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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PRORROGAÇÃO DO PRAZO
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
Sumário
(Da responsabilidade da relatora – art.º 663º nº7 do CPC). 1 - A lei consagrou duas possibilidades ou variantes de pedido de prorrogação do período de cessão: um pedido como alternativa à recusa final de exoneração do passivo restante, nos termos do nº1 do art.º 244º; outro pedido, a deduzir durante o período de cessão, nos termos do 242º-A, como alternativa à cessação antecipada. 2 - Um pedido de prorrogação deduzido quando o período de cessão já havia terminado é um pedido alternativo à recusa de exoneração, mesmo tendo sido apresentado antes da notificação prevista no nº1 do art.º 244º do CIRE. 3 – As alíneas do nº1 do art.º 242º-A do CIRE apenas enumeram os legitimados – exatamente os mesmos que podem requerer a cessação antecipada do procedimento nos termos do 243º nº1, proémio – sendo que o fundamento constante da parte final da alínea d), é aplicável aos requerimentos de todos os legitimados e não apenas ao do fiduciário. 4 – O âmbito dos deveres no período de prorrogação é apenas o cumprimento das obrigações fixadas no despacho inicial, que se prolongará pelo período fixado, não se tratando de possibilitar o pagamento prestacional do montante que se deixou de entregar durante o período de cessão originário.
Texto Integral
Acordam as juízas da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório
MCB apresentou-se a processo especial para acordo de pagamento.
Na sequência da não homologação do plano de pagamentos ali apresentado, foi decretada a insolvência da devedora, por sentença de 26/08/2020, transitada em julgado.
A devedora veio requerer a exoneração do passivo restante.
O Sr. Administrador da Insolvência juntou relatório no qual emitiu parecer favorável à exoneração do passivo restante.
Em 16/03/2021 foi proferido o despacho previsto no art.º 239º do CIRE, deferindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, tendo sido declarado excluído do valor a ceder o equivalente ao montante da retribuição mínima mensal garantida.
Em 16/03/2021 foi proferida, no apenso respetivo, sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado, nos termos da qual foram julgados verificados créditos no valor global de € 1.362.942,69.
Foram apreendidos e liquidados bens, tendo sido obtidas receitas no valor de € 1.070.211,50.
Por sentença de 07/12/2021, transitada em julgado, foram julgadas válidas as contas apresentadas pelo administrador da insolvência.
Por sentença de 26/05/2022, transitada em julgado, foi declarado encerrado o processo de insolvência nos termos do disposto no art.º 230º al. a) do CIRE.
Em 21/06/2022 o Sr. Fiduciário juntou o relatório anual relativo ao 1º ano do período de cessão de rendimentos, indicando que a devedora não cedeu qualquer quantia, estando em dívida € 12.159,50.
Notificada a devedora veio requerer a revisão dos valores a entregar por não ter sido considerado que os filhos da devedora dela dependiam, pedido indeferido por despacho de 02/02/2023, transitado em julgado.
Por requerimento de 27/02/2023, a insolvente veio alegar ter tido despesas de saúde e de educação da sua filha, pedindo a exclusão da quantia de € 8.104,65 e pedindo o pagamento da quantia em dívida em prestações mensais.
Por despacho de 02/05/2023, transitado em julgado, foram excluídas despesas escolares de € 18,00 e as despesas de saúde, com exceção das despesas suportadas nas clínicas dentárias X, num total de € 1.140,16 de despesas excluídas.
Em 06/11/2023 o Sr. Fiduciário informou que a insolvente não havia prestado, até ao momento, qualquer informação sobre os rendimentos auferidos no 2º ano de cessão.
Em 21/05/2024 o Sr. Fiduciário juntou relatório final, relativo aos três anos de cessão, do qual resulta a obrigação de entrega de rendimento disponível durante todo o período de cessão e a existência de entregas apenas em março, abril e maio de 2024, no valor total de € 2.500,00 e o total por entregar de € 31.238,75.
Um dos credores veio requerer a notificação da insolvente para entregar o montante em falta, sob pena de ser requerida a cessação antecipada.
A insolvente veio informar ter já procedido à entrega de € 3.000,00 e requerer sejam excluídas, no terceiro ano de cessão, despesas de saúde de € 3.763,56. Requereu, por não ter possibilidade de fazer a entrega de toda a quantia de uma vez, mas estar a fazer entregas regulares, a prorrogação do período de cessão até ao limite de três anos, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 242º-A do CIRE.
