1. Os processos tutelares cíveis têm a natureza de jurisdição voluntária (art.º 12º do RGPTC).
2. Em sede de regulação do exercício das responsabilidades parentais e resolução de questões conexas, a criança com idade superior a 12 anos ou com idade inferior, com capacidade para compreender os assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é ouvida pelo tribunal, nos termos previstos na alínea c) do artigo 4º e no artigo 5º, salvo se a defesa do seu superior interesse o desaconselhar (art.º 35º, n.º 3 RGPTC).
3. Tendo a jovem quase 13 anos de idade e havendo que estabelecer novo regime de visitas/convívio com o progenitor (e família paterna), porquanto apenas existiu o fixado aos 2 anos de idade - suspenso por longos períodos, inclusive por determinação do Tribunal -, além daquela audição obrigatória, importa efetivar as diligências sobre as circunstâncias atuais da vida dos progenitores (v. g., exames de avaliação da personalidade e das competências parentais) e da jovem e ter especial cuidado na definição e atuação desse novo regime.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Vítor Amaral
Fernando Monteiro
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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I. No processo de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais (RERP) instaurado pelo M.º Público contra AA e BB[1], relativamente à jovem CC, nascida a ../../2012, filha de ambos, após vicissitudes de ordem fáctica e jurídica (v. g., no plano adjetivo), ao longo de cerca de sete/oito anos, documentadas neste apenso, a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho (em 04.11.2024):
«Examinados os autos verifico que por acórdão proferido pelo JCC de Leiria no âmbito do processo crime que pendia relativamente ao progenitor pela prática de 10 crimes de abuso sexual de crianças, comunicado aos presentes autos por ofício datado de 08.7.2020 (...), foi proferida a seguinte decisão:
“A) - julgar a acusação improcedente, por não provada e, consequentemente, absolvem o arguido AA dos dez crimes de abuso sexual de criança que lhe eram imputados pelo Ministério Público e pela assistente;
B) - julgar improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido contra o demandado AA, do mesmo o absolvendo;
C) - condenar a assistente e demandante no pagamento de taxa de justiça e custas do processo crime e do pedido de indemnização civil, respetivamente.
Tal acórdão veio a ser objeto de recurso e, a final, (...) por Acórdão do STJ, datado de 19.12.2023 (...), foi proferida a seguinte decisão final nos autos em questão:
“Nestes termos, e com os fundamentos expostos, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em declarar nulo o acórdão do Tribunal da Relação de 12 de outubro de 2022 e, consequentemente, o acórdão da 1ª instância de 18 de março de 2022, mantendo-se o decidido no acórdão da 1ª instância de 1 de julho de 2020.”.
Decorre, pois, do acima exposto, que o progenitor da menor foi absolvido de todos os crimes que sob si impendiam e, consequentemente, cessou qualquer medida de coação a que estivesse sujeito pelo que, atualmente, não existe qualquer impedimento legal ou processual a que o mesmo exerça, de forma plena, as suas responsabilidades parentais.
Nestes termos, determino a cessação da proibição dos contactos[2] do progenitor com a menor.
Notifique.
Adicionalmente, informe o mesmo que, independentemente do regime das responsabilidades parentais, não estando o progenitor inibido de as exercer e tendo já sido levantada a proibição de quaisquer contactos, poderá solicitar junto do D.T. da turma frequentada pela sua filha informações acerca do percurso escolar da mesma, não podendo estas ser-lhe recusadas.»
Inconformada, a progenitora/requerida interpôs a presente apelação formulando as seguintes conclusões:[3]
1ª - A requerida não se conforma com a decisão/sentença do Tribunal a quo, que determinou a cessação da suspensão dos contactos do progenitor com a menor, que havia sido determinada pelo Tribunal da Relação de Coimbra (RC) em Acórdão de 17.12.2019, por entender que a decisão padece de alguns vícios, além de se desviar do fito principal de proteção do superior interesse da criança.
2ª - Na certeza que o despacho/sentença se reporta à cessação da proibição, quando o que se verifica é a suspensão das vistas, a qual foi determinada pelo Tribunal da Relação, também por esse motivo, se justificava uma especial atenção e fundamentação, a qual não se verifica.
3ª - O despacho/sentença configura uma precipitação, denotando que o Tribunal pretende antecipar um sentido decisório, mesmo antes de estarem recolhidos os elementos essenciais para a tomada de decisão.
