fundamental aqui apontado é o da afectação do núcleo valorativo dos direitos elencados no artigo 32/8 da Lei Fundamental, não é necessário que a lei comine, expressamente, a sanção da nulidade ou outra fórmula análoga para que estejamos perante uma proibição de prova. Por seu turno, não é por existir uma regra que comine a nulidade no Livro III do Código de Processo Penal que estamos perante uma proibição de prova” (Helena Morão, «O efeito-à-distância das proibições de prova no Direito processual penal português», RPCC, Ano 16.º, 2006, pp. 589-590).
Daqui resulta a dicotomia da consideração da natureza jurídica do depoimento de familiar ou afim não advertido/a nos termos do art. 134.º, n.º 2, do CPP, como integrando uma proibição de valoração probatória ou uma nulidade de prova.
Há quem defenda que a possibilidade de recusa de depor não se alicerça diretamente na tutela da intimidade da vida privada – que é um dos valores jurídico-constitucionais cuja violação pode implicar a proibição probatória –, pois é inquestionável que o direito de recusa se mantém nos casos em que os factos probandos não respeitam à vida privada ou à intimidade da testemunha, tendo apenas como ligação a esta a circunstância de serem imputados a um seu familiar. Por isso, ao invés do que frequentemente se defende, o direito de recusa da testemunha em depor não se funda nem num qualquer direito de defesa do imputado, nem na tutela da vida privada, mas tão só no reconhecimento do interesse de que as pessoas mais diretamente relacionadas com o arguido não se vejam confrontadas com o dilema de ficarem entre a prática de um crime de desobediência (em caso de recusa de depoimento) ou de falso depoimento, e a prestação de um depoimento incriminatório para a pessoa de tal arguido.
Como o STJ já teve oportunidade de afirmar no seu Ac. de 23-10-2008: rel. Cons. Artur Costa: «A possibilidade de recusar o depoimento, nos termos do artigo 134.º, n.1, als. a) e b), do CPP, não está relacionada com a intromissão na vida privada; a possibilidade de recusa relaciona-se tão-só com o facto de as pessoas mais intimamente ligadas ao arguido não serem obrigadas a depor contra ele, sujeitando-se à prestação de juramento e consequências inerentes (artigo 91.º)».
O Tribunal Constitucional, por seu turno, no seu acórdão n.º 154/2009, de 25-03-2009, in www.dgsi.pt, ao abordar o fundamento e a finalidade da regra do n.º 1 do artigo 134.º, já esclareceu que:
“(…)
O artigo 134.º do Código de Processo Penal de 1987 surgiu na sequência da supressão da distinção entre as figuras de testemunha e de declarante, que existia no direito anterior (cf. artigo 214.º e segs. do Código de Processo Penal de 1929), e do alargamento do princípio geral de que todas as pessoas poderão depor como testemunha, com exclusão dos interditos por anomalia psíquica, nos termos do artigo 131.º, e daqueles que estão legalmente impedidos de prestar testemunho, em função do seu posicionamento processual (os arguidos, assistentes e partes cíveis) ou por estarem sujeitos ao “dever de segredo”. Insere-se num conjunto de situações típicas (cf. artigos 132.º, n.º 2, 134.º e 135.º) que, em derrogação do dever jurídico de prestar declarações que incumbe às testemunhas [cf. artigo 132.º n.º 1, alínea d); dever penalmente censurado no artigo 360º do Código Penal, em caso de falso testemunho], consagram o direito a recusar depoimento (aliás, em algumas das hipóteses a recusa é um dever profissional ou deontológico).
Essas situações de legitimação da recusa a depor assentam em razões ou fundamentos não inteiramente sobreponíveis, se bem que relativamente próximos. «Trata-se, inter alia e fundamentalmente de: prevenir formas larvadas e indirectas de auto-incriminação; preservar a integridade e a confiança nas relações de maior proximidade familiar; proteger o alargado espectro de valores individuais e supra-individuais pertinentes à área de tutela da incriminação da violação de segredo profissional ou de segredos para este efeito equivalentes, como, v. g., o segredo de ministro de religião; poupar as pessoas concretamente envolvidas às situações dilemáticas de conflito de consciência de ter de escolher entre mentir ou ter de contribuir para a condenação de familiares ou de clientes» (M. COSTA ANDRADE, “Bruscamente no verão passado”, a reforma do Código de Processo Penal – Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 137º, n.º 3950, pág. 280).
A hipótese que agora se contempla, a possibilidade de recusa aprestar depoimento por parte dos familiares, cônjuge e afins do arguido (bem como por parte do ex-cônjuge de quem com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação), tem o propósito imediato de evitar situações em que tais pessoas sejam postas perante a alternativa de mentir ou, dizendo a verdade, contribuírem para a condenação do seu familiar.