Em 19/09/2024 foi proferido o seguinte despacho: “Requerimento de 3 de junho de 2024 Veio a insolvente alegar que apesar de constar do relatório do fiduciário que foi entregue a quantia de 2.500,00€, a verdade é que já entregou a quantia de 3.000,00€. Mais requer que da quantia a ceder sejam retiradas as despesas que teve com tratamentos dentários, por serem puramente medicinais e não estéticos, assim como a quantia de 3.763,56€ que em 2023 despendeu em tratamentos, medicamentos e consultas essenciais à sua saúde. Por fim, requer a insolvente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 242.º-A do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (diploma a que pertencem as normas doravante citada sem menção de origem), a prorrogação do período de cessão até ao limite de três anos, por não conseguir entregar de uma só vez a totalidade da quantia em dívida. Notificado o requerimento em causa aos credores e ao administrador da insolvência, nenhum se pronunciou. O credorCAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO …, C.R.L. veio, no entanto, pedir a notificação da devedora para proceder à entrega dos montantes em dívida à fidúcia, sob pena de ser recusada a concessão da exoneração do passivo restante. Cumpre apreciar e decidir. No que tange aos montantes entregues, a insolvente comprovou documentalmente os seguintes, todos em 2024: 350,00€ em 1 de março, 400,00€ em 5 de março, 550,00€ em 25 de março, 400,00€ em 1 de abril, 400,00€ em 9 de abril, 400,00€ em 2 de maio e 500,00€ em 27 de maio, o que efectivamente perfaz o montante de 3.000,00€. Assim, e tendo o fiduciário contabilizado apenas 2.500,00€, a quantia a entregar cifra-se em 30.738,75€ (31.238,75€ - 500,00€). Quanto às despesas em cuidados de saúde, verifico que no 2.º ano o fiduciário excluiu o montante de 519,45€ referente a despesas com farmácia, ao passo que no 3.º ano excluiu os montantes de 1.731,92€ com hospital e exames, 813,07€ com farmácia e 1.218,57€ em clínica dentária e oculista, o que totaliza nos dois anos a quantia de 4.283,01€. Assim sendo, indefiro esta parte do requerido. Quanto ao pedido de prorrogação, importa ter em consideração o disposto no artigo 242.º-A, 1, a). Permite esta norma legal que o devedor requeira a prorrogação do período de cessão, até ao máximo de 3 anos, mediante requerimento fundamentado. Por sua vez, diz-nos o seu n.º 3 que o juiz decreta a prorrogação se concluir que existe probabilidade séria de que no período adicional o devedor cumprimento as obrigações. Fundamenta a devedora este pedido com o facto de a sua situação de saúde não lhe ter permitido entregar a totalidade da quantia de uma só vez, sendo que a prorrogação lhe permitirá a cumprir com a totalidade das suas obrigações. Considerando que a situação de saúde da insolvente se mantém, tal leva-nos a crer que as dificuldades em pagar a dívida, ainda que de forma fraccionada, também se manterão, a que acrescem os factos de a devedora não ter apresentado qualquer plano prestacional e de a prorrogação implicar que a devedora continue a entregar mensalmente o rendimento disponível. Importa ainda atender ao facto de que apenas em 2024, ou seja, com a aproximação do termo do período de cessão de rendimentos, a devedora procedeu a entregas ao fiduciário. Atendendo ao exposto, o Tribunal não vislumbra que exista qualquer probabilidade séria de que a devedora cumpra as suas obrigações no período adicional em causa. Em consequência, indefiro a requerida prorrogação. Notifique, sendo a devedora para, no prazo de 10 dias, Proceder ao pagamento da quantia em dívida, que ascende a 30.738,75€. Deverá a Insolvente ser (mais uma vez) advertida de que se se ocorrer alguma das circunstâncias a que alude o artigo 243.º, nomeadamente a violação dolosa ou com grave negligência de alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, com prejuízo da satisfação dos créditos sobre a insolvência, poderá ocorrer a recusa do procedimento de exoneração.”
Inconformada apelou a insolvente pedindo seja julgado procedente o recurso e, em consequência, concedida a exoneração do passivo restante, revogando o despacho recorrido e substituindo por outro que autorize a prorrogação do prazo, formulando as seguintes conclusões:
“A. Refere o Tribunal que “considerando que a situação de saúde da insolvente se mantém, tal leva-nos a crer que as dificuldades em pagar a dívida, ainda que de forma fraccionada, também se manterão, a que acrescem os factos de a devedora não ter apresentado qualquer plano prestacional e de a prorrogação implicar que a devedora continue a entregar mensalmente o rendimento disponível. Importa ainda atender ao facto de que apenas em 2024, ou seja, com a aproximação do termo do período de cessão de rendimentos, a devedora procedeu a entregas ao fiduciário. Atendendo ao exposto, o Tribunal não vislumbra que exista qualquer probabilidade séria de que a devedora cumpra as suas obrigações no período adicional em causa.”
B. Ora, antes de todo o mais, lamentar veementemente o facto de o Sr. Administrador ser parco nas informações que presta ao Tribunal e quando as presta nem sempre são correctas.
C. A Devedora tinha que ceder a quantia de € 31.238,75 (trinta e um mil, duzentos e trinta e oito euros e setenta e cinco cêntimos).
D. Em finais de Maio de 2024 e início de Junho de 2024, veio o fiduciário informar que a devedora apenas tinha depositado a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
E. Em 3 de Junho de 2024, a Devedora informou o Tribunal que tal facto não correspondia à verdade, pois já tinham sido depositados € 3.000,00 (três mil euros), tendo-se seguido um silencio do fiduciário que não se dignou a manter os credores e este Tribunal informados.
F. Em 1 de Março de 2024, a Devedora depositou a quantia de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros)
G. Em 5 de Março de 2024, a Devedora depositou a quantia de € 400,00 (quatrocentos euros)
H. Em 25 de Março de 2024, a Devedora depositou a quantia de € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros)
I. No dia 1 de Abril de 2024, a Devedora depositou a quantia de € 400,00 (quatrocentos euros)
J. Em 9 de Abril de 2024, a Devedora depositou a quantia de € 400,00 (quatrocentos euros)
K. Em 2 de Maio de 2024, a Devedora depositou a quantia de € 400,00 (quatrocentos euros)
L. No dia 27 de Maio de 2024, a Devedora depositou a quantia de € 500,00 (quinhentos euros)
M. No dia 20 de Junho de 2024, a Devedora depositou a quantia de € 600,00 (seiscentos euros)
N. No dia 8 de Julho de 2024, a Devedora depositou a quantia de € 600,00 (seiscentos euros)
O. No dia 9 de Julho de 2024, a Devedora depositou a quantia de € 800,00 (oitocentos euros)
P. No dia 5 de Agosto de 2024, a Devedora depositou a quantia de € 800,00 (oitocentos euros)
Q. Em 27 de Agosto de 2024, a Devedora depositou a quantia de € 600,00 (seiscentos euros)
R. No dia 4 de Setembro de 2024, a Devedora depositou a quantia de € 800,00 (oitocentos euros)
S. Ou seja, a Devedora em 7 (sete) meses, depositou na fidúcia a quantia de € 7.200,00 (sete mil e duzentos euros), cfr. doc. 1 a 13.
T. Ora, se o prazo tivesse sido prorrogado pelos 3 (três) anos requeridos, o valor anual a entregar seria de € 10.412,92 (dez mil, quatrocentos e doze euros e noventa e dois cêntimos), o que daria um valor mensal de € 867,74.
U. Actualmente, a taxa média de entrega da devedora ao processo é de € 1.028,57, o que seria do conhecimento do Tribunal e dos credores caso o Fiduciário mantivesse o processo correctamente informado.
V. Logo, contrariamente ao afirmado no despacho reclamado, está demonstrada a capacidade da Devedora em cumprir o seu plano de entregar a quantia em dívida em três anos.
W. Ultrapassada a situação de doença que, infeliz e injustamente, não foi atendida pelo Tribunal, nem pelos credores, nem pelo fiduciário, forçou a Devedora nos últimos anos a investir quase todo o seu dinheiro a tratar da sua patologia.