4ª - A decisão proferida, na sequência de um conjunto de decisões e promoções, não respeita o princípio do contraditório, consagrado no art.º 3º do Código de Processo Civil (CPC) e no art.º 25º do RGPTC, não tendo a requerida sido notificada para se pronunciar sobre a situação, sendo a decisão nula, nos termos do art.º 615º, n.º 1, al. d) do CPC.
5ª - Para além disso, a decisão/sentença violou o disposto no art.º 5º do RGTPC, e o art.º 3º da Convenção dos Direitos da criança, na medida em que o tribunal decidiu sem ouvir a criança, sem ter justificado essa omissão, sendo, por conseguinte, a decisão nula pela violação do princípio da audição da criança.
6ª - A decisão/sentença carece de fundamentação, uma vez que o Tribunal não explanou as razões de facto e de direito em função das quais proferiu uma decisão tão relevante na vida da criança, tanto mais que alterou um regime em vigor há mais de 4 anos e contrariando o sentido dos relatórios periciais constantes dos autos, estando, também ferida de nulidade, em função do disposto no art.º 615º, n.º 1, al. b) do CPC.
7ª - Recaía sobre o Tribunal a quo o ónus de demonstrar que os pressupostos que determinaram a decisão do Tribunal da Relação se alteraram e em que sentido e por que motivos, mas não logrou cumprir esse ónus, porque não fundamentou devidamente a sua decisão.
8ª - A decisão proferida, para além do mais atenta contra o interesse da criança, o que inquina a sua validade material.
9ª - Partindo de uma interpretação deturpada do sentido do Acórdão do STJ que absolveu o progenitor do crime de abuso sexual da criança, na medida em que o aresto não se refere à matéria de facto, mas apenas a questões de natureza formal/processual.
10ª - Para além de ter ignorado o relatório do INML, elaborado no âmbito do processo crime que julgou o progenitor pela prática de crimes de abuso sexual da criança, elaborado a 30.01.2017 e que descreve os factos relatados pela criança, ao mesmo tempo que afirma que os mesmos se afiguram corresponder a realidade efetivamente vivida pela menor.
11ª - A decisão/sentença também desvaloriza e ignora o relatório da faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra, elaborado nos presentes autos, por sugestão da Segurança Social e por decisão judicial e que determinou que as visitas deveriam ser suspensas.
12ª - Ao se afastar do sentido dos relatórios periciais, de forma infundada e não justificada, o despacho/sentença colide, de forma grosseira com a tutela do superior interesse da criança.
13ª - Impondo-se a sua revogação, por não poder vigorar um regime fixado por uma decisão ferida de nulidade e que não assegura a proteção do superior interesse da criança.
14ª - Na certeza que, já por duas vezes, este Venerando Tribunal foi chamado a revogar as decisões do Tribunal a quo, no âmbito dos presentes autos, tendo sempre decidido no sentido de alterar as decisões proferidas.
15ª - Devendo os autos aguardar, os relatórios do INML, o exercício do contraditório, por parte da requerida e a audição da criança.
Remata pedindo a revogação do despacho/sentença que determinou a cessação da suspensão dos contactos do progenitor com a criança, e que os autos aguardem o relatório pericial solicitado ao INML, o exercício do contraditório por parte da requerida e a audição da criança, mantendo-se, até lá o regime que está em vigor e que foi determinado pelo Tribunal da Relação de Coimbra.
O requerido/progenitor e o M.º Público responderam concluindo pela improcedência do recurso.
Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa reapreciar, principalmente, se o decretado restabelecimento do regime de convívio sempre deverá ser precedido de prévia averiguação e ponderação da realidade presente (situação da menor, circunstâncias da vida atual dos progenitores, etc.).
a) Por acordo dos progenitores, homologado por sentença de 21.01.2014, foram reguladas as responsabilidades parentais relativamente à CC, ficando esta a residir com a mãe, e ficando o requerido com a possibilidade de estar com a mesma (após completar 3 anos de idade) às terças e quintas-feiras de todas as semanas, das 19 às 21 horas, bem como em fins-de-semana intercalados, entre o final da tarde de sexta-feira e segunda-feira de manhã, e ainda, durante quinze dias, seguidos ou interpolados, durante as férias de Verão.
b) Na conferência dos pais realizada em 13.10.2016 nos autos de incumprimento do exercício das responsabilidades parentais (apenso B - a que deu origem requerimento do progenitor de 26.9.2016) os requeridos confirmaram que o progenitor ficara “impedido de ver a filha” desde 06.9.2016.
