CONTRATO DE COMODATO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Sumário

I - A obscuridade nas respostas da primeira instância, sobre matéria factual decisiva para o desfecho da causa, deve ser sanada através do esclarecimento dos factos, reservando-se a sua eliminação apenas para o caso de ele não ser possível.
II - O dever de restituição constitui elemento caracterizador fundamental do contrato de comodato, regulado nos arts. 1129.º e segs. do Código Civil, que o distingue da doação e cuja presença deve resultar dos factos julgados provados.
III - Não existe qualquer regra ou princípio jurídico que impeça a celebração, ao abrigo da liberdade contratual, de um comodato vitalício, ou mesmo de pais para filhos; e não obstante o art. 1141.º do CC dispor que o contrato caduca por morte do comodatário, tal disposição legal cede perante acordo diverso das partes.
IV - Em acção de reivindicação, mesmo reconhecida a aquisição do direito de propriedade por parte da autora, a restituição pode ser recusada com fundamento na existência de uma relação, real ou obrigacional, justificativa da posse ou de mera detenção, que pode resultar, respectivamente, de uma doação posterior ou de um comodato.
V - Porém, em caso de comodato destinado a garantir habitação a pessoas carenciadas economicamente, para além do caso em que o contrato seja vitalício, ou mesmo de pais para filhos, a recusa da restituição apenas é legítima quando as partes tenham acordado que a entrega do imóvel se destina a satisfazer as carências habitacionais do comodatário e resulte inequivocamente, dos termos do acordado, que a cedência perdurará enquanto se mantiverem essas carências.
VI - Para além disso, nesses casos, a boa-fé no exercício dos direitos, e nos termos dos arts. 334.º e 762.º/2 do Código Civil, pode ter repercussão, quer no prazo, quer mesmo na própria faculdade de obter a restituição, na dependência dos motivos que tenham conduzido o comodante a pretender fazer cessar o contrato e das necessidades habitacionais do comodatário.
VII - No concurso dos vícios em sede factual previstos nas als. b) e c) do art. 662.º/2 do CPC, deve ser determinada a anulação da decisão recorrida.

Texto Integral

Acção Comum nº7655/21.0 T8VNG.P1

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM OTRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO (3.ª SECÇÃO CÍVEL):

Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: Teresa Pinto da Silva
2.º Adjunto: Miguel Fernando Baldaia Correia de Morais

RELATÓRIO.
A..., INSTITUIÇÃO PARTICULAR DE SOLIDARIEDADE SOCIAL E ASSOCIAÇÃO DE SOLIDARIEDADE SOCIAL, titular do NIPC ..., com sede em Vila Nova de Gaia, propôs a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra AA, residente na Rua ..., casa ..., em ..., também em Vila Nova de Gaia.
Pediu que, pela procedência da acção, seja a R. condenada a reconhecer que a A. é dona e legitima proprietária do prédio identificado nos artigos 5º a 8º da petição inicial e a restituir tal prédio à A., imediatamente e totalmente livre.
Para o efeito e em resumo, alegou que tem por objecto o apoio à família nas condicionantes material, social e espiritual e que, nesse âmbito, recebeu, através de doacção, dois prédios compostos por leira de mato e pinhal, registados na 2ª Conservatória do Registo Predial de V. N. Gaia, a favor da A., desde 26/05/2003, nos quais, em 18/9/2012, a A. procedeu ao loteamento urbano, originando a constituição de seis lotes.
Mais, afirmou que pelo menos desde 1988, na prossecução do seu objecto social, cedeu de forma gratuita à Ré, a casa n.º ..., que a A. havia edificado no terreno, inscrita na matriz sob o artigo ..., onde a R. passou a habitar, embora ciente que tal casa pertence unicamente à A..
Nesse enquadramento, a A. diligenciou junto da R. no sentido de lhe vender ou arrendar aquela casa n.º ..., mas a R. mostrou-se indisponível para o efeito, não restando à A. outra alternativa que não a restituição da casa que lhe pertence, como decorre da presunção do registo e sempre resultaria da usucapião, que também invocou.
Na contestação, a R. começou por suscitar a intervenção principal provocada dos seus filhos, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH e II, na qualidade de herdeiros únicos de JJ, falecido no dia 26/07/2016, no estado de casado com a R..
Para além disso, impugnou parte da factualidade invocada na petição inicial, visto que a A. doou o terreno à Ré e seu marido, em 1986, ainda que verbalmente, e que desde pelo menos 1985 a A. não pratica sobre tal imóvel e parcela de terreno qualquer ato de posse, sendo os custos inerentes e demais despesas quotidianas de consumo doméstico, luz, gás e IMI suportados pela Ré e marido, agora pelos herdeiros deste.
Ainda em sede de impugnação, afirmou que devido à extrema carência e situação precária em que vivia com o falecido marido, a Ré, no ano de 1985, pediu ajuda ao Padre KK, à data sacerdote na Freguesia ..., que diligenciou junto da Autora no sentido de ajudar o casal, uma vez que era uma instituição de solidariedade social, o que ela fez, no mesmo ano, doando à Ré e seu marido uma parcela de terreno situada na atual Rua ..., da Freguesia ..., local onde agora está implantada a habitação da Ré e objecto dos autos, para que a Ré e seu marido pudesse edificar a sua habitação.
Perante tal doação, a Ré, o marido, familiares e emigrantes construíram uma moradia, que deu origem ao prédio urbano destinado a habitação, com logradouro e jardim, composto de cave com uma divisão para arrumos, rés-do-chão com vestíbulo, cozinha, sala, 3 quatros e banho, sito na Rua ..., da Freguesia ..., Concelho de Vila Nova de Gaia e que deu origem ao artigo urbano da extinta Freguesia ... sob o nº ..., atualmente artigo ... da União das Freguesias ..., ..., ... e ... e omisso na Conservatória, com a área total de 323 m2, onde a R. e a sua família passou a habitar desde meados de 1986.
Na sequência, invocou a aquisição do prédio identificado no artigo 7º da petição e art. 1º da contestação, por usucapião, pois após a referida construção, em 1985, com término em 1986, a R. e marido procederam à divisão física do terreno e espaço da sua casa, construindo um muro de divisão, separando fisicamente a sua habitação das restantes, e dotaram a mesma de autonomia, quer a nível de entradas, quer de utilização elétrica, água, etc, tendo construído um poço de captação que fornece água à sua habitação.
Mais, desde 1986, por si e antepossuidores, a R. e família limpam e zelam por tal imóvel, efetuaram obras de remodelação e conservação, a seu gosto, quando entenderam ou puderam, sem oposição de quem quer que seja, nomeadamente da Autora, limpam o logradouro do imóvel, fazem as refeições no imóvel e lá dormem, recebendo e convivendo com os familiares e amigos, semeando e colhendo alguns produtos agrícolas como cenouras, cebolas, batatas, etc., solicitaram a baixada da energia elétrica, celebraram contrato de fornecimento de eletricidade, pagando as despesas de eletricidade, gás, telecomunicações e IMI.
Até que a Autora no 2019 e 2020, sem qualquer explicação, pretendeu vender à Ré a sua própria habitação, incluindo o solo onde a mesma está edificada, pelo valor de 14.600,00€, tendo a Ré respondido a tal missiva, informando que nunca reconheceu, nem reconhece qualquer propriedade à Autora sobre a habitação onde reside, nem sobre o solo onde a mesma foi construída, embora, contra a realidade dos factos, a Autora tenha inscrito na matriz a seu favor as várias moradias existentes na Rua ..., incluindo a da Ré e seu marido, no ano de 2019.
Em consequência, deduziu reconvenção, no sentido de, no essencial, ser a Autora condenada a reconhecer que a Ré e seu marido, são os únicos e legítimos proprietários do prédio urbano destinado a habitação, com logradouro e jardim, composto de cave com uma divisão para arrumos, rés-do-chão com vestíbulo, cozinha, sala, 3 quatros e banho, sito na Rua ..., da Freguesia ..., Concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz urbana da extinta Freguesia ... sob o nº ..., atualmente artigo ... da União das Freguesias ..., ..., ... e ... e omisso na Conservatória, com a área total de 323 m2 (correspondente ao mesmo imóvel identificado no artigo 7º da P.I.), por ter sido adquirido por usucapião.
Pediu ainda a condenação da A. como litigante de má-fé em multa e indemnização a favor do tribunal e da Ré, em quantia nunca inferior a 5000€.
A A. ofereceu réplica, na qual, em síntese apertada, impugnou a matéria alegada na contestação, por ser totalmente falsa, declarando que a casa em questão foi unicamente construída por si, e que as doações de emigrantes para ajuda quer da construção da casa n.º ... quer de outras, pertencentes à A., foram obtidas unicamente pela A..
