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APLICAÇÃO LEI DA AMNISTIA
INFRAÇÃO DISCIPLINAR LABORAL
EMPREGADOR PRIVADO
Sumário
A Lei da Amnistia aprovada aquando da Jornada Mundial da Juventude (Lei n.º 38-A/2024, de 02.08) não se aplica às infrações disciplinares laborais praticadas por trabalhadores afetos ao sector privado.
Texto Integral
I – RELATÓRIO
AA, residente na Rua ..., freguesia ..., do concelho ..., instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra SANTA CASA DA MISERICÓRDIA ..., com sede na Rua ..., ..., ... ... e pede que:
a) Seja anulada a sanção disciplinar de 10 dias de suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade aplicada à A.;
b) Seja a Ré condenada a pagar à A. a quantia de 331,80€ referente à perda de retribuição correspondente a 10 dias em virtude da sanção aplicada;
c) Seja a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de 3.318,00 €, a título de indemnização pela aplicação abusiva da sanção disciplinar, nos termos do 331º, nºs2 b), 3 e 5, do C.T.;
d) Seja a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de 3.000,00 €, a título de indemnização pelos danos morais que lhe causou com a aplicação da sanção de suspensão por 10 dias;
e) Seja a Ré condenada a pagar à A. juros de mora à taxa legal sobre as referidas quantias desde a data da citação até efetivo e integral pagamento; e sempre,
f) Seja a Ré condenada nas custas e demais encargos legais.
A Ré contestou pugnando pela improcedência da acção e pela manutenção da sanção disciplinar aplicada, com a sua consequente absolvição dos pedidos contra si formulados.
O Tribunal a quo determinou que se notificassem as partes para se pronunciarem sobre a aplicação do art.º 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08 (Lei da Amnistia), com a consequente inutilidade superveniente da lide.
A Ré pronunciou-se no sentido da Lei n.º 38-A/2023, de 2.08 não abranger no seu âmbito as infrações disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados a empregadores privados, requerendo o prosseguimento dos autos. E a Autora pronunciou-se no sentido de estarem preenchidos os pressupostos que conduzem à aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2.08, devendo aplicar-se a amnistia à infração e sanção disciplinar em causa nos presentes autos.
Foi proferida decisão que declarou a infração disciplinar amnistiada e terminou com o seguinte dispositivo: “Como tal, a infração disciplinar encontra-se amnistiada, de acordo com o previsto nos artigos 2.º, n.º 1, e 6.º da Lei nº 38-A/2023, de 02 de agosto. Assim sendo, declara-se amnistiada a infração disciplinar imputada à trabalhadora AA e, consequentemente, condena-se a entidade patronal SANTA CASA DA MISERICÓRDIA ... a pagar à autora os dez dias de retribuição em falta e a reconhecer à autora a antiguidade integrando nela os apontados dez dias, ficando prejudicado o demais peticionado por inutilidade superveniente da lide, com a consequente extinção da instância. Custas a cargo de autora e ré, na proporção de metade – cfr. o art. 536.º, n.º 1 e n.º 2 c), do C.P.C.-, tendo a ação o valor de € 6.649,80 (seis mil, seiscentos e quarenta e nove euros e oitenta cêntimos). Registe e notifique.”
*
Inconformada com esta decisão, dela veio a Ré interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões:
(…)
Respondeu a Recorrida/Apelada defendendo a manutenção do julgado.
Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida e efeito devolutivo, foram os autos remetidos a esta 2ª instância.
Foi determinado que se desse cumprimento ao disposto no artigo 87.º n.º 3 do C.P.T., tendo a Exma. Procuradora Geral-Adjunta emitido douto parecer no sentido da procedência da apelação, com o consequente prosseguimento dos autos.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.
II – OBJECTO DO RECURSO
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nela não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso, que aqui se não detetam, coloca-se à apreciação deste Tribunal da Relação uma única questão que consiste em apurar se a infração disciplinar imputada à autora se encontra abrangida pela Lei da Amnistia de 2023
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Factos a atender são os que constam do relatório que antecede a que acresce o seguinte:
- Por decisão final, proferida no âmbito do procedimento disciplinar instaurada à autora, datada de 04/07/2023, foram considerados como provados os factos constantes da nota de culpa, tendo sido aplicada à A. a sanção disciplinar de suspensão do trabalho, com perda de retribuição e antiguidade, pelo período de dez dias.