X. E afirmamos que não foi reconhecido, porque é necessariamente a primeira vez no processo em que se confirma a situação de doença/patologia da devedora, sendo que, de grosso modo, as despesas para tratar a doença não foram atendidas.
Y. Ainda que injustamente não tivessem sido reconhecidas as despesas de tratamento médico a Insolvente na sua maioria, ainda assim, a Devedora assumiu o compromisso de entregar todas as quantias à fidúcia.
Z. O que está a cumprir numa taxa média superior àquela a que se propôs pagar.
AA. Assim, atendendo aos fundamentos do despacho reclamado, cumpre referir que nenhum deles está correcto, pois está demonstrado que (i) a Devedora tem capacidade de cumprir o plano de entregas à fidúcia no prazo de três anos e que (ii) a situação de doença da Devedora foi, em princípio, ultrapassada.
BB. Assim, os dois únicos fundamentos para o despacho reclamando não correspondem à verdade, razão pela qual, a única solução será a de o revogar e substituir por outro que defira a prorrogação.
CC. Assim, deverá ser concedida a exoneração do passivo restante, revogando o despacho recorrido e substituindo por outro que autorize a prorrogação do prazo.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido por despacho de 31/10/2024 (ref.ª 439465427).
Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
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2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art.º 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas são as seguintes as questões a decidir:
- como questão prévia, a admissibilidade da junção de documentos com as alegações de recurso e posteriormente, já na pendência do recurso;
- verificação de se se encontram reunidos os pressupostos para que seja deferida a prorrogação do período de cessão nos termos do art.º 242º-A do CIRE.
*
3. Fundamentos de facto:
Com relevo para a decisão do recurso, mostram-se apurados os seguintes factos, que acrescem aos que constam do relatório que antecede:
1 – MCB foi declarada insolvente por sentença de 26/08/2020, transitada em julgado.
2 - Em 16/03/2021 foi proferido o despacho previsto no art.º 239º do CIRE, deferindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, tendo sido declarado excluído do valor a ceder o equivalente ao valor da retribuição mínima mensal garantida.
3 - Em 16/03/2021 foi proferida, no apenso respetivo, sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado, nos termos da qual foram julgados verificados créditos no valor global de € 1.362.942,69.
4 - Foram apreendidos e liquidados bens, tendo sido obtidas receitas no valor de € 1.070.211,50.
5 – Foi elaborado rateio final e efetuados os pagamentos aos credores.
6 – A insolvente auferiu, durante o período de cessão, rendimentos mensais superiores à retribuição mínima mensal garantida.
7 – A insolvente procedeu ao pagamento ao Sr. Fiduciário, por conta dos rendimentos a ceder, das seguintes quantias:
- € 350,00 em 01/03/2024;
- € 400,00, em 05/03/2024;
- € 550,00, em 25/03/2024;
- € 400,00, em 01/04/2024;
- € 400,00, em 09/04/2024;
- € 400,00, em 02/05/2024;
- € 400,00, em 27/05/2024.
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4. Questão prévia: admissibilidade da junção de documentos requerida pela apelante com as alegações de recurso
A recorrente juntou, com as suas alegações de recurso 13 documentos, todos comprovativos de transferências bancárias, dos quais sete já haviam sido juntos aos autos com o requerimento apresentado em 03/06/2024 (os documentos datados de março a maio de 2024) e seis não haviam ainda sido juntos (de 20 de junho a setembro)
Juntou ainda, após a interposição do recurso, em 04/10/2024, 31/10/2024, 28/11/2024 e 14/01/2025, comprovativos das transferências para o fiduciário de mais 3.800,00.
Nada alegou quanto à oportunidade da junção.
Estabelece o artigo 651.º do CPC, sob a epígrafe “Junção de documento e de pareceres: «1. As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. 2. As parte podem juntar pareceres de jurisconsultos até ao início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão.»
A jurisprudência e a doutrina, de forma unânime, consideram que a junção de documentos em fase de recurso é de natureza excecional e ocorre mediante a alegação e demonstração de um de dois tipos de situações:
- a impossibilidade, objetiva ou subjetiva, de junção anterior, reportada ao momento temporal que se situa depois do encerramento da discussão em 1.ª instância, nos termos do art.º 425º do CPC;
- quando a junção apenas se mostre necessária em virtude do julgamento proferido.
Na sua materialidade, nenhum dos documentos cuja junção se requer se analisa em parecer de jurisconsulto, pelo que o nº2 do preceito não é aplicável.
Todos os documentos inovatórios são posteriores à apresentação do requerimento decidido mediante a decisão sob recurso e parte deles posteriores à referida decisão, todos se analisando em comprovativos de transferências bancárias documentando pagamentos ao Sr. Fiduciário.
Assim, e pese embora a total falta de fundamentação para o requerimento de junção, verifica-se claramente a hipótese prevista no nº1 do art.º 651º do CPC e 425º do mesmo diploma, podendo o tribunal admitir os mesmos dado que se trata de recurso interposto em processo em que se aplica o princípio do inquisitório (art.º 11º do CIRE).
É, assim, de admitir a requerida junção, nos termos do disposto nos arts. 651º nº1, aditando-se, em consequência, a matéria de facto provada, nos termos dos arts. 662º nº1, 663º nº 2 e 607º nº 3, do CPC, nos seguintes termos:
8 – A insolvente procedeu ao pagamento ao Sr. Fiduciário, por conta dos rendimentos a ceder, das seguintes quantias:
- € 600,00 em 20/06/2024;
- € 600,00, em 01/07/2024;
- € 800,00, em 09/07/2024;
- € 800,00, em 05/08/2024;
- € 600,00, em 27/08/2024;
- € 800,00, em 01/09/2024;
- € 800,00, em 04/10/2024;
- € 1.000,00, em 01/11/2024;
- € 1.000,00, em 29/11/2024;
- € 1.000,00, em 14/01/2025.
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5. Fundamentos do recurso:
A exoneração do passivo restante é um instituto introduzido, de forma inovatória, em 2004, pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, e que confere aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo – o fresh start.
Nos termos do disposto no art.º 235.º do CIRE[1]: «Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste nos termos das disposições do presente capítulo.»
“A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.”[2]
É, antes de mais, uma medida de proteção do devedor, mas que joga com dois interesses conflituantes: a lógica de segunda oportunidade e a proteção imediata dos interesses dos credores atuais do insolvente.
