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NOVA DECISÃO INSTRUTÓRIA
MOVIMENTAÇÃO DE JUIZ ORIGINARIAMENTE COMPETENTE
Sumário
I. O dissenso entre o primitivo e actual juiz do processo em que ambos declinam o exercício jurisdicional para a prolação de nova decisão instrutória, na sequência de acórdão de Tribunal Superior que a determinou, configura um conflito atípico de competência que se impõe resolver nos termos do artigo 12º, nº 5, al. a) do CPP, sob pena de impasse processual. II. O regime específico aplicável ao debate instrutório [obrigatório e sujeito ao contraditório pleno, isto é, à observância dos princípios da oralidade, imediação e continuidade que caracterizam a fase de audiência de discussão e julgamento], impõe que seja o juiz que presidiu ao respectivo debate instrutório a prolatar a decisão instrutória, nos termos determinados pelo Acórdão do Tribunal Superior.
Texto Integral
I – Relatório
1. No âmbito do processo n.º 6339/2.4 T9LSB, do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa (TCIC), distribuído ao juiz 1, foi proferida, após realização da instrução requerida pelos arguidos [inquirição de testemunhas e debate instrutório], decisão instrutória de não pronúncia [constante de fls. 425 a 459 dos autos – cfr. certidão junta].
2. Na sequência de recurso interposto pelo Ministério Público, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, por acórdão proferido em 09/11/2023, «julgar verificada a irregularidade do art.º 123º. nº 1 do Código de Processo Penal, (…) declarando inválida a decisão recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que supra a omissão consistente na falta de enunciação dos factos indiciados e dos não indiciados, por referência à acusação e ao requerimento de abertura de instrução, e fazendo a análise crítica dos meios de prova produzidos no inquérito e na instrução.».
3. No tribunal recorrido, a 15/01/2024, foi proferido o despacho, com referência 8692573, pelo titular dos autos, mediante o qual foi determinado a apresentação do processo ao senhor juiz que, na qualidade de Juiz de Instrução Criminal, proferiu a decisão instrutória.
4. Apresentados os autos, por via de conclusão, ao senhor juiz que havia proferido a decisão instrutória anulada, entretanto promovido a Desembargador e a exercer funções no tribunal da Relação de Lisboa, pelo mesmo foi proferido, em 15/02/2024, o seguinte despacho:
«Dado que o signatário já não exerce funções como Juiz 1 no Tribunal Central de Instrução Criminal, estando colocado, desde Setembro de 2023, no T.R.Lisboa entende que lhe falece legitimidade para despachar os presentes autos.
Devolvam-se ao seu titular, no TCIC.».
5. Pelo senhor juiz 1 do TCIC foi, então, proferido, a 23 de Março de 2024, despacho a declarar-se incompetente para a prolação de nova decisão instrutória, nos termos determinados pelo tribunal da Relação, que, na parte relevante, aqui se transcreve:
«Afigura-se-nos, porém, não ser o signatário competente para reformular a decisão instrutória.
Vejamos porquê.
Do teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, verifica-se que foi ordenada a substituição da decisão recorrida e invalidada “por outra que supra a omissão consistente na falta de enunciação dos factos indiciados, por referência à acusação e ao requerimento de abertura de instrução, e fazendo a análise crítica dos meios de prova produzidos no inquérito e na instrução”.
Entendendo o referido Acórdão que existe uma irregularidade processual, por não se elencarem os factos indiciados, nem os factos não indiciados que permitiram a não pronúncia dos arguidos, e por não se ter procedido ao exame crítico, ou seja, à discussão sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios probatórios, em face das provas recolhidas em inquérito e em instrução, entende-se que a decisão que deve ser substituída por outra que venha a suprir a omissão consistente na falta de enunciação dos factos indiciados e dos não indiciados, por referência à acusação e ao requerimento de abertura de instrução, e fazendo a análise crítica dos meios de prova produzidos no inquérito e na instrução, é da competência do Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal que a proferiu e presidiu ao debate instrutório (actualmente em funções, como Juiz Desembargador, no Venerando Tribunal da Relação de Lisboa), e não ao actual Juiz de Instrução Criminal.
Atente-se que o debate instrutório não foi anulado, nem foi ordenada a prática de novos actos de instrução.