Acrescentou que a R. e todo o seu agregado familiar eram pessoas muito carenciadas, não dispondo de quaisquer recursos materiais e económicos, e viviam na freguesia ..., concelho de Santa Maria da Feira, de forma muito precária num barraco, sem as condições mínimas de habitabilidade e de salubridade.
Por isso, eles pediram apoio à A. para lhes ceder uma habitação nessa urbanização, que lhes foi concedida com caráter prioritário, atendendo à situação precária e dramática em que viviam, tendo sido a primeira casa a ser concluída e entregue.
Por fim, afirmou que foi a A. quem custeou o pagamento dos ramais de ligação às casas e especificamente à casa ...; todavia, para a EDP poder fazer a ligação dos ramais elétricos às casas e a instalação dos contadores elétricos exigiu a participação fiscal à matriz das construções, pelo que, exclusivamente para esse efeito e para facilitar a posterior faturação dos consumos em nome dos moradores, a A. autorizou à R. que participasse em seu nome a referida construção à matriz urbana, tendo dado origem ao mencionado artigo urbano ... de ..., concluindo que os actos referidos reconvenção integram-se na prática de actos de mera detenção, próprios e característicos do comodato.
Em consequência, requereu a condenação da R., como litigante de má fé, em multa a favor do Tribunal e em indemnização a favor da A. em quantia nunca inferior a 5.000,00 €.
A intervenção principal foi admitida e, na sequência, DD, CC e EE, intervenientes principais, declararam em suma fazer sua a contestação apresentada pela R..
Findos os articulados, foi proferido despacho que, fixando o valor da causa e admitindo a reconvenção, determinou a remessa dos autos ao Juízo Central, por ser o competente, onde os autos foram recebidos.
A 14/9/2023, foi saneada a instância, com fixação do objecto do processo e selecção dos temas da prova, que incluiu, no seu nº1, o apuramento da cedência do imóvel em causa à 1ª Ré e marido por parte da Autora e pretensão desta de restituição do mesmo.
Designada data para a audiência de discussão e julgamento, as partes requereram, e foi-lhes concedida, a suspensão da instância, por três vezes, tendo em vista a obtenção de acordo, o qual, porém, se frustrou.
Concluído o julgamento, foi proferida sentença, datada de 5/7/2024, que, julgando a ação totalmente procedente, por provada, e improcedente a reconvenção, decidiu condenar a Ré e Intervenientes a reconhecer a Autora como proprietária do prédio situado no lugar ..., Freguesia ..., concelho de Vila Nova Gaia, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ... e inscrito na matriz sob o artigo ..., e a entregar à Autora esse prédio, livre de pessoas e bens.
Para além disso, absolveu ambas as partes dos pedidos de condenação a título de litigância de má fé.
E dessa sentença, inconformada, a R. interpôs recurso, admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo, que rematou com as seguintes principais conclusões, já objecto de aperfeiçoamento (e que na parte que constituem repetição nos abstemos de citar):
(…)
Concluiu pedindo seja declarada a improcedência do pedido da A. e a procedência da reconvenção.
Os intervenientes que contestaram, mediante adesão à contestação, também acompanharam o recurso.
A A. ofereceu resposta, na qual, em síntese:
(…)
Já neste Tribunal, foi proferido despacho (de 18/11/2024) que, embora não acompanhando a questão da rejeição do recurso por falta de conclusões, determinou a notificação da R. no sentido de a convidar ao respectivo aperfeiçoamento, ao que ela satisfez através do requerimento antecedente, o qual não foi objecto de resposta da contraparte, o que justifica se julgue regularizada a questão.
Nada obsta, pois, ao conhecimento do recurso, admitido com os legais efeitos.

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OBJECTO DO RECURSO.
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635.º/4 e 639.º/1 do CPC).
Assim sendo, importa em especial apreciar:
a) se foi validamente deduzida, é justificada e procede a impugnação da matéria de facto, quanto aos pontos 7, 10, 15, 19, 20, 23, 25, 41, 42, 43, 44 dos factos provados e aos números 2, 3, 4, 5, 7, 8, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 dos factos não provados (conclusões 1 a 54);
b) se estão verificados os requisitos da aquisição da propriedade do imóvel reivindicado a favor dos recorrentes por usucapião (conclusões 55 a 83, 86 a 90); e
c) se a A. não fez a prova necessária para a procedência dos seus pedidos (conclusões 84 e 85).
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Em sede de factos julgados provados em primeira instância, vários foram colocados em crise no recurso, na impugnação da matéria de facto, cuja apreciação deverá ocorrer mais adiante.
Assim, sem prejuízo da subsequente consideração dessa impugnação, estão provados os seguintes factos, segundo a decisão recorrida:
1) A Autora uma instituição particular de solidariedade social, sem fim lucrativo, sob a forma de associação de solidariedade social, reconhecida como pessoa coletiva de utilidade pública. (documento nº 1 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido).
2) Tem por objeto o apoio à família nas condicionantes, material, social e espiritual, designadamente, no apoio de bens alimentares, medicamentos e apoio na construção de habitações.
3) Por escritura de doação outorgada no dia 30 setembro de 1983, LL e mulher MM declararam doar à Autora os seguintes prédios:
- Uma leira de mato e pinhal, chamada “...”, situada no lugar ..., Freguesia ..., concelho de Vila Nova Gaia, inscrita na matriz sob o artigo ...;
– Leira de mato e pinhal, situado no mesmo lugar ..., da referida freguesia inscrita na matriz sob o artigo .... (documento nº 2 e 3 juntos com a petição inicial, que se dá por reproduzido)
4) Os prédios encontram-se descritos na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº ... e inscritos a favor da Autora desde 26.05.2003. (documento nº 4 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido)
5) Os prédios foram doados à Autora com vista à prossecução do seu objeto.
6) Posteriormente à construção das habitações, a 17.09.2012 a Autora procedeu ao loteamento urbano dos prédios que lhe foram doados.
7) Em 08 de dezembro de 1985 a Autora, na prossecução do seu objeto social, cedeu de forma gratuita à Ré, a casa n.º ... construída nos imóveis doados.
8) A Ré e todo o seu agregado familiar eram pessoas muito carenciadas, não dispondo de quaisquer recursos materiais e económicos.
9) Viviam em ..., concelho de Santa Maria da Feira, num barraco situado num pinhal sem condições de habitabilidade e de salubridade.
10) Devido à extrema carência em que viviam pediram ajuda ao Padre KK que, à data, exercia sacerdócio na Freguesia ....
11) O Padre KK, diligenciou junto da Autora no sentido de ajudar o casal.
12) A Autora auxiliava o agregado familiar com alimentos.
13) A Autora deu prioridade a obtenção de habitação para os mesmos, tendo sido a primeira casa a ser concluída e entregue.
14) Além do apoio habitacional, a Ré e o seu agregado familiar foram mensalmente apoiados pela Autora com géneros alimentares desde 1984.
15) A casa edificada no terreno foi construída com materiais fornecidos pela Autora e materiais doados por terceiros, tendo a Autora suportado custos no valor global de 1. 913 416$00.
16) A construção foi iniciada no ano de 1984.
17) A Autora orçamentou para o ano de 1985 e para a construção das casas ... e ... de ..., a quantia 1.600.000$00.
18) A Autora projetava entregar a casa n.º ... ao agregado familiar da Ré simultâneo com o casamento católico do casal e o batismo dos filhos.
19) No ano de 1984 a Autora gastou na execução da obra da casa ... de ..., na compra de materiais e em mão de obra, pelo menos a quantia total de 892 097$50.
20) No ano de 1985 a Autora gastou na execução da obra da casa ... de ..., pelo menos a quantia total de 1 021 318$50.
21) A Ré passou a habitar tal casa desde dezembro de 1985 de forma gratuita, sem qualquer contrapartida.
22) A casa n.º ..., encontra-se inscrita na matriz sob o artigo .... (documento nº 5 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido)
23) A Ré sabia que a casa pertence à Autora.
24) A Autora diligenciou junto da Ré no sentido de lhe vender ou arrendar a casa n.º ..., o que a Ré não aceitou.
25) A Autora atua sobre os imóveis como coisa sua, à vista e com conhecimento de todos, sem oposição de ninguém, na convicção de ser a sua dona.
26) Aquando da doação à Autora, o intuito dos doadores era de que esses terrenos servissem para criar condições de habitação a famílias carenciadas.
27) No ano de 1992 foi inscrito na matriz sob o artigo ... (atual artigo ...), o prédio urbano sito na Rua ..., tendo a Ré identificada como titular (documentos nº 1e 2 juntos com a contestação, que se dão por reproduzidos).
28) Concluída a construção a Ré, marido e filhos residiram na habitação em causa de forma ininterrupta.
29) Os custos referentes a água e luz são suportados pela Ré e família desde a data em que a habitação passou a dispor de contadores próprios.
30) Emigrantes que residiam em França fizeram contribuições para a construção do imóvel.
31) Por esse motivo foi afixada na casa ... uma placa onde menciona “...”.
