MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
PROCEDIMENTO CRIMINAL
NOTIFICAÇÃO
NULIDADE
INCAPACIDADE PROCESSUAL
INIMPUTABILIDADE
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
PRINCÍPIO DA DUPLA INCRIMINAÇÃO
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DA ENTREGA
IMPROCEDÊNCIA
Sumário

I – O recorrente foi apresentado e ouvido na Relação, através da diligência de “audição do detido” prevista no artigo 18.º da LMDE, foi-lhe nomeado intérprete e teve a assistência da sua atual defensora, tendo declarado não consentir na sua entrega e não renunciar à regra da especialidade, nada constando no auto de audição que evidencie que a Ex.ma Juíza Desembargadora que ao mesmo presidiu, ou qualquer dos presentes, incluindo a ilustre defensora, detetaram qualquer dificuldade por parte do ora recorrente em compreender o significado do ato e nele efetivamente participar como sujeito processual.

II – O recorrente foi notificado pessoalmente do acórdão recorrido, na sua tradução para a língua árabe, certificando-se que o mesmo “ficou ciente de todo o conteúdo do presente documento”, ali constando, efetivamente, a sua rubrica/assinatura na qualidade de notificado.

III - Não se evidencia a existência de uma incapacidade processual do recorrente, no âmbito do processo de mandado de detenção europeu, onde foi ouvido presencialmente, assistido por defensora e intérprete, sendo certo que a autoridade judiciária de emissão não deixará de avaliar a questão dessa eventual incapacidade já no âmbito do processo de investigação nela em curso, e bem assim a questão da imputabilidade / inimputabilidade reportada aos factos imputados.

IV - Tendo em vista a lista de infrações que determinam a entrega sem controlo da dupla incriminação, cabe à autoridade judiciária de execução verificar se alguma das infrações indicadas pela autoridade judiciária de emissão integra uma das 32 categorias de infrações enumeradas no artigo 2.º, n.º 2, da Decisão-Quadro relativa ao MDE (Decisão Quadro do Conselho da União Europeia n.º 2002/584/JAI, de 13.06.2002). Para esse efeito, apenas é relevante a definição de infração e de pena máxima em vigor no direito do Estado membro de emissão.

V - A LMDE apenas prevê, no artigo 12.º, n.º1, alínea e), como motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu, o decurso dos prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu, o que teria como pressuposto a verificação dos requisitos do artigo 5.º do Código Penal, o que, manifestamente, não é o caso.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

1. Por acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16.12.2024, proferido nos autos para execução de mandado de detenção europeu [MDE], emitido contra AA, de nacionalidade ..., nascido em ...-...-1988, sem residência conhecida em Portugal, com vista à sua detenção e entrega às autoridades judiciárias da Alemanha (Tribunal de ... pr. 23 Gs 51/17 - 7 Js .02/16) para efeitos de procedimento criminal pela prática de factos, em 29-12-2015, consubstanciadores de um crime de fogo posto agravado, previsto na secção 306a do StGB (Código Penal alemão), punível com pena até 15 anos de prisão, foi decidido:

«Nos termos expostos, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação de Évora em deferir a requerida entrega de AA às autoridades da Alemanha.

Notifique-se e comunique-se nos moldes habituais, tomando-se em conta, além do mais, o último parágrafo da fundamentação.

(…).»

No referido último parágrafo da fundamentação diz-se:

«Cumpre, por conseguinte, deferir a execução do MDE aqui em causa, havendo somente que alertar as autoridades alemãs para a particular situação de doença do requerido e solicitar à equipa médica do Hospital Prisional ... que o acompanha que providencie para que a entrega e a viagem para a Alemanha decorram com a máxima segurança para todos os intervenientes.»

2. Do acórdão da Relação recorre para este Supremo Tribunal de Justiça o referido AA, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1. De acordo com o relatório clínico que já foi junto aos autos em 20.12.24 e que volta a juntar, o Requerido não tem capacidade de racionalizar, ter ressonância ao que lhe é transmitido, sendo caraterístico da condição clínica.

2. Não está assim capaz de entender as notificações que lhe são dirigidas.

3. Pelo que, ao lhe terem sido entregues uns papéis cujo teor estava incapaz de compreender, e que consubstanciavam a sua entrega, foram violados os art. 13.º da CRP e 111.º, n.º 1 do CPP.

4. Não se tendo o TRE pronunciado sobre a questão da incapacidade do Requerido para compreender o teor da decisão, nem sobre o relatório clínico, verifica-se, relativamente ao despacho de 23.12.24 nulidade que resultou da falta de pronúncia sobre as aludidas questões, padecendo, pois, o despacho proferido do vício de omissão de pronúncia, que consta da alínea c) do n.º 1 do art.º 379 do CPP.

5. Aliás o Requerido está incapaz de colaborar com a sua defensora, fornecendo-lhe elementos essenciais à sua defesa.

6. Deverão assim os autos baixar ao Tribunal da Relação de Évora para que se pronuncie sobre esta questão e proceda à correta notificação do requerido.

7. Se, nos termos do n.º 1 do art. 122º do CPP “As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar”, deverão ser declarados nulos todos os atos posteriores a 20 de dezembro de 2024”.