Entendeu aqui a lei que o interesse público da descoberta da verdade no processo penal deveria ceder face ao interesse da testemunha em não ser constrangida a prestar declarações. Mas, além de pretender poupar a testemunha ao conflito de consciência que resultaria de ter de responder com verdade sobre os factos imputados a um arguido com quem tem parentesco ou afinidade próximos, o legislador quer proteger as “relações de confiança, essenciais à instituição familiar”. Como salienta MEDINA DE SEIÇA (Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Janeiro de 1996, “Prova Testemunhal. Recusa de Depoimento de Familiar de um dos Arguidos em Caso de Co-Arguição”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 6, Fasc. 3º, pág. 492 e 493):
«Com o direito de recusa evidencia-se que, e digamo-lo com a conhecida fórmula do Supremo Tribunal Alemão, «não é nenhum princípio da ordenação processual que a verdade deva ser investigada a todo o preço» (…). De facto, embora a descoberta da verdade constitua finalidade essencial de todo o processo penal (…) e elemento fundamental para uma correcta administração da justiça, a qual, enquanto vector essencial à manutenção da comunidade juridicamente organizada, representa uma vertente informadora da própria ideia de Estado-de-Direito (…), a eventual perda de prova com possível relevância para a descoberta da verdade será de aceitar nos casos em que a sua aquisição se traduza na lesão de um bem mais valioso. É o que sucede com o privilégio constante do artigo 134.º, n.º 1, do CPP: a lei renuncia ao possível conhecimento probatório da testemunha, ou melhor, renuncia aos meios de constrangimento destinados a obter o depoimento, deixando nas mãos da testemunha a decisão de prestar declarações (… ). E para que tal decisão seja efectivamente fruto de uma escolha livre e esclarecida a lei impõe às entidades competentes para receber o depoimento, uma vez verificado o laço familiar legalmente consignado, a obrigação de advertira testemunha, «sob pena de nulidade, da faculdade que lhes assiste de recusar o depoimento» (artigo 134.º, n.º 2 do CPP) (…).
Com o reconhecimento do direito de recusa pertencente aos familiares, a lei não só pretendeu evitar o conflito de consciência que resultaria para a testemunha caso tivesse de responder com verdade sobre os factos imputados a um familiar seu. Pretendeu, ainda e sobretudo, proteger as “relações de confiança, essenciais à instituição familiar”»
Esta é também a opinião de COSTA ANDRADE que conclui não haver razões para se afastar da teoria tradicional alemã na parte em que adscreve o primado no programa de tutela destas proibições de prova aos interesses pessoais da testemunha individualmente considerada ou na teia das relações de confiança e de solidariedade que a instituição familiar oferece (M. COSTA DE ANDRADE, Sobre as Proibições de Prova …, ob. cit. pág. 75 a 78):
«(…)
Afastando-se deste entendimento tradicional e dominante, sustenta GÖSSEL que só na perspectiva do primado da verdade material poderá alcançar-se uma interpretação correcta do direito de recusa de depoimento quer contra si próprio quer contra parentes e afins (respectivamente, arts. 132.º, n.º 2, e 134.º do CPP) [Cf., do autor, Neue Juristische Wochenschrift1981, págs. 653 e 2219; Goltdammer’s Archiv fürStrafrecht 1991, págs. 488 e segs., e Bockelmann-Fs.,pág. 805. Já antes e no mesmo sentido, EB. SCHMIDT, Juristenzeitung 1958, págs. 599 e segs.]. Tanto num caso como noutro, argumenta GÖSSEL, uma «consideração mais realista» obriga a concluir que estes «preceitos legais só podem ser vistos como preordenados a evitar, no interesse da verdade, depoimentos marcados pelo conflito» Neue Juristische Wochenschrift 1981, pág. 653; no mesmo sentido, Goltdammer’s Archiv für Strafrecht 1991, págs. 489 e segs.].
(…)
6. Aceite a ideia de que a razão de ser da norma é, não só a de obstar ao conflito de consciência que resultaria para a testemunha de ter de responder com verdade sobre os factos imputados a um seu familiar ou afim, mas também e sobretudo proteger as relações de confiança e solidariedade, essenciais à instituição familiar – verdadeiramente, é esta a sua raiz última –, importa agora perguntar se este “direito ao silêncio” concedido à testemunha é compatível com as garantias de defesa do arguido em processo criminal quando é ele quem requer o depoimento da testemunha. De notar que não se trata de um meio de prova que seja rejeitado por razões heurísticas (não se trata de uma situação de incapacidade para testemunhar, de inidoneidade probatória, de uma genérica configuração de tais testemunhos como não credíveis) tanto que, se a testemunha optar por depor, as suas declarações ficam simplesmente sujeitas à regra da livre valoração da prova.
