CAUSA DE PEDIR
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Sumário

Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):
- a falta da causa de pedir ocorre nomeadamente quando se omitam os factos suficientes para apreender qual a concreta situação da vida que justifica a pretensão deduzida.

- já não existe falta de causa de pedir quando tais factos se aleguem, pese embora alguns deles revistam alguma generalidade ou falte a alegação de factos necessários à procedência da acção mas estes não impeçam aquela apreensão (identificação da causa de pedir).

- não existe falta de causa de pedir quando a A. alega que viveu em união de facto com o R. e criou com este estabelecimento (que atribui ao R.), no qual investiu dinheiro e trabalho, sem contrapartida, tendo-lhe sido vedado o acesso a tal estabelecimento.

- a falta de indicação do fundamento jurídico da acção (razões de direito) não constitui vício da petição inicial nem determina a sua ineptidão.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

I. AA propôs contra BB a presente acção, formulando os seguintes pedidos:


a) Que o Réu seja condenado a pagar à Autora 50% do valor que venha a ser atribuído pela perícia requerida;


b) Seja condenado o Reu ao pagamento de danos não patrimoniais em valor não inferior a 50.000,00.


Alegou para tanto, no essencial, que:


- viveu em união de facto com o R. desde 2009.


- em 2015 abriram um negócio em conjunto, com investimento inicial de 3.500 euros, que era o dinheiro que tinham em comum.


- tal negócio acabou por ser um EIRL, em que o R. figurava como empresário em nome individual.


- foi a A. quem mais se dedicou ao negócio, e o R. sempre fez crer à Autora que o negócio era de ambos, acreditando aquela que era o negócio de família.


- foi a Autora que sempre atendeu clientes, fez encomendas, tratava das vendas, atendimento ao público, recebia fornecedores, pagava a fornecedores, arrumava e ia buscar mercadoria e praticava todos os actos atinentes à concretização deste negócio.


- não recebia um salário e não fazia descontos para a segurança social.


- no início do ano de 2024, o Réu não mais deixou a Autora voltar à loja, ficando esta sem trabalho e sem subsídios e o R. com um negócio montado, apto a funcionar e gerador de lucro, às custas dos investimentos e trabalho da A..


- pretende que o R. seja condenado a pagar-lhe 50% dos lucros e património construído, que avalia em 250.000 euros entre compras e vendas e património da empresa.


- pede ainda pagamento de indemnização por danos morais sofridos neste período, pelo medo que teve e tem quando ficou, de um momento para o outro, sem nada.


O R., citado, não interveio no processo.


Foram considerados confessados os factos alegados.


Foi depois proferida decisão (sentença) que julgou verificada a excepção dilatória da ineptidão da petição inicial, por falta e ininteligibilidade de causa de pedir e do pedido, e absolveu o R. da instância.


Desta decisão interpôs a A. recurso, formulando as seguintes conclusões:


I. A petição inicial será inepta quando faltar ou for ininteligível a indicação da causa de pedir, o que significa, além do mais, que o autor nela deverá alegar o facto constitutivo da situação jurídica material que pretende fazer valer.


II. A petição inicial apresentada pela Recorrente não pode ser considerada inepta uma vez que esta indica a causa de pedir na medida em que alega os factos concretos que integram o facto constitutivo da pretensão daquela.


III. A Recorrente apresentou os elementos essenciais ao prosseguimento da sua pretensão, aqueles de que tinha conhecimento, uma vez que indicou o facto genérico do direito ou da pretensão que pretende fazer valer, nomeadamente a referência ao facto de o Réu ter enriquecido, pelo menos em parte, á sua custa.


IV. Logo, inexiste fundamento para que o Tribunal a quo declarasse a ineptidão da petição inicial da ora Recorrente.


V. Ainda que, considerando a petição inicial deficiente, devia aquele Tribunal ter convidado a Recorrente a aperfeiçoar o articulado, juntando assim aos autos novo articulado onde alegasse os factos reais e concretos, conforme previsão do artigo 508, n.º 5 do C.P.C. extraindo-se assim a clareza que esta explana, mesmo que de forma ligeiramente ténue, na petição inicial apresentada pela ora Recorrente.


VI. Salvo melhor entendimento, a petição não seria inepta mas apenas e no limite, imprecisa ou ineficiente na alegação da matéria de facto e nessa medida ser a Autora convidada a aperfeiçoar a petição, suprindo essas imprecisões ou ineficiências.