8. Padece, pois o acórdão posto em crise, evidentemente e à saciedade dos vícios constantes do nº 2 do art. 410º do CPP, aplicável por remissão de:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

9. Como se conclui o acórdão recorrido, considera não haver perigo na entrega para a vida e para a saúde do Requerido, sem qualquer base científica, tirando conclusões médicas infundadas, decidindo contra perícias dos autos, sem fundamentar e, considerando afinal haver perigo na entrega, por razões do foro psiquiátrico do Requerido, recomendando acompanhamento, decidindo, pois, com grave contradição.

10. Está o acórdão recorrido ferido do vício de falta de fundamentação, violando o disposto nos art. 97º, nº 5 e 374º, nº 2 do CPP.

11. Mal andou o Venerando TRE ao considerar que o pedido de suspensão do MDE não seria admissível. A verdade é que a requerida suspensão fundamentou-se em razões humanitárias e de doença grave do requerido (tal como previsto no art.º 29 n.º 4 e não no n.º 3 como é referido no Acórdão, da L. 65/2003 de 23 /8), as quais foram devidamente alegadas, embora sem essa referência legal, sendo comprovadas com a informação clínica prestada pela médica psiquiátrica do Hospital... que atestou que o requerido se encontrava em situação de descompensação aguda, com psicopatologia grave que impedia a sua alta.

12.A referida informação clínica foi junta aos autos, contudo os Venerandos Desembargadores omitiram a sua pronúncia quanto ao referido documento, tendo violado pois, como acima se disse, o disposto nos art. 97º, nº 5 e 374º, nº 2 do CPP.

13.Entenderam ainda os Venerandos Desembargadores, suportados na alegação da PGA, que “não é a entrega do requerido às autoridades alemãs que farão perigar a sua vida ou a sua saúde, pois a mesma já se encontra em perigo por ausência de tratamento e acompanhamento, muito provavelmente, desde há largos anos da sua vida”, acrescentando que a jurisprudência defende que não basta a existência de doença, mas antes a comprovação do perigo para a vida ou para a saúde.

14. E agora questiona-se mais uma vez, como poderá ser feita essa comprovação sem uma perícia médica?

15.E como pode ser alegado, sem suporte pericial, que não é a entrega às autoridades alemãs que farão perigar a sua vida ou a sua saúde?

16.Entenderam ainda os Venerandos Desembargadores, suportados na alegação do MP, que “não é a entrega do requerido às autoridades alemãs que farão perigar a sua vida ou a sua saúde, pois a mesma já se encontra em perigo por ausência de tratamento e acompanhamento, muito provavelmente, desde há largos anos da sua vida”, acrescentando que a jurisprudência defende que não basta a existência de doença, mas antes a comprovação do perigo para a vida ou para a saúde.

17.E agora questiona-se mais uma vez, como poderá ser feita essa comprovação sem uma perícia médica?

18.E como pode ser alegado, sem suporte pericial, que não é a entrega às autoridades alemãs que farão perigar a sua vida ou a sua saúde?

19.Não se compreende qual é a base que fundamenta esta análise clínica feita pelo douto Tribunal, para além do parecer do MP que também não dispõe de elementos clínicos. São meras apreciações generalizadas por profissionais do direito e não de medicina.

20.Existe contradição insanável do douto Tribunal no acórdão recorrido pois decide executar o MDE alertando para a particular situação de doença do requerido e solicita à equipa médica que o acompanha no Hospital... que garanta que a viagem decorra com a máxima segurança para todos os intervenientes, quando na verdade ignorou a informação médica já prestada em sede de oposição na qual a mesma equipa médica já considerou a existência de psicopatologia grave que impede a sua alta o que naturalmente impedirá qualquer garantia que a viagem decorra em segurança para todos os intervenientes.

21.Existe, pois, e como acima se escreveu não só contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, ou seja, a fundamentação apresentada no Douto Acórdão leva a uma decisão contrária àquela que foi tomada, como também falta de fundamentação da decisão recorrida que foi tomada contra os elementos que fluem dos autos.

22.Num processo de execução de Mandado de Detenção Europeu, a base é sem dúvida o princípio da confiança, mas os tribunais superiores do nosso país não se podem transformar em meros transmissários dos tribunais estrangeiros, despojando-se das suas competências e da análise da situação.

23.Os factos que suportam o MDE foram configurados como integradores do crime de fogo posto agravado, punível com 15 anos de prisão na secção 306ª do Código Penal Alemão.

24.Ora, com o devido respeito, considerando os factos descritos, da aludida secção apenas se poderia extrair uma pena de seis meses a cinco anos de prisão, atenta a sua diminuta gravidade – fogo a um colchão.

25.No nosso país, é requisito do crime de incêndio p. e p. no art. 272º do código penal que o agente venha a “criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.”

26.Ora, se não consta da descrição da conduta do Requerido qualquer perigo para bens jurídicos pessoais, não se pode de todo considerar que “fuligem que se depositou nas paredes” constitua um bem patrimonial de valor elevado.