IV - APRECIAÇÃO DO RECURSO
Da aplicação da Lei da Amnistia às Infrações Disciplinares
Insurge-se o Recorrente quanto ao facto de o tribunal a quo ter posto termo ao processo, declarando amnistiada a sanção disciplinar aplicada à autora.
Na decisão recorrida considerou-se que a Lei da Amnistia não prevê qualquer distinção entre as infrações praticadas por trabalhadores de empresas privadas e trabalhadores ao serviço de empresas ou organismos públicos, pelo que «onde a lei não distingue não cabe ao interprete distinguir», sendo tal interpretação a única consentânea com o princípio da igualdade; o argumento de que a aplicabilidade da Lei da Amnistia representaria uma forma de ingerência na organização e gestão das empresas, que poderia extravasar os limites definidos pelo art.º 86.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa não colhe, atendendo a que, na legislação laboral, são variados os exemplos de ingerência na gestão das empresas; nos anteriores diplomas referentes a amnistias, de um modo geral, não havia margem, significativa, para tal dúvida; aceita-se que a intenção do legislador ao excluir da versão final da Lei, no art.º 2.º nº. 2, que faz expressa alusão às infrações disciplinares, a referência a “jovens”, sendo pacífico que a amnistia das infrações contraordenacionais não depende da idade, o mesmo raciocínio deve ser feito quanto às infrações disciplinares, no sentido de que o legislador, ao alterar a versão final do art.º 2º. pretendeu incluir as infrações praticadas por trabalhadores de empresas privadas.
O Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão de 2.05.2024, proc. n.º 1773/23.8T8VCT-A.G1[1], teve a oportunidade de apreciar questão similar, não se vislumbrando qualquer razão para alterar a posição ali assumida, pelo que iremos seguir de perto o que a este propósito aí se fez consignar.
Assim sendo, podemos desde já avançar, dizendo que assiste inteira razão à recorrente, pois entendemos que a Lei da Amnistia aprovada aquando da Jornada Mundial da Juventude (Lei n.º 38-A/2024, de 02.08) não se aplica às infrações disciplinares laborais praticadas por trabalhadores afetos ao sector privado, tal como tem sido defendido por este Tribunal, quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa[2].
Acresce ainda dizer já dizer que o Tribunal Constitucional no recente acórdão n.º 834/2024, de 4.12.2024, proferido no proc. n.º 21/2024, decidiu julgar inconstitucional, por violação do princípio da liberdade de iniciativa privada e da liberdade de empresa decorrente dos arts. 61º, n.º 1, 80º, n.º 1, alínea c), e 86.º da Constituição da República Portuguesa, a norma resultante das disposições conjugadas da alínea b) do n.º 2 do art. 2º e do art. 6º da Lei n.º 38-A/2023, de 2.08, segundo as quais são amnistiadas as infrações disciplinares praticadas até às 00h00 de 19.06.2023, que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela mesma lei e cuja sanção aplicável não seja superior à suspensão disciplinar, quando interpretada no sentido de abranger as infrações disciplinares laborais privadas e as sanções disciplinares laborais aplicadas por entidades de direito privado.
Como é sabido e resulta do seu artigo 1.º, a Lei da Amnistia, Lei n.º 38-A/2023 de 2.08 veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude. Foi elaborada no contexto da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, constando da respetiva Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª, apresentada na Assembleia da Republica, a sua exposição de motivos, que nos pode ajudar a perceber o seu alcance, dela constando o seguinte: “A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é um evento marcante a nível mundial, instituído pelo Papa João Paulo II, em 20 de dezembro de 1985, que congrega católicos de todo o mundo. Com enfoque na vertente cultural, na presença e na unidade entre inúmeras nações e culturas diferentes, a JMJ tem como principais protagonistas os jovens. Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento. Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina. Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação.Adicionalmente, é fixado um regime de amnistia, que compreende as contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda 1000€, exceto as que forem praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, as infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar e as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa (…).». Verifica-se, assim, que a justificação para a adopção de medidas de clemência destinadas a pessoas até aos 30 anos de idade tem a ver com a faixa etária dos destinatários centrais desse evento, ainda que outros, de diferentes idades, pudessem nelas participar.”