O debate instrutório só realiza a sua finalidade legal, presentes que sejam os princípios da continuidade e da oralidade, se houver identidade de juiz, isto é, se o juiz que proferir a decisão instrutória for o mesmo que presidiu ao debate instrutório, sob pena de insuficiência de acto essencial da instrução, que constitui uma nulidade dependente de arguição (art.º 120.º , n.º 2, al. d) do Cód. Processo Penal), resultando, do preceituado no art.º 307.º do Código de Processo Penal, que é ao juiz que preside ao debate instrutório que incumbe a prolação da decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia, independentemente da colocação que venha a ter o juiz que ao mesmo presidiu por decorrência de movimentos judiciais.
Além de que, não pode ser o signatário a completar e/ou a reformular a decisão instrutória, limitando-se a inserir factos que considere como indiciados e como não indiciados, e a respectiva fundamentação, até porque a restante decisão instrutória se mantém e essa decisão foi proferida. pelo anterior Juiz de Instrução, permanecendo na esfera própria deste a competência para completar e/ou reformular a decisão instrutória, no respeito pelo determinado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
Nestes termos, uma vez que foi proferido Acórdão pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa a determinar que se supra a irregularidade da decisão instrutória de não pronúncia, fundamentando a mesma através da enunciação dos factos indiciados e dos factos não indiciados, por referência à acusação e ao requerimento de abertura de instrução, e procedendo à análise crítica dos meios de prova produzidos no inquérito e na instrução, somos do entendimento que essa fundamentação deve ser feita pelo então Juiz de Instrução Criminal que presidiu ao debate instrutório (no qual teve a oportunidade de se inteirar dos eventuais argumentos que foram, então, aduzidos pelos demais intervenientes processuais) e que proferiu a decisão instrutória recorrida, tendo ao seu dispor todos os meios de prova recolhidos no processo para suprir a irregularidade desta decisão, a quem incumbe a competência exclusiva para o efeito, como já acima exposto, e actualmente, e desde o mês de Setembro de 2023, a exercer funções, como Juiz Desembargador, no Tribunal da Relação de Lisboa, pois o mesmo não se encontra impossibilitado de o fazer, nomeadamente por motivo de baixa médica prolongada.
Pelo exposto, e nos termos do artigo 32.º , n.º 1 do Código de Processo Penal, o Juiz de Instrução Criminal signatário, por entender que por não ter presidido ao debate instrutório, não lhe assiste competência para sanar o vício apontado à decisão instrutória de não pronúncia recorrida, declara-se incompetente para reparar tal decisão, e competente para tal fim o actual Juiz Desembargador, em funções no Tribunal da Relação de Lisboa, que, na qualidade de Juiz de Instrução Criminal, a proferiu.
Assim, e nos termos das disposições conjugadas dos arts. 35.º, n.º 1 e 11.º, n.º 6, al. a) do Código de Processo Penal, suscita-se a resolução do conflito junto do Exm.º Presidente da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.».
6. Remetido o presente incidente ao Supremo Tribunal de Justiça e após parecer do Ministério Público [referência 12318778], veio a ser proferida a decisão de 17/05/2024 que decidiu determinar a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para apreciação do conflito, com a seguinte fundamentação, que se transcreve na parte relevante:
«(…) não compete ao Presidente da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça resolver conflitos entre juízes que relativamente ao mesmo processo intervêm com a mesma categoria. E muito menos quando se trata de juízes do mesmo tribunal, pertencentes à circunscrição da mesma Relação. Quando tal suceda, como é o caso, dispõe o art.º 12º nº 5 al. a) do CPP competir ao Presidente da secção criminal da Relação apreciar o pedido de resolução de competência (funcional) que tenha surgido entre juízes de tribunais de 1ª instância da área da sua jurisdição».
7. Recebidos os autos no TRL foi determinada a respectiva baixa à 1ª instância para notificação do despacho de 15/02/2024 e certificação da notificação e trânsito dos despachos proferidos.
8. Cumprido o referido em 7, foi ordenado o cumprimento do disposto no artigo 36º, nº 1 do CPP, tendo o Ministério Público emitido parecer, no âmbito do qual, após contextualização da situação fáctico-jurídica, sustenta ser correcta a fundamentação do actual juiz em funções no TCIC, que declara acompanhar, concluindo ser competente para dar cumprimento à decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa o juiz que proferiu a decisão anulada.