VII. O saneador sentença pôs termo á causa por ineptidão da petição inicial, depois de elencar uma série de factos que poderiam redundar no convite ao aperfeiçoamento, não tendo dada a mínima hipótese á Autora corrigir algum facto que o tribunal tenha considerado omisso, insuficiente ou impreciso.


VIII. De acordo com o supra exposto, deve o despacho saneador recorrido ser revogado e substituído por outro que notifique a Autora para aperfeiçoar a petição inicial.


Não foi apresentada resposta.


II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».


Assim, importa avaliar se a petição inicial é inepta por falta e ininteligibilidade de causa de pedir e do pedido.


III. Porquanto a avaliação a efectuar visa os termos da petição inicial, e assim uma peça processual, inexistem factos concretos a descrever.


IV.1. Atendendo aos momentos significativos da sua fundamentação, a decisão impugnada apela:


- à falta de invocação pela A. de qualquer norma legal para deduzir o seu pedido.


- à falta de invocação do instituto do enriquecimento em causa (que associa à situação em causa), o qual não seria de conhecimento oficioso (não tendo sido invocado qualquer instituto jurídico para fundamentar a pretensão da A.).


- à falta de justificação da dedução de um pedido ilíquido, quando a A. afirma que o negócio era controlado por si, pelo que obviamente teria que saber qual o valor concreto do lucro da actividade, não podendo avançar com um valor de € 500.000,00 de lucros da actividade sem concretizar minimamente o mesmo (ou justificar não o poder fazer) - cfr. artigo 556º do Código de Processo Civil.


- e à circunstância de não estarem minimamente concretizados quer a actividade quer os lucros da actividade em causa ou os danos morais sofridos (ou, mais genericamente, não estarem minimente concretizados os factos relativos ao pedido - invocando-se a circunstância de os factos, apesar de assentes, não permitirem ao tribunal concluir que os mesmos eram suficientes para levar a bom porto a pretensão da A.). Ou que a A. limita-se a invocar, de forma confusa e pouco clara, alegados prejuízos sem que se logre perceber como obtém e em que baseia os prejuízos que alega.


Em consequência afirma que quer o pedido quer a causa de pedir são ininteligíveis, para além de não terem fundamento legal, o que obsta ao conhecimento do mérito da causa, aditando também que a acção enferma do vício da ininteligibilidade e falta da causa de pedir e do pedido, por a petição inicial se apresentar em termos ambíguos e obscuros, não permitindo averiguar quais os fundamentos do pedido que é vago e inconclusivo, sendo assim a petição nula, por ineptidão.


Deste modo, e literalmente, acaba por estar em causa, como fundamento da decisão, a falta de causa de pedir e do pedido, e a ininteligibilidade da causa de pedir e do pedido.


2. O CPC refere-se à falta de causa de pedir como fundamento de nulidade do processo por ineptidão da petição inicial (art. 186º n.º2 al. a) do CPC).


A causa de pedir, numa sua configuração linear, é constituída pelos factos que integram a previsão da norma jurídica que faculta o efeito jurídico requerido pelo autor e são assim necessários à procedência da acção (1).


Neste sentido, e sendo em regra a causa de pedir complexa, todos os factos indispensáveis ao êxito da acção são essenciais (pois sem eles naufraga a acção). Não obstante, do regime processual deriva uma distinção entre factos essenciais nucleares, necessários para individualizar ou identificar a causa de pedir (sem os quais inexiste causa de pedir), e factos essenciais que apenas completam ou concretizam a causa de pedir mas que são igualmente necessários para se obter a procedência da acção (e sem os quais ainda existe causa de pedir, quer porque a sua falta não impede a individualização e apreensão da causa de pedir, quer porque podem ser introduzidos na lide após a alegação inicial e, por isso, a sua falta não provoca a ineptidão por falta da causa de pedir) (art. 5º n.º1, 552º n.º1 al. d) e 590º n.º2 al. b) e 4 do CPC). A diferenciação entre factos nucleares e factos complementares ou concretizadores suscita questões próprias (2), mas admite-se que, no quadro da falta de causa de pedir, a distinção interessa especialmente para revelar o carácter circunscrito da falta de causa de pedir (não sendo seu critério a mera falta de facto ou factos essenciais), e assim para revelar que apenas interessa ver se os factos ou circunstâncias alegadas ainda permitem preencher o núcleo factual que individualiza a acção e assim corporizam suficientemente uma causa de pedir. Pois só a falta desse núcleo (dos factos que o integram), e já não dos demais (ainda que igualmente essenciais à procedência da acção), permite falar em falta de causa de pedir. Ou seja, não é a falta de algum ou alguns factos essenciais que provoca a falta da causa de pedir: é necessário que essa falta impeça a individualização da situação concreta ou real, na sua especificidade histórica, que sustenta a pretensão. Pelo que a afirmação de que os factos em falta seriam «essenciais para a procedência do pedido, pelo que não são suscetíveis de convite ao aperfeiçoamento», contida na decisão recorrida, não é exacta. Ao invés, o aperfeiçoamento visa justamente factos essenciais pois, além do exposto, a não serem essenciais, seria desnecessário aquele convite. Não é a essencialidade do facto, entendida como imprescindibilidade para obter ganho na causa, que dita os contornos da falta de causa de pedir.