Daqui resulta inequívoco que a exposição de motivos no que respeita à questão das infrações disciplinares, nada adianta relativamente ao que vem a ser consignado nos artigos 2.º n.º 2 al. b) e 6.º da referida Lei.
Por outro lado, importa salientar que as Leis de Amnistia têm um carácter excecional pelo que não comportam aplicação analógica (art.11.º do Código Civil). Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.11.2023[3], “II – (..) desde há muito que a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem sustentado que, como providências de excepção, as leis de amnistia devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que nelas não venham expressas, não admitindo, por isso, interpretação extensiva, restritiva ou analógica.”
A este propósito se pronunciou também o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18.12.2023[4], ao referir que: “É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas»”
Prescreve o artigo 2.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2.08 o seguinte:
“1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º 2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as: a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5.º; b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º
Por seu turno, sob a epígrafe “Amnistia de infrações disciplinares e infrações disciplinares militares” estabelece o artigo 6.º da referida Lei que “São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.”
Das citadas disposições legais podemos concluir que nem a al. b) do n.º 2 do art.º 2.º, nem o art.º 6.º da referida Lei da Amnistia esclarecem sobre a natureza das “infracções disciplinares” contempladas pela amnistia, já que aí não se faz qualquer distinção entre as infrações praticadas por trabalhadores de empresas privadas e trabalhadores ao serviço de empresas ou organismos públicos.
Coloca-se, assim a questão de saber se nelas estarão incluídas as infrações disciplinares laborais praticadas por trabalhadores de empresas privadas, tendo presente que o texto da lei é apenas o ponto de partida da interpretação, sendo também o seu limite, já que não pode ser considerado o pensamento legislativo que não tenha o mínimo de expressão no texto da Lei.
Com efeito prescreve o art.º 9.º do Código Civil que:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
Como referem a este propósito os Professores Pires de Lima e Antunes Varela[5]“2. Resumindo, embora, sem grande rigor, o pensamento geral desta disposição, pode dizer-se que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei. Quando, porém, assim não suceda, o Código faz apelo franco, como não poderia deixar de ser, a critérios de carácter objectivo, como são os que constam do n.º 3.”.
Podemos afirmar que a interpretação da lei tendo em atenção o tempo em que a lei é aplicada será alcançada com recurso aos elementos teleológico, sistemático e histórico numa vertente atualista.
Do elemento histórico podemos dizer que as diversas Leis de Amnistia nunca abrangeram as infrações disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados a empregadores privados, designadamente porque tal poderia constituir uma ofensa ao principio constitucional de liberdade de iniciativa económica privada – cfr. art.º 82º, n.ºs 1, 3, da CRP ou poderia contender com a garantia constitucional da autonomia privada (individual e colectiva) inerente ao Estado de Direito - cfr. arts. 61º, n.º 1, 80º, al. c), 86, n.º 2, da CRP
Como se refere no citado Acórdão deste Tribunal de 02.05.2024 a este propósito: “(…)a análise da história evolutiva do instituto, à luz das últimas leis de amnistia, leva à constatação de que em Portugal nunca foram amnistiadas infracções disciplinares no âmbito de relações laborais de trabalhadores vinculados a entidades privadas. O que nos faz distanciar da decisão recorrida quando argumenta que o legislador expressou quando quis (ou não) afastar a aplicação da amnistia às infracções disciplinares laborais, para daí concluir que, no caso, nada tendo dito, quis abarcar as infracções laborais. Julgamos que esta não é a análise correcta da sucessão das leis de amnistia. Dela resulta, ao invés, que até agora as infracçoes disciplinares cometidas no âmbito de relações jurídicas laborais sujeitas ao direito laboral comum, em que as empregadoras são entidades privadas, nunca foram abrangidas pelas leis de amnistia. O que nos leva a crer que se o legislador tivesse querido inovar, tê-lo-ia dito. O que não aconteceu, nem tal resulta da história recente, mormente dos trabalhos preparatórios e da referida exposição de motivos. (…) Da leitura destes diplomas decorre a atribuição de amnistias no foro do direito disciplinar dos funcionários públicos civis, do sector empresarial do Estado, de empresas de capitais públicos, no direito disciplinar militar, direito disciplinar de profissionais liberais relativamente às Ordens Profissionais (associações públicas), infracções desportivas, infracções praticadas por jornalistas nos órgãos de comunicação social pertencentes a entidades públicas ou delas dependentes quando tivessem decorrido da "legítima expressão da liberdade individual ou colectiva dos respectivos trabalhadores, bem como da livre afirmação das suas opções políticas e ideológicas". E não do foro do direito disciplinar comum praticados em empresas privadas. É certo que a CRP não limita ao legislador a possibilidade de amnistiar infracções disciplinares cometidas por trabalhadores vinculados a privados (161º, f). Em tese geral, não será pelo facto de o Estado não ser o empregador e não deter o poder disciplinar que, do ponto de vista da competência, se verá impedido de amnistiar tais condutas. Não há uma paridade de competências entre o poder disciplinar e o poder de amnistiar. Contudo, essa não tem sido a nossa prática.”