27.Quando muito, o que não concedemos, os factos praticados pelo Extraditando poderiam constituir um crime de dano, p. e punível no artigo 212º da nossa legislação penal com pena de multa ou de prisão até 3 anos.

28.Não olvidamos a qualificativa agravante da alínea c) do nº 1 do art. 213º do código penal que agrava o limite máximo da pena de prisão do crime de dano se este incidir sobre coisa ou animal destinados ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos.

29.Mas, in casu, por força do nº 3 do art. 213º do código penal aplica-se o nº 4 do art. 204º do CP nos termos do qual “não há lugar à qualificação se a coisa ou o animal furtado forem de diminuto valor.”

30.Diminuto valor é o que não excede uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto (art. 202º, al c) do CP).

31.Ou seja, não existindo claramente crime de incêndio, poder-se-ia configurar no nosso ordenamento jurídico a prática pelo Extraditando de um crime de dano simples, não nos sendo indicados quaisquer elementos, designadamente quanto ao valor dos danos, que nos permitam qualificar os factos.

32.Sendo que o valor de um colchão de uma prisão e de fuligem nas paredes, dificilmente ultrapassam uma unidade de conta.

33.Aqui chegados há que tecer duas conclusões, a primeira é que os factos pelos quais é pedida a extradição não estão incluídos na lista de infrações constantes do ponto 247º do formulário do MDE, com correspondência na alínea ff) do nº 2 do art. 2º, da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto, cuja existência dispensa a verificação de dupla incriminação.

34.Os factos pelos quais é pedida a entrega do Requerido não podem, pois, ser atualmente punidos pela Lei portuguesa.

35.A segunda é que o eventual crime estaria prescrito.

36.Os factos ocorreram em 29.12.2015, ou seja, há 9 anos.

37.O eventual crime de dano seria punível com pena máxima de três anos de prisão.

38.Dispõe a alínea c) do nº 1 do art. 118º que o procedimento penal se extingue por prescrição decorridos cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos.

39.Ou seja, o procedimento criminal relativo aos factos pelos quais é pedida a extradição está extinto desde 29.12.2020.

40.Tal é motivo de recusa da execução do presente mandado nos termos da alínea e) do nº 1 do art. 12º da Lei 65/2003.

41.Mais, só se compreende que os atos imputados ao arguido tenham sido qualificados num ilícito penal tão grave para possibilitar a sua extradição.

42.O requerido padece de perturbação psiquiátrica profunda, sendo que hoje, e à data dos factos, estava incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

43.O que, nos termos do art. 20º do código penal exclui o dolo, a consequente punição e, naturalmente o cumprimento do mandado que ora é posto em causa.

44.Deverá assim ser revogado o Acórdão recorrido e recusada a execução do presente mandado uma vez que:

45.Os factos imputados ao extraditando não constituem crime em Portugal;

46.Assim não se entendendo, constituem crime de dano, relativamente ao qual o procedimento criminal está prescrito.

47.De qualquer forma, o extraditando é inimputável não podendo, pois, ser incriminado por não ser punível no nosso país.

48.Deverá, pois, o processo baixar ao TRE a fim de que se providencie pela notificação e pela avaliação psiquiátrica do Requerido.

49.Assim não se entendendo por o acórdão recorrido padecer dos vícios e contrariedades à Lei invocados, deverá o mesmo ser revogado e substituído por outro que negue a entrega do Requerido às autoridades Alemãs.

50.Ainda assim, se tal também não for entendido, que se suspenda a entrega por motivos humanitários graves e de saúde por existirem motivos sérios para considerar que a entrega colocaria manifestamente em perigo a vida ou a saúde do requerido. Enviar para o estrangeiro um indivíduo que não compreende o que lhe está a acontecer, por estar diminuído, estando com surtos psicóticos, ofende gravemente os seus direitos fundamentais.

3. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

1. A notificação do Acórdão proferido em sede de Mandado de Detenção Europeu foi efectuada ao requerido, tal como se alcança do documento remetido a este Tribunal a quo pelo Hospital Prisional ..., através do qual se certifica que «No dia 03/01/2025 notifiquei o recluso abaixo assinado, que ficou ciente de todo o conteúdo do presente documento, do qual recebeu cópia, referente ao processo 3451/24.1YRLSB.E1 e vai comigo assinar», ali constando, efectivamente, a sua rubrica/assinatura na qualidade de notificado.

2. O Tribunal não possui qualquer informação médica que ateste que o “notificado” não compreendeu, nem tem capacidade para compreender o que lhe fora comunicado, mormente no relatório médico mais recente e junto pela Ilustre Defensora, bem como no anterior datado de 3 de Dezembro de 2024, pese embora dos mesmos resulte que se encontra em situação de descompensação psicopatológica aguda, que não se desvaloriza.

3. Em sentido que inclusivamente poderá ser interpretado como inverso ao que se aventou, atesta o relatório médico de 19 de Dezembro de 2024 que o mesmo é elaborado com o conhecimento e consentimento do doente, dando azo a que, como se disse, se permita antever destas expressões que o requerido consegue conhecer o que lhe foi explicado ou perguntado.

