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TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA
DATA DE JULGAMENTO
MORADA NO ESTRANGEIRO
CONTUMÁCIA
Sumário
I. A orientação dimanada do AFJ 5/2014 de 21/5/2014 impede que seja solicitada a entidades judiciárias estrangeiras a notificação ao arguido em processo penal da acusação e da data designada para julgamento, uma vez que o mesmo não tem TIR validamente prestado. II. Mesmo que seja concomitantemente solicitada a prestação de TIR, a mesma será ineficaz relativamente à declaração de contumácia, uma vez que esta só cessa quando o arguido se apresentar voluntariamente ao processo em território nacional ou aqui seja detido. III. A cessação da contumácia através de entidades judiciárias estrangeiras, com recurso a mecanismos de cooperação internacinal, só permitirá que o processo seja reatado desde que o arguido coopere com esse objectivo. IV. Na verdade, não prestando o arguido TIR que permita que as notificações ocorram através de carta simples com prova de depósito (artigo 196º, n.º 3, al. c) do CPP), não poderá ser julgado na ausência nos termos conjugados dos artigos 196, n.º 3, al. d) 333º, n.º 1, ambos do CPP.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Local Criminal do Funchal, Juiz 1, foi proferido o seguinte despacho, datado de 26 de Outubro de 2024: (transcrição)
“A fls. 233, veio a Il. Advogada do arguido, informar da sua morada actual, situada no Reino Unido (especificamente em Inglaterra) requerendo que seja notificado nessa morada mais requerendo que não seja declarada a sua contumácia.
Nessa sequência proferimos o despacho de fls. 238 no qual em suma, se fez uso do Ac do STJ de Fixação de Jurisprudência 5/2014, concluindo que a contumácia só cessará quando o arguido se apresentar em juízo ou for detido e prestar TIR.
A fls. 240 vem o arguido através da sua Il defensora requerer que o TIR seja prestado no Consulado de Inglaterra uma vez que não pretende regressa a Portugal.
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O Ministério Público, no seguimento aliás da posição anteriormente tomada quer por si quer por mim própria, promove o indeferimento do requerido por falta de fundamento legal.
Cumpre decidir.
Desde logo, cumpre sinalizar que a minha posição jurídica sobre a questão em apreço se alterou, pois que passei a entender que a apresentação em juízo de um arguido residente no estrangeiro fará cessar a declaração de contumácia que o atinge.
Na verdade, tal apresentação em juízo supõe um contacto pessoal do arguido com o tribunal. Foi a falta desse contacto que levou à declaração de contumácia e será esse contacto que justificará a cessação da contumácia, nada impedindo que essa apresentação se dê num tribunal estrangeiro, o qual, no âmbito da cooperação judiciária internacional, funciona como legítima extensão (como “lunga manus”) do tribunal português. Assim sucede em geral em diligências solicitadas no âmbito da cooperação judiciária internacional.
Assim, é isso que se procura assegurar, ainda que por carta rogatória, ou seja, o contacto pessoal do arguido com o tribunal, visando com um tal contacto alcançar os efeitos considerados necessários no do Ac do STJ de Fixação de Jurisprudência 5/2014. Sublinhando-se a convocação e a apresentação do arguido no tribunal rogado como um modo de realização do contacto pessoal do arguido com o tribunal e o processo, materializado ainda na notificação pessoal da acusação, e só depois prestando o termo de identidade e residência, com comunicação dos direitos que lhe assistem, de modo a consubstanciar-se, nos mesmos moldes em que sucederia no tribunal rogante, a apresentação do arguido, concretizando-se a sua ligação ao processo, e o fundamento para a caducidade da contumácia.
Tomando de perto a jurisprudência que vem sendo firmada, inter alia Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, nos processo 73/18.0PAVFR.P1, de 28.02.2024, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no processo 720/03.8PUPRT-A.P1, de 25.01.2023 (Sumário: I – Deve considerar-se verificada a caducidade da declaração de contumácia do arguido residente em país estrangeiro, nos termos previstos no artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, se o arguido se apresentou voluntariamente perante a autoridade judiciária desse país, por ter sido convocado pelo tribunal rogado que, em execução da carta rogatória expedida pelo tribunal português, o notifica pessoalmente da acusação, do despacho que a recebeu e do despacho que designou data para realização da audiência de julgamento, com a advertência de que se faltar, tal julgamento poderá ter lugar na sua ausência, sendo representado para todos os efeitos pelo defensor, do direito de requerer que o julgamento se realize na sua ausência ao abrigo do artigo 334.º, n.º 2 do Código de Processo Penal ou solicitar a sua inquirição por videoconferência nos termos do artigo 10.º, n.º 9, da Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal entre os Estados Membros da União Europeia. II – Tal situação é equiparável à apresentação do arguido mencionada nesse artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.III – A tal não obsta a jurisprudência fixada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2014.)
No mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no processo 298/18.8GDVFR-A.P1 de 12.07.2023.
Também preconizando a mesma solução, se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no processo 179/06.8PLLSB-A.L1-5 de 23.04.2024 (sumário I - O contacto pessoal do Arguido contumaz residente no estrangeiro, materializado pela via da apresentação ou da detenção junto de Autoridade Judiciária rogada nos termos e limites solicitados por via de instrumento de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, é equiparável à apresentação do Arguido mencionada no art.º 336.º/1CPP. II - A tal não obsta a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 5/2014. III – Fornecida pelo Arguido às Autoridades Rogadas, que o comunicaram aos autos, morada atualizada para efeitos de TIR anteriormente prestado, pela mesma via feita notificação da acusação e do despacho que designa data para audiência de discussão e julgamento, não é possível realizar a mesma na sua ausência – requerida ou consentida -, sem que previamente se declare a caducidade da situação de contumácia do Arguido).