Sobre as dúvidas suscitadas relativamente à aplicação da lei às sanções disciplinares laborais privados também a doutrina se pronunciou expressamente no sentido da sua não aplicação, designadamente António Monteiro Fernandes e João Vilaça[6] ao referirem o seguinte: «… é estabelecida uma amnistia, a qual cobre as infrações penais cuja pena não ultrapasse 1 ano ou 120 dias de multa, e “as infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até àquela data, que não se revelem, em simultâneo, como ilícitos penais, e desde que não superiores a suspensão ou prisão disciplinar” – ou seja, infrações disciplinares punidas com sanções conservatórias. Quanto a este último ponto, todavia, a Lei n.º 38-A/2023 parece deixar em aberto o significado a atribuir à expressão “infrações disciplinares”. O restante texto não oferece nenhuma indicação a esse propósito. Fica, aparentemente, de pé a questão de saber se essa expressão também abrangerá as sanções disciplinares laborais, aplicadas pelos empregadores privados, no exercício do seu poder disciplinar. Em termos de consequências práticas, importará saber se as infrações que, no quadro das relações de trabalho privadas, tenham sido punidas com sanções conservatórias (a repreensão, a sanção pecuniária, a perda de dias de férias e a suspensão do trabalho sem retribuição) devem considerar-se cobertas pela amnistia estabelecida, impondo-se o seu apagamento dos respetivos registos disciplinares e a eventual devolução de valores salariais retidos. Em geral, os anteriores diplomas referentes a amnistias não deixavam espaço significativo para tal dúvida. Tomando como exemplos os que assinalaram as visitas a Portugal do Papa João Paulo II, encontramos dois enunciados diferentes, mas que respondiam no mesmo sentido à questão posta. A Lei n.º 23/91, de 4 de julho estendia a amnistia às infrações disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, excetuando aquelas que, em simultâneo, constituíssem ilícito penal não amnistiado pela referida lei e tivessem sido punidas com despedimento. Por seu lado, a Lei n.º 29/99, de 12 de maio, excluía liminarmente do âmbito da amnistia os “ilícitos laborais”, e incluía ao mesmo tempo nesse âmbito as “infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares”, sob as mesmas condições definidas pela lei anteriormente citada. Era assim claro que, pelo menos, as infrações disciplinares praticadas por trabalhadores de empresas com as quais tivessem relações reguladas pela legislação laboral geral estariam excluídas do âmbito da amnistia. A infeliz opção do legislador atual foi a de reproduzir uma parte da solução acolhida pela Lei n.º 29/99 (a inclusão na amnistia das infrações disciplinares e dos ilícitos disciplinares militares) omitindo a fórmula através da qual esse diploma afastava liminarmente da amnistia os “ilícitos laborais”. Uma interpretação literal do art. 6º da Lei n.º 38-A/2023 conduzirá, assim, à inserção de toda e qualquer infração disciplinar não extintiva no âmbito coberto pela amnistia. Mas será, a nosso ver, uma interpretação errónea. O ato de clemência que se corporizou na Lei 38-A/2023 representa uma renúncia parcial e momentânea do Estado ao seu poder de punir (ius puniendi), reduzindo ou anulando penas aplicadas por crimes, coimas correspondentes a contraordenações e sanções fundadas em infrações disciplinares praticadas no âmbito de funções públicas, incluindo o sector militar. O Estado dispôs assim de faculdades sancionatórias que lhe pertencem, com o propósito de assinalar o acontecimento relevante que foi a Jornada Mundial de Juventude, com a presença do Papa. Fora desse domínio se situa a disciplina laboral, conjunto de dispositivos de natureza normativa e sancionatória que se encontram na titularidade de quem gere empresas, como condição de