Face ao então declarado, o Mm.º Juiz do Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho: «No presente apenso de incumprimento cuida-se de saber acerca do imputado não cumprimento, por parte da Requerida progenitora, relativamente ao homologado regime de visitas na Regulação das Responsabilidades Parentais. / Concatenando o presente incidente de incumprimento com o teor do apenso de Alteração da Regulação das Responsabilidade Parentais, constata-se que a Requerida considera existir motivação justa e bastante para obviar à continuidade dos convívios entre o Requerente progenitor e a filha menor. A imputação é recente, tendo determinado o nosso 3º despacho de fls. 13 do apenso A, (...) que determinou a suspensão do regime de visitas/convívios à filha.[4] / Urge, aferir acerca da (im)pertinência da decisão da Requerida progenitora, ou seja, se o imputado incumprimento é justificado, ou se o mesmo era totalmente inadequado, por ausência de veracidade no imputado comportamento do progenitor pai. / Pelo exposto, indo-se apreciar no apenso de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais, acerca da promovida alteração das mesmas, por impulso do Digno Requerente, decide-se, por ora, suspender os trâmites do presente incidente de incumprimento até esclarecimento da sua cabal justificação. (...)»
c) Durante o ano de 2017 foram realizadas “sessões de convívio entre pai e filha”, agendadas pelos Serviços da Segurança Social, em respeito pelas folgas e disponibilidade profissional do pai, razão pela qual afetou duas equipas de técnicos a fim de garantir condições para concretizar as sessões, com frequência semanal, nas datas indicadas pelo pai (e também calendarizadas com a progenitora), concretizadas, designadamente, nas instalações do Serviço Local de Segurança Social de ... e na sede da Santa Casa da Misericórdia ....[5]
No parecer emitido por estes Serviços, concluiu-se, além do mais: «Resulta ainda da avaliação operacionalizada que existiriam benefícios em serem requeridas perícias médico legais sobre a personalidade e capacidades relativamente a ambos os progenitores junto do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses, a fim de melhor avaliar as competências de ambos, para o exercício da parentalidade».[6]
d) Após alguns anos de convívios supervisionados, entre a menor e o progenitor, com períodos de faltas consecutivas e tentativas múltiplas de inviabilizar os contactos entre a menor e o pai, os contactos foram suspensos por decisão judicial, aguardando o desfecho do processo penal que pendia sobre o requerido.[7]
e) Por despacho de 12.7.2021, foi indeferido o pedido da mãe da menor quanto à suspensão de visitas da sua filha, ao pai, mantendo-se o regime então em vigor, por se considerar, designadamente: - em 12.5.2021 o Instituto da Segurança Social informou que “os contactos entre pai e filha, com a intervenção dos técnicos da segurança social, decorrem sem incidentes ou sintomas de mal estar” para a menor; - uma abrupta interrupção de uma relação, que se vem estabelecendo nas instalações deste Tribunal e de forma vigiada, tem necessariamente consequências mais nefastas, caso ocorra nova absolvição do requerido, do que a sua manutenção; - não parece prudente, “depois de se ter conseguido uma reaproximação entre pai e filha, que se os afaste de novo, deitando a perder o trabalho de mediação da Segurança Social, para que, na eventualidade de ocorrer nova absolvição, se recomece tudo de novo”.
f) O acórdão desta Relação de 23.11.2021-processo 1470/13. ... revogou aquela decisão, determinando a suspensão das visitas do recorrente à sua filha, por se entender como “fortemente provável a hipótese dos factos declarados provados pelo Tribunal da Relação[8] se manterem para futuro” (“altamente provável a hipótese do pai da menor ter praticado os factos em questão”).