4. Não estão reunidos, no caso concreto, os requisitos para considerar que o requerido não foi notificado, porquanto existe uma notificação formalmente executada e assinada e não possuímos um atestado médico que diga que o mesmo não compreende o que recebeu a título de notificação.

5. Não padece de nulidade processual, porquanto estas estão taxativamente previstas no Código de Processo Penal – artigos 118.º a 120.º - não se inserindo esta situação dos autos em qualquer um dos casos dos dispositivos legais referidos.

6. De acordo com a jurisprudência, a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão ocorre quando «através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova indicados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão»6, ou seja, quando feito um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

7. Da argumentação do Acórdão recorrido, ao contrário do que vem invocado, não se extrai qualquer disparidade face ao que se determina a final, sendo apenas duas realidades complementares e necessárias.

8. No caso em particular, demonstrou o Sr. Juiz Desembargador que o quadro apresentado não preenche os requisitos legais exigidos pelo artigo 29.º, n.º 4 da Lei n.º 65/2003, que proporcionam ou permitem a suspensão temporária da entrega do requerido porque:

- não há entrega determinada que cumpra suspender;

- não se alegou, nem provou, que a entrega coloca a vida ou a saúde da pessoa em perigo.

Sendo que, ainda que sem prejuízo disso, as autoridades alemãs deverão ter conhecimento da situação actual do requerido e, a entidade hospitalar onde se encontra, deverá garantir a viagem e entrega em segurança.

9. Na verdade, tal como alude o Acórdão, para que se suspenda a entrega nos termos do n.º 4 do artigo 29.º da Lei n.º 65/2003, pressupõe-se, de antemão, que a mesma já esteja determinada, sendo que para o efeito, importaria tomar em consideração os motivos de não execução obrigatória e facultativa do MDE previstos legalmente, que, no caso presente, não foram invocados, nem comprovados, por inexistirem.

10. Determinada a entrega, como veio a concluir o Acórdão, estariam reunidos os pressupostos para ponderar sobre a sua eventual suspensão temporária nos termos do n.º 4 deste artigo 29.º.

11. As condições em que a lei aceita esta suspensão temporária evocam situações particularmente graves, mas que estão inevitavelmente interligadas com o factor “entrega”, não havendo espaço, nem cabimento nesta norma, para as situações em que, temporariamente ou por forma crónica, o requerido esteja em situação grave de saúde (pré-existente).

12. A norma é clara neste aspecto: os motivos têm de servir para concluir que a entrega coloca manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa procurada. Isto quer dizer que, através de relatórios médicos ou por constatação social/situação política ou outra forma, tem de demonstrar-se que é a entrega em si mesma que irá colocar em perigo a vida ou a saúde da pessoa - imagine-se entrega de pessoa politicamente/socialmente visada, sobre a qual foram emanadas ameaças de morte sérias; fobias graves desencadeadas com viagens de avião ou carro ou comboio; inexistência de cuidados médicos adequados no país de destino que poria em causa a sobrevivência de paciente – são casos que consideramos poder enquadrar-se no perfil do artigo, sem prejuízo de outros haver que na experiência rica da vida se suscitem.

13. Sendo que se assim não fosse, a norma poderia simplesmente expressar que a entrega era suspensa por motivos humanitários graves, nomeadamente, por existir perigo para a vida ou para a saúde da pessoa, não sendo, contudo, este o racional da norma, que exige que essa entrega coloque manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa.

14. Desta forma tem sido lido este preceito pela jurisprudência, quer no Acórdão citado na decisão, quer no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.04.2013, onde se redigiu: «Em função disso, o juiz da Relação suspendeu temporariamente a entrega do detido, considerando estar verificada a situação prevista no n.º 4 do mesmo art. 29.º. Mas não era o caso.VI. A entender-se que a norma tem em vista situações como a presente, o que, de acordo com os dados do processo (informação clínica), poderia colocar em perigo a saúde do detido era o transporte por avião. Não a entrega em si mesma, que podia realizar-se com recurso a outro meio de transporte. O uso de meios de transporte alternativos era possível, ainda que fosse «pouco prático», por implicar «um processo burocrático e demorado». E não se mostra que, se tivesse sido essa a opção logo que se teve conhecimento do facto que impedia o transporte por via aérea (15-03-2013), a entrega não pudesse já ter ocorrido, designadamente até ao dia 27-03-2012.».

15. Em todo o caso, mesmo que a situação não preencha a previsão do artigo 29.º, n.º 4 da Lei do Mandado de Detenção Europeu, é manifesto que a entrega não poderá ocorrer se a entidade hospitalar que vem acompanhando o requerido vier atestar que é impossível garantir a entrega, ainda que ocorra entre os meios hospitalares portugueses e meios hospitalares alemães, com segurança para o próprio e os demais, o que ainda não foi feito, nem alegado e será necessário, na nossa opinião, questionar junto da entidade.

16. Pelo que, mesmo não existindo qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão final, afigura-se-nos evidente que a entrega só poderá ocorrer quando houver segurança para desencadear o transporte, ainda que entre dois meios hospitalares, o que inexistindo, poderá enquadrar-se no disposto no artigo 29.º, n.º 3 da Lei do Mandado de Detenção Europeu.