Neste quadro, pode aceitar-se que para existir uma falta de causa de pedir terá que estar em causa uma situação extremada, pois falta equivale a ausência ou vazio, a qual se pode tendencialmente identificar quer com a completa omissão de alegação, quer com a omissão de alegação de verdadeiros factos delimitadores (sendo apenas invocadas circunstâncias gerais e abstractas, insusceptíveis por natureza de desenhar a situação real que preenche a previsão da norma tuteladora) (3). Sendo que, como nota T. de Sousa, o princípio da sanabilidade dos vícios processuais (art. 6º n.º 1 do CPC), impõe que se restrinjam as situações de ineptidão da PI e se alarguem as hipóteses de deficiência desta petição (4), sanáveis no quadro do art. 590º n.º2 al. b) e 4 do CPC, o que está em linha com a própria estrutura material do processo civil, com vincada prevalência da avaliação material sobre a formal (patente em termos gerais nos art. 6º e 7º do CPC). Donde caber distinguir a causa de pedir bastante (que individualiza a causa de pedir e o pedido) da necessária (que é capaz de garantir a tutela pretendida), só a falta da primeira (tornando indefinido o objecto da acção) permitindo falar em falta de causa de pedir. Simetricamente, obsta à falta da causa de pedir uma alegação identificadora, ainda que inconcludente por não ser bastante para alcançar o efeito jurídico-prático visado (para preencher na integralidade a previsão da norma tuteladora).


3. Atendendo à alegação da A., esta particulariza os contornos essenciais da sua pretensão nos seguintes termos:


- viveu em união de facto com o R..


- criou, com o R., e com dinheiro de ambos, um estabelecimento em ..., (em 2015), erigido em EIRL.


- foi sempre a A. quem lidou com o negócio (alegando os factos concretos respectivos), não recebendo salário nem fazendo descontos.


- o R. a partir de certa data não deixou a A. voltar ao estabelecimento.


- ficou o R. com um estabelecimento montado com o investimento (dinheiro) e trabalho (que descreveu) da A., e que gera lucros.


- ficou com medo por ter ficado sem nada (medo que persiste).


- pretende que lhe sejam entregues metade dos lucros e património construídos desde a constituição do EIRL, entrega, no que ao património respeita, em que o pedido formulado permite apreender que se pretende metade do valor correspondente a tal património (tudo a fixar por perícia).


- e indemnização por danos não patrimoniais (medo por ter ficado sem nada).


Parece, neste quadro, que não se pode falar em verdadeira falta de causa de pedir. Inexiste, obviamente, integral omissão da alegação. E também não se pode dizer que a caracterização seja tão genérica e vaga que fiquem indefinidos os contornos da situação. Ao invés, a situação da vida vem suficientemente concretizada, em dados suficientemente concretos e perceptíveis, com circunstancialismo temporal, dela constando os dados essenciais que, na perspectiva da A., sustentariam a sua pretensão (basicamente, a criação, no âmbito da união de facto e em conjunto com o R., de estabelecimento comercial de que o R. é titular, no qual a A. investiu sem contrapartida dinheiro e trabalho, e do qual o R. excluiu a A., estabelecimento este que dá lucro, considerando a A. que terá direito a metade do património e lucro do estabelecimento (5)). Poderá, em momentos, a alegação ser insuficiente, ou menos precisa, mas isso não exclui a existência de concreta e suficiente individualização da situação de vida relevante. O destinatário da alegação (o tribunal e a parte contrária) não teriam dificuldades em apreender o essencial da situação, e da correspondente pretensão, e do ponto de vista do caso julgado aquelas coordenadas de facto seriam bastantes para delimitar com precisão os efeitos da decisão que as apreciasse (permitindo evitar repetições de acções) (6).