No final da fundamentação, precisou que “a suspensão durará enquanto não existirem factos que juridicamente imponham decisão diversa da agora tomada”.[9]
g) Concluiu-se no citado acórdão do STJ de 19.12.2023-processo 1066/16.... (cf. ponto I., supra)[10] que «XIII. Sendo nulo o acórdão recorrido na parte em que conheceu da declaração de culpabilidade (artigo 368º do CPP) – factos que considerou provados e respetiva qualificação jurídica, considerando que estes preenchem os tipos de crime de abuso sexual p. e p. pelos artigos 171º e 177º do Código Penal – e não subsistindo qualquer facto que constitua crime, não pode haver lugar à aplicação de qualquer pena (artigo 369º, n.º 1, do CP).». Fez-se constar da respetiva fundamentação, nomeadamente: «Ora, não tendo havido recurso da decisão em matéria de facto, com impugnação da matéria de facto nos termos impostos pelo artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do CPP, não podia o Tribunal da Relação modificar a decisão em matéria de facto dada como provada e como não provada na 1ª instância, face ao disposto no artigo 431º, al. b), do CPP. (...) / Assim sendo, se deve concluir que, ao apreciar as provas e ao decidir sobre a matéria de facto, alterando-a, o acórdão do Tribunal da Relação se pronunciou sobre uma questão de que não podia tomar conhecimento, o que constitui causa de nulidade da sentença prevista no artigo 379º, n.º 1, al. c), do CPP, aplicável ex vi artigo 425º, n.º 4, do mesmo diploma.»
h) Em junho/2024, o requerido manifestou à Equipa da Segurança Social estar “consciente da necessidade de que o processo de aproximação de sua filha se realize de forma muito cautelosa e gradual”, que “a filha se encontra em situação de perigo decorrente da privação da figura paterna e de todo e qualquer convívio com a família paterna, avós, tios e primas” e que “em sua perspetiva, deveria ser realizada uma avaliação em que fosse verificada a possibilidade de a mãe estar a exercer algum tipo de pressão sobre a menor”.
Então, atenta “a necessidade de preservar a menor, de um eventual excesso de intervenção”, a referida Equipa “optou por não proceder a entrevista com CC”; sugeriu, dadas as particularidades do caso, que “seria de todo o interesse para a menor (...) a realização de perícia, como forma de avaliar das condições psicoafectivas da menor e despistar eventuais traços de alienação parental e ou sujeição a comportamentos de possam ser tidos como lesivos da menor e possam pôr em perigo o seu normal desenvolvimento”.[11]
i) Em 12.7.2024, a Mm.ª Juíza proferiu o seguinte despacho:
«(...) face ao teor da informação social remetida aos autos e por forma a salvaguardar o legítimo e superior interesse da CC determino que com caráter de urgência, considerando que as anteriores avaliações efetuadas se mostram manifestamente desatualizadas (têm cerca de 7 anos),
- ambos os progenitores sejam sujeitos a avaliação forense pelo INMLCF, com avaliação psicológica, esta com avaliação da personalidade e das competências parentais/modelos educativos às necessidades da criança, com os seguintes quesitos:
I. Quanto à avaliação da personalidade:
a) descrever e avaliar o funcionamento psicológico de ambos os progenitores e avaliar se existe perturbação da personalidade ou psicopatologia? Se sim, quais os critérios que a fundamentam? Se não, apurou-se a existência de traços, que, mesmo não sendo bastantes para o diagnóstico cabal de uma perturbação de personalidade, assumam contornos inflexíveis e inadequados em situações pessoais e sociais.
b) Descrição de experiência interna e comportamento do(a) progenitor(a), especificando a vertente interpessoal, afetiva (incluindo a variedade, intensidade, labilidade e adequação das respostas emocionais), comportamental (incluindo com o controle dos impulsos) e cognitiva (incluindo as formas de perceção e interpretação de si próprio, dos outros e dos acontecimentos da vida).
II. No que respeita à avaliação das competências parentais
c) avaliar se o(a) progenitor(a) possui capacidade e idoneidade para o desempenho das capacidades e responsabilidades parentais, ou se esse desempenho se mostra de alguma forma comprometido, apresentando-se os respetivos motivos.
Incluir considerações relativamente ao padrão de vinculação dominante do(a) progenitor(a).
d) constitui o modelo de vida do(a) progenitor(a) e seu comportamento moral adequado modelo para a formação da trajetória de desenvolvimento da criança?
e) avaliar a capacidade do(a) progenitor(a) em estabelecer uma vinculação segura;
f) Indicadores de estabilidade e consistência em competências observadas.