32) As doações de emigrantes para ajuda da construção da casa n.º ... e de outras foram obtidas por intermédio do Padre KK, junto da comunidade portuguesa radicada em França.
33) A Ré e intervenientes residentes no imóvel tratam da sua conservação e limpeza.
34) Limpam o logradouro do imóvel.
35) Fizeram e fazem as refeições no imóvel e lá dormem.
36) Recebendo e convivendo com os familiares e amigos.
37) Entrando e saindo diariamente, à hora que entendessem.
38) Tratando do quintal, podando as árvores, semeando e colhendo alguns produtos agrícolas.
39) Até 2019 nunca a Ré e seu marido foram interpelados pela Autora a solicitar a entrega da habitação.
40) Quando a Ré e respetivo agregado familiar foram habitar a casa em 1985, a mesma estava dotada de energia elétrica, mas de forma precária, por não estar legalizada, não ter licenças camarárias, nem de construção nem de habitabilidade e não tinha participação fiscal à matriz.
41) A EDP não fazia a ligação do ramal, nem instalava o contador elétrico.
42) A situação só foi desbloqueada no ano de 1992, tendo sido a Autora quem custeou o pagamento dos ramais de ligação às casas, incluindo a casa ....
43) Para a EDP poder fazer a ligação dos ramais elétricos às casas e a instalação dos contadores elétricos exigiu a participação fiscal à matriz das construções.
44) Para permitir a ligação do ramal elétrico e para facilitar a posterior faturação dos consumos em nome dos moradores, a Autora autorizou que a Ré participasse em seu nome a construção à matriz urbana, tendo dado origem ao artigo urbano ... de ....
45) A Autora ainda não logrou a aprovação do projeto de edificação e licença de utilização junto da Câmara Municipal ....
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Por sua vez, foram os seguintes os factos que a primeira instância julgou não provados (o que se indica mediante alíneas por contraposição aos factos considerados provados):
a) A Autora paga todas as contribuições referentes aos imóveis.
b) O prédio foi murado pela Ré e seu marido há mais de 30 anos.
c) A Autora, quando fez o loteamento, sabia que o imóvel não lhe pertencia.
d) Os custos referentes a despesas de luz, gás e IMI sempre foram suportados pela Ré e família.
e) No ano de 1985 a Autora doou à Ré e seu marido uma parcela de terreno situada na atual Rua ..., da Freguesia ..., local onde agora está implantada a habitação da Ré, para que a Ré e seu marido pudesse edificar a sua habitação.
f) Tendo, em virtude dessa doação, a Junta de Freguesia ... entregue à Ré e aos restantes moradores da Rua ..., um projeto devidamente licenciado na Câmara Municipal ... para que aqueles, inclusive a Ré e marido, pudessem contruir a sua habitação.
g) O imóvel foi construído com materiais adquiridos pelo marido da Ré e doados por emigrantes que residem em França à Ré e marido, que forneceram materiais para construção da moradia, nomeadamente, materiais para a arte de pedreiro, trolha, pichelaria, eletricista.
h) Tendo a Ré e marido, com a ajuda de familiares fornecido a mão de obra.
i) Iniciaram a construção da habitação como verdadeiros proprietários.
j) O imóvel foi construído com materiais adquiridos pela Ré e marido.
l) Foram a Ré e marido que em 1985 e 1986, procederam à divisão física do terreno e espaço da casa, construindo um muro de divisão, separando fisicamente a habitação das restantes e dotaram a mesma de autonomia, quer a nível de entradas, quer de utilização elétrica e água.
m) Ré e marido construíram um poço de captação de água que fornece água à habitação.
n) O projeto e pedido de licenciamento das habitações foi efetuado pela Junta de Freguesia ..., que efetuou tal pedido de licenciamento com objetivo de possibilitar à Ré e seu marido e demais moradores, com baixos recursos financeiros, a construção de habitação.
o) A Ré e seu marido, e após o falecimento deste, a Ré e seus filhos, sempre trataram e tratam o imóvel, como coisa sua.
p) Efetuaram as obras de remodelação que entenderam.
q) Pintando o mesmo, escolhendo e pagando os materiais para tais obras.
r) Solicitaram a baixada da energia elétrica.
s) Celebraram contrato de fornecimento de eletricidade, pagando as despesas de eletricidade, gás, telecomunicações, IMI.
t) São reconhecidos pela generalidade das pessoas como proprietários do imóvel.
u) Sempre agiram não convicção de serem proprietários do imóvel.
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SOBRE A OBSCURIDADE DA MATÉRIA DE FACTO.
Segundo dispõe o art. 663.º/2 do CPC, o acórdão principia pelo relatório, em que se enunciam sucintamente as questões a decidir no recurso, expõe de seguida os fundamentos e conclui pela decisão, observando-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º.
Por outro lado, nos termos do art. 607.º do mesmo diploma legal, deve o juiz discriminar os factos que considera provados (nº3) e toma ainda ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito (nº4).
Finalmente, dispõe o art. 662.º/1 que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Este quadro legal tem como pressuposto que certas patologias da decisão da matéria de facto proferida em primeira instância podem ser conhecidas oficiosamente pelo tribunal de recurso.
Diversamente, ocorrendo erro de julgamento sobre factos relevantes, a apreciação factual a empreender pela segunda instância depende da devida impugnação da parte.
É esta, no entanto, que as mais das vezes faz destacar os vícios de conhecimento oficioso.
Dentre estes, segundo a doutrina, merece enquadramento a “integração na sentença, na parte em que enuncia a matéria de facto provada (e não provada), de pura matéria de direito (…) ou matéria conclusiva” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., pp. 354-5).
Identicamente, refere a jurisprudência que, “apesar de não conter norma legal igual à que constava do art. 646.º/4 do anterior C.P.Civil, e ter sido uma opção legislativa maior liberdade na descrição da matéria de facto, por força do disposto no art. 607º/3 e 4 C.P.Civil de 2013, na fundamentação de facto da sentença apenas devem constar os factos julgados provados e não provados” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 9/11/2023, processo nº2275/14.9T8VN e disponível em texto integral na base de dados da Dgsi em linha).
Em consequência, dessa fundamentação devem “ser expurgados todos os [pontos] que constituem matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que engloba os juízos de valor ou conclusivos”.
Acrescentando ainda que “os factos conclusivos não podem integrar a matéria de facto quando estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem a perceção da realidade concreta, e/ou ditam por si mesmo a solução jurídica do caso, normalmente através da formulação de um juízo de valor” (cfr. citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 9/11/2023).
Trata-se, aliás, de uma regra de elaboração da decisão factual na sentença de primeira instância que, resultando tacitamente do art. 607.º/4 do CPC, rege igualmente o conteúdo do acórdão dos tribunais superiores, mercê do disposto nos arts. 663.º/2 e 679.º do mesmo diploma.
E cuja consagração expressa tem sido considerada desnecessária, pois a exclusão da matéria de direito ou dos juízos conclusivos da fundamentação de facto constitui “a única solução que fará sentido, pois não é certamente pelo facto de o tribunal indevidamente dar como provada ou não provada matéria de direito que a mesma passará a constituir factualidade” (cfr. Helena Cabrita, A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, p. 114).
Traduzindo simultaneamente um poder-dever da Relação cujo exercício é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, como este tem repetidamente sentenciado (cfr., por todos, o Acórdão de 24/1/2024, relatado por Ramalho Pinto no âmbito do processo n 22913/20.3T8LSB.L1.S1, disponível na referida base de dados).
Nestes termos, entende-se que é sindicável pelo STJ a decisão da Relação que elimina, por os considerar desprovidos de conteúdo factual, determinados factos, por tal apreciação ser uma questão de direito.
Pode dizer-se, em suma, a este respeito, que quando o contexto retratado sob os enunciados de facto integra uma parte essencial do objeto de disputa entre as partes, não pode ser utilizado na enunciação dos factos, que devem ser considerados como não escritos (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/1/2021, processo nº2999/08.0TBLLE, acessível em dgsi.pt).
Volvendo agora ao caso dos autos, pode assinalar-se, reduzindo-a aos seus termos mais simples, que a sentença impugnada, no seu segmento decisório, encontrou respaldo, essencialmente:
a) No entendimento de “que a Ré não logrou provar a aquisição originária do direito de propriedade”;
b) Na ideia de que “não suscita qualquer dúvida a qualificação do contrato dos autos como comodato”.
O que fundamentou, entre o mais, quanto à primeira asserção, com arrimo nos seguintes factos:
23) A Ré sabia que a casa pertence à Autora.
25) A Autora atua sobre os imóveis como coisa sua, à vista e com conhecimento de todos, sem oposição de ninguém, na convicção de ser a sua dona.