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Tendo em conta o quadro de cooperação judiciária internacional em matéria penal, e o surgimento no âmbito específico da União Europeia de uma constelação de diplomas, respeitantes à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo, bem como à aproximação ou harmonização das legislações dos Estados-Membros da União Europeia em matéria penal, ou ainda a experiência de cooperação entre as autoridades judiciárias desses mesmos Estados, nomeadamente ao abrigo da Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, e do Acordo de Comércio e Cooperação entre a União Europeia e o Reino Unido ademais os meios de célere comunicação atualmente existentes, não só para a troca de informações, mas também para a comunicação entre pessoas e instituições, em tempo real, com som e imagem [de que é exemplo a videoconferência que o Segundo Protocolo Adicional à referida Convenção prevê, no seu art.º 9º, nº 5, al. a)], é viável a pretensão deduzida pelo arguido.
Assim deverá ser emitida carta rogatória para o Reino Unido, tendo em vista a cessação da contumácia e o prosseguimento do processo com a notificação do arguido do despacho de recebimento da acusação e da data para realização do julgamento que a seguir se proferirá, de um modo que salvaguarde a eficiente realização da justiça penal e sem que daí resultem sacrificadas as garantias constitucionais de defesa do arguido, assegurando-se-lhe o direito a “ser julgado no mais curto prazo” e de um modo compatível com as suas “garantias de defesa”, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Neste sentido emita-se carta rogatória para Inglaterra onde se apurou que o arguido reside actualmente, por tal acto não contender com o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 5/2014, de 21/05, dado com ele se não visar apenas a prestação de TIR, e muito menos se fazer operar o regime de notificação postal simples, que pudesse resultar da conjugação das normas dos art.ºs 196º e 113º do CPP, mas somente a aplicação de tal medida de coacção concomitantemente à apresentação pessoal do arguido no tribunal, no caso o tribunal rogado, após prévia convocação para o efeito, com observância do disposto no art.º 58º, nºs 2 e 5, do CPP, como decorre ainda das disposições conjugadas dos art.ºs 336º, nº 2, e 196º, nº 1, provocando-se assim a cessação da contumácia, ao abrigo do art.º 336º, nº 1, do CPP, e permitindo-se que o processo possa prosseguir os seus ulteriores termos, providenciando-se para tal as notificações pessoais que hajam de ser realizadas, e possibilitando-se a eventual realização do julgamento na ausência do arguido, seja porque este expressamente o autorize, nos termos dos art.ºs 334º, nº 2, e 333º, nº 4, seja porque se verifiquem os pressupostos do art.º 333º, nºs 1 a 3, do CPP, mantendo o arguido, nos termos aí previstos, o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, deslocando-se ao tribunal onde decorre o julgamento, se assim o entender, ou prestando declarações por videoconferência, que poderá ser realizada nos termos do disposto no art.º 9º, nº 5, do Segundo Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal.
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Desde já e dada a provável eventualidade, dada a posição que vem sendo manifestada pelo arguido, de o mesmo comparecer no tribunal rogado, ser notificado nos termos que a seguir se enunciarão e prestar TIR, e por isso vir a ser declarada cessada a contumácia que o atinge, passa-se a proferir despacho de:
DESIGNAÇÃO DO DIA PARA A AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO:
Para realização da audiência de julgamento, que terá lugar neste Juízo Local Criminal (J1), no Palácio da Justiça, no Funchal, designo o próximo dia:
- 10 de Março de 2025, pelas 9.30 horas.
Em caso de adiamento ou para audição do arguido (artigo 312º, nº 2 do Código de Processo Penal):
-17 de Março de 2025, pelas 9.30 horas
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Requisite CRC actualizado do arguido, com antecedência máxima de 10 dias sobre a primeira data agora designada.
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Notifique (artigo 313º, nº1 do Código de processo Penal):
- o arguido, nos termos do artigo 113º, n.º 1, als. c), e 3, do Código de Processo Penal e ainda nos termos do artigo 311-B, do Código de Processo Penal.
- as testemunhas, nos termos do artigo 113º, n.º 1, als. a), do Código de Processo Penal, com a cominação prevista no artigo 116º do mesmo diploma.
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Em suma, expeça carta rogatória dirigida às autoridades judiciárias inglesas a fim de o arguido ser convocado:
- para comparecer pessoalmente no Tribunal rogado e
- ser aí notificado pessoalmente do despacho de recebimento da acusação e do supra proferido de marcação de julgamento, (com o que se dá essa sua apresentação em juízo).
Subsequentemente:
- deverá ele prestar termo de identidade e residência com comunicação dos direitos a que alude o art.º 61º do Código de Processo Penal, a fim de os autos poderem prosseguir os seus ulteriores termos.”
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Inconformado com tal decisão, o Ministério Público veio interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
“CONCLUSÕES:
1. Vem o presente recurso interposto do despacho que determinou a expedição de carta rogatória com vista à apresentação do arguido perante autoridade judiciária do Reino Unido, e notificação arguido para, no mesmo acto, com vista a prestar TIR, e por essa via ser declarada cessada a contumácia, permitindo a prossecução do processo nos seus posteriores termos.
2. Este despacho é contrário à jurisprudência fixada através do AFJ n.º 5/2014 de 21.05.2014, que determina: “Ainda que seja conhecida a morada de arguido contumaz residente em país estrangeiro, não deve ser expedida carta rogatória dirigida às justiças desse país para ele prestar termo de identidade e residência, porque essa prestação não faz caducar a contumácia.”
3. A contumácia tem como objectivo primacial forçar o arguido que dolosamente se furta à notificação do despacho que designa dia para julgamento, a colocar-se à disposição do Tribunal, e por via do TIR, manter uma morada sempre actualizada, para a qual pode ser contactado. É por via do TIR que a ligação entre o arguido e o Tribunal se mantém.