Alguns dos elementos alegados poderão ser algo genéricos (por exemplo quanto à alegação da união de facto, ou à afirmação da existência de lucro) mas trata-se também de menções correntes na vivência comum, com suficiente lastro empírico na realidade para impedir que se lhe atribua a natureza de mera generalização ou abstracção, incapaz de valer como elemento identificador da causa de pedir. Aliás, e quanto ao lucro, e pese embora a asserção possa corresponder a resultados técnicos diversos, coincide em termos comuns na afirmação de um ganho proveniente da actividade do estabelecimento em causa, o que lhe aprece atribuir suficiente lastro na realidade comum. Assim, ainda que se pretenda que não poderão valer como verdadeiro facto (apesar daquele sentido comum das menções, especialmente quanto ao lucro, e da falta de impugnação), o que não pode é dizer-se que impedem a individualização da causa de pedir: serão sempre elementos de uma causa de pedir deficiente, e não meras abstracções indicadoras de uma causa de pedir omitida.


Outros elementos serão genéricos (a menção ao património postula uma concreta, mínima que seja, individualização, para se saber de que se fala; poderá justificar-se uma identificação mais precisa do EIRL, com localização que exceda a localidade). E poderão faltar elementos, como a efectiva alegação da cessação da união de facto, que fica subjacente à alegação (de algum modo nela implícita) mas que não é expressamente afirmada ou alegada (7) [cessação relevante desde logo porquanto é nesse momento que «cessa a fruição em comum dos bens adquiridos durante a união de facto com a participação de ambos os membros da união»].


Mas trata-se de deficiências que não obstaculizam a identificação e individualização de uma causa de pedir operante, ajustada às pretensões formuladas. Podem postular um aperfeiçoamento mas, salvo o devido respeito por opinião contrária, não autorizam o diagnóstico da omissão de causa de pedir. Ou podem até consistir em omissões impeditivas do sucesso da demanda, a terem-se por insupríveis, mas ainda aqui não obstaculizam a identificação a causa de pedir, reflectindo-se apenas sobre o mérito da causa.


Mesmo a afirmação, da decisão recorrida, de que não estariam minimamente concretizados quer a actividade quer os lucros da actividade em causa ou os danos morais sofridos, não se mostra concludente. Quanto aos danos morais, a alegação é concreta e suficiente, alegando a A. que teve (e tem) medo por ficar sem nada - nada mais se lhe exigia (já o relevo do que se alega é outra questão). A descrição da actividade desenvolvida consta da alegação da A. (art. 5 e 8 da PI). Pode ser tida por insuficiente, não se pode é tê-la por incapaz de contribuir para delimitar a causa de pedir. Quanto à forma como a A. obtém «os prejuízos que alega», que a decisão recorrida considera não ser perceptível, a petição inicial mostra-se, como já aludido, suficiente e compreensível: alegando a A. que o estabelecimento produzia lucros (ou seja, ganhos), afirma que, dado o seu investimento pessoal no âmbito da união de facto, lhe cabiam metade desses lucros. Os lucros não estão contabilizados mas essa é questão diversa, que se associa à formulação de pedido genérico, e que não contende com a existência, ou não, de alegação suficiente para concretizar a causa de pedir.


Nem importa que alguns dos dados deficientemente alegados possam ser qualificados como essenciais à procedência da pretensão pois, como se referiu, não é esse o critério da avaliação da falta de causa de pedir (8).


4. A decisão recorrida apela também à falta de invocação pela A. de qualquer norma legal para suportar o seu pedido. E à falta de invocação do instituto do enriquecimento em causa (que associa à situação em causa), o qual não seria de conhecimento oficioso (não tendo sido invocado qualquer instituto jurídico para fundamentar a pretensão da A.).