Ora, se bem pensamos, as referidas respostas dadas pelo tribunal recorrido têm a pretensão de resolver imediatamente o litígio, sem conter, todavia, qualquer descrição factual suficiente que permita compreender, por um lado, os factos concretos que conduzam à ciência, por parte da R., de que a casa pertence à contraparte, tanto mais que ela afirma nos autos exactamente o contrário, e por outro, ainda mais, quais as concretas manifestações que traduzam uma actuação da A. sobre o imóvel como coisa sua, à vista e com conhecimento de todos e na convicção de ser a sua dona.
Com efeito, as expressões “sabia que a casa pertence à Autora”, para além da aparente contradição que encerram com a posição que a R. assumiu nos autos, não se reportam a quaisquer factos concretos e, ao invés, traduzem meras deduções ou juízos conclusivos.
Da mesma forma, e ainda mais vincadamente, a resposta no sentido de que a A. “atua sobre os imóveis como coisa sua” não encontra manifestação em qualquer conduta palpável e verificável objectivamente.
Na verdade, as referidas frases significam inferências e juízos sobre o conhecimento ou actuação das partes que não emergem de qualquer facto real ou objectivo, constituindo somente uma interpretação subjetiva sobre um desconhecido comportamento atribuído à parte, ou a respeito da conduta da contraparte, durante período não especificado.
Sendo a suposta ciência da R. e a actuação da A. ali descritas de modo inteiramente desgarrado de qualquer manifestação concreta e exterior.
Como se percebe, claramente, se compararmos esses com os pontos provados nº24 e 28 da decisão recorrida, onde, diversamente, já se descrevem factos objectivos e constatáveis no plano ôntico (A Autora diligenciou junto da Ré no sentido de lhe vender ou arrendar a casa n.º ..., o que a Ré não aceitou e concluída a construção a Ré, marido e filhos residiram na habitação em causa de forma ininterrupta).
Segundo entendemos, esta omissão de descrição factual, a par da natureza essencial, para a resolução do litígio, atribuída à circunstância de existir posse ou mera detenção, evidenciam o emprego, pela primeira instância, de juízos conclusivos de modo decisivo para o desfecho da causa.
No contexto da presente acção, e dada a importância que têm para a sua resolução, aquelas referências assumem, pois, a natureza de factos conclusivos ou normativos.
E cujo preenchimento, na verdade, constitui questão de direito que depende forçosamente, por parte do tribunal recorrido, da descrição factual, face a toda a prova relevante, sobre concretos comportamentos da demandada que evidenciem o conhecimento que lhe foi apontado e da demandante que possam significar a forma de actuação que lhe foi reconhecida.
Trata-se, pois, do emprego na decisão de facto de um juízo conclusivo, diretamente relacionado com o thema decidendum e que obnubila a perceção da realidade concreta.
Resultando o seu carácter essencial para o desfecho da causa da circunstância de, sem esses factos, cair por terra uma das premissas indispensáveis, acima indicada em a), na fundamentação da decisão recorrida, para justificar a tese de que a Ré não provou a aquisição originária do direito de propriedade.
E que, dada essa sua essencialidade para o caso dos autos, não pode ser expurgado desde já e, antes, deve ser esclarecido pelo tribunal a quo, i. é, deve ser substituído, contanto que isso seja possível, pelos referidos comportamentos concretos que lhe possam estar subjacentes.
Em consequência, segundo entendemos, a opção de proceder à eliminação pura e simples desses pontos deve ficar reservada apenas para o caso de o seu esclarecimento não ser possível.
É necessário, pois, que se esclareça na medida do possível a referida matéria factual, atenta a sua obscuridade, mediante a indicação dos concretos factos da actuação das partes e dos quais se possa, já no plano normativo, concluir se está em causa a posse ou a detenção sobre o imóvel reivindicado.
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SOBRE A DEFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO.
Mais importante que essa, todavia, outra questão se levanta, no plano dos factos, e que, em nossa perspectiva, não foi devidamente resolvida pelo tribunal recorrido.
Com efeito, ainda com maior relevância que a apreciação da questão posse versus detenção, o destino da acção e da reconvenção, a nosso ver, deverá sobretudo depender da precisa configuração do acordo celebrado entre as partes no qual se incluiu a entrega do imóvel à R. e sua família.
Deste ponto de vista, tendo a actuação das partes sobre o imóvel resultado de um negócio, a concreta definição dos direitos e deveres que deste emergiram pode assumir natureza decisiva para determinar o desfecho da causa, para além de iluminar sobre os contornos da actuação de facto que aquelas mantiveram sobre o imóvel, sem embargo da relevância que porventura possa assumir o comportamento adoptado subsequentemente ao acordo.
Como assinala a jurisprudência, sem controvérsia, mesmo “reconhecido o direito de propriedade da autora e a ocupação do imóvel pela ré, a restituição pode ser recusada com fundamento na existência de uma relação, obrigacional ou real, tituladora da posse ou detenção da coisa”.
Acrescentando que “a existência de um contrato de comodato configura, precisamente, uma relação obrigacional passível de obstar à obrigação de entrega” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/2/2024, tirado no processo 7254/21.7T8VNG.P1, relatado por Ana Luísa Loureiro e disponível na base de dados da DGSI em linha).
Nesta linha de pensamento, verifica-se que foi precisamente na outorga de um contrato de comodato que a decisão recorrida encontrou o seu outro respaldo fundamental, de acordo com o que acima se indicou sob alínea b), para a decisão proferida, quando entendeu não suscitar dúvida a qualificação do contrato dos autos como comodato e de onde partiu a sua construção jurídica que conduziu à procedência da acção e à improcedência da reconvenção.
Ora, para fundamentar a celebração do comodato, a primeira instância alinhou, no essencial, o seguinte facto provado:
7) Em 08 de dezembro de 1985 a Autora, na prossecução do seu objeto social, cedeu de forma gratuita à Ré, a casa n.º ... construída nos imóveis doados.
Visto o acervo factual demonstrado, verifica-se que nenhum outro ponto se reporta ao acordo ajustado entre as partes.
Todavia, segundo dispõe o art. 1129.º do Código Civil, comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir.
Daqui resultando, pois, que o dever de restituir constitui um elemento caracterizador fundamental do contrato de comodato.
Com efeito, como salienta a jurisprudência, os “elementos essenciais do comodato são a gratuidade, a temporalidade e o dever de restituição” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15/2/2018, relativo ao processo 4324/15.4T8BRG.G1, da autoria de José Alberto Moreira Dias e disponível na indicada base de dados).
Simplesmente, a decisão recorrida não contém qualquer referência factual ao referido dever de restituir o bem, apesar de tal ser indispensável para, no plano da qualificação jurídica, afirmar a presença de um contrato de comodato.
Algo que, embora imperfeitamente expresso, está efectivamente alegado pela A. (cfr. art. 16 da petição inicial) e que, ademais, sempre teria de ser averiguado em concretização da alegação de uma situação factual inerente ao comodato (cfr. art. 28 da réplica), nos termos do art. 5.º/2, al. b), do CPC.
Ocorre, pois, manifestamente, o vício da deficiência da matéria de facto incluída na decisão recorrida, por ser indispensável que ela se debruce sobre se, nos termos do acordo estabelecido entre as partes, subjacente à entrega do imóvel, foi ou não incluído o dever da sua restituição.
É necessário, por isso, que a primeira instância, completando o acervo factual que contemplou, averigue e indique da forma mais precisa possível os direitos e deveres que aquele acordo determinou.
O que corresponde, afinal, à actividade de interpretação de qualquer contrato, como operação dirigida “a fixar o sentido e alcance decisivos dos negócios, segundo as respectivas declarações integradoras”, “determinar o conteúdo das declarações de vontade e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir”, e na qual “serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta” (cfr. C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., pp. 444-450).
No entanto, como veremos de seguida, isso não basta, para a decisão da causa, na tarefa de deslindar o conteúdo ou objecto imediato do acordo celebrado entre as partes relativo à entrega do imóvel.
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SOBRE A CONTRADIÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO.
Antes, porém, é mister destacar a contradição que, em parte, ostentam as respostas à matéria de facto dada em primeira instância, entre matéria provada e não provada, do que, aliás, também a recorrente se deu conta.
Assim, a sentença recorrida julgou demonstrados, entre o mais, os seguintes factos:
29) Os custos referentes a água e luz são suportados pela Ré e família desde a data em que a habitação passou a dispor de contadores próprios.
33) A Ré e intervenientes residentes no imóvel tratam da sua conservação e limpeza.
Incoerentemente, porém, a mesma sentença deu como não provado:
d) Os custos referentes a despesas de luz, gás e IMI sempre foram suportados pela Ré e família.
o) A Ré e seu marido, e após o falecimento deste, a Ré e seus filhos, sempre trataram e tratam o imóvel, como coisa sua.
s) Celebraram contrato de fornecimento de eletricidade, pagando as despesas de eletricidade, gás, telecomunicações, IMI.