4. O Despacho de que se recorre diz que a emissão e carta rogatória não tem em vista a prestação de TIR que o AFJ proíbe. Contudo o Tribunal a quo acaba por se confundir ao dizer que a carta precatória é para aplicação de medida de coacção, que corresponde precisamente ao TIR.
5. Para além disso, o próprio artigo 336º, n.º 2 do Código de Processo Penal refere que logo após a apresentação do arguido perante uma autoridade judiciária o mesmo deve prestar TIR. Isto equivale a dizer que de forma indirecta, quando se emite uma carta rogatória para fazer o arguido se apresentar perante uma autoridade estrangeira, o passo imediatamente subsequente é fazê-lo prestar TIR.
6. A contumácia não cessa pela prestação do TIR, mas pela apresentação do arguido perante uma autoridade judiciária de outro país, pelo que a carta rogatória para um dos fins reconduz necessariamente ao outro. No rigor princípios e de acordo com o regime legal não é a mesma coisa, mas em termos práticos, uma e outra solução levam à mesma situação. E se assim é, ao proibir a emissão e uma carta rogatória para prestação de TIR, na nossa perspectiva, também se proíbe e emissão deste instrumento de cooperação judiciária em matéria penal, para efeito de fazer o arguido se apresentar perante a autoridade judiciária, já que o acto subsequentes é o de prestação e TIR.
7. Entendemos que o Tribunal se precipitou ao desde já designar data para a realização do julgamento, pois que, ainda que a carta rogatória possa vir a ser cumprida, de que desde já colocamos as nossas reservas relativamente ao facto de alguma autoridade judiciária do Reino Unido mostre disponibilidade cumprir a diligência rogada, antes da dará para a realização do julgamento é sempre necessária declarar cessada a contumácia.
8. Por isso o Tribunal sem qualquer base de sustentação factual, configura a possibilidade de o arguido vir a requerer o julgamento na ausência ou até na possibilidade de requerer a audição com recurso a videoconferência. Será que configurou essa possibilidade? Cremos que é mais um “convite velado”.
9. Sendo que é através do TIR que fica assegurada a comunicação com o arguido e a disponibilidade dele para os termos do processo, não vemos de que forma essa disponibilidade possa ser materializada, atendendo a que o arguido manifestou a intenção e mão mais residir em Portugal.
10. É no mínimo estranho que o arguido após tantos anos sem se preocupar com a justiça do seu país, sabendo que era procurado pela justiça Portuguesa, só agora teve interesse nestes autos? Talvez porque necessita de um documento e não o consegue obter por se encontrar em situação de contumácia?
11. O mais provável é que sendo cessada a contumácia e consiga obter esse documento se volte a eclipsar, e muito provavelmente ninguém o conseguir agarrar. E teremos mais uma “sentença para emoldurar” …
12. Se o arguido tem assim tanta boa vontade, podia lançar mão, por exemplo, da prerrogativa prevista no art.º 332º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
13. O AUJ 5/2014 previu todas as consequências em função da jurisprudência que fixou. Será que o STJ não previu a possibilidade e um arguido se apresentar perante um Tribunal estrangeiro? Certamente que previu, e também previu que através da expedição e uma carta rogatória para um arguido prestar TIR perante uma autoridade judiciária de outro país? e mesmo assim não deixou e fixar jurisprudência como fixou…
14. Estamos perante jurisprudência fixada pelo pleno das secções criminai do Supremo Tribunal de Justiça, que por si só são sinal de força e prestígio que advém de onde é emanada e talvez por isso, só situações muito especiais é permitido aos tribunais de primeira instância divergirem da jurisprudência fixada em face do desenvolvimento de novo argumento relevante que não tenha sido ponderado pelo STJ, ou que a jurisprudência fixada se mostre ultrapassada ou que essa tenha sido alterada de forma evidente pela evolução doutrinária e/ou jurisprudencial.
15. No caso concreto não vemos que quer a argumentação expendida pelo Tribunal a quo, quer a jurisprudência dos Tribunais da Relação ali citada tenha colocado em causa a jurisprudência. O que nos assistimos foi uma nova forma de “contornar” a referida jurisprudência, sem que se lhe possa apontar divergência directa.
16. Esta “nova” forma de interpretação tem por passe o seguinte raciocínio: se o AUJ 5/2014 impede a emissão e uma carta rogatória para fazer alguém a residir no estrangeiro prestar TIR perante uma autoridade judiciária e por força dessa apresentação fazer cessar a contumácia, então emite-se uma carta rogatória para esse alguém se apresentar perante uma autoridade judiciária para cessar a contumácia e por força dessa apresentação, nos termos do art.º 336º, n.º 2 do Código de Processo Penal, faz-se esse alguém prestar TIR.
Assim, deve o despacho de que se recorre ser substituído por outro, que, em respeito à jurisprudência fixada pelo AFJ 5/2014 de 21.05, não determine a emissão de carta rogatória e que aguarde pela apresentação do arguido em juízo ou a sua detenção, e nessa sequência se determine a cessão a contumácia, e prestação e TIR, e só após seja designada data para a realização do julgamento.”
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Ao recurso admitido foi atribuído efeito suspensivo e determinado que subisse imediatamente e em separado.
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Na resposta apresentada o arguido AA pugnou pela manutenção do decidido, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
“V. CONCLUSÕES
I. O recurso apresentado pelo recorrente carece de qualquer fundamento legal, estando a sentença do Tribunal a quo conforme o direito e jurisprudência dos Tribunais Superiores.
II. O paradeiro do arguido é conhecido, embora no estrangeiro, o que permite possibilidade de notificação pessoal entre o tribunal e o arguido através de autoridade oficial estrangeira pois, como já referido, a autoridade será como uma legítima extensão do tribunal português, no contexto de cooperação internacional.