II. Apreciação:
Como nota preliminar à resolução da questão colocada à nossa apreciação, cumpre afirmar que estamos perante um conflito atípico de competência [nos termos do artigo 34.º do Código de Processo Penal, há conflito negativo/positivo de competência quando dois ou mais tribunais da mesma espécie se consideram incompetentes/competentes para conhecer da mesma questão; no caso nenhum sujeito processual põe em causa a competência do Tribunal ao qual os autos se mostram distribuídos - juiz 1 do Tribunal Central de Instrução Criminal - para tramitar os autos] em que o primitivo e actual juiz do processo declinam o exercício jurisdicional para a prolação de nova decisão instrutória, conforme determinado por acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de Novembro de 2023.
Pese embora a atipicidade do conflito decidendo – o dissenso entre ambos os juízes coloca-se ao nível jurisdicional – o mesmo é gerador de um real conflito de competência, que impõe decisão nos termos do artigo 12º, nº 5, al. a) do CPP [neste sentido e em idêntico caso, V. entre outros, Decisão do Presidente da Secção Criminal de Évora, de 05.05.2015, processo 60/15.0REVR], sob pena de impasse processual.
Tendo em conta o teor da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça [à qual este Tribunal se mostra vinculado] que decidiu estarmos perante um conflito entre juízes que relativamente ao processo em causa intervêm com a mesma categoria, resta apreciar e decidir.
Sendo incontroverso que o Sr. Juiz Desembargador cessou funções no Juiz 1 do Tribunal Central de Instrução Criminal, na sequência do movimento judicial ordinário de 2023, no âmbito do qual foi promovido a juiz desembargador do TRL, o dissenso em apreciação passa pela análise jurídica da obrigatoriedade ou não da aplicação à decisão instrutória do princípio da plenitude da assistência dos juízes [o princípio da plenitude da assistência dos juízes é um corolário dos princípios da oralidade e da apreciação da prova, que exige que o juiz seja o mesmo ao longo de todos os actos de instrução e discussão da causa realizados em audiência1], expressamente prevista, como sabemos para a fase de julgamento em que o princípio do contraditório atinge a sua plenitude.
Sobre a questão em apreciação, acolhemos aqui a argumentação desenvolvida na decisão de 05/05/2015, que decidiu o conflito de competências nº 60/15.0 YREVR [publicado in www.dgsi.pt] que, acompanhando um acórdão do TRG de 19.05.2014, conclui que enquanto não existe nenhum fundamento legal que imponha que o Juiz que inicia e desenvolve a instrução deva o mesmo que a venha ultimar, proferindo decisão instrutória [por os princípios da imediação, oralidade, continuidade e contraditório pleno não serem aplicáveis na fase da produção de prova da instrução], já o regime específico aplicável ao debate instrutório parece impô-lo. Com efeito, o debate instrutório além de obrigatório, representa o culminar de toda a fase preparatória do processo penal, mostrando-se sujeito ao contraditório pleno, isto é, à observância dos princípios da oralidade, imediação e continuidade que caracterizam a fase de audiência de discussão e julgamento.
Revertendo ao caso dos autos, não tendo o debate instrutório sido anulado, mas tão só a decisão instrutória para que seja suprida a omissão da descrição e especificação dos factos tidos por indiciariamente assentes e não assentes, bem como a fundamentação/exposição do respectivo juízo probatório indiciário, impõe-se concluir que terá que ser o juiz que presidiu ao respectivo debate instrutório a prolatar a decisão instrutória, nos termos determinados pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
III. Decisão:
Pelo exposto, decide-se dirimir o conflito negativo de competência, atribuindo a competência para dar cumprimento ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ao Juiz que presidiu ao debate instrutório.
Sem tributação.
Cumpra o artigo 36º, nº 3 CPP.
Lisboa, 9 de Fevereiro de 2025
Simone Abrantes de Almeida Pereira
Consigna-se que a presente decisão foi elaborada e revista pela signatária.
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1. V. Lebre de Freitas, José, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p. 633.