17. Na fundamentação do Acórdão de que se recorreu, não existe menção expressa à consideração clínica sobre o requerido, mas é evidente ter sido tomada em conta quando se constata que o requerido já padece de doença psiquiátrica, pelo menos desde o tempo de reclusão na Alemanha em 2015 – portanto, desde há largos anos da sua vida - e quando se faz uma final advertência/alerta sobre a necessidade de dar conhecimento às autoridades alemãs sobre o seu estado presente e ao pedir que a entrega seja feita em segurança.

18. A subsunção jurídica dos factos foi efectuada pelas autoridades judiciárias alemãs, que concluíram pela eventual prática, por parte do arguido, do que consideram tratar-se de um crime de incêndio agravado, sob a previsão do artigo 306a do Código Penal Alemão.

19. O referido ilícito prevê a punição de indivíduo que incendiar ou destruir, no todo ou em parte, através de fogo posto (1.) um edifício, navio, cabana ou outro local que sirva para alojar pessoas (2.) uma igreja ou outro edifício que sirva para a prática de uma religião (3.) instalações que sirvam para o alojamento temporário de pessoas, numa altura em que habitualmente se encontrem pessoas nessas instalações.

20. A descrição dos factos é compatível com esta subsunção na medida em que AA colocou fogo num colchão e em consequência disso destruiu local que serve para alojar pessoas, neste caso, a cela de um estabelecimento prisional.

21. Mesmo que assim não fosse ou não se entendesse, a cláusula aberta do n.º 3 do artigo 2.º do Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu permite que haja entrega da pessoa reclamada se os factos que justificam a emissão do mandado de detenção europeu constituírem infracção punível pela lei portuguesa.

22. No que concerne à problemática levantada pela Defesa sobre a prescrição, associada à conclusão de que apenas estamos perante um crime de dano, cuja prescrição, a esta data, já teria ocorrido, damos conta da inteira razão que assiste ao Acórdão a quo – na realidade a prescrição apenas é motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu, nos termos do artigo 12.º, n.º 1, e) da Lei n.º 65/2003, «desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu».

23. Tal redundaria na verificação sobre o preenchimento dos requisitos do artigo 5.º do Código Penal o que, compulsado através de simples leitura, se constata não estar preenchido no caso concreto.

4. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e, no exame preliminar, foi determinado que os autos fossem aos vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, constituindo entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a apreciar e decidir no presente recurso são:

- da questão prévia relativa à notificação do recorrente e alegada omissão de pronúncia do despacho de 23.12.2024;

- da nulidade por omissão de pronúncia pelo facto do acórdão recorrido alegadamente não se ter debruçado sobre a incapacidade do requerido para compreender o seu conteúdo;

- dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do CPP, designadamente do alegado vício de contradição entre a fundamentação e a decisão, pelo facto de o acórdão recorrido não suspender a entrega do requerido, mas determinar acompanhamento durante a viagem por questões de segurança;

- do alegado vício de falta de fundamentação, por omissão de ponderação sobre a informação clínica presente nos autos sobre o requerido;

- a ausência de dupla incriminação e a prescrição do procedimento criminal.

2. Dos factos

2.1. Extrai-se do acórdão recorrido a seguinte matéria de facto (transcrição):

1- As Autoridades Judiciárias Alemãs emitiram um MDE, contra o aqui requerido AA, de nacionalidade ..., nascido em ...-...-1988, com vista à sua detenção e entrega às mesmas autoridades para procedimento criminal relativamente a factos praticados pelo mesmo, em 29-12-2015, consubstanciadores de um crime de fogo posto agravado, previsto na secção 306a do StGB (Código Penal alemão), punível com pena até 15 anos de prisão, cujos contornos fácticos se encontram descritos a fls. 179 do processo (4 do MDE):

“Em 29-12-2015 o arguido utilizou um isqueiro para incendiar o colchão da sala de detenção que lhe foi atribuída na prisão de ..., provocando uma quantidade considerável de fumo. Devido à fuligem nas paredes, foram necessários trabalhos de renovação consideráveis, o que inicialmente impediu a utilização da sala de detenção”.

2- O requerido foi inicialmente detido no aeroporto de ... a 10-11-2024 (pelas 13H59), tendo fugido ao sair do carro que o transportava na altura em que ia ser presente no Tribunal da Relação de Lisboa na manhã do dia 12-11-2024 (cerca das 10H30).

Veio a ser detido de novo no Algarve (...) na manhã do dia 13-11-2024 (10H30), sendo presente neste Tribunal da Relação de Évora, para audição judicial, no dia 14-11-2024, nos termos do artigo 18.º, da Lei 65/2003, de 23-8 (cfr. auto de fls. 112 a 114).

Após audição do mesmo, foi determinado que aguardasse os ulteriores termos processuais sujeito a TIR já prestado e à medida de detenção, no âmbito do MDE, até entrega.

3- Durante esta diligência o requerido declarou opor-se à entrega e não renunciar aos benefícios das regras resultantes da aplicação do princípio da especialidade.