- qual a aptidão e capacidade física e mental da mesma;
- quais as características psíquicas da criança em questão, definidoras da sua personalidade, bem como o seu grau de desenvolvimento psíquico, emocional e de socialização, a sua capacidade narrativa e a suscetibilidade face a uma eventual instrumentalização por parte de terceiros no sentido de condicionarem o seu discurso;
- tendo em conta todos os itens supra, qual a possibilidade de as suas declarações se desprender da realidade e corresponder a algum tipo de efabulação ou fantasia;
- se o seu comportamento é revelador de já ter tido algum contacto de natureza sexual. /*/
No mais, deverão os autos aguardar pela realização das diligências agora determinadas, uma vez que a sua concretização se afigura absolutamente essencial par permitir o prosseguimento dos autos.»
j) No relatório do exame (psicológico) realizado ao requerido pelo INML, em 20.9.2024, exarou-se e concluiu-se, designadamente:[12]
- Quanto a antecedentes criminais, o requerido descreveu os decorrentes do (revelado e conhecido) contexto processual, considerando não existirem: “fui inocentado no Supremo” (sic);
- O requerido afirmou, por exemplo: “antes quero que ela (filha) não me veja do que lhe causar algum mal-estar”; “é assim, eu estou aqui no processo de família para eles avaliarem até que ponto eu tenho capacidade, disponibilidade para estar com a minha filha” (…) “em 2016 fui acusado de abuso sexual, foi um processo que demorou 7 anos, na minha perspetiva, poderia ser mais incisivo” (...) “quando se está 7 anos para perceber se o pai abusou ou não da filha”; “convivi com a filha até aos 4 anos de idade, a acusação surgiu quando tinha 4 anos e 6 meses, eu tinha estado 15 dias de férias com a minha filha, e depois surgiu a acusação”; “eu fui absolvido uma vez, quando ia ao tribunal da relação, eles recorriam e era sempre condenado”; “preocupa-me muito, a menina podia ter duas famílias, nós vivemos perto, e eles não são assim tão perfeitos que só eles é que sabem educar”; na sua perspetiva, a aproximação (o retomar dos convívios com a filha) “primeiro, tinha que ser alguém externo, tinha que passar por aí”; “(...) consegui chegar à professora” (…) “já me passou pela cabeça pedir ao miúdo (filho de uma prima) para levar um bilhete do pai, é importante a CC saber que eu gosto dela”.
- Recomenda-se, o encaminhamento do progenitor para um processo de Acompanhamento Psicológico individual, tendo como objetivo terapêutico, a promoção de competências de autorregulação emocional, autoestima, e autoeficácia, bem como um processo de capacitação para a parentalidade, com o propósito de aumentar o reportório de estratégias educativas adequadas, e técnicas de comunicação promotoras de um contexto relacional positivo, e promotor da aproximação paterno-filial.
k) Por despacho proferido no apenso de alteração da RERP, de 16.01.2025, para a conferência dos pais designou-se o dia 20.02.2025, pelas 11 horas.
2. Cumpre apreciar e decidir.
A CC completará 13 (treze) anos de idade no próximo dia 01.5.2025.
Encontra-se em plena pré-adolescência e passou e/ou foi envolvida por vicissitudes várias desde por volta dos seus 4 anos / 4 anos e meio (ano de 2016) até ao presente!
As partes/progenitores continuam a esgrimir os seus argumentos, na maior parte das vezes, de índole predominantemente adjetiva/processual[13], mas, sempre se dirá, natural e necessariamente, afora os preconceitos ou prejuízos, que é o superior interesse da CC que deverá ditar toda e qualquer resposta a dar, desde logo em sede de alteração da RERP (que importa levar a cabo), atendendo a todos os elementos recolhidos nos autos (e que entretanto serão obtidos) e ao que a Lei claramente estabelece sobre a problemática da regulação do exercício das responsabilidades parentais e sobre os direitos e o superior interesse das crianças e jovens.
Ainda que não seja possível apagar os factos do passado e o que se expendeu (muitas das vezes, em sentidos opostos ou não coincidentes) nas múltiplas peças e decisões judiciais mencionadas em II. 1., supra, - e é certo que “Um acontecimento dá-se, ou não se dá; não há meio termo.”[14] -, dir-se-á que os factos apurados e a realidade, dizem-nos, com suficiente clareza, o caminho a seguir e alguns dos cuidados a ter.
Por isso, o sentido e as circunstâncias da decisão recorrida - de 04.11.2024 - não são o que mais releva, sendo porventura apenas um primeiro e ténue “invólucro” de parte da (nova) realidade a considerar.
3. Para efeitos do Regime Geral do Processo Tutelar Cível/RGPTC(aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08.9)[15], constituem providências tutelares cíveis, nomeadamente, a regulação do exercício das responsabilidades parentais e o conhecimento das questões a este respeitantes (art.º 3º, alínea c)).