III. E tal posição não é contrária à jurisprudência fixada pelo STJ, pelo contrário, pretende alcançar os efeitos lá previstos: não cessar a contumácia através de carta rogatória para prestar TIR mas sim para se apresentar diante de autoridade estrangeira.
IV. Que, consequentemente, levará a prestação de TIR e cessar a contumácia.
V. E seguem este entendimento a jurisprudência do Tribunal da Relação recente: veja-se os acórdãos transcritos no douto despacho recorrido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, nos processo 73/18.0PAVFR.P1, de 28.02.2024, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no processo 720/03.8PUPRT-A.P1, de 25.01.2023; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no processo 298/18.8GDVFR-A.P1 de 12.07.2023; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no processo 179/06.8PLLSB-A.L1-5 de 23.04.2024.
VI. O arguido tem o direito a ser julgado de forma justa, ainda que na sua ausência, sem a necessidade de despender de largas quantias de dinheiro para vir para Portugal e acarretar com consequências nefastas de uma contumácia se está disponível para resolver a questão como a jurisprudência recente tem feito.
VII. Bem como tem o direito de liberdade individual e de circulação para estabelecer a sua residência em qualquer lugar do mundo, sem ter que apresentar qualquer justificação a qualquer autoridade.”
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Neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido da procedência do recurso referindo designadamente (transcrição parcial):
“Não olvidando que recentemente1 a jurisprudência se vem inclinando no sentido de consentir que, através de instrumento de cooperação judiciária internacional, o arguido possa ser convocado para comparecer pessoalmente em tribunal estrangeiro (rogado) a fim de ai ser notificado pessoalmente da acusação, (momento que se assume como o da sua apresentação em juízo), com a subsequente prestação de TIR com comunicação dos direitos a que alude o artigo 61º do Código de Processo Penal, logrando-se assim encontrar um meio processual expedito para o andamento processual, tendemos a acompanhar o recurso interposto pelo Ministério Publico.
O caminho processual preconizado na decisão recorrida, se prima facie parece autorizar um meio prático de permitir a realização da justiça penal em tempo útil, o certo é que não se harmoniza com o iter processual penal preconizado no CPP, concretamente referimo-nos às consequências processuais decorrentes da prestação de TIR.
Estas consequências, com previsão no n.º 3 do Artigo 196º do CPP, têm expressão prática muito relevante, como meio de agilização de contacto com o arguido, que a partir daquela prestação se passa a efectuar através de via postal simples, nos termos previstos no artigo 113 n.º 3 do CPP - conforme explicitado no acórdão de Fixação de jurisprudência 5/2014 de 21 de Maio:
“Acontece que a notificação por via postal simples segue o procedimento descrito nos n.ºs 3 e 4 do art.º 113.º do CPP, procedimento esse que, embora agilizado, relativamente a outras modalidades de notificação como a pessoal, garante, se cumprido nos seus precisos termos (e só nessas circunstâncias), a fiabilidade da transmissão ao arguido da comunicação do tribunal. Esse procedimento consiste no seguinte: o distribuidor do serviço postal tem o dever de, após depositar a carta na caixa do correio do notificando, exarar uma declaração indicando a data e confirmando o local exato do depósito, que depois envia ao tribunal remetente. O distribuidor postal funciona, pois, como um «agente judiciário», recaindo sobre ele o dever funcional, juridicamente fundado, de prestar aquela declaração, declaração essa que certifica a entrega da carta na caixa de correio do arguido. É essa declaração que fiabiliza a via postal como meio de comunicação ao arguido do ato ou da convocação do tribunal. Esse dever jurídico imposto aos distribuidores dos serviços postais nacionais não é evidentemente extensível aos serviços postais estrangeiros, pelo que a remessa por via postal simples da comunicação de qualquer ato ou convocação do tribunal ao arguido residente no estrangeiro para a sua morada não cumpriria os requisitos do art.º 113.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, não valendo, pois, como notificação. Nem poderia «substituir-se» a notificação simples pela carta registada, prevista igualmente como meio de notificação na al. b) do n.º 1 do art.º 113.º do CPP. Na verdade, não é por acaso que o legislador estabeleceu a via postal simples para a notificação do arguido sujeito a TIR. É que a notificação por via postal simples para a morada indicada pelo arguido, ao impor a elaboração pelo carteiro da declaração de depósito, e ao responsabilizar simultaneamente o arguido pela recolha da correspondência recebida nessa morada, assegura a entrega da correspondência no domicílio do destino, o domicílio indicado pelo arguido. É essa declaração que o legislador entendeu ser a prova mais fiável, ou melhor a única fiável, da efetivação da notificação ao arguido, por sua vez responsabilizado pela receção de qualquer comunicação do tribunal naquele endereço, que ele escolheu para esse fim.”
E este fundamento do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, mostra-se verdadeiramente relevante no caso que nos ocupa.
Ora, sendo a morada que consta do TIR, uma morada sita no estrangeiro, não se mostra possível a notificação do arguido nos termos previstos no artigo 113 n.º 3 do CPP, estando ao tribunal vedado retirar as consequências processuais previstas na al. c) do n.º 3 do Art.º 196 do CPP.
Assim, aquilo que poderia parecer um meio de agilizar o andamento processual, não o será, no posterior desenrolar do processo.”
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Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, tendo o arguido vindo declarar que mantém o alegado nas contra-alegações de recurso por si apresentadas junto do tribunal recorrido.
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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II- Questões a decidir:
Preceitua o art.º 412.º, n.º 1, do CPPenal que “A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
É consabido que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou de nulidades que não se considerem sanadas, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na decorrência dos argumentos expendidos em sede de motivação.
Assim, as questões a decidir nos presentes autos prendem-se com determinar se o arguido declarado contumaz, vindo aos autos informar da sua morada no estrangeiro, poderá ser aí notificado da acusação contra si deduzida, bem como da data designada para o julgamento, através de pedido de cooperação judiciária internacional, a fim de fazer cessar os efeitos da declaração de contumácia.