4- Os factos em causa no MDE reportam-se a infracção prevista no art. 2º, nº2, al. ff) da Lei 65/2003, de 23-8, não se encontrando extinto o respectivo procedimento criminal.

5- O requerido encontra-se actualmente detido na ala psiquiátrica do Hospital Prisional de ..., apresentando um quadro clínico de doença mental ainda em análise, em situação de descompensação aguda, com psicopatologia grave que impedia a alta à data de 3-12-2024 (doc. de fls. 228).

6- O requerido, juntamente com BB, celebrou um contrato de alojamento local relativamente ao edifício nº16, 1º andar de imóvel situado no sítio da ..., ..., ..., para sua habitação temporária, pelo período de 15-9-2023 a 15-9-2024, pagando mensalmente 525,00 € (doc. de fls. 202 a 205).

7- Tem um contrato de trabalho temporário com uma empresa de construção civil no ... auferindo 820,00 € e tem a respectiva situação fiscal e contributiva regularizada (docs. de fls. 206 a 209).

3. Apreciando

3.1. Em termos prévios, anota-se que o recurso foi admitido na Relação com a menção de ser “muito duvidoso que o mesmo esteja em tempo, face à jurisprudência do Ac. STJ de 18-1-2024 (pr. 320/23.6 YRPRT.S1)”.

Tal dúvida, porém, não se verifica, porquanto o mencionado acórdão deste STJ refere-se à notificação de acórdãos dos tribunais superiores proferidos em sede de recurso, o que não é o caso do acórdão recorrido.

3.2. Enquadramento geral

O MDE constitui a primeira concretização no domínio penal do princípio do reconhecimento mútuo, no âmbito do espaço de segurança e justiça (cf. Anabela Miranda Rodrigues, “O mandado de detenção europeu – Na via da construção de um sistema penal europeu: um passo ou um salto?”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 13, n.º 1, Janeiro-Março, 2003, pp. 27 ss.; Ricardo Jorge Bragança de Matos, “O princípio do reconhecimento mútuo e o mandado de detenção europeu”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 14, n.º 3, Julho-Setembro, 2004, pp. 325 ss.).

A evolução das formas de cooperação penal, no âmbito europeu, deu origem a diversos instrumentos que, além do mais, visaram modernizar os procedimentos em matéria extradicional. Porém, foi sobretudo com o Tratado de Amesterdão que a cooperação judiciária em matéria penal ganhou uma nova perspetiva, como forma de realização de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça.

O aprofundamento desta dimensão, inspirada na noção de “espaço europeu” e orientada no sentido da construção de um espaço judiciário comum, foi impulsionado pelo Conselho Europeu de Tampere, de 15 e 16 de Outubro de 1999, que afirmou, nas suas conclusões, o princípio do reconhecimento mútuo como “pedra angular” da cooperação judiciária em matéria penal, preconizando a abolição do processo formal de extradição no que diz respeito às pessoas julgadas à revelia, cuja sentença já tivesse transitado em julgado, bem como a aceleração dos processos de extradição relativos às pessoas suspeitas de terem praticado uma infração (ponto 35 das conclusões).

A Decisão-Quadro do Conselho, de 13 de Junho de 2002 (2002/584/JAI), relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, constitui, precisamente, uma concretização – a primeira - no domínio penal do referido princípio do reconhecimento mútuo, que visa superar a conceção tradicional do auxílio judiciário entre Estados.

O “considerando” 5 da Decisão-Quadro esclarece, nos seguintes termos, a finalidade que o novo instrumento pretende realizar:

«O objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias, sendo que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos atuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleceram entre Estados-Membros devem dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.»

Por seu turno, diz-se no “considerando” 10:

«O mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros. A execução desse mecanismo só poderá ser suspensa no caso de violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos princípios enunciados no n.º 1 do artigo 6.º do Tratado da União Europeia, verificada pelo Conselho nos termos do n.º 1 do artigo 7.º do mesmo Tratado e com as consequências previstas no n.º 2 do mesmo artigo.»

Foi para concretizar a referida Decisão-Quadro, na legislação interna, que a Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto (doravante, LMDE), publicada no Diário da República, I Série - A, n.º 194, de 23 de agosto de 2003, aprovou o regime jurídico do mandado de detenção europeu, alterado pela Lei n.º 35/2015, de 4 de maio, pela Lei n.º 115/2019, de 12 de setembro, e ainda pela Lei n.º 52/2023, de 28 de agosto.

Assim, o MDE é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade – artigo 1.º, n.º1, da Lei n.º 65/2003 (diploma que passaremos a designar de LMDE e a que pertencem todas as disposições que não venham acompanhadas de outra indicação).

O MDE é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo (artigo 1.º, n.º 2), em que, após o Tratado de Lisboa, passou a assentar a cooperação judiciária em matéria penal na UE (artigo 82.º, n.º 1, do TFUE), cujo sentido, conteúdo e extensão, na falta de definição legal, devem ser obtidos por recurso ao direito da UE e à jurisprudência do TJUE relativa à interpretação das respetivas disposições.