6.1. O artigo 134.º do Código de Processo Penal concede, como se referiu, às pessoas mencionadas no seu n.º 1 a faculdade de recusarem o depoimento sem incorrerem em qualquer sanção.
É uma faculdade que a lei processual penal rodeia de cautelas destinadas a permitir o seu efectivo exercício, impondo à entidade competente para receber o depoimento o dever de advertir tais pessoas dessa faculdade, sob pena de nulidade (cf. n.º 2). Com a imposição desta advertência (à semelhança do que ocorre com dispositivos homólogos de outros ordenamentos: §52 da StPO germânica; art.º 199 do Codice di Procedura Penale, art.º 416 da Ley de Enjuiciamento Criminal) preocupou-se o legislador em assegurar que a opção da testemunha decorra de uma decisão informada, pois só assim fica inteiramente salvaguardada a faculdade – o direito ao silêncio – que, repete-se, lhe é conferida não só por causa do seu íntimo conflito de consciência, mas também para protecção do mesmo círculo familiar a que ela e o acusado pertencem.
(…)
Pode ainda acrescentar-se que, obrigar a testemunha a prestar depoimento quando é indicada pelo arguido, pode reverter numa forma depressão sobre a testemunha que, não querendo contribuir para a condenação do seu familiar, pode sentir-se compelida a mentir. Uma testemunha particularmente sensível àqueles valores que estão na base do regime de dispensa pode sentir-se coagida a faltar à verdade por não se conseguir libertar do íntimo conflito afectivo ou da pressão familiar, apesar de ser o arguido o sujeito processual que a coloca em tal dilema.
6.2. É certo que no outro braço da ponderação está o direito à prova que, em processo penal tem, quanto ao arguido, uma dimensão qualificada, como corolário da imposição constitucional de que o processo assegure todas as garantias de defesa.
Efectivamente, o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição contempla a garantia de que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”, sendo entendimento uniforme da doutrina e da jurisprudência constitucional que esta fórmula condensa não só todas as garantias de defesa que estão contempladas nos demais números do mesmo artigo, como “também serve de cláusula geral englobadora de todas as garantias de defesa que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completados direitos de defesa do arguido em processo criminal” (cf. J. J. GOMESCANOTILHO, VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, p. 516).
(…)
Tem de reconhecer-se que o direito de a testemunha recusar aprestação de declarações mesmo quando indicada pelo arguido – esta extensão do que podemos designar como segredo familiar – se materializa, em último termo, numa restrição de uma das dimensões ou desdobramentos da garantia de defesa em processo criminal conferida pelo n.º 1 do artigo 32.º da Constituição que é o direito à prova, entendidocomo o poder de um sujeito processual representar ao juiz a realidade dosfactos que lhe é favorável e de exibir os meios representativos desta realidade (Cf. J.J. GOMES CANOTILHO, Estudos Sobre Direitos Fundamentais, 1.ª ed., pág. 170). Será essa limitação constitucionalmente suportável, em homenagem à protecção da dignidade ou da liberdade de conformação da personalidade da testemunha e da tutela da instituição familiar?
(…)
Como já se disse, o fundamento último da legitimidade da recusa a depor por parte das pessoas indicadas no n.º 1 do artigo 134.º do CPP situa-se no interesse da família enquanto elemento fundamental da sociedade e espaço de desenvolvimento da personalidade dos seus membros (n.º 1 do artigo 67.º da CRP), cuja importância supera o interesse da punição dos culpados. A possibilidade de um familiar próximo vir a ser constrangido a testemunhar contra outro perturba a confiança, fundada no afecto ou nas projecções sociais sobre o afecto devido, que é o cimento da coesão desse elemento básico da sociedade.
Por este ângulo, o que a regra do n.º 1 do artigo 134.º protege, em última linha, é a confiança e a espontaneidade inerentes à relação familiar, prevenindo (enquanto desenho do sistema jurídico relativo a esse ambiente privilegiado no qual as relações e as trocas de informação se devem desenvolver sem receio de aproveitamento por terceiros ou pelo Estado) e evitando (quando, perante um concreto processo, o risco passa de potencial a actual) que sejam perturbadas pela possibilidade de o conhecimento de factos que essa relação facilita ou privilegia vir a ser aproveitado contra um dos membros. E visa também – aliás, é essa a sua justificação de primeira linha – poupar a testemunha ao angustioso conflito entre responder com verdade e com isso contribuir para a condenação do arguido, ou faltar à verdade e, além de violentar a sua consciência, poder incorrer nas sanções correspondentes. Trata-se de uma forma de protecção dos escrúpulos de consciência e das vinculações sócio-afectivas respeitantes à vida familiar que encontra apoio no n.º 1 do artigo 67.º da Constituição e que outorga ao indivíduo uma faculdade quese compreende no direito (geral) ao desenvolvimento da personalidade, também consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, enquanto materialização do postulado básico da dignidade da pessoa humana (Embora não pareça, como concluiu o acórdão recorrido e afirma alguma doutrina, que possa ancorar-se directamente na tutela da intimidade da vida privada. Os factos podem não ter outra ligação à testemunha senão a circunstância de serem imputados ou interessarem à definição da responsabilidade penal de um seu familiar (lato sensu) e mesmo assim existe direito ao silêncio).”