Não esqueçamos que o processo de insolvência «…tem como finalidade a satisfação dos credores…» como se prescreve logo no art.º 1º do CIRE. Este instituto posterga essa finalidade em nome não apenas do benefício direto (exoneração e segunda oportunidade) do devedor, mas de uma série de interesses de índole mais geral: a possibilidade de exoneração estimula a apresentação tempestiva dos devedores à insolvência, permite a tendencial uniformização entre os efeitos da insolvência para pessoas jurídicas e pessoas singulares e, em última análise, beneficia a economia em geral, provocando, a contração do crédito mas gerando maior responsabilidade e responsabilidade na concessão do mesmo.[3]
Essa tensão entre dois interesses opostos reflete-se nas várias normas que regulam a exoneração, desde logo na opção do nosso legislador pelo regime do earned start, ou reabilitação (por contraposição ao fresh start.º puro), ou seja, fazendo o devedor passar por um período de prova e concedendo o benefício apenas se o devedor o merecer.
É também o modelo eleito a nível europeu, como resulta da Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 (sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas)[4], já transposta[5], e que, em matéria de exoneração ou perdão, na linguagem da diretiva, previu o acesso ao perdão total da dívida aos empresários, deixando aos Estados a opção de o aplicar aos consumidores (cfr. considerando 21), após um prazo não superior a três anos, possibilitando a reserva a devedores de boa-fé e à verificação do cumprimento de determinadas condições – cfr. arts. 20º a 24º da diretiva, em especial o artigo 22º.
A ponderação daqueles interesses contrapostos deve ser considerada como guião para a interpretação das normas dos arts. 235º e ss. do CIRE, como resulta, entre outros, do Ac. STJ de 02-02-2016 e TRP de 15-09-2015[6][7].
No caso concreto a devedora veio, antes da prolação de despacho final, pedir a prorrogação do período de cessão, essencialmente por, não tendo, assumidamente, cumprido a sua obrigação de cessão do rendimento disponível, pretender proceder ao pagamento do montante devido e não poder fazê-lo de uma só vez, pedindo a prorrogação pelo prazo máximo de três anos.
A decisão recorrida, que indeferiu a requerida prorrogação, considerou inexistir possibilidade séria de que a devedora cumpra as suas obrigações no período adicional. Para tanto fundamentou que, mantendo-se a situação de saúde da requerente, também se manterão as dificuldades no pagamento da dívida, ainda que fracionada, que a devedora não apresentou plano prestacional, que a prorrogação acarretará que a devedora continue adstrita a entregar mensalmente o rendimento disponível e que apenas em 2024, ou seja, com a aproximação do termo do período de cessão de rendimentos, a devedora procedeu a entregas ao fiduciário.
Nas suas alegações de recurso a recorrente argumenta:
- nos últimos sete meses depositou € 7.200,00, ou seja, uma média de € 1.028,57 mensais, sendo que a prorrogação por 3 anos daria uma média de € 867,74, estando assim, demonstrada a sua capacidade de cumprimento;
- caso as despesas de saúde houvessem sido atendidas a quantia a entregar seria muito menor;
- a situação de doença está ultrapassada.
Apreciando:
A prorrogação do período de cessão foi introduzida pela Lei nº 9/2022, mediante o aditamento do art.º 242º-A do CIRE, onde se estabelece, sob a epígrafe “Prorrogação do período de cessão”: «1 - Sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º, o juiz pode prorrogar o período de cessão, até ao máximo de três anos, antes de terminado aquele período e por uma única vez, mediante requerimento fundamentado: a) Do devedor; b) De algum credor da insolvência; c) Do administrador da insolvência, se este ainda estiver em funções; ou d) Do fiduciário que tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, caso este tenha violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência. 2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro dos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, sendo oferecida logo a respetiva prova. 3 - O juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão, e decretar a prorrogação apenas se concluir pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das obrigações a que se refere o n.º 1, no período adicional.»
A lei consagrou duas possibilidades ou variantes de pedido de prorrogação: um pedido como alternativa à recusa final de exoneração, nos termos do nº1 do art.º 244º; outro pedido, a deduzir durante o período de cessão, nos termos do 242º-A, como alternativa à cessação antecipada.
O Ac. TRL de 06/12/2022 (Isabel Fonseca - 35/13)[8] pronunciou-se sobre a questão do prazo para a dedução do pedido de prorrogação, distinguindo claramente os casos em que o pedido visa evitar a cessação antecipada, em que o pedido tem que ser formulado durante o período de cessão, dos casos em que visa ser alternativa à recusa final, em que pode ser formulado nos dez dias previstos no nº1 do art.º 244º do CIRE.
Neste exato sentido se pronunciou também o Ac. TRL de 15/12/2022 (Paula Cardoso - 124/18), no qual, em alegações de recurso, sem que nunca antes tal tivesse sido aludido nos autos, se pedia a prorrogação do período de cessão. Neste aresto o tribunal esclareceu que entende que o pedido pode ser formulado em alternativa à cessação antecipada ou à recusa final e que, neste caso, o prazo para o requerimento é de 10 dias, que lhe são concedidos para se pronunciar sobre a decisão final, nos termos do nº1 do art.º 244º do CIRE.
No caso concreto estamos ante um pedido de prorrogação que não será de enquadrar na primeira variante porque o período de cessão já havia terminado, quando o mesmo foi deduzido.
Trata-se, assim, do pedido alternativo à recusa de exoneração, mesmo tendo sido deduzido antes da notificação prevista no nº1 do art.º 244º do CIRE.
Lendo o nº 1 do art.º 242º-A do CIRE compreende-se que as alíneas apenas enumeram os legitimados – exatamente os mesmos que podem requerer a cessação antecipada do procedimento nos termos do 243º nº1, proémio – ou seja, o devedor, algum credor da insolvência, o Administrador da Insolvência se ainda estiver em funções e o fiduciário que tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor e que, na alínea d), o que se segue à vírgula é aplicável aos requerimentos de todos os legitimados e não apenas ao do fiduciário.
Essa é a leitura que mais se adequa à finalidade da regra.
Como já referido, a possibilidade de prorrogação do período de cessão constitui uma alternativa à recusa de exoneração ou à cessação antecipada do procedimento, ambas passíveis de serem motivadas por incumprimento das regras previstas no art.º 239º.