Nos termos da Lei e da Decisão-Quadro, o mandado de detenção europeu direciona-se quer ao cumprimento da decisão final do processo criminal – “cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade” -, quer ao cumprimento de um procedimento processual no decurso do processo – “efeitos de procedimento criminal”.

Mais concretamente, pode ser emitido por factos puníveis, pela lei do Estado membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, quando tiver por finalidade o cumprimento de pena ou de medida de segurança, desde que a sanção aplicada tenha duração não inferior a 4 meses, sem controlo, em muitos casos, da dupla incriminação (artigo 2.º).

3.3. Vem alegado que o recorrente padece de situação clínica que o impede de conhecer o teor do acórdão que ordena a sua entrega às autoridades alemãs para sujeição a procedimento penal, quer esteja escrito na língua portuguesa (tal como foi notificado numa primeira circunstância),quer na sua língua materna (como sucedeu por último), pois «não tem capacidade de racionalizar, ter ressonância ao que lhe é transmitido, sendo característico da situação clínica».

Assinale-se que o recorrente começou por arguir nos autos a “nulidade da notificação do acórdão”, por ter sido notificado do mesmo, no Hospital Prisional ..., em 19 de dezembro de 2024, sem tradução em língua portuguesa, sendo necessária por ser argelino e não compreender, nem falar, a língua portuguesa, proceder à tradução para a língua árabe. Apesar de também referir, no mesmo requerimento, não ter “condições psiquiátricas para compreender o conteúdo da decisão contra si proferida”, acaba por requerer a sua notificação “em língua árabe, do acórdão relativo à extradição e que sejam em consequência dados sem efeito os termos posteriores do processo uma vez que a falta de notificação é suscetível de o afetar com gravidade”.

Na sequência, foi proferido despacho com o seguinte teor:

«O requerido AA, natural da ..., veio arguir a nulidade da notificação do acórdão deste Tribunal da Relação de 16/12/2024 que deferiu a sua entrega às autoridades da Alemanha no âmbito de MDE contra ele expedido, com fundamento em não compreender a língua portuguesa, sendo que aquele nesta se encontra redigido e impetrando a notificação na língua árabe.

Nos termos do artigo 92.º, n.º 3, do CPP, “a entidade responsável pelo ato processual provê ao arguido que não conheça ou não domine a língua portuguesa, num prazo razoável, a tradução escrita dos documentos referidos no nº 10 do artigo 113º e de outros que a entidade julgue essenciais para o exercício da defesa”, sendo que entre estes se encontra a sentença ou acórdão.

Esse direito à tradução é consagrado na Diretiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/10/2010, que transposta foi para o direito nacional pela Lei nº 55/2023, de 28/08.

Contudo, ainda que assistindo razão ao aqui requerente no que concerne à ausência da tradução, tal omissão não integra a nulidade apontada, pois como tal não está prevista, mas uma irregularidade que, arguida que foi tempestivamente, importa ordenar a regularização.

Assim, determino seja o requerido notificado do referido acórdão traduzido para árabe, exercendo as funções de tradutor o Sr. CC, já nomeado como intérprete aos 14/11/2024.»

Arguida a nulidade parcial do referido despacho, por alegada omissão de pronúncia, foi proferido despacho nos seguintes termos:

«Vem o requerido arguir a nulidade parcial do despacho de 23-12 do Exº Desembargador de turno por omissão de pronúncia, por não se ter pronunciado sobre a incapacidade do requerido para compreender o conteúdo da decisão proferida e sobre o relatório clínico junto com o requerimento de 20-12-2024. Estriba o requerido nos arts. 379º, 1, c) e 120º do CPP.

Como é sabido, inexiste norma que, de forma genérica, comine a nulidade dos actos decisórios não fundamentados, eles só serão nulos nos casos em que a lei o determine expressamente, (como sucede relativamente à sentença e, ao despacho que aplique medida de coacção, outra que não o TIR, ou medida de garantia patrimonial - cfr. arts. 379°, n°1 e 194°, n°5 do CPP).

Inexistindo tal cominação, a falta de pronúncia sobre determinada questão constituiria no limite mera irregularidade, sujeita à disciplina do art. 123° CPP, que não afectaria jamais a validade do acto enquanto tal.

Sucede, além disso, que o despacho em causa analisou e decidiu como se lhe impunha a única questão devidamente suscitada pelo requerido (que se vai tornando expert em requerimentos dilatórios) no requerimento de 20-12, não se verificando, por isso, qualquer tipo de omissão no mesmo, muito menos quando o teor nu e cru do relatório médico então apresentado está muito longe de confirmar as conclusões retiradas pela defesa sobre a pretensa incapacidade do requerido para compreender o conteúdo da decisão proferida.

Termos em que se indefere o requerimento em causa.

Notifique.»

O recorrente vem impugnar tal despacho.

Vejamos.

Em primeiro lugar, importa reter que nos termos do artigo 24.º, n.º1, da Lei n.º 65/03, de 23 de agosto (LMDE), só é admissível recurso: a) Da decisão que mantiver a detenção ou a substituir por medida de coação; b) Da decisão final sobre a execução do mandado de detenção europeu.