viabilidade do funcionamento e da coesão interna destas. Em relação ao exercício do poder disciplinar, o legislador cria, normativamente, condições de controlo dos excessos e abusos a que ele pode conduzir, como poder funcionalizado ao interesse de uma das partes no contrato de trabalho. Mas não pode ir além disso. Não pode, nomeadamente, agir como se lhe pertencesse esse poder, renunciando totalmente ou parcialmente ao seu exercício – e privando da sua titularidade plena os empregadores. A neutralização de decisões disciplinares nas empresas – para além dos casos em que a sua ilicitude seja declarada pelos tribunais – teria consequências conflituantes com a liberdade de organização e gestão das empresas, consagrada nos arts. 61º e 80º-c) da Constituição, e representaria uma forma de ingerência manifestamente não comportável nos limites definidos pelo art. 86º/2 da Lei Fundamental. Esvaziar juízos disciplinares legitimamente realizados sobre comportamentos dos trabalhadores constitui um facto de enorme perturbação na ordem e na coesão interna das empresas, sem apoio no ordenamento constitucional. Assim, pode bem interpretar-se o art. 6º da Lei 38-A/2023, nomeadamente no tocante à omissão do segmento que, na Lei 29/99, expressamente excluía os “ilícitos laborais”, como a expressão do reconhecimento das evidências que se acaba de apontar e, por conseguinte, em sentido restritivo, deixando à margem da amnistia decretada as infrações praticadas por trabalhadores ao serviço de empresas com as quais tenham relações reguladas pela lei geral do trabalho.» (sublinhado nosso).
Do exposto podemos concluir que, a interpretação de que o artigo 2.º n.º 2 al. b) da Lei da Amnistia quando refere “infracções disciplinares” exclui os ilícitos de natureza laboral praticados por trabalhadores vinculados a empregadores privados. Para além, da lei da amnistia não conter qualquer detalhe explicativo o qual possa justificar a abrangência às infrações laborais do foro privado, alterando a tradição jurídica de as excluir. Por outro lado, só esta interpretação da lei evita quer o esvaziamento do poder disciplinar do empregador, como a intromissão do Estado na gestão das empresas privadas, em respeito ao direito à livre iniciativa, à liberdade de iniciativa e de organização empresarial, tudo isto em conformidade com o prescrito nos artigos 61.º n.º 1, 80.º al. c) e 82.º n.º 2 da CRP.
Ora, não estando amnistiada a infração disciplinar, impõe-se julgar procedente o recurso, ficando assim prejudicado o conhecimento da questão de saber se a idade da Autora constituía um obstáculo à aplicação daquela Lei da Amnistia. Consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir para apreciação de todos os pedidos.
V – DECISÃO
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 87.º do C.P.T. e 663.º do C.P.C., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães em dar provimento ao recurso de apelação interposto por SANTA CASA DA MISERICÓRDIA ..., revogar a decisão recorrida e determinar o normal prosseguimento dos autos para apreciação dos pedidos.
Custas a cargo da Recorrida – cfr. artigo 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC.
Notifique.
Guimarães, 6 de Fevereiro de 2025
Vera Sottomayor (relatora)
Francisco Sousa Pereira
Maria Leonor Barroso
[1] Relatora Leonor Barroso, participei como 2.ª adjunta, consultável em www.dgsi.pt. [2] Ac. 24.01.2024. Proc. n.º 778/23.3T8PDL-A.L1-4, disponível em www.dgsi.pt [3] Proc. 24/21.4PEPRT-B.P1, consultável em www.dgsi.pt, [4] Proc. 401/12.1TAFAR-E.E1, consultável em www.dgsi.pt [5] Código Civil Anotado, Volume I, 3.ª Edição Revista e Actualizada, pág. 58 [6] Estarão as infrações laborais cobertas pela amnistia?, disponível em https://rhmagazine.pt/atualidade-laboral-estarao-as-infracoes-laborais-cobertas-pela-amnistia/