Só em relação a este motivo de recusa ou cessação antecipada a prorrogação apresenta algum equilíbrio e se mostra adequada a demonstrar a seriedade e a lisura do devedor. A prorrogação não apresenta qualquer correspondência com as demais causas de recusa ou cessão antecipada, recordando, verificação superveniente das circunstâncias previstas nas alíneas b), e) e f) do nº1 do art.º 238º e decisão de insolvência culposa com afetação do devedor (alíneas b) e c) do nº1 do art.º 243º). Se o devedor for afetado pela qualificação da insolvência como culposa, a prorrogação do período de cessão não se mostra adequada a minorar as consequências dos factos subjacentes ou a satisfazer o interesse público que informa o incidente de qualificação da insolvência.
Também contribui para a mesma conclusão a interpretação sistemática do segmento inicial do nº1 do art.º 242º-A: «Sem prejuízo do disposto na segunda parte do nº3 do artigo 243º…». Trata-se de ressalvar um incumprimento específico que não permite o recurso à prorrogação do período de cessão, nem oficiosamente, nem a requerimento, o incumprimento do dever de fornecimento de informações – esta específica violação de deveres previstos no art.º 239º do CIRE dá sempre lugar à recusa de exoneração.
Além deste argumento de ordem teleológica, os trabalhos preparatórios – a consulta da Proposta de Lei apresentada pelo Governo e da mesma proposta de lei na versão da proposta de substituição apresentada pelos grupos parlamentares do PS e do PSD, que veio a ser aprovada[9] – mostram que o nº1 do artigo 242º-A não continha alíneas e que referia todos os legitimados, terminando com a menção da violação das obrigações impostas pelo art.º 239º:
Foi esta a redação final aprovada pelos deputados: 1 - Sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º, antes ainda de terminado o período da cessão, pode o juiz, por uma única vez, prorrogar o período de cessão, até ao máximo de 3 anos, a requerimento fundamentado do devedor, de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando o devedor tiver violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Tratou-se, assim, de uma opção de redação final, que não nos parecendo a mais acertada, ainda assim não prejudica a conclusão de que o fundamento para o pedido de prorrogação, em qualquer das suas duas possibilidades, é sempre quando o devedor tenha “violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.”
Feitas estas considerações estamos assim ante um requerimento que podia ser formulado pelo devedor, com base na violação das obrigações impostas nos termos do art.º 239º, em concreto, o assumido incumprimento da obrigação de entrega do rendimento disponível pela devedora: ao assumir que apenas em março de 2024 começou a fazer entregas, ou seja, a pouco mais de um mês do final do período de cessão, assumiu o total incumprimento anterior.
A possibilidade de prorrogação tem um âmbito de aplicação bastante balizado – o juiz deve decretar a prorrogação apenas se concluir pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das obrigações a que se refere o n.º 1, no período adicional – cfr. nº3 do art.º 242º-A.
A recorrente parece entender que o período de prorrogação se destina apenas ao cumprimento das obrigações incumpridas durante o período de cessão – é o pressuposto dos cálculos que efetua quanto ao montante a ceder durante o período prolongado.
O despacho recorrido indicou que a prorrogação implica que a devedora continue a entregar mensalmente o rendimento disponível, isto é, entendendo que no período de prorrogação a devedora deve continuar sujeita às obrigações originais e à obrigação de entrega, em prestações do montante não entregue no período de cessão original.
Ou seja, antes sequer de avaliarmos a capacidade de cumprimento da devedora importa aferir exatamente o âmbito das obrigações a cumprir, uma vez decretada a prorrogação, num caso como o presente, em que foi incumprida a obrigação de entrega do rendimento disponível durante o primitivo período de cessão.
A letra da lei – o nº 3 do art.º 242º-A – refere como requisito a possibilidade séria de cumprimento das obrigações a que se refere o nº1 do preceito, ou seja, «as obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º», a saber, a obrigação de não ocultação ou dissimulação de rendimentos e de prestação das informações que lhe sejam solicitadas, o exercício de profissão remunerada ou procura diligente de emprego, a obrigação de entrega imediata do rendimento disponível, prestação de informação sobre mudanças de emprego ou domicilio e não fazer pagamentos aos credores a não ser através do fiduciário.
Quando o juiz prorroga o período de cessão prorroga todas as obrigações que lhe estão impostas nos termos do art.º 239º. Só deve fazê-lo se for possível ao devedor o cumprimento das mesmas obrigações, a que continua adstrito. Não se trata de conceder prazo para pagamento de um plano prestacional, trata-se de avaliar se pode cumprir as obrigações que enformam o período de cessão.
Assim delineada compreende-se que a possibilidade de prorrogação será de ocorrência precisa, já que o conceito de probabilidade séria de cumprimento é perfeitamente concretizável.
Historicamente, inexistia, no regime anterior à entrada em vigor da Lei nº 9/2022, uma alternativa à recusa em caso de violação das obrigações por parte do devedor. Por essa razão – e dada a flagrante injustiça de muitos casos concretos - generalizou-se uma prática de permitir o pagamento em prestações das denominadas “dívidas à fidúcia”, por vezes em planos alargados no tempo, muito para além do período da cessão e como condição de acesso à exoneração final.
Veja-se o Ac. TRP de 13/07/2022 (Carlos Portela - 2410/16), no qual se manteve uma decisão que, findo o período da cessão concedeu o pagamento em 6 prestações da quantia em dívida “considerando as gravosas consequências da recusa de exoneração”, não o censurando por qualquer forma, e atribuindo ao número de prestações fixadas (o recorrente pretendia 12) o carater de decisão discricionária e, logo, irrecorrível.
Havia, assim, uma certa normalidade – sem qualquer fundamento legal, note-se – na prática de conceder prazo para a regularização de quantias em falta e de fixar regimes prestacionais para o efeito. E era assim, e por regra sem recurso e sem qualquer discussão jurisprudencial (ou doutrinária), porque era consensual que a falta de alternativas, findo o período de cessão, podia, em muitos casos concretos, levar a resultados injustos à luz da razão de ser do instituto.