III. dos elementos do processo relevantes para apreciação do recurso
Do exame dos autos verifica-se que:
- Por despacho proferido em 23/03/2020, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido imputando-lhe a prática de um crime um crime de furto qualificado, na forma consumada, p. e p. pelo arts. 26.º, 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, e), todos do Código Penal.
- Apesar de o arguido não ter sido notificado da acusação, o processo prosseguiu nos termos do nº 5, do art.º 283º do CPP, tendo os autos sido remetidos à distribuição.
- Em 04/09/2020, foi proferido despacho de recebimento da acusação e designada data para realização do julgamento, tendo sido aplicada a medida de coacção (TIR) com que o arguido deveria aguardar os ulteriores termos processuais.
- Uma vez que não foi possível a sua notificação da acusação, nem do despacho que a recebeu e designou dia para a audiência, assim como também não prestou Termo de Identidade e Residência (TIR), por ser desconhecido o seu paradeiro, foi ordenada a sua notificação edital, nos termos do art.º 335º, nºs 1 e 2 do CPP, para se apresentar em juízo no prazo de 30 dias, sob pena de ser declarado contumaz.
- Por decisão proferida em 06/01/2021, o arguido foi declarado contumaz e emitidos mandados de detenção do mesmo, para posterior prestação de TIR.
- O arguido mantém-se, actualmente, em situação de contumácia.
- Por requerimento datado de 16/07/2024 o arguido veio informar a sua morada como sendo ..., e requereu ser notificado nessa morada, não devendo ser declarada a contumácia.
- Em 03/10/2024 foi proferida decisão nos seguintes termos “Solicite à Il. defensora que informe que a contumácia só poderá ser cessada quando o arguido se apresentar voluntariamente em juízo ou for detido e prestar TIR, pois que o conhecimento da sua actual residência não faz cessar a contumácia através da expedição de carta rogatória para prestação de TIR - cfr. Ac. do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 5/2014.”
- Por requerimento apresentado em 09/10/2024 o arguido requereu que o TIR fosse prestado no Consulado da Inglaterra, uma vez que não pretende regressar a Portugal.
- Ouvido, o MP pronunciou-se nos seguintes termos “A cessação da contumácia por um arguido só pode ser cessada quando ele foi detido ou se apresentar voluntariamente, nos termos do disposto no art.º 336º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Para além disso as embaixadas e consulados não são entidades às quais os Tribunais possam determinar o cumprimento de ordens, como por exemplo, aplicar uma medida de coacção como o TIR, pelo que promovo o indeferimento ao requerido por falta de fundamento legal.”
- Foi então proferido o despacho de que vem interposto o presente recurso.
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IV. Fundamentação
No caso dos autos verifica-se que se está perante a situação daqueles arguidos contra quem foi deduzida acusação sem que nunca, sequer, tenham sido ouvidos no processo, tenham sido constituídos arguidos, ou tenham prestado TIR.
Com efeito, desde o início do processo não foi possível contactar o arguido, já que se encontrará a residir no estrangeiro.
Assim, deduzida acusação pública, o processo prosseguiu nos termos do disposto no art.º 283º, 5 do CPPenal, atenta a impossibilidade de se conseguir a notificação do arguido/recorrido.
Posteriormente, continuando a verificar-se a ausência de condições para notificar o arguido da data designada para o julgamento, ou executar a sua detenção, foi o mesmo declarado contumaz, nos termos do disposto no art.º 335º, 1 do CPPenal, bem como ordenada a emissão de mandados de detenção, que até ao momento não foi possível cumprir, mantendo-se o arguido contumaz.
Na realidade, verifica-se que no direito vigente, nos casos em que o arguido presta TIR logo que é constituído nessa qualidade, o mesmo passa a ser notificado na morada por si indicada no antedito TIR, por carta simples enviada para tal endereço, desde que se mostre certificado nos autos, pelos serviços postais competentes, que a carta remetida ficou devidamente depositada na caixa de correio respectiva.
Nessa sequência, em tais hipóteses, ao abrigo do disposto no art.º 333º, 1 e 2 do CPPenal, a audiência poderá ser realizada na ausência do arguido, precisamente porque, apesar de o mesmo não ter comparecido, se considera devidamente notificado, na morada constante do TIR que prestou e havia sido expressamente advertido dessa possibilidade – cfr. artigo 196º, n.º 3, al.s c) e d), do mesmo diploma.
Nesses casos – realização da audiência na ausência do arguido – a sentença é-lhe notificada logo que seja detido ou se apresente voluntariamente, sendo que o prazo de recurso somente se inicia a partir da data em que ocorra a notificação da sentença. Ou seja, nessa específica tramitação, o arguido não é representado, para efeito da notificação da sentença/Acórdão, na pessoa do seu defensor, seja constituído ou nomeado – cfr. art.º 333º, 5 do CPPenal.
Por outro lado, de acordo com o preceituado no nº 4 do citado art.º 333º, bem como do estatuído no art.º 334º, 2, do CPPenal, a audiência poderá ainda realizar-se na ausência do arguido a requerimento do próprio em que expresse o consentimento a tal solução, designadamente e para o que aqui interessa, quando o mesmo resida no estrangeiro. Nesta concreta situação o arguido é representado, inclusivamente para efeitos da notificação da sentença, na pessoa do seu defensor – cfr. art.º 334º, 4 do CPPenal.
Contudo, o regime previsto no citado art.º 334º, do CPPenal, somente tem aplicação nos casos em que o arguido prestou TIR, foi notificado da acusação e, bem assim, da data designada para julgamento, sendo então que requer, nos autos, a dispensa de comparência na audiência de discussão e julgamento, nomeadamente por residir no estrangeiro.