Cabe, com efeito, ao autor expor, na petição inicial, as razões de direito que servem de fundamento à acção (citado art. 552º n.º1 al. d) do CPC). Não obstante, a omissão dessa alegação não tem qualquer efeito próprio, dada a circunstância legal de caber ao tribunal a livre fixação do regime aplicável (art. 5º n.º3 do CPC) (9). Pois se a indicação pela parte não vincula o tribunal, a omissão da indicação não pode ter efeitos preclusivos ou viciadores da PI. Por isso se diz que a indicação de direito não é essencial: não traduz qualquer nulidade ou irregularidade processual, «nem, muito menos, torna a petição inepta» (10). Afirmando-se também que a omissão apenas tem como efeito permitir ao tribunal adoptar livremente um fundamento jurídico (art. 5º n.º3 do CPC) sem que o autor possa invocar a nulidade da sentença, proferida sem prévia audição das partes, por usar norma não prevista pela parte (11).


Por outro lado, cabe distinguir entre a qualificação da causa de pedir, na qual o tribunal é, como se disse, livre, por força do citado art. 5º n.º3 do CPC (desde que os factos necessários sejam alegados e exista uma correspondência com o efeito visado pelo pedido - e assim com a vontade da parte) (12), e a invocação a título de excepção de certo mecanismo jurídico (pois, aqui, cabe à parte invocar o mecanismo que dependa da sua vontade, atento o teor do art. 579º do CPC).


Por fim, é também dominantemente aceite (solução a que se adere) que a qualificação jurídica não integra a causa de pedir, pois esta integra factos concretos e não a norma, e por isso a qualificação jurídica dos factos é-lhes exterior (13) (14). É certo que a avaliação da suficiência ou essencialidade daqueles factos depende da norma cuja previsão pretendem preencher para assim alcançar o efeito visado pelo autor (efeito que deriva da estatuição da mesma norma). Mas isso apenas significa que a alegação deve permitir identificar a norma competente (15) e já não que a falta da alegação torna inconcludente ou omissa a causa de pedir. Isto sem prejuízo de, no limite, nada impedir o tribunal de, em caso de dúvida, se socorrer do regime do art. 7º n.º2 do CPC.


Mas mesmo deste ponto de vista, a própria decisão recorrida revela que a identificação dos regimes mobilizáveis não levanta realmente dúvidas, tendo apontado logo para o âmbito dos regimes aplicáveis à cessação da união de facto, âmbito este no qual acabou por se fixar especificamente no enriquecimento sem causa.


5. Este enriquecimento sem causa tem sido, na verdade, generalizadamente aceite como um mecanismo ajustado ao reequilíbrio patrimonial afectado pela cessação da comunhão de vida inerente à união de facto (e até tem sido usado paradigmaticamente como o mecanismo jurídico mais ajustado ao efeito). Mais, a sua aplicação, à luz das especificidades da presente situação, tem sido feito assentar em considerações básicas: o contributo de um dos membros da união de facto para o alargamento do património de outro (o que se pode traduzir na poupança de uma despesa), sem contrapartida, pode redundar num enriquecimento de um e correlativo empobrecimento de outro, sem causa porque a transferência patrimonial (subjacente ao enriquecimento-empobrecimento) não corresponde a uma regra jurídica ou de justiça. Asserção que se estende mesmo ao património comum (compropriedade) dos unidos, quando o contributo de um para a sua aquisição suplanta significativamente o contributo de outro.


No caso, a A. tende a colocar-se na primeira forma de avaliação, e os factos alegados ajustam-se a essa pretensão e sobretudo, do ponto de vista do objecto do recurso, individualizam e caracterizam suficientemente a situação:


- união de facto, embora com cessação não clarificada (mas subentendida, carecendo apenas de concretização). Nota-se que sendo embora esta cessação facto essencial (16), não basta a sua falta de concretização (de mais a mais quando a própria decisão recorrida o subentendeu) para dar por verificada a falta da causa de pedir.


- existência de bem (universalidade, em rigor), cuja titularidade a A. não assume, e que tende a atribuir ao R. (depreendendo-se do alegado nos art. 6 e 11 da PI).


- intervenção predominante da A. na constituição daquela universalidade (com valor e trabalho), sem contrapartida (e, depreende-se, sem intenção de beneficiar o R., por ser contrário ao sentido da comunhão inerente à união de facto) e sem causa (porque alega trabalho em beneficio alheio com intenção comum, não de beneficiar terceiro - o que, segundo alguns, até se presume).


- e universalidade aquela com valor e geradora de lucro.


A alegação poderá apresentar limitações, como se referiu. Mas tais circunstâncias não prejudicam a suficiente caracterização dos dados de facto que delimitam a causa de pedir (do ponto de vista do enriquecimento sem causa).