Mas já antes da alteração de 2022 o Ac. TRE de 30/06/2021 (Isabel Peixoto Imaginário - 1425/13)[10] deixava o aviso correspondente ao regime legal então em vigor (negrito nosso): “Decorre do exposto que, findo o período de cessão, cumpre apreciar se o Devedor atuou, ao longo do período de 5 anos, com lisura e retidão no cumprimento dos deveres consagrados no artigo 239.º/4, do CIRE. Se, porventura, se apurar existirem pagamentos em falta, não tem cabimento exortá-lo a assumir novas dívidas para se libertar das relacionadas no processo de insolvência nem há que equacionar o pagamento faseado: o dever é o de entrega imediata ao fiduciário, quando recebida, da parte dos rendimentos objeto de cessão; logo, findo o período de cessão, importa apreciar se, em cada momento em que o Devedor recebeu rendimentos objeto de cessão, os entregou imediatamente ao fiduciário; e se não entregou, mais importa apreciar se atuou dolosamente ou com negligência grave, assim prejudicando a satisfação dos créditos sobre a insolvência.”
Foi este o problema que o novo art.º 242º-A, à luz do art.º 23º da Diretiva 2019/1023[11], procurou resolver, trazendo uma terceira alternativa à concessão e recusa: a prorrogação do período de cessão.
Já na vigência da Lei nº 9/2022 surgiram na jurisprudência duas correntes opostas quanto ao conteúdo das obrigações e deveres a que pode ser sujeito o devedor no período de prorrogação.
Uma primeira entendendo que não tem que ser paga a quantia que estava em falta, mas o devedor deve continuar a ceder o rendimento disponível fixado.
Neste sentido, fundamentando, o primeiro acórdão publicado que se debruçou sobre a questão foi o Ac. TRL de 06/12/2022 (Isabel Fonseca - 35/13), onde se sumariou (com negrito nosso): 1.A Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro é aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor (11-04-2022), com reflexos no âmbito da regulação alusiva ao período de cessão, tendo em conta o regime transitório fixado no número 3 do art.º 10.º da referida lei. 2. Como expressamente mencionado no diploma, a Lei n.º 9/2022 estabeleceu medidas tendo em vista a transposição da Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, nomeadamente quanto à fixação do período de cessão – prazo para o perdão, na terminologia da Diretiva – em três anos e a possibilidade de prorrogação desse prazo (por igual período). 3. Encontrando-se o devedor em situação de incumprimento quanto à obrigação de entrega à fidúcia do rendimento disponível (art.º 239.º, nº4, alínea c) do CIRE), formulando pedido de prorrogação do prazo de cessão já depois do terminus do período de cessão, esse pedido deve ser perspetivado no âmbito do art.º 244.º do CIRE, como alternativa à recusa de exoneração: o devedor pode, pois, deduzir o pedido no prazo de 10 dias que a lei lhe concede para se pronunciar quanto à decisão final de exoneração (nº1 do referido preceito). 4. Quanto ao conteúdo da medida de prorrogação, a solução que melhor se coaduna com o texto da lei e a filosofia do sistema é aquela que considera que com a prorrogação se abre efetivamente um novo período de cessão, que deve ser perspetivado – como o próprio nome indica – como tal, com a obrigação que decorre, para o devedor, nomeadamente, do disposto no art.º 239.º nº4 alínea c) do CIRE, isto é, o devedor não tem de pagar a quantia que estava em falta à fidúcia, mas deve continuar a entregar à fidúcia, no período de prorrogação, o valor que foi fixado como correspondendo ao rendimento disponível; em suma, tratando-se de uma prorrogação do período de cessão, a mesma comunga do que carateriza esse período, nomeadamente no que concerne à esfera de direitos e obrigações que impendem sobre o devedor e sobre os demais sujeitos processuais.”
Este aresto debruçou-se especificamente sobre qual o conteúdo da prorrogação, concluindo nos termos sumariados: o devedor deve continuar a cumprir as obrigações que lhe foram fixadas, não se tratando de possibilitar o pagamento do montante que deixou de entregar durante o período de cessão originário.
Também na Relação de Lisboa, o Ac. TRL de 16/05/2023 (Amélia Sofia Rebelo - 3382/16) tratou de um caso em que, tendo sido recusada a exoneração do passivo restante após verificado incumprimento do devedor, se havia antecedido a esta recusa a notificação do mesmo para, em 30 dias, proceder à entrega da quantia em falta (no caso, € 38.000).
O tribunal considerou que, no caso concreto, a recusa havia sido desproporcional, e determinou, oficiosamente, conceder uma efetiva oportunidade ao devedor para demonstrar vontade de cumprir e prorrogou por 12 meses o período de cessão, pronunciando-se expressamente sobre a finalidade desta prorrogação nos seguintes termos (negrito nosso): “Nesta senda, e conforme se concluiu no acórdão desta secção 06.12.2022, com a concessão de prazo para além do período de cessão abre-se “um novo período de cessão, que deve ser perspetivado […] como tal, com a obrigação que decorre, para o devedor, nomeadamente, do disposto no art.º 239.º nº 4 alínea c), isto é, o devedor não tem de pagar a quantia que estava em falta à fidúcia, mas deve continuar a entregar à fidúcia, no período em causa, o valor que foi fixado como correspondendo ao rendimento disponível, sem prejuízo desse montante poder ser revisto pelo juiz, nos mesmos termos em que o seria na fase anterior e ponderando o disposto no art.º 239.º, nº 3. Em suma, tratando-se de uma prorrogação do período de cessão, a mesma comunga do que carateriza esse período, nomeadamente no que concerne à esfera de direitos e obrigações que impendem sobre o devedor e sobre os demais sujeitos processuais.” Assim, não há que estabelecer qualquer plano prestacional para pagamento da quantia em dívida à fidúcia referente ao período de cessão decorrido, mas apenas fixar o prazo de prorrogação do período de cessão, durante o qual se mantêm em vigor as ‘obrigações’ que lhe são legalmente inerentes, incluindo a ‘obrigação’ de entregar os rendimentos que o recorrente aufira no decurso do novo prazo e que excedam os já fixados nos autos como indisponíveis. Considerando que o período regular de cessão do rendimento disponível iniciou em junho de 2016 e que, desde a admissão do recurso até à sua remessa a esta Relação decorreu mais de um ano - período durante o qual o processo foi indevidamente retido na primeira instância sem qualquer tramitação -, afigura-se-nos adequado estender o período de cessão pelo prazo acrescido de 12 meses, no termo do qual será proferida decisão final com a valoração do comportamento que durante o mesmo foi assumido pelo recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua cessação antecipada nos termos do art.º 243º.”