Ora, na hipótese dos autos, como já se disse, o arguido nunca teve outra participação no processo que não aquelas em que veio informar da existência de uma morada no estrangeiro e solicitou que fosse admitido a prestar TIR no Consulado de Portugal, em Inglaterra.
Ou seja, verifica-se, de forma indubitável, que a situação aqui em análise é em tudo idêntica àquela apreciada no Acórdão para Fixação de Jurisprudência nº 5/2014 de 26 de Março de 2014, publicado no D.R., I Série, de 21 de Maio, com o seguinte teor:
«Ainda que seja conhecida a morada de arguido contumaz residente em país estrangeiro, não deve ser expedida carta rogatória dirigida às justiças desse país para ele prestar termo de identidade e residência, porque essa prestação não faz caducar a contumácia».
No citado aresto explicitou-se que “(…) a prestação do TIR assume-se, no enquadramento legal actualmente vigente, como o elemento fulcral de ligação do arguido ao processo, permitindo a sua tramitação até final, e simultaneamente facultando ao arguido o exercício efetivo dos seus direitos de defesa. Contudo, como já se assinalou, não é a prestação de TIR que precede e provoca a caducidade da contumácia; pelo contrário, é a caducidade da contumácia que determina e provoca a prestação de TIR. (…) Ou seja: é o contacto pessoal do arguido com o tribunal (por meio de apresentação ou da detenção) que permite considerar caducada a contumácia, que é caracterizada precisamente pela impossibilidade de efectuar esse contacto. É o contacto pessoal que viabiliza, por meio da prestação do TIR, a manutenção de uma ligação do arguido ao processo até ao seu termo. O TIR é o instrumento dessa ligação subsequenteà caducidade da contumácia, não a causa dessa caducidade. (…) Só a apresentação pessoal do arguido ou a sua detenção asseguram a sua efectiva disponibilidade para os posteriores termos do processo.”
Isto é, entendeu-se que, apesar de então já existirem os instrumentos de cooperação judiciária internacional, a que até faz concreta alusão o voto de vencido, que estando um determinado arguido declarado contumaz – porque como no caso dos autos, nunca tinha tido qualquer contacto com o processo, não tendo prestado TIR – mesmo sabendo-se a respectiva morada no estrangeiro, não deve ser expedida carta rogatória dirigida às entidades judiciárias desse país para ele prestar termo de identidade e residência, considerando que essa prestação não faz caducar a contumácia, precisamente porque se entendeu que a medida de coacção TIR sujeita o arguido a determinadas obrigações que não são passiveis de ser controladas em pais estrangeiro. Trata-se, aqui, da circunstância da sujeição a tal medida significar que as futuras notificações do mesmo serão efectuadas para a morada indicada no TIR através de via postal simples, devendo o distribuidor de serviço postal depositar a carta na caixa de correio do notificando, lavrando uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto do depósito, enviando-a, de imediato, ao serviço ou tribunal competente; após, considera-se a notificação levada a cabo no 5º dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal, sendo que tal cominação deverá constar do acto da notificação – cfr. art.º 113º, 1, al. c) e nº 3 do CPPenal.
Na realidade, entendeu-se que todo o citado mecanismo da aludida notificação postal simples não poderia ser exigido aos serviços postais dos outros países, o que, significa que de nada serviria o TIR que através da cooperação internacional viesse a ser obtido, concluindo-se, pois, que esse “pseudo-TIR” não teria a virtualidade de permitir declarar cessada a contumácia.
Ora, é certo, o antedito entendimento parece causa de uma entropia no sistema, designadamente nos casos de arguidos residentes no estrangeiro que não pretendam regressar a Portugal e que até manifestam, através de requerimento, a vontade de que o julgamento se faça na sua ausência, conforme permite o n.º 2 do artigo 334º do CP Penal.
Com efeito, em relação a tais arguidos, que poderemos chamar de cooperantes, apenas com a respectiva deslocação a Portugal para aqui serem julgados poderá ser cessada a contumácia. Na verdade, se não é admissível a extinção da contumácia e a prestação do TIR, a única solução que se descortina para o reatamento da prossecução dos actos processuais será a comparência pessoal dos arguidos no Tribunal ou a ocorrência de detenção em território nacional. De facto, nos termos do citado Acórdão para Fixação de Jurisprudência só um desses acontecimentos processuais terá a potencialidade de retomar a normal procedimentalidade, uma vez que só a partir desse momento haverá condições para a prestação – fundamental – do TIR com a consequente impossibilidade do arguido não ser notificado.
Ora, tal constatação pode propiciar uma ideia de impotência processual, uma vez que desemboca em situação só ultrapassável com a deslocação do arguido a território nacional; daí a emergência de alguma jurisprudência – paradigmaticamente aquela citada na decisão proferida, bem como nas peças processuais de recurso, resposta ao recurso e parecer. Em tais arestos – em que se menciona que o sentido das decisões aí proferidas não é diferente daquele constante do AFJ 5/2014, quando, na realidade, o contrariam frontalmente – afirma-se que se poderá expedir carta rogatória para notificação ao arguido da acusação (caso em que o mesmo poderá requerer a abertura da instrução (art.º 336º, 3 do CP Penal) do despacho para apresentação de contestação, ou do despacho que designada data para a audiência, sendo que após tais comunicações se declara cessada a contumácia e se sujeita o arguido a TIR.
Isto é, se bem se compreende, entende-se que tal apologia não contraria o AFJ, considerando que primeiro é declarada cessada a contumácia e, só depois, será prestado o TIR. No entanto, tal visão não sobrevive ao confronto com o AFJ, dado que aí se refere que o TIR assim prestado não faz cessar a contumácia.
É de tal tipo de entendimento que sufraga a decisão proferida no tribunal a quo, que, nos termos examinados, colide com o AFJ.