6. A decisão recorrida refere ainda a falta do pedido como fundamento da ineptidão mas é esta objecção, em si, imediatamente descartável face aos termos da petição inicial: foram claramente formulados pedidos, perceptíveis enquanto tais (isto é, na sua natureza, como correspondendo a pretensões de tutela judicial).


7. Ainda como fundamento da ineptidão, a decisão recorrida afirma genericamente que a causa de pedir e o pedido são ininteligíveis. Esta ininteligibilidade ocorre quando a alegação ou o pedido se mostram incompreensíveis ou indecifráveis (ou também quando, quanto à causa de pedir, não se compreende a relevância dos factos para a individualização do pedido (T. de Sousa)). Também o carácter confuso ou ambíguo do pedido poderá corresponder a uma situação de ininteligibilidade quando não se admita a formulação de convite ao aperfeiçoamento do pedido (a admitir-se, o pedido será apenas deficiente por ser passível de correcção). Em suma, a ininteligibilidade remete para a impossibilidade de entender em que se baseia a pretensão ou para quando não é possível apreender a própria pretensão, não se percebendo qual o efeito jurídico proposto pela parte. O que se deixou exposto já revela que a causa de pedir é entendível e apreensível. E o mesmo ocorre quanto aos pedidos, dirigidos de forma clara a pagamentos, e pagamentos sujo sentido deriva com clareza da alegação: art. 15º da PI, quanto ao primeiro pedido (pagamento de metade do valor dos lucros do estabelecimento e do património do estabelecimento (17)), e art. 16º da PI quanto ao segundo pedido (compensação pelo medo alegado). São, no seu sentido, entendíveis e unívocos. Não se vê que ocorra, pois, qualquer ininteligibilidade.


8. Por fim, a decisão recorrida faz ainda referência à falta de justificação de dedução de pedido ilíquido. Independentemente do mérito da invocação, duas notas cabe realçar.


De um lado, a eventual ilicitude da formulação do pedido genérico corresponde a um vício processual distinto da ineptidão, para a qual não concorre. Desse modo, não intervém como fundamento da decisão recorrida, não servindo para a sustentar. De outro lado, tem sido admitido de forma prevalecente (embora não pacífica), mesmo ao abrigo do mais restritivo regime processual pregresso, que a dedução de pedido genérico fora das condições legais seria qualificável como uma excepção dilatória inominada, susceptível de sanação mormente através da formulação de convite ao aperfeiçoamento (18), o que impediria a que funcionasse logo como condição obstativa ao andamento da acção - convite que inexistiu no caso. Donde que não tenha relevo específico nesta sede.


9. Não existe, pois, a ineptidão da petição que justificou a absolvição da instância, pelo que não pode subsistir a decisão impugnada, devendo o processo prosseguir (sem que, pelos seus termos, se possa desde já substituir a decisão impugnada por uma decisão de mérito).


Quanto aos termos desse prosseguimento, anota-se que o regime da substituição, inerente ao recurso, está limitado pelo objecto do recurso e por isso incide apenas sobre os termos e alcance da decisão recorrida à luz do objecto do recurso. Por isso que caiba, em substituição, eliminar a absolvição da instância, com o inerente prosseguimento do processo, mas já não fixar os moldes em que este prosseguimento opera (v.g. aperfeiçoamento, ao menos quanto ao termo da união de facto), ponto não avaliado pelo tribunal recorrido e em relação ao qual este mantém integral poder de avaliação e decisão.


10. Custas pelo recorrido, independentemente da sua posição face ao recurso, por decair face aos termos da decisão (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).


V. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento do processo nos moldes que o tribunal recorrido avalie ajustados.


Custas pelo recorrido.


Notifique-se.

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).

________________________________________

1. Numa outra solução, que se não segue no texto mas que não conduziria a resultados diversos, a causa de pedir integra apenas os factos necessários à sua individualização ou identificação, ainda que insuficientes para a procedência da acção.↩︎

2. Discute-se, com efeito, se os factos complementes/concretizadores são factos distintos por natureza dos factos nucleares ou se são uns e outros factos igualmente essenciais, distinguindo-se entre si apenas em função de terem sido ou não alegados (sendo os alegados bastantes para identificar a causa de pedir); questão que, para o caso vertente, não importa aprofundar. Embora, de forma mais marginal, se chegue a afirmar que os factos complementares ou concretizadores não serão sequer essenciais.↩︎