Em concordância com esta aceção do âmbito da prorrogação, encontramos ainda o Ac. TRG de 28/09/2023 (Alexandra Viana Lopes - 5153/18).
Trata-se de um processo no qual foi pedido e indeferido, em 1ª instância, um pedido de prorrogação com conteúdo prestacional, para pagamento em prestações do montante que não havia sido cedido. O recurso foi interposto deste despacho e da decisão de recusa subsequente.
Ali se entendeu, a propósito do pedido de prorrogação “prestacional” (mais uma vez com negrito nosso): “Por sua vez, a possibilidade de prorrogação do período de cessão para depois dos 3 anos previstos na nova lei e por um período máximo de 3 anos, nos termos e com os requisitos previstos no art.242º-A do CIRE, no regime aprovado pela nova Lei nº9/2022, de 11.01., corresponde a um quadro legal distinto da possibilidade de pagamento prestacional de uma dívida vencida, uma vez que a prorrogação do período de cessão obriga o devedor/insolvente a manter o dever de entrega do rendimento disponível que se vencer no período prorrogado e a cumprir as obrigações previstas e prescritas no art.239º/3 e 4 do CIRE.”
Em sentido oposto, no fundo numa corrente tributária da prática corrente de permitir o pagamento em prestações, encontramos uma segunda corrente, que admite o incidente como forma de regularização do pagamento em falta e ainda de acesso à exoneração.
Encontramos nesta senda o Ac. TRP de 13/06/2023 (Rodrigues Pires): I – O art.º 242º-A, aditado ao CIRE pela Lei nº 9/2022, de 11.1, relativo à prorrogação do período de cessão, é imediatamente aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor [art.º 10º, nº 3 da referida Lei]; II – A prorrogação do período de cessão por um período máximo de três anos só poderá ocorrer se se concluir pela existência de uma probabilidade séria de cumprimento, por parte do devedor, das obrigações a que se refere o art.º 239º do CIRE; III – Não basta assim uma probabilidade qualquer, antes se exigindo uma probabilidade séria de, nesse período alargado, o devedor vir a cumprir as obrigações a que se sujeitou inicialmente para obter a exoneração; IV - Impõe-se, por conseguinte, que o devedor, face aos elementos constantes do processo, crie no julgador a convicção de que derradeiramente vai cumprir;
Neste aresto resolveu-se uma questão relativa à conjugação entre a entrada em vigor da Lei nº 9/2022 e os prazos de requerimento e pronúncia sobre o pedido de prorrogação, no caso havendo já um acórdão anterior do Tribunal da Relação do Porto a confirmar uma decisão de cessação antecipada, proferido antes da entrada em vigor da Lei nº 9/2022 e um acórdão posterior a essa entrada em vigor, determinando a admissibilidade do pedido – e revogando decisão contrária da 1ª instância.
O acórdão foi tirado num quadro em que foi apenas essa a alternativa colocada – foi o pedido formulado pelos devedores, o pagamento do que havia ficado por pagar à fidúcia – e em que o tribunal recorrido havia indeferido fundamentando com a inexistência de probabilidade séria de cumprimento por parte dos devedores, dado o montante da quantia em dívida, o Tribunal da Relação do Porto confirmou o juízo da decisão recorrida, aceitando assim que o período de prorrogação se destinaria a possibilitar o pagamento do que não havia sido entregue durante o período de cessão.
Voltando ao caso concreto sub judice, a posição do tribunal recorrido é tributária da segunda posição identificada, dado que, quem admita o conteúdo prestacional da prorrogação, terá de indagar se o pagamento da “dívida à fidúcia”[12] acumula com as demais obrigações ou é o único conteúdo do período adicional.
Em resumo, são três as possibilidades de conteúdo dos deveres dos devedores durante o período de cessão prorrogado:
- uma primeira, e aparentemente mais favorável aos devedores, limitada à possibilidade de pagamento em prestações das quantias que deveriam ter sido cedidas durante o período original de cessão;
- uma segunda, a seguida pelos Acs. TRL e TRG acima citados, no sentido de que a prorrogação do período de cessão significa que os devedores continuam adstritos ao cumprimento das obrigações fixadas no despacho inicial e apenas a estas;
- uma terceira, que se colocará a quem defenda a primeira opção, e pretenda ainda dar um sentido útil ao termo “prorrogação”, que imporá aos devedores a continuação do cumprimento dos deveres que lhe foram fixados no despacho inicial em cumulação com o pagamento em prestações da quantia que deveria ter sido cedida no período originário.
Justificando a posição já assumida – a de que o âmbito dos deveres no período de prorrogação é apenas o cumprimento das obrigações fixadas no despacho inicial, que se prolongará pelo período fixado – há desde logo a apontar à terceira posição, a adotada no despacho recorrido, um claro problema de constitucionalidade.
Se o que foi fixado no despacho inicial foi o mínimo de sobrevivência em dignidade, obrigar o devedor a, além de ceder o seu rendimento disponível, retirar do rendimento indisponível (e mínimo de sobrevivência) ainda o montante necessário para pagar em prestações o que não cedeu anteriormente, equivale a obrigar o devedor a viver abaixo do que é considerado o mínimo de sobrevivência digna, como condição de acesso à exoneração e ao fresh start.º
A primeira opção, por sua vez, desconsidera o sentido literal do preceito e da palavra prorrogação, que o legislador português consagrou sem qualquer caraterização adicional, transpondo a possibilidade prevista no art.º 23º da Diretiva de acesso ao perdão num prazo mais longo. A Diretiva não condiciona o acesso ao perdão senão ao prolongamento do prazo de concessão, tal como, na nossa perspetiva, o legislador português também não fez. Ou seja, as “dívidas à fidúcia” não têm consagração legal nacional e também não resultam do texto da Diretiva, não sendo o seu pagamento condição de acesso ao perdão.
Seguindo a segunda linha, ou seja, de prorrogação de todos os deveres impostos no despacho liminar é imediato que o respetivo incumprimento durante o período de cessão adicional é avaliado nos exatos termos previstos para o período de cessão inicial. Nos mesmos e exatos termos e com os mesmos requisitos, pode ocorrer cessação antecipada ou recusa final.