Na realidade, o que o artigo 336º, 1 e 2 do CPPenal estatui é que a declaração de contumácia caduca logo que o arguido se apresente ou for detido, devendo, na verificação de uma dessas hipóteses ser sujeito a TIR e, concomitantemente, constituído arguido.
Assim, salvo o respeito devido por opinião contrária, será indiferente o que ocorre primeiramente – incontornável é que, na prática, estando o arguido no estrangeiro e tendo-se recorrido aos mecanismos da cooperação judiciária internacional, o que acontecerá em último lugar será sempre a declaração da cessação da contumácia; efectivamente, esta terá que ser declarada pelo tribunal rogante, em Portugal.
Compreende-se o louvável objectivo da jurisprudência entretanto ensaiada. Exactamente permitir o prosseguimento dos processos, contribuindo para a mais rápida realização das audiências de julgamento, em casos de arguidos residentes no estrangeiro que não querem, ou não podem deslocar-se a tribunal, e até pretendem solicitar que o julgamento se faça na sua ausência nos termos da lei – serão, pois, os arguidos cooperantes a que supra se aludiu.
Contudo, tal tipo de entendimento pode redundar noutra entropia – justamente aquela que o AFJ em causa quis evitar.
Com efeito, nos casos, como aquele dos autos, em que o arguido fosse notificado pela autoridade judiciária estrangeira da acusação e prestasse TIR, disporia do prazo fixado na lei para requerer a abertura de instrução. Ora, considerando que a sua apresentação pode ser alternativamente levada a cabo em Portugal ou junto das entidades judiciárias estrangeiras, a contumácia teria de ser necessariamente declarada cessada. No entanto, o TIR prestado perante “as justiças estrangeiras” nenhuma eficácia teria, precisamente dadas as especificidades de tal medida de coacção a que supra se fez referência (está intimamente ligada a uma peculiar forma de notificação que depende directamente de uma determinada prestação dos serviços postais).
Assim, em tal caso, depois de o arguido até ter requerido a abertura de instrução em que moldes prosseguiria o processo?
Como seriam efectuadas as suas futuras notificações?
Na verdade, no sequência da posição defendida no AC. da RL de Coimbra de 24/05/2017, relatado por LUÍS TEIXEIRA, no processo 857/13.5TACVL.C1, disponível em www.dgsi.pt, a única forma de realizar tais notificações seria através do contacto pessoal, a realizar com recurso aos mecanismos de cooperação judiciária; todavia, tal modo de agir torna o TIR completamente ineficaz e desvirtua o a finalidade do instituto da contumácia destinada a solucionar a questão das notificações de quem nunca foi possível contactar no âmbito do processo.
De resto, sobejariam outras questões sem resposta, por exemplo saber o que aconteceria se o mesmo mudasse de residência e disso não informasse o Tribunal.
Na realidade, como bem salienta o recorrente, a declaração de contumácia implica, desde logo, como ocorreu no caso dos autos, a proibição de o arguido obter ou renovar o cartão de cidadão (ou bilhete de identidade ou documento similar), a carta de condução e passaporte ou autorização de residência e de efectuar quaisquer registos ou obter certidões junto de autoridades públicas. Ora, não se pode afastar a possibilidade do arguido, uma vez cessada a contumácia e obtido determinado(s) documento(s) de que estivesse a necessitar, deixasse de ser cooperante, obstaculizando o prosseguimento dos autos e colocando a questão de se poderia voltar a ser declarado contumaz, na medida em que entretanto havia prestado TIR – isto apesar de como já se viu, tendo tal medida de coacção sido prestada no estrangeiro não ser dotada das condições de eficácia previstas na lei.
Ou seja, com o objectivo de se agilizar procedimentos contribuindo para a desejada celeridade da reacção penal solucionando situação que o AFJ não resolve, criar-se-iam outras aporias – a que, é certo, a orientação constante do AFJ também não dá resposta.
Ora, sendo assim, não se vislumbra fundamento sério que se afirme como razão válida para afastar a dita jurisprudência fixada pelo pleno do STJ, nem se descortina que da orientação seguida na decisão recorrida resulte uma vantagem pragmática para o processo – como visto, a mesma só subsiste se o arguido se mantiver cooperante e requerer o julgamento na ausência.