Os processos tutelares cíveis regulados no RGPTC regem-se pelos princípios orientadores de intervenção estabelecidos na lei de proteção de crianças e jovens em perigo e ainda pelos seguintes: a) Simplificação instrutória e oralidade - a instrução do processo recorre preferencialmente a formas e a atos processuais simplificados, nomeadamente, no que concerne à audição da criança que deve decorrer de forma compreensível, ao depoimento dos pais, familiares ou outras pessoas de especial referência afetiva para a criança, e às declarações da assessoria técnica, prestados oralmente e documentados em auto; b) Consensualização - os conflitos familiares são preferencialmente dirimidos por via do consenso, com recurso a audição técnica especializada e ou à mediação, e, excecionalmente, relatados por escrito; c) Audição e participação da criança - a criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica ao tribunal, sendo garantido, salvo recusa fundamentada do juiz, o acompanhamento por adulto da sua escolha sempre que nisso manifeste interesse[16] (art.º 4º, n.º 1). Para efeitos do disposto na alínea c) do número anterior, o juiz afere, casuisticamente e por despacho, a capacidade de compreensão dos assuntos em discussão pela criança, podendo para o efeito recorrer ao apoio da assessoria técnica (n.º 2).
A criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse (art.º 5º, n.º 1).
Os processos tutelares cíveis têm a natureza de jurisdição voluntária (art.º 12º).
Em sede de RERP e resolução de questões conexas, a criança com idade superior a 12 anos ou com idade inferior, com capacidade para compreender os assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é ouvida pelo tribunal, nos termos previstos na alínea c) do artigo 4º e no artigo 5º, salvo se a defesa do seu superior interesse o desaconselhar (art.º 35º, n.º 3).
4. Tratando-se de processo de jurisdição voluntária (art.º 12º do RGPTC), o tribunal não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável à espécie vertente/não está sujeito a critérios de legalidade estrita, tendo a liberdade de se subtrair a esse enquadramento rígido e de proferir a decisão que lhe pareça mais equitativa (mais conveniente e oportuna) (art.º 987º do CPC), a que melhor serve os interesses em causa[17]; o princípio do inquisitório é assumido em toda a sua plenitude, sobrelevando ao princípio do dispositivo, concedendo-se ao tribunal o poder-dever de investigar livremente os factos, coligir provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes[18], sendo apenas admitidas as provas que o juiz considere necessárias; salvaguardados os efeitos já produzidos, será sempre possível a alteração de tais resoluções com fundamento em circunstâncias supervenientes[19] (cf. os art.ºs 986º, n.º 2; 987º; 988º, n.º 1, 1ª parte e 989º, do CPC).
Daí que, em cada caso, releve, sobretudo, a preocupação de respeitar a verdade material e a finalidade prosseguida no processo, pelo que as regras e os princípios do Processo Civil poderão ser secundarizados (amovendo, quando oportuno, determinados princípios que enformam o processo civil[20]) se e quando colidam ou inviabilizem a possibilidade de proferir a decisão tida como mais equitativa, conveniente e oportuna.
Assim, estando em causa a regulação do exercício das responsabilidades parentais e o conhecimento das questões a este respeitantes, é permitido ao julgador usar de liberdade na condução do processo e na investigação dos factos, seja para coligir oficiosamente provas que repute essenciais às finalidades do processo, seja para prescindir de atos ou de provas que repute inúteis ou de difícil obtenção (art.º 986º do CPC) e, neste sentido, incompatíveis com o superior interesse da criança, que também se projeta no direito a uma decisão em tempo adequado e razoável.
5. Perante o descrito enquadramento jurídico e normativo e o estado dos autos (com uma conferência dos pais marcada para 20.02.2025 - cf. II. 1. k), supra), dir-se-á que importa sobremaneira indagar o que se equacionou em II. 1. i), supra - já parcialmente cumprido [cf. II. 1. j), supra] -, ter especial cuidado na definição/configuração de um futuro regime de convívio da jovem CC com o progenitor/requerido e a família paterna e, oportunamente - com plena justificação e de harmonia com o que a lei clara e especificamente prevê -, ouvir a CC (e os pais).
E tudo deverá ser conjugado e ponderado com o resultado das diligências em curso.
6. Ao fim e ao cabo, o despacho recorrido - apesar de usar uma expressão menos própria: “cessação da proibição dos contactos” - limitou-se a declarar a cessação da “suspensão das visitas (do progenitor) à sua filha” decretada pelo acórdão de 23.11.2021-processo 1470/13. ..., aparentemente, respeitando os fundamentos e o segmento injuntivo do citado acórdão [e o que decorre da conjugação dos arestos mencionados em II. 1. f) e g), supra][21], pois, como também nele se explicitou “a suspensão durará enquanto não existirem factos que juridicamente imponham decisão diversa da agora tomada” (sic).