Independentemente da adesão a uma ou a outra das conceções sobre a natureza do vício referido, por um lado, a invalidade da omissão da observância do art. 134.º, n.º 2, do CPP, a ser considerada como nulidade, absoluta ou relativa, ficou inexoravelmente sanada.
Por outro lado, a ser classificada como proibição de valoração de prova, o certo é que tal vício, sendo conhecido pelo requerente, nunca foi invocado, podendo tê-lo sido, nem nas diligências processuais em que se verificou, nem no recurso ordinário que o arguido interpôs para o TRC da decisão condenatória de 1.ª Instância.
Portanto, nunca teria a virtualidade de preenchimento dos requisitos para a invocação como prova proibida relevante para requerer a revisão, uma vez que, de acordo com o que atrás se disse, não foi a mesma descoberta após a condenação do recorrente, não se verificando, pois, os requisitos da previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP.
A pretendida revisão da decisão condenatória é, pois, negada.
III. Decisão
Por tudo quanto se expôs, acorda-se, em conferência, em julgar negada a revisão peticionada pelo arguido-condenado AA, relativamente ao acórdão do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de .../Juiz ..., de 16-11-2023 (artigos 455.º, n.º 3 e 456.º, do CPP).
Custas pelo requerente, fixando-se em 4 (quatro) UC a taxa de justiça, a que acresce a quantia de 7 (sete) UC, por se tratar de pedido manifestamente infundado (artigos 456.º, 513.º, do CPP e art. 8.º, n.º 9, do RCP, e Tabela III, anexa), face à relativa complexidade das questões apreciadas.
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Lisboa, data e assinaturas supra certificadas
(Texto elaborado e informaticamente editado, integralmente revisto pelo relator, sendo eletronicamente assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pela Senhora Juíza Conselheira Presidente da Secção - art. 94.º, n.º 2 do CPP)
Os juízes Conselheiros
Jorge dos Reis Bravo (relator)
Vasques Osório (1.º adjunto)
António Latas (2.º adjunto)
Helena Moniz (Presidente da Secção)
2. Na peça processual em causa foi inserida a seguinte nota (2): «“[…] a falta de advertência nos termos do artigo 134.º, n.º 2, do CPP, não corporiza a abrogação de qualquer norma ou princípio constitucional, razão por que a interpretação normativa que articule este preceito com o disposto no artigo 120.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPP, para entender que a irregularidade fica convalidada se não for arguida em tempo (até à conclusão do ato), igualmente não suscita qualquer problema de compaginação com a Lei Fundamental.
Uma parte da doutrina entende que a invalidade da prova testemunhal associada à preterição da advertência prévia do direito a recusar depor (e sem consentimento ulterior) é impassível de ser suscitada ou aproveitada “pelo arguido [ou demais sujeitos processuais, diríamos] para impugnar a sentença que se tenha fundado no depoimento (…), porquanto ele não é o titular do direito infringido. Este é um efeito da chamada rechtskreistheorie defendida pela maioria da doutrina germânica” (P. PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, Univ. Católica Ed., 2.ª Ed., 2008, p. 360). Também aqui, sublinha-se a natureza da recusa do depoimento como uma externalidade aos direitos de defesa, o que implica, por inerência, se preserve a prova adquirida e a decisão que nela encontrou suporte, mau grado a irregularidade em que se haja incorrido.(…)”».↩︎
3. Na peça processual em causa foi inserida a seguinte nota (3): «“[…] Pelo contrário, quando a assistência do arguido por defensor é obrigatória no interrogatório (artigo 271.º, n.º 3, in fine, do CPP), a arguição da irregularidade depois do ato terminado (tanto mais assim em fase de recurso), terá de se caracterizar como abusiva e desleal e a invalidação do ato como uma violência sobre a depoente desnecessária e inútil, sem sequer qualquer conexão com direitos de defesa legítimos(…)”.»↩︎