Com efeito, não pode deixar de se concordar com os fundamentos exarados no AC. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 21/05/2018, tirado no processo nº 158/12.6.GDGMR-A.G1 relatado por AUSENDA GONÇALVES, disponível em ECLI, quando se refere:
“É certo que a decisão que resolver o conflito jurisprudencial não constitui orientação obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão, de acordo com o disposto no art.º 445º, nº 3, do CPP. O Conselheiro Abrantes Geraldes ponderou (texto que serviu de base à sua intervenção “Uniformização de Jurisprudência” no Colóquio realizado no Supremo Tribunal de Justiça, no dia 25-6-2015, acessível na página do Tribunal na internet: «É claro que, ao invés do que ocorria com os Assentos que o art.º 2º do CC de 1966 integrava nas fontes normativas, os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência (AcUJ) não gozam de força vinculativa a não ser no âmbito do processo em que são proferidos (art.º 4º, nº 1, da LOSJ). Ainda assim, o sistema tem convivido de forma salutar com a força persuasiva de tais arestos que é projectada pela conjugação de diversos factores: a solenidade do julgamento (…), a qualidade dos seus protagonistas e a valia da fundamentação, o que é demonstrado pelo generalizado respeito que as instâncias vêm demonstrando pelas soluções uniformizadoras que acabam por impor-se às polémicas jurisprudenciais que as precedem ou que procuram prevenir. Daí que só se deva materializar uma divergência que seja substancial e a sua explanação sempre imporá, não uma genérica fundamentação, mas o cumprimento de «um dever especial de fundamentação destinado a explicitar e explicar as razões de divergência em relação à jurisprudência fixada» (Sumário do Ac. do STJ de 27/02/2003 P. 625/03-5.ª).Com efeito, «os tribunais só podem divergir da jurisprudência uniformizada do STJ quando tenham argumentos nela não debatidos, ou seja, a divergência tem de se fundamentar em argumentos novos que não aqueles constantes da tese que ficou vencida no acórdão para fixação de jurisprudência, sob pena de a uniformização não ter qualquer efeito e os tribunais continuarem com base nos mesmos argumentos a produzirem decisões desencontradas» (Ac. desta Relação de 07/02/2011, publicado em www.dgsi.pt/jtrg, com o nº de proc. 48/08.7JABRG.G1). Ou seja, um tribunal só pode afastar-se de jurisprudência fixada quando houver «razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada», o que sucederá, por exemplo, quando «o tribunal judicial em causa tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador (no seu texto ou em eventuais votos de vencido), susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada», ou «se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na actualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso», ou ainda «a alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça torne claro que a maioria dos juízes das Secções Criminais deixaram de partilhar fundadamente da posição fixada». O que não sucede quando o tribunal judicial se limita a não acatar «a jurisprudência uniformizada, sem adiantar qualquer argumento novo, sem percepção da alteração das concepções ou da composição do Supremo Tribunal de Justiça, baseado somente na sua convicção de que aquela não é a melhor solução ou a solução legal.» (idem, seguindo o sumário do já citado Ac. do S.T.J. de 27/02/2003.). Consequentemente, entendemos que, actualmente, não existem argumentos novos, que não tenham já sido ponderados no Acórdão, nomeadamente na posição que ficou vencida, que pudessem permitir afastar a jurisprudência fixada (Sobre o assunto, podem ver-se ainda os Acs. da R.E. de 31/05/2011, com o nº de proc. 35/10.5PESTB.E1, e de 25/10/2011, com o nº de proc. 369/10.9GDSTB.E1, ambos publicados em www.dgsi.pt).”
Com efeito, quer a decisão recorrida, quer os Acórdãos nela citados, ressuscitam a tese defendida no Voto de Vencido efectuado aquando da fixação da dita jurisprudência. Ou seja, verdadeiramente não se traz nada de novo que possa fundamentar uma divergência a manifestar nos termos do n.º 3, do artigo 445º do CPP. A bem da verdade, dir-se-á, as entropias e aporias verificadas não parecem ser passíveis de resolução através de interpretações do texto legal, antes justificando uma nova solução criada para arguidos em processo penal tramitado em território nacional que tenham residência fora do país.
V. Decisão:
Pelo exposto, acordam as Juízas da 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto, revogando a decisão recorrida e mantendo a situação de contumácia em que o recorrido se encontra.
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Sem custas.
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Lisboa, 20 de Fevereiro de 2025
Rosa Maria Cardoso Saraiva
Ana Paula Guedes (com declaração de voto de vencida)
Paula Cristina Bizarro
Declaração de voto:
Não olvidamos que a situação concreta pode parecer idêntica à apreciada no Acórdão para Fixação de Jurisprudência nº 5/2014 de 26 de março de 2014, publicado no D.R., I Série, de 21 de maio, que decidiu pela seguinte fixação de jurisprudência:
“Ainda que seja conhecida a morada de arguido contumaz residente em país estrangeiro, não deve ser expedida carta rogatória dirigida às justiças desse país para ele prestar termo de identidade e residência, porque essa prestação não faz caducar a contumácia”.
Contudo, no mencionado acórdão apenas estava em causa a prestação de TIR por parte do arguido, a qual só por si não faz caducar a contumácia.
Como salienta o acórdão:
“Será possível ou não submeter o arguido a TIR, por meio de carta rogatória enviada às justiças do país onde o arguido reside? Fará a prestação de TIR caducar a contumácia? Esta a questão em discussão neste recurso”. (…) “Contudo, como já se assinalou, não é a prestação de TIR que precede e provoca a caducidade da contumácia; pelo contrário, é a caducidade da contumácia que determina e provoca a prestação de TIR. É o que dispõe o art.º 336.º, n.ºs 1 e 2, do CPP. Ou seja: é o contacto pessoal do arguido com o tribunal (por meio da apresentação ou da detenção) que permite considerar caducada a contumácia, que é caracterizada precisamente pela impossibilidade de efetuar esse contacto”.
Tendo concluído o STJ nesse acórdão que: “a emissão de carta rogatória para prestação de TIR pelo arguido residente no estrangeiro não seria idónea para fazer cessar a caducidade”.
Porém, o que está em causa nos presentes autos é saber como se apresenta em juízo um arguido contumaz residente no estrangeiro (situação distinta da apreciada no ac. de fixação de jurisprudência).
Ora, o entendimento da mais recente jurisprudência portuguesa vai no sentido de a sua apresentação poder ocorrer num Tribunal estrangeiro, ao abrigo da cooperação judiciária, posição que sufragamos e que consta do acórdão proferido no âmbito do processo nº 6/10.1TBAGH, desta secção, e em que fui adjunta.
Como se escreve nesse acórdão: “Esta posição, seguindo o defendido pelo Ministério Público, representa a eficiência da justiça penal, respeitando o princípio da igualdade, da proporcionalidade, da presunção da inocência, de acordo com os artigos 13.º n.º 1, 18.º n.º 2, 32.º n.ºs 1, 2 e 6 da Constituição da República portuguesa e artigo 6.º n.ºs 1, 2 e 3 da Convenção Europeia dos Direitos do Humanos”.
Tal entendimento é o que melhor se coaduna com o espírito do artigo 334, nº2 do CPP e com o normal funcionamento do sistema, numa época em que os mecanismos da cooperação judiciária se têm revelado cada vez mais eficientes, nomeadamente no que tange à agilização da justiça.
Pelo exposto, voto vencida a fundamentação e a decisão do acórdão.
Ana Paula Guedes