Contudo, falta concretizar, pelo menos, o quando e o como do regime de convívio a implementar (com a necessária alteração do anterior e que, de facto, terá deixado de existir...[22]), o que, diga-se, não colide, antes se conjuga, com a posição que vem sendo defendida pelo progenitor - cf., v. g., II. 1. h) e j), supra.[23]
7. Nesta perspetiva, não se poderá dizer que o mencionado despacho tenha violado o “direito ao contraditório” (que, como decorre dos autos de alteração da RERP e, até, dos presentes autos de recurso, é devidamente exercitado pelas partes) ou o “princípio da audição da criança”, e bem assim que haja falta de fundamentação sobre o retomar do regime de contactos/convívio, porquanto suficientemente inteligível a razão de ser da aludida cessação da suspensão decretada pelo acórdão de 23.11.2021, não obstante, é certo, as diligências (algumas das quais enumeradas no despacho de 12.7.2024 - relatórios do INML acerca da criança e dos seus progenitores) que importa levar a cabo e cuja realização, em princípio, deverá/deveria ser previamente comunicada às partes.
Tudo será oportunamente discutido, ponderado e julgado (ou levado em atenção em eventual acordo).
Com o descrito (e limitado) alcance e vistas as particularidades dos autos e da sua tramitação, afigura-se, pois, que não se poderá concluir que o despacho recorrido tenha desrespeitado normas adjetivas ou o superior interesse da CC, porquanto falta definir o quadro regulatório tendente à sua efetiva salvaguarda e atuação, obviamente, observando-se os procedimentos legalmente previstos.
8. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.
Custas pela requerida/recorrente.
11.02.2025
[3] Recurso admitido com subida em separado, de imediato e com efeito meramente devolutivo da decisão.
[4] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[5] Cf. relatório da Segurança Social de julho/2017.
Consta da alegação do M.º Público nos autos de recurso ditos em II. 1. f), infra: «Tais contactos, presenciais, começaram por ocorrer semanalmente, passaram depois a quinzenais, estiveram suspensos entre a acusação e a primeira absolvição e durante a pandemia e foram retomados em 29.12.2020.» (sublinhado nosso)
Cf., contudo, “nota 22”, infra.
[6] Idem.
[7] Cf. relatório da Segurança Social de julho/2024.
[8] No acórdão da RC de 07.4.2021 (5ª Secção), reproduzido a fls. 22.
[9] Aresto publicado no “site” da dgsi, com o seguinte sumário: «I – Existindo acórdão do Tribunal da Relação, com recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, que imputa ao arguido factos que integram a autoria material de oito crimes de abuso sexual sobre a sua filha, com 4 anos de idade à data dos factos, tal factualidade pode ser levada em consideração num processo tutelar cível (Lei n.º 141/2015, de 08 de setembro), apesar do princípio da presunção de inocência do arguido consagrado no artigo 32º da Constituição da República. II – Nesta situação de incerteza deve optar-se pela decisão que cause presumivelmente menor prejuízo à menor. III – A gravidade dos factos pode implicar a suspensão dos encontros entre pai e filha, mesmo que decorram na presença de técnicos da Segurança Social. IV – Muito embora a norma da al. c) do n.º 1 do artigo 4.º do RGPTC determine que a criança é sempre ouvida «sobre as decisões que lhe digam respeito», este dispositivo deve ser entendido com alguma elasticidade, não sendo necessário ouvir de novo a criança se ela já foi ouvida anteriormente nos autos e nada se alterou, entretanto, ao nível dos factos relativos à vida quotidiana da menor ou dos seus pais.».
[10] Publicado no “site” da dgsi.
[11] Cf. documento de fls. 216.
[12] Cf. relatório da perícia médico-legal de 22.11.2024.
[13] Se bem que não se deva/possa perder de vista as seguintes sábias palavras de Rudolph von Ihering, retiradas de Abreviatura de El Espíritu del Derecho Romano, Marcial Pons 2005, página 213: “Enemiga de la arbitrariedad, la forma es hermana gemela de la libertad; es el freno que detiene a los que quieren convertir la libertad en licencia, la que contiene y protege. El pueblo que ama la libertad comprende instintivamente que la forma no es un yugo, sino el guardián de su libertad. La forma supone siempre un contenido; es el contenido desde el punto de vista de su visibilidad. Por otro lado, está la voluntad jurídica, que sólo se conoce por su manifestación exterior. No existe acto de voluntad sin forma, porque en este caso sería la espada de Bernardo, que ni pincha ni corta.”