3. É esta a dupla caracterização da falta de causa de pedir que se colhe em M. Mesquita, Princípio de gestão processual (…), in RLJ 147/95 e ss..↩︎

4. In CPC Online, anotação 3 ao art. 186º do CPC (disponível online, n Blog do IPPC).↩︎

5. Sendo, por esta via, claras as razões pelas quais a A. «obtém» e nas quais «baseia os prejuízos que alega».↩︎

6. Caso julgado que é invocado por A. Geraldes (Temas da Reforma do processo civil, vol. I, Almedina 1998, pág. 209 nota 377), e seguido pelo STJ (Ac. de 11.11.2021, proc. 27384/13.8T2SNT-B.L2.S1, in 3w.dgsi.pt) como critério de aferição da existência de causa de pedir.↩︎

7. Embora a decisão recorrida assuma esta cessação como dado assente, a verdade é que ela não vem afirmada na PI.↩︎

8. Mesmo o carácter confuso da causa de pedir (que a decisão recorrida aborda, e que de qualquer modo não se vê que ocorra) parece conduzir a uma causa de pedir deficiente, não à sua falta (salvo caso de ininteligibilidade).↩︎

9. Dizendo-se, até, que segundo um princípio de exaustão, o tribunal tem o dever de esgotar todas as possíveis qualificações jurídicas dos factos alegados pelas partes (C. Mendes e T. de Sousa, Manual de processo civil, vol. II, AAFDL 2022, pág. 417) - liberdade de qualificação que justifica ainda que o caso julgado que se forme contemple todas essas possíveis qualificações.↩︎

10. J. P. Remédio Marques, Acção Declarativa À Luz do Código Revisto, Coimbra Editora 2007, pág. 273.↩︎

11. L. Freitas e I. Alexandre, CPC Anotado, vol. 2º, Almedina 2022, pág. 492.↩︎

12. Reafirmando esta liberdade de qualificação (no caso reportando-se à possível aplicação das regras da responsabilidade contratual, não invocada, mas cuja natureza «dispositiva» é semelhante à invocação do enriquecimento sem causa), Ac. do STJ de 09.05.2024, proc. 616/22.4T8CLD.L1-2 (in 3w.dgsi.pt).↩︎

13. Assim, L. de Freitas, Da Falta da Causa de Pedir no Momento da Sentença Final de Embargos à Execução Titulada por Documento de Reconhecimento de Dívida, ROA 2018, pág. 746 ou Introdução ao processo civil, Gestlegal 2023, pág. 76, C. Mendes e T. Sousa, ob. cit., pág. 417.↩︎

14. Mas mesmo quando se integra a norma na causa de pedir, não se atribui à sua falta de expressa alegação a necessária ocorrência de falta de causa de pedir; aquela integração visa outros efeitos.↩︎

15. Dizendo-se também que ocorre falta de causa de pedir se a alegação não permitir identificar o tipo legal aplicável (A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, in CPC Anotado, vol. I, Almedina 2023, pág. 656), trata-se de situação diversa: é a generalização ou indefinição da causa de pedir que impede a identificação da norma, e não a falta de indicação da norma, passível de identificação, que provoca a falta de causa de pedir.↩︎

16. Como decorre do Ac. do TRE de 07.11.2024, proc. 697/22.0T8BJA.E1 (3w.dgsi.pt), o enriquecimento surge com a cessação da união de facto por aí cessar a causa da deslocação patrimonial.↩︎

17. A menção à perícia não é realmente muito feliz mas não torna ininteligível o pedido, nem o vicia, devendo entender-se que se trata apenas de invocação de forma preferencial de liquidação (do pedido genérico ou ilíquido), mas não, obviamente, de forma de tutela pretendida.↩︎

18. V., para regimes anteriores, A. Geraldes Temas …. cit., pág. 172 e ss. ou Temas da Reforma do processo civil, vol. II, Almedina 1999, pág. 73, T. de Sousa, As Partes, O Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lex 1995, pág. 128 ou A. Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3º, Coimbra Editora 1946, pág. 186, e, para o regime vigente, A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, in CPC Anotado, vol. I, Almedina 2023, pág. 668 e Ac. do TRL de 15.02.2012, proc. 284/07.3TTLSB.L1-4; contra, Ac. do TRL de 13.02.2019, proc. 5931/18.9T8LSB.L1-4 (ambos em 3w.dgsi.pt).↩︎