Por outro lado, além da contradição quanto ao sentido destas respostas do tribunal a quo sobre a matéria de facto, verifica-se igualmente que a sentença recorrida não contém qualquer apreciação crítica da prova, na sua motivação, que possa justificar, neste ponto, a referida dualidade decisória.
A qual, entre o mais, aceita que os custos referentes a água e luz são suportados pela Ré e família desde a data em que a habitação passou a dispor de contadores próprios e que eles tratam da conservação do imóvel, para, logo de seguida, inexplicavelmente, rejeitar que os custos referentes a despesas de luz, gás e IMI sempre foram suportados pela Ré e família, que eles tratam o imóvel e que suportam as despesas de eletricidade, gás, telecomunicações e IMI.
Vista a sentença, e com pertinência a este propósito, apenas se vislumbra o seguinte segmento da motivação: os factos não provados resultam de total falta de prova (nomeadamente o pagamento de IMI, a elaboração de projeto pela Junta de Freguesia, a aquisição de materiais pelos Réus, os contratos de fornecimento).
Não existe, pois, qualquer explicação relativa às despesas de eletricidade, gás e telecomunicações, que possa auxiliar o tribunal ad quem a determinar qual foi a verdadeira convicção que presidiu nesta parte à decisão em escrutínio.
Tal como não estão indicados os fundamentos para que tal sentença, embora aceitando que a R. e família tratam das despesas de conservação do imóvel, já afaste que sejam eles quem paga as prestações de IMI.
Algo que se torna imperioso esclarecer, tanto mais que, mediante requerimento de 9/12/2021, que a R. submeteu a juízo para oferecer diversa documentação que tinha protestado juntar, constam vários comprovativos de aviso para liquidação de IMI, alguns acompanhados de prova de pagamento, e notas de processos de execução fiscal com a mesma origem, emitidos em nome da R. e da herança aberta por óbito do seu falecido marido.
Ora, a despeito desses documentos não terem sido impugnados, segundo nos parece, na réplica ou qualquer outro articulado da A., a verdade é que a decisão recorrida não emitiu pronúncia ou apreciação sobre eles, adensando, por isso, o mistério sobre as respostas dadas e a convicção adquirida a este respeito.
Por outro lado, a A. refere na petição inicial que há mais de 1, 5, 10, 15, 20 e 30 anos, que por si e antepossuidores, está na posse do imóvel, pagando as inerentes contribuições (art. 13), mas não apresenta qualquer prova de pagamento, designadamente, do mencionado imposto.
E a única referência documental que exibiu sobre o tema é a que consta na missiva que a A. enviou à R., a 25/2/2019, corporizada no sexto documento que acompanhou a petição inicial, onde a primeira refere que “entretanto o Serviço de Finanças cessou a isenção do pagamento do IMI sobre o lote de terreno, estando a obrigar a Associação a pagar o IMI relativo a 2015, 2016, 2017 e 2018, com o fundamento de que os lotes de terreno para construção não são passíveis de isenção de IMI”.
Importa, pois, que em primeira instância sejam esclarecidas e superadas as apontadas contradições, por um lado e, por outro, ainda mais importante, que seja averiguada com a devida atenção a questão do IMI.
Na verdade, o apuramento sobre a quem cabe a responsabilidade por tal pagamento assume relevância para o caso dos autos, quer na determinação da actuação das partes sobre o imóvel (identificado nos arts. 1 a 6 da petição inicial e nos arts. 7 e 8 da contestação), versada na primeira parte deste acórdão, quer na definição dos direitos e deveres que emergiram do acordo relativo à entrega daquele bem, abordada na segunda parte desta fundamentação.
Trata-se, pois, de clarificar a forma como, no decurso da relação negocial, foi dada execução aos direitos e aos deveres de cada contraente, em especial, a respeito do IMI do imóvel, de que ambas as partes afirmam ser responsáveis.
Trata-se, no fundo, de interpretar o conteúdo e objecto do acordo de entrega do imóvel considerando, desta feita, a circunstância, cuja relevância é reconhecida na doutrina, daquilo a que se refere como “os modos de conduta por que, posteriormente, se prestou observância ao negócio concluído” (cfr. Carlos Mota Pinto, Ob. cit., p. 451).
Visando, assim, determinar o conteúdo e efeitos desse negócio igualmente através da forma como ele foi posteriormente executado, em especial, neste caso, no tocante ao relacionamento com o fisco no pagamento do principal imposto associado à propriedade de imóveis.
Para esse efeito, sem prejuízo de outras provas que a primeira instância considere, oficiosamente ou mediante requerimento, é o Serviço de Finanças a fonte mais idónea de informação, e de expedita obtenção, a que cumpre recorrer.
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SOBRE A INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO.
Para além dos vícios de obscuridade, de deficiência ou incompletude e de contradição, pensamos que a análise do regime legal referente ao contrato de comodato, a que aludem os arts. 1129.º e segs. do Código Civil, vem evidenciar que a decisão factual da primeira instância padece ainda de insuficiência.
Preliminarmente, cumpre destacar que a análise dos elementos probatórios disponíveis, sem embargo do que resultar do esclarecimento dos factos nº7, 23, 25, 29 e 33, acima tratado, aponta mais para a celebração de um comodato, como defende a A., e menos para a doação pela qual a R. vem pugnando.
Por um lado, é o que resulta da ausência de um documento a respeito da entrega do imóvel e com o sentido de indicar a transferência da sua propriedade para a R., quando é comumente sabido que a doação de imóveis exige a forma documental e, ademais, pela forma mais solene da escritura pública ou, desde 2008, de documento particular autenticado (art. 947.º do CC).
Por outro lado, idêntico sentido tem, em parte, a própria alegação da recorrente, em especial, quando reconhece que a inscrição do imóvel na matriz urbana sob o artigo ... (atual artigo ...), em seu nome, foi efectuada com a autorização da recorrida (conclusões 79 e 80).
Da mesma forma, vários factos provados e não impugnados evidenciam que, embora depois de um longo interregno, a A. manteve sobre o imóvel uma ligação efectiva, em sede de registos, operações de loteamento e na instalação de energia eléctrica, sendo certo que, ao invés, a doação tem claramente associada a ideia de ausência de manutenção de laços à coisa doada.
Finalmente, é no âmbito do contrato de comodato que a jurisprudência, de forma esmagadora, em litígios idênticos que tem sido chamada a resolver, vai enquadrando os negócios de entrega de imóveis a pessoas carenciadas por parte de instituições de solidariedade social.
É paradigmático, neste sentido, o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/9/2024, relativo ao processo 7254/21.7T8VNG.P1.S1, relatado por João Cura Mariano (estando o aresto disponível na base de dados em linha do STJ), proclamando que “a cedência gratuita de um imóvel por uma Associação, na prossecução do seu objeto social, a uma pessoa, com a finalidade de satisfazer as carências habitacionais desta, constitui um comodato sujeito ao regime do artigo 1137.º, n.º 2, do Código Civil, o qual obriga o comodatário a entregar o imóvel logo que lhe seja exigido”.
Todavia, mesmo que se julgue, através da qualificação jurídica do pertinente acervo factual que vier a ficar consolidado, que o acordo celebrado entre A. e R. assume a natureza de um comodato, a verdade é que isso não será suficiente, sem mais, para determinar o destino da causa.
Desde logo porquanto, segundo pensamos e ao arrepio do que foi referido em primeira instância, não existe qualquer regra ou princípio jurídico que impeça o comodato vitalício.
Neste sentido, em primeiro lugar, deve notar-se que, como refere a doutrina, “a duração máxima da locação, fixada em trinta anos no art. 1025.º, não tem aplicação ao comodato” (cfr. P. de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 4.ª ed., p. 756).
Paralelamente, verifica-se também a ausência de qualquer menção, na noção de comodato consagrada no art. 1129.º do CC, ao seu carácter temporário, ao contrário do que sucede, por expressa previsão do art. 1022.º do CC, no contrato de locação, que implica sempre o gozo temporário de uma coisa.
Não é justificado, por isso e salvo o devido respeito por outra opinião, estabelecer um juízo comparativo, como se fez em primeira instância, entre a locação e o comodato, com o intuito de concluir que o carácter vitalício deste “implicaria que o comodatário ficasse numa posição mais favorável do que um arrendatário, que paga contrapartida pela ocupação e a cujo contrato o legislador estabelece prazo de duração máxima”.
Com efeito, se a locação conhece um prazo máximo e o comodato não, tal resulta da opção do legislador, que tem de presumir-se intencional (art. 9.º do CC).
Sendo certo também que a retribuição prevista para a locação, e inexistente no comodato, é totalmente alheia à questão da duração do contrato.
Ela respeita, isso sim, à contrapartida da obrigação de proporcionar o gozo da coisa, que existe na locação (arts. 1022.º e 1031.º/1, al. b), do CC) e não está presente no comodato, para o qual a lei apenas prevê a obrigação de abstenção de actos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa (art. 1135.º do CC).