[14] Vide Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico/Investigações Filosóficas, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, pág. 87.
[15] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[16] Acolhendo, diga-se, a Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque a 26.01.1990 (aprovada, para ratificação, por resolução da AR n.º 20/90, de 12.9) e que consigna, no seu art.º 12º, que Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade (n.º 1). Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja diretamente, seja através de representante ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional (n.º 2).
Foi também ratificada a Convenção Europeia sobre o exercício dos Direitos das Crianças que estabelece:
- A presente Convenção aplica-se a menores de 18 anos (art.º 1º, n.º 1). A presente Convenção, tendo em vista o superior interesse das crianças, visa promover os seus direitos, conceder-lhes direitos processuais e facilitar o exercício desses mesmos direitos, garantindo que elas podem ser informadas, diretamente ou através de outras pessoas ou entidades, e que estão autorizadas a participar em processos perante autoridades judiciais que lhes digam respeito (n.º 2). Para efeitos da presente Convenção, entende-se por processos perante uma autoridade judicial que digam respeito a crianças, os processos de família, em particular os respeitantes ao exercício das responsabilidades parentais, tais como a residência e o direito de visita às crianças (n.º 3).
- À criança que à luz do Direito Interno se considere ter discernimento suficiente deverão ser concedidos, nos processos perante uma autoridade judicial que lhe digam respeito, os seguintes direitos, cujo exercício ela pode solicitar: a) Obter todas as informações relevantes; b) Ser consultada e exprimir a sua opinião; c) Ser informada sobre as possíveis consequências de se agir em conformidade com a sua opinião, bem como sobre as possíveis consequências de qualquer decisão (art.º 3).
- Nos processos que digam respeito a uma criança, a autoridade judicial antes de tomar uma decisão deverá: a) Verificar se dispõe de informação suficiente para tomar uma decisão no superior interesse da criança e, se necessário, obter mais informações, nomeadamente junto dos titulares de responsabilidades parentais; b) Caso à luz do Direito Interno se considere que a criança tem discernimento suficiente: - Assegurar que a criança recebeu toda a informação relevante; - Consultar pessoalmente a criança nos casos apropriados, se necessário em privado, diretamente ou através de outras pessoas ou entidades, numa forma adequada à capacidade de discernimento da criança, a menos que tal seja manifestamente contrário ao interesse superior da criança; - Permitir que a criança exprima a sua opinião; c) Ter devidamente em conta as opiniões expressas pela criança. (art.º 6º).
[17] Vide Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol. II, Coimbra, 1982, págs. 400 e 401.
[18] Cf. acórdão da RL de 24.6.2010-processo 461/09.2TBAMD.L1-6, publicado no “site” da dgsi.
[19] Isto é, no dizer da lei, tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso (art.º 988º, n.º 1, 2ª parte, do CPC).
[20] Cf. acórdão do STJ de 31.01.2019-processo 3064/17.4T8CSC-A.L1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[21] Neste contexto, salvo o devido respeito por entendimento contrário, parece-nos que não se poderá/deverá dar ao Relatório Pericial do INML, elaborado no âmbito do processo crime n.º 1066/16...., em dezembro/2017, a importância que continua a ser dada pela requerida/recorrente.
[22] Assim caraterizado pelo recorrido: “... de forma supervisionada nas instalações da Segurança Social, tal como estava determinada na cláusula única do regime provisório” - cf. ponto 11. da fundamentação da resposta à alegação de recurso.
E depois: “(...) regime provisório que vigorou até dezembro de 2016 (sendo que mesmo nesse contexto poucas foram as vezes em que o pai esteve com a menor CC).”; “Desde o ano de 2016 que o recorrido não vê a sua filha, nem sabe nada dela”; “É certo que pai e filha não convivem, nem se veem há cerca de 8 anos e que a aproximação a acontecer entre estes deve ser feita de forma gradual e cuidada.” - cf. pontos 14, 20 e 21, respetivamente, da mesma fundamentação (sublinhado nosso).
Cf., no entanto, II. 1. c) e d), e “nota 5”, supra.
[23] Cf., ainda, “nota 22”, supra.