No caso da opção pelo mero plano prestacional, há que ponderar a valoração do incumprimento desse plano. Sem qualquer outra obrigação imposta ao devedor, nomeadamente de prestação de informação, não se vê como se poderá avaliar os requisitos de recusa, que recordando, se analisam em: i) violação das obrigações previstas no art.º 239º do CIRE; ii) com dolo ou negligência grave; iii) prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência; e iv) nexo de causalidade entre a conduta dolosa ou gravemente negligente do insolvente e o dano para a satisfação dos credores da insolvência.
Existe assim um sério risco de avaliação objetiva do incumprimento e recusa automática no caso de incumprimento de uma ou mais prestações, o que acaba por postergar o objetivo não recusa a devedores de boa-fé. Ainda se dirá que o mero cumprir de uma obrigação pecuniária, desacompanhado de qualquer outra obrigação não enquadra na noção de prazo mais longo, nem na verificação da boa-fé do devedor, afinal, a condição para acesso à exoneração.
Sendo a opção política-legislativa pela exoneração através do earned start, e recuperando a noção de que o instituto da exoneração, embora ainda guiado pela satisfação dos credores, não a visa[13], só permanecendo o devedor sujeito às (pesadas) obrigações iniciais completas, de informação, de cessão de rendimentos, de procura e/ou manutenção de emprego, etc., se cumpre o desígnio do mesmo. Trata-se de uma verdadeira penalização para o devedor de boa-fé, que se vai continuar a ver adstrito a uma série de limitações na sua vida diária.
Aqui chegados, determinado o âmbito da prorrogação do período de cessão, podemos então avaliar se a recorrente demonstrou possibilidade séria de cumprimento das obrigações que lhe foram impostas em sede de despacho liminar.
Objetivamente estamos ante uma insolvente que, durante praticamente todo o período de cessão, nada cedeu. O despacho inicial foi proferido em março de 2021 e só em março de 2024 a devedora começa a fazer entregas ao Sr. Fiduciário, entregando então € 1.300,00.
Não pode a recorrente argumentar com as despesas de saúde não aceites, dado que os pedidos de exclusão dessas despesas foram decididos por decisões transitadas em julgado.
Aliás, neste momento, e já contando com os montantes entregues após o requerimento de prorrogação, o valor que deveria ter sido entregue, já líquido das despesas excluídas monta a € 22.738,75, enquanto que as despesas de saúde cuja exclusão pediu e foi indeferida (tendo sido deferida a exclusão de várias despesas de saúde) montam a cerca de € 10.000,00, ou seja, menos de metade do que não entregou.
Assim, as despesas de saúde não explicam nem tornam desculpável uma clara violação dolosa do principal dever de um devedor exonerando: a obrigação de cessão do rendimento disponível.
O dolo é bastante claro no caso presente, em que a devedora, conhecedora das obrigações que sobre si recaíam, só notificada para proceder ao pagamento dos montantes em falta veio requerer a exclusão de despesas já havidas e, ciente da decisão de parcial diferimento, retomou a respetiva conduta de nada entregar ao Sr. Fiduciário, permitindo-se nada ceder, nada informar durante mais um ano, voltar a requerer a exclusão de despesas e, apenas na iminência do final do período de cessão, começou a fazer entregas, num esforço que reconhecemos, mas que parece ser unidirecional.
A conduta da devedora ao longo do período de cessão não é de molde a que nela se possa fundar uma perspetiva razoável de que, daqui para a frente cumpra o que antes não cumpriu (durante 2 anos e 11 meses). O esforço que agora está a fazer foi omitido durante praticamente todo o período de cessão.
Por outro lado, o nível médio de entregas que a devedora está agora a fazer, é irrelevante dado o âmbito das obrigações do devedor no período adicional, que já circunscrevemos, deixando de fora o pagamento prestacional dos montantes que deveria ter entregue no período inicial.
Assim, e sem prejuízo da necessária avaliação que o tribunal terá que efetuar para os efeitos previstos no art.º 244º do CIRE (e que compreende a apreciação de outros requisitos, aqui desnecessária), entendemos que não resultam reunidos indícios que permitam concluir pela probabilidade séria de cumprimento pela devedora, no período adicional, das obrigações que lhe foram impostas nos termos do art.º 239º do CIRE.
A apelação improcede, assim, integralmente.
*
A apelante, porque vencida, suportará integralmente as custas do presente recurso – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil - sem prejuízo do disposto no art.º 248º do CIRE e da eventual concessão de apoio judiciário.
*
5. Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em, julgando integralmente improcedente a apelação, manter a decisão recorrida.
*
Custas pela recorrente na presente instância recursiva, sem prejuízo do disposto no art.º 248º do CIRE e da eventual concessão de apoio judiciário.
Notifique.
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Lisboa, 11 de fevereiro de 2025
Fátima Reis Silva
Renata Linhares de Castro
Elisabete Assunção
_______________________________________________________ [1] Na versão em vigor à data da prolação do despacho recorrido. [2] Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, abril de 2018, pg. 560. [3] Neste sentido Catarina Serra, local citado, pgs. 562 e 563. [4] Texto disponível in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019L1023&from=PT [5] Pela Lei nº 9/2022 de 11 de janeiro, que entrou em vigor no dia 11 de abril de 2022. [6] Todos disponíveis em www.dgsi.pt [7] No mesmo sentido, de forma desenvolvida, Paulo Mota Pinto em Exoneração do passivo restante: fundamento e constitucionalidade, em iii Congresso de Direito da Insolvência, Coord. Catarina Serra, Almedina 2015, pgs. 187 a 194. [8] Também disponível, como os demais citados sem referência, em www.dgsi.pt. [9] Proposta e relatório da votação e texto final disponíveis em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=121187 [10] No qual apenas se apreciava a decisão de recusa e não qualquer outra, nomeadamente de indeferimento do pagamento em prestações. [11] Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 (Diretiva sobre reestruturação e insolvência). [12] Expressão sem correspondência na lei, mas que ainda assim se vê usada. [13] Neste sentido Gonçalo Gama Lobo, em A exoneração do passivo restante depois da Diretiva 2019/1023: a Lei 9/2022, em Revista de Direito da Insolvência, nº 7, Almedina 2023, pgs. 88 e 89.