Assim, é certo que a diferença essencial entre arrendamento e comodato de bens imóveis reside no carácter oneroso do primeiro, que é sujeito a retribuição, e na natureza gratuita que, expressamente, a lei prevê para o segundo.
Simplesmente, essa distinção não tem o seu fundamento em qualquer questão relacionada com a duração desses contratos.
Tal diferença, na verdade, estriba-se na obrigação imposta ao locador de assegurar ao arrendatário o gozo do imóvel para os fins a que ele se destina, nos termos do art. 1031.º/al. b) do CC, enquanto o comodante, bem mais restritamente, tem somente o dever de abster-se da prática de actos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário, de acordo com o disposto no art. 1133.º/1 do mesmo diploma legal.
Como explica a doutrina, “há, assim, uma certa divergência entre os dois princípios. Na locação, o senhorio (…) deve assegurar ao locatário o gozo da coisa e, portanto, entregar-lhe em condições de ela servir para os fins a que se destina. Só não é responsável por actos de terceiro. Este regime é uma consequência lógica e natural da onerosidade do contrato. No comodato, como não há contraprestação, fundando-se o acto numa simples razão de cortesia, não se justifica qualquer obrigação em relação ao comodante; este entrega o que tem e nas condições em que se encontra” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Ob. cit., p. 748).
Para além da ausência de fixação legal de um prazo máximo, e decisivamente, a permissão do comodato vitalício, ou mesmo de pais para filhos, é também o que decorre, de forma tácita mas evidente, do regime estabelecido no art. 1141.º do Código Civil.
Com efeito, se é certo que esse preceito legal prevê que o contrato caduca pela morte do comodatário, a verdade é que, não constituindo essa “uma disposição imposta por razões de ordem pública, é de admitir que os comodantes convencionem a continuação do comodato por morte” do comodatário (cfr. P. Limes e A. Varela, Ob. cit., p. 760).
Trata-se, pois, de uma disposição legal supletiva, que cede perante acordo diverso que as partes, ao abrigo da liberdade contratual, tenham definido.
Finalmente, no sentido de concluir que nada obsta ao carácter vitalício do comodato, milita ainda a comparação desse tipo contratual com o lugar paralelo que constitui o contrato de doação.
Nos termos do art. 940.º do Código Civil, a doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.
Como se vê, em face dessa noção legal, e ao carácter gratuito que ela tem em comum com o comodato, deste a doação distingue-se, sobretudo, mercê da ausência de qualquer dever de restituição, tanto mais que a liberalidade a que alude o referido preceito legal, e que é característica da doação, encontra particular similitude com as razões de beneficência ou de especial cortesia que as mais das vezes estão subjacentes ao comodato.
Neste sentido, sublinha a jurisprudência que “nos casos em que alguém se limite a entregar a outrem dinheiro ou qualquer outra coisa móvel, sem declarações que expressem o título que justifica a entrega, para se chegar à conclusão de que a entrega é feita a título de doação é necessário, mas suficiente, excluir todos os outros títulos, i.e., provar que não há outro título justificativo dessa mesma entrega, dado que, em abstracto, a entrega pode corresponder à formação de um contrato de liberalidade – doação, comodato ou mútuo gratuito – de troca – compra e venda – ou de garantia – penhor – ou ao cumprimento de uma qualquer outra obrigação contratual proveniente de outra fonte” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30/5/2023, relatado por Henrique Antunes no processo 167/21.4T8TCS-A.C1 e acessível na referida base de dados).
Com este enquadramento, quando menciona que “a atribuição de um uso muito prolongado reconduz o contrato [de comodato] ao campo das doações indirectas” (cfr. P. Lima e A. Varela, Ob. cit., p. 756), a doutrina não pretende, como parece óbvio, dirigir qualquer censura à figura da doação, certo que ela, como se sabe e resulta do disposto nos arts. 940.º e segs. do Código Civil, é plenamente admitida no nosso ordenamento jurídico.
O que está verdadeiramente em causa, nessas referências doutrinais, é a chamada de atenção para o facto de, algumas vezes, por detrás de um aparente comodato, encontrar-se afinal, embora de modo camuflado, a celebração de um autêntico contrato de doação.
E por isso é que a mesma doutrina, a respeito da objecção de o uso prolongado do bem poder reconduzir a situação à doação, afirma que “não cremos que possa aceitar-se, em termos gerais, esta solução”.
Para depois concluir, assertivamente, sobre a questão, que “só pela análise do contrato, em cada caso, se poderá reconstituir a vontade das partes” (cfr. P. Lima e A. Varela, Ob. loc. cit.).
Nos mesmos termos, salienta a jurisprudência que “saber se os elementos do contrato de doação se verificam numa dada situação concreta depende da interpretação dos actos realizados e das declarações emitidas, pelo qual se afere o sentido ou significado daqueles actos, atendendo ao cânones hermenêuticos aplicáveis no caso” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30/5/2023, acima citado).
Vale por dizer, pois, que não pode negar-se a admissibilidade do comodato vitalício, e inclusive de pais para filhos, ao abrigo da liberdade contratual.
E, para além disso, em tema de subsunção jurídica, que a opção entre esse contrato e a doação radica no acordo das partes, i. é, no apuramento do conjunto de direitos e deveres que dele emergiu para cada um dos contraentes.
Assim se demonstra, pois, a extrema importância que deve ser atribuída à descrição factual dos direitos e deveres do acordo das partes subjacente à entrega do imóvel, nestes autos, e que resulta ainda da circunstância de a qualificação jurídica do contrato constituir um dos principais motivos de dissídio das partes.
Na verdade, desde o início que a A. defende que a fisionomia acertada para esse acordo é a do comodato; diversamente, a R. sempre pugnou, e logo na contestação, pela presença de um contrato de doação.
Em face de tudo isto, parece claramente mais apropriado, pois, deslocar a questão decisiva na resolução do litígio, em lugar da questão posse versus detenção, para o tema, devidamente alegado pelas partes, relativo aos elementos factuais que caracterizaram o referido acordo de entrega do imóvel.
Desde logo, como anteriormente se viu, quanto à previsão ou não do dever de restituição do bem, mas igualmente dos demais direitos e deveres, incluindo o seu eventual prazo, que se possam apurar terem integrado o referido acordo.
Algo que, na realidade, se bem pensamos, foi mesmo intuído em primeira instância quando, na elaboração do despacho saneador, seleccionou como relevante, assertivamente, o tema de prova respeitante ao apuramento da cedência do imóvel em causa à 1ª Ré e marido por parte da Autora e pretensão desta de restituição do mesmo.
Sucedeu, todavia, e certamente pelo debate mais intenso que as partes foram fazendo a esse respeito, que na fase da sentença a apreciação do tribunal a quo acabou por divergir, sobretudo, para a questão da posse ou da detenção do imóvel, sem entrar propriamente na determinação factual do objecto imediato emergente do acordo estabelecido entre A. e R..
Nesta sede, em rigor, importa saber, pois, da forma mais completa que isso seja possível, quais os direitos e deveres que resultaram do acordo de entrega do imóvel para ambas as partes e, designadamente, se por elas foi acertado ou não algum prazo de duração do contrato.
De modo a apurar, em primeiro lugar, já no plano da qualificação jurídica, se eles são próprios de um comodato, como defende a A., ou, pelo contrário, de um contrato de doação, como sustenta a contraparte.
Está novamente em causa, pois, a actividade de determinar o sentido e o alcance do acordo celebrado entre as partes, de modo a que, descobertos os direitos e deveres que o integram, seja possível o seu enquadramento numa ou noutra figura contratual.
Sendo, por outro lado, essa indagação também de acentuada relevância para que, caso se conclua pela primeira opção, ou seja, pela outorga de um comodato, definir o regime jurídico aplicável, à luz dos arts. 1135.º/al. h), 1137.º e 1141.º do CC, relativamente ao momento da cessação do contrato e, assim, da exigibilidade da restituição do imóvel.
É o que resulta igualmente da evolução do entendimento jurisprudencial a este nível, como se passará a expor.
Acima já abordámos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/9/2024.
E, na verdade, ele representa o culminar de um percurso há muito trilhado nos nossos tribunais a respeito de situações em que, como sucede nos nossos autos, instituições de solidariedade social entregam imóveis a pessoas carenciadas que servem para a habitação destas.
Neste sentido, de acordo com a própria fundamentação do aresto, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido, maioritariamente, que o «uso determinado», a que se alude no artigo 1137.º, do Código Civil, pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada, mas antes atos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, caso em que se deve haver como concedido por tempo indeterminado. Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável (...) No quadro normativo vigente, não seria de aceitar um comodato que subsistisse indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico, de tal modo que o comodatário pudesse manter gratuitamente e sem limites o gozo da coisa.
Esta posição, acrescenta, é a mais consentânea com o princípio geral emanado do art. 237º, do CC, segundo o qual, em caso de dúvida, nos contratos gratuitos deve prevalecer o sentido da declaração menos gravoso para o disponente e traduz também a posição da doutrina dominante.
Sucede, no entanto, que mais recentemente, em dois acórdãos, a nossa mais alta instância, como ali igualmente se refere, entendeu que, tendo-se acordado que o imóvel comodatado se destinava a ser usado como casa de morada de família do comodatário, estaríamos perante um comodato com uso determinado, com um termo incerto, pelo que este contrato só cessaria com o fim desse uso, não sendo, até lá, livremente denunciável, aplicando-se o disposto no artigo 1037.º, n.º 1, do Código Civil.
Tratam-se dos Acórdãos do STJ proferidos em 05/07/2018, Proc. 1281/13 (Relator: Olindo Geraldes) e em 04/02/2021, Proc.5779/18 (Rel. Manuel Capelo), acessíveis em www.dgsi.pt.
De acordo com o que neste último foi sentenciado: “se o comodato tiver prazo certo, a restituição deve ser realizada até ao termo do prazo previsto; não tendo o comodato prazo, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio”.
Acrescentando, no entanto, que “no contrato de comodato sem prazo, mas que tenha por fim o uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar, enquanto continuar a ter esse uso porque a necessidade da proteção familiar pode estender-se à casa objeto de um contrato de comodato, para habitação”.
Devendo salientar-se que esta orientação mereceu também o apoio de qualificada doutrina (Rui Mascarenhas Ataíde, Direito dos Contratos, Gestlegal, 2022, p. 32-33).
Diversamente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/12/2021, por sinal citado na sentença recorrida, preconizou o entendimento de que “é a natureza pessoal do comodato que justifica a disciplina consagrada no art. 1140.º, que, perante a deterioração das suas relações com o comodatário, confere ao comodante o direito de resolução”.
Mais, “não sendo estabelecido prazo certo, e também não se podendo figurar a hipótese de empréstimo para uso determinado, o comodatário encontra-se sujeito a ter que sair do prédio de um momento para o outro, nos termos do n.º 2 do art. 1137.º” (cfr. processo 1580/14.9TBVNG.P1.S2, sendo o aresto da autoria de Maria João Vaz Tomé e estando disponível na já indicada base de dados).
Esta divisão no sentido das decisões judiciais, por outro lado, está reflectida igualmente nos tribunais superiores do norte do país.
Assim, no Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 18/4/2024 (relatado por Francisca Vieira, no processo 422/22.6T8VNG.P1, disponível em www.dgsi.pt), embora com um voto de vencido, foi decidido que “o comodato é um contrato que se encontra regulado nos artigos 1129.º e ss. do Código Civil, está assente em relações de cortesia e gentileza, visa satisfazer necessidades temporárias e, por isso, não consente a sua subsistência indefinida, seja por falta de prazo, seja por estar associado a um uso genérico ou de duração incerta.
Acresce que “no contrato de comodato no qual as partes não convencionaram prazo certo para a restituição ou não estipularam prazo algum para a restituição, rege o disposto no artigo 1137.º/2 do Código Civil, segundo o qual o comodatário é obrigado a restituir a coisa entregue logo que assim o seja exigido pelo comodante (denúncia ad nutum)”.
No mesmo sentido, mas por unanimidade, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 3/6/2024, assinalou que “a determinação do uso da coisa para efeitos do previsto no nº 1 do artigo 1137º do CC, implica a concretização de tal uso por referência a uma delimitada necessidade temporal” e que “não respeita esta exigência o acordo estabelecido entre as partes de que o imóvel objeto do contrato de comodato se destina a habitação dos comodatários” (aresto da autoria de Fátima Andrade, no processo 962/22.7T8VNG.P1 e acessível na base de dados da DGSI em linha).
Todavia, em sentido contrário, sentenciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/9/2023 (relatado por Alcides Rodrigues, no âmbito do processo 3015/21.1T8VNF.G1, disponível em www.dgsi.pt), que “não sendo estabelecido prazo certo, mas figurando-se a hipótese de empréstimo para uso determinado (prédio destinado à habitação para fins de instalação da casa de morada de família), a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio.
Mais, havendo “comodato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o prédio, enquanto continuar a ter esse uso”.
Identicamente, este Tribunal da Relação do Porto, a 22/2/2024, embora também com um voto de vencido (tirado no processo 7254/21.7T8VNG.P1, da autoria de Ana Luísa Loureiro e acima já citado), decidiu que “estando em causa um comodato sem prazo de imóvel propriedade de uma associação de solidariedade social, construído com donativos para proporcionar habitação a famílias carenciadas, e cuja entrega à ré foi efetuada pela referida associação de solidariedade social, no âmbito e em execução do seu objeto social, tendo por fim proporcionar-lhe a habitação que a mesma, em função e por causa da sua insuficiência económica, não tinha, não há obrigação de restituir a habitação enquanto continuar ou se mantiver a situação de carência económica que justifica e fundamenta esse uso determinado: proporcionar o uso gratuito de habitação por falta de condições económicas da ré para suportar os custos com habitação”.
E foi sob este quadro de acesa polémica na doutrina e na jurisprudência que foi tirado o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/9/2024, relatado por João Cura Mariano, acima citado.
E no qual, segundo pensamos, para além de uma exposição muito clara das posições doutrinais e jurisprudenciais a este nível, se pretendeu sobretudo realizar um esforço de conciliação e superação, aliás notável, entre os referidos entendimentos divergentes, ainda que, no final, tenha decidido a revogação do Acórdão do TRP de 22/2/2024 a que já aludimos.
Ora, nessa tarefa, o aresto começa por salientar que, no comodato, devendo o uso acordado ser temporário, deve o mesmo ter um grau de concretização que permita determinar quando ocorre o seu termo. O uso acordado deve encontrar-se associado a um tempo de utilização.
Por isso, considerou que o simples uso para habitação do comodatário e sua família de um imóvel, por ser demasiado genérico, não é suficientemente determinativo desse momento, uma vez que não define um uso limitado no tempo do imóvel emprestado.
Em contraponto, já estaremos perante a convenção de um uso suficientemente determinado quando se convencione uma utilização do imóvel durante uma prova desportiva ou durante a frequência de um curso universitário, situações em que o termo do contrato se mostra suficientemente fixado, tendo a cedência do gozo do imóvel um cariz temporário, independentemente da sua duração poder ser mais ou menos prolongada.
Acrescentando, porém: o mesmo poderá ocorrer quando se acorde que a cedência gratuita do imóvel se destina a satisfazer as carências habitacionais do comodatário, desde que resulte inequivocamente, dos termos do acordado, que a cedência perdurará enquanto se mantiverem essas carências.
Para enfim concluir que nestas situações, o uso do imóvel emprestado também se mostra suficientemente delimitado, aplicando-se o disposto na 1.ª parte, do n.º 1, do artigo 1137.º, do Código Civil.
Por aqui se vê, pois, o propósito de compatibilizar os entendimentos divergentes que a jurisprudência e a doutrina vinham preconizando a este respeito.
No essencial, através da admissibilidade da prova dos termos do acordado dos quais resulte, claramente, que a cedência do imóvel foi ajustada entre os interessados de modo a perdurar enquanto se mantiverem as designadas carências habitacionais do comodatário.
Nesse caso, pois, e em linha do que foi preconizado, por exemplo, nos Acórdãos do STJ de 05/07/2018 e de 04/02/2021, não há obrigação de restituir enquanto se mantiverem o uso de habitação familiar do imóvel e as carências habitacionais que justificaram a entrega.
Nos restantes casos, e à semelhança das soluções adoptadas nos Acórdãos do STJ de 14/12/2021 e do TRP de 3/6/2024, o comodatário é obrigado a restituir a coisa entregue quando tal seja exigido pelo comodante.
Em consequência, impõe-se que em primeira instância, na averiguação dos direitos e deveres que as partes fixaram no acordo de entrega do imóvel, seja indagado, não apenas sobre a inclusão do dever de restituição do bem e sobre a fixação de um eventual prazo, a que acima se referiu, mas também se foi acertado que a referida entrega perdurasse enquanto se mantivessem o uso do imóvel para habitação familiar e as carências habitacionais de quem dele usufruía.
O que, na verdade, constituirá mera densificação de várias circunstâncias factuais que as partes tempestivamente alegaram a esse respeito, ao abrigo do disposto no art. 5.º/2, al. b), do CPC, muitas das quais, aliás, devidamente reflectidas em alguns factos provados e não impugnados.
Por outro lado, no mencionado esforço de harmonização e superação de teses distintas que até então se manifestavam, o acórdão que traduziu a última palavra do judiciário a este respeito, de 19/9/2024, fez apelo ainda ao critério da boa-fé no exercício dos direitos.
Nesse plano, argumentou, citando doutrina, que apesar daquele preceito [art. 1137.º/2 do CC) referir que o comodatário se encontra obrigado a restituir a coisa comodatada logo que lhe seja exigida, a boa fé no exercício dos direitos de crédito prevista pelo artigo 762.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Civil, recomenda que, no caso de comodato de imóveis, sobretudo quando ao comodato presidiu a finalidade de suprir as carências habitacionais do comodatário, seja concedido a este um prazo razoável para desocupar o imóvel.
E, em consequência, por aplicação desse critério ao caso concreto que tratou, face a todas as circunstâncias relevantes, fixou o dever de restituição do imóvel que ali estava em questão por referência ao prazo de seis meses desde o trânsito em julgado da decisão final.
Deve sublinhar-se, em jeito de parêntesis, que o citado esforço de conciliação entre entendimentos diversos constitui também uma operação de justa conjugação de distintos valores jurídicos: de um lado, a defesa da propriedade e, do outro, a tutela da habitação. A verdade, todavia, o que se refere também a título de advertência às partes, é que o exercício intransigente desses direitos poderá conduzir a uma situação limite em que será inevitável a opção por um deles, em detrimento do outro, o que aquele Acórdão do Supremo teve de fazer e, no caso sobre o qual versou, a favor da propriedade.
De modo que, mantendo-se o litígio destes autos até ao final, entre o direito à propriedade e o direito à habitação, apenas um deles poderá prevalecer, ainda que essa apreciação final deva sempre ter como fiel da balança o princípio do pacta sunt servanda e sem esquecer os critérios de boa-fé que, com pertinência, o Acórdão de 19/9/2024 convocou para esta matéria.
Atrevemo-nos, nesta sede, porém, a ir um pouco mais longe que o citado aresto do STJ.
O recurso aos ditames da boa-fé no cumprimento das obrigações e no exercício dos direitos, deve estender-se, não apenas ao momento da finalização do comodato, mas também, como corolário lógico do princípio plasmado no art. 762.º do CC, ao motivo subjacente a essa cessação contratual.
Na verdade, se esse regime legal tem aplicação em toda a vida do contrato, é perfeitamente adequado considerar que ele deve regular, para além do prazo da desocupação, a avaliação das razões que tenham conduzido o comodante a pretender fazer cessar o comodato e obter a restituição do imóvel.
Não deixa de causar alguma perplexidade, a este respeito e vertendo agora ao caso dos autos, que uma instituição de solidariedade social, que entregou o imóvel a pessoas extremamente carenciadas, em 1985/86, venha procurar depois, perante a mesma família, negociar a venda do imóvel, aparentemente com intuito lucrativo e ao arrepio do seu objecto social, e inclusivamente pretenda, 40 anos volvidos e sem sequer interpelar previamente os moradores com qualquer antecedência para tanto, reclamar em juízo a desocupação do imóvel.
Algo que, de acordo com a jurisprudência citada do STJ e à luz dos ditames da boa-fé, poderá ter repercussão na fixação do prazo de entrega.
Mas que, segundo entendemos, pode ainda, no limite, face à influência que a boa-fé pode assumir na realização dos direitos, nos termos do art. 334.º do CC, ter por efeito a paralisação do exercício respectivo.
E que, em termos factuais, embora tenha sido já, em boa medida, abordado pelas partes nos articulados, justificará sem dúvida, em concretização adicional ao alegado, nos termos do art. 5.º/2, al. b), do CPC, a indagação dos motivos que conduziram a A. a pretender a desocupação do imóvel e, desse modo, que a R. seja desalojada do imóvel onde vive há cerca de quarenta anos e, bem assim, do teor das comunicações trocadas entre as partes para o efeito.
O que sempre seria necessário, aliás, em cumprimento da jurisprudência citada do STJ, para compreender se as necessidades habitacionais que estiveram na base da entrega do imóvel se mantêm ou não actualmente.
Sendo certo, por outro lado, que a forma mais apropriada para tal indagação, bem como, aliás, quanto ao apuramento dos demais direitos e deveres que tenham sido ajustados no acordo de entrega do imóvel, residirá na inquirição das próprias partes, caso isso se revele possível, em sede de declarações e depoimento, nos termos dos arts. 452.º e 466.º do CPC e susceptível, quanto à primeira modalidade, de eventualmente determinar a prova por confissão e que, por isso, deverá incluir o legal representante da A., visto que por ora foi apenas ouvido em declarações.
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SOBRE O REGIME PROCESSUAL APLICÁVEL.
Resulta de todo o acima exposto que a actuação do tribunal recorrido evidencia ter incorrido, quer em obscuridade de determinados pontos da matéria de facto, quer na deficiência, insuficiência e contradição de outros, quer ainda em ausência de diligências probatórias relevantes para a decisão.
A este respeito e debruçando-se sobre a modificabilidade da decisão de facto em segunda instância, dispõe o art. 662.º/2 do Código de Processo Civil que “a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
À luz desta disposição legal, entendemos que os apontados vícios merecem enquadramento no âmbito das alíneas b) e c) do citado dispositivo legal.
Seja porque existem meios de prova que, embora não propriamente novos, por terem sido abordados em primeira instância, ali não foram obtidos, com pertinência para a decisão da causa, seja na medida em que determinadas respostas aos factos carecem de esclarecimento e integração com matéria de facto que excede aquela que foi averiguada no tribunal recorrido.
Ora, segundo pensamos, no concurso dos apontados vícios e formas de intervenção da Relação em sede factual, é a aplicação da alínea c) do citado art. 662.º/2 do CPC que se impõe, como medida acertada para a correcção e consolidação da matéria de facto.
Desde logo, porque os meios de prova a obter deverão ser articulados e harmonizados com os demais elementos probatórios, nos termos do art. 607.º/4 do CPC, completando um quadro global único sobre o qual irá incidir pela primeira vez a convicção do tribunal recorrido.
Para além disso, e decisivamente, porque a clarificação e a ampliação da matéria de facto pertinente para a decisão da causa, justificam sempre, nos termos da al. c), a intervenção possível de duas instâncias, e também como garantia do duplo grau de jurisdição nesse domínio e para pleno cumprimento do contraditório no debate da matéria de facto.
Por fim, importa reter que, sendo decretada a anulação do julgamento, por necessidade de ampliação da matéria de facto, a apreciação em primeira instância “deve incidir sobre pontos determinados que sejam identificados na decisão, ainda que o tribunal a quo, na ocasião em que proceder à repetição parcial do julgamento, possa interferir noutros pontos de facto cujo conteúdo se revele afetado pelas respostas que forem dadas às questões referenciadas pela Relação” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Ob. cit., p. 358).
Relativamente a custas, somos a entender que, embora tenha sido na sequência da impugnação à matéria de facto da empreendida pela recorrente que a anulação foi decretada, esta situação não se confunde com uma decisão de plena procedência da pretensão deduzida, tanto mais que a decisão final de mérito fica relegada para momento ulterior.
Razões pelas quais, é justificado, nos termos do art. 527.º do CPC, determinar a tributação por recorrente e recorrida em partes iguais.
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DECISÃO:
Pelo exposto, decide-se anular a decisão recorrida e determinar que, em primeira instância, mediante sentença e na falta de outro motivo de extinção da instância, a) sejam esclarecidas, nos termos acima indicados, as respostas aos pontos 7, 23, 25, 29 e 33 dos factos provados, e b) seja dada resposta, com a repercussão que se justificar nos pontos referidos e nos demais factos, aos temas de prova seguintes: “1) apurar os direitos e deveres que resultaram para A. e R. do acordo subjacente à entrega do imóvel à segunda, em especial quanto ao dever de restituição e, na afirmativa, quanto à duração vitalícia da entrega, e mesmo de pais para filhos, ou que ela perdurasse enquanto se mantivessem o uso do imóvel para habitação familiar e as carências habitacionais de quem dele usufruía; 2) apurar os motivos que conduziram a A. a pretender a desocupação do imóvel e as comunicações efectuadas pelas partes para o efeito”.
Para o efeito, deverá o tribunal recorrido tomar em consideração: i) a prova gravada e documentada nos autos, ii) informação a requisitar ao Serviço de Finanças sobre quem foi responsável pelo pagamento do IMI (anteriormente, Contribuição Autárquica) relativo ao imóvel em causa nos autos (identificado nos arts. 1 a 6 da petição inicial e nos arts. 7 e 8 da contestação) desde 1985 (ou da data mais recente posterior a essa de que existam registos) até à actualidade, iii) prestação de depoimento e declarações de parte pelo legal representante da A. e pela R., e iv) demais meios probatórios que, ex officio ou mediante requerimento, tiver eventualmente por pertinentes para tais esclarecimento e resposta.
Custas do recurso por recorrente e recorrida, em partes iguais.
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SUMÁRIO
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(o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico)

Porto, 10/2/2025
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Teresa Pinto da Silva
Miguel Baldaia de Morais