Quer isto dizer que o recurso em lugar, apenas, em duas situações, que são as indicadas na norma, não havendo recurso, por conseguinte, de outros despachos do relator.

Em segundo lugar, é certo que de acordo com as regras gerais sobre as notificações em processo penal definidas no artigo 113.º do CPP, aplicáveis por força do disposto no artigo 34.º da LMDE: «As notificações do arguido, do assistente e das partes civis podem ser feitas ao respectivo defensor ou advogado, ressalvando-se as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à contestação, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem com as relativas à aplicação das medidas de coacção e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil, as quais, porém, devem igualmente ser notificadas ao advogado ou defensor nomeado (…)».

A notificação do acórdão recorrido foi efetuada ao requerido, na sua tradução para a língua árabe, tal como se alcança do documento remetido pelo Hospital Prisional ..., através do qual se certifica: «No dia 03/01/2025 notifiquei o recluso abaixo-assinado, que ficou ciente de todo o conteúdo do presente documento, do qual recebeu cópia, referente ao processo 3451/24.1YRLSB.E1 e vai comigo assinar», ali constando, efetivamente, a sua rubrica/assinatura na qualidade de notificado.

O artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), cujo segundo parágrafo corresponde ao n.º 1 do artigo 6.º da CEDH (cf. também artigo 52.º, da CDFUE), consagra o direito a um processo equitativo, do qual se retira a necessidade de ao arguido ser garantida uma efetiva participação processual, o que, em geral, inclui, não apenas o direito a estar presente, como também a verificação de capacidade para compreender a natureza do processo e o que neste se joga relativamente à sua pessoa, para acompanhar a produção de prova e (ainda) para trocar impressões com o seu defensor, com correspondência nas garantias do processo criminal consagradas no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

Porém, no caso dos autos, ao contrário do que se defende no recurso, não possui o tribunal qualquer informação médica que ateste que o “notificado” não compreendeu, nem tem capacidade para compreender o que lhe fora comunicado.

Assinale-se que o recorrente foi apresentado e ouvido na Relação, através da diligência de “audição do detido” prevista no artigo 18.º da LMDE, foi-lhe nomeado intérprete e teve a assistência da sua atual defensora, que subscreve o requerimento de interposição de recurso.

Conforme exarado em auto, o recorrente foi identificado, informado sobre os seus direitos e a razão de ser do ato, nos termos legais – o que contempla a informação sobre a existência e o conteúdo do mandado de detenção europeu e sobre o direito de se opor à sua execução ou de consentir nela e os termos em que o pode fazer -, tendo declarado não consentir na sua entrega e não renunciar à regra da especialidade.

Nada consta no auto de audição que evidencie que a Ex.ma Juíza Desembargadora que ao mesmo presidiu, ou qualquer dos presentes, incluindo a ilustre defensora, detetaram qualquer dificuldade por parte do ora recorrente em compreender o significado do ato e nele efetivamente participar como sujeito processual.

Por outro lado, como já se disse, a notificação do acórdão recorrido ao ora recorrente foi efetuada pessoalmente, na sua tradução para a língua árabe, certificando-se que o mesmo “ficou ciente de todo o conteúdo do presente documento”, ali constando, efetivamente, a sua rubrica/assinatura na qualidade de notificado.

Se é certo que no relatório médico junto pela ilustre defensora, datado de 3.12.2024, consta que o recorrente encontra-se em situação de descompensação psicopatológica aguda, que não se desvaloriza, não podemos deixar de sublinhar que no relatório clínico mais recente, de psiquiatria e psicologia, do Hospital Prisional de ..., subscrito por uma médica psiquiatra e por uma psicóloga, diz-se, expressamente , que tal relatório é apresentado “com o conhecimento e consentimento do doente”, informando-se que o mesmo se encontra internado na Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental (CPSM), “por se encontrar em situação de descompensação psicopatológica aguda, com risco para o próprio. A psicopatologia é grave e impede a sua alta, sendo certo que se trata de doença mental grave, incompatível com a sua permanência em meio prisional. Nesta data, o doente encontra-se com sintomas de Perturbação de Stress Pós-Traumático — PTSD Complexa, com sintomas psicóticos”.

A afirmação expressa de que o relatório é elaborado “com o conhecimento e consentimento do doente”, pressupõe que as subscritoras do mesmo reconhecem a capacidade do recorrente para conhecer o que lhe foi explicado ou perguntado e, na sequência, prestar o referido consentimento.

O relatório em causa dá conta de um quadro clínico grave, com risco para a integridade física e para a vida do próprio (risco de suicídio), num contexto de Perturbação de Stress Pós-Traumático; uma situação clínica “pontuada por grande angústia, devido a vários fatores, compreensíveis face à sua atual situação, preocupação com o futuro e com os seus familiares, mas essencialmente e sendo o seu foco, a situação que o levou à PSPT”; que nas circunstâncias em que vivencia o trauma, a angústia de voltar a viver a situação traumática, o individuo “não tem capacidade de racionalizar, ter ressonância ao que lhe é transmitido”; gradualmente, “no internamento e com o acompanhamento, foi observada a diminuição da angústia, embora ainda com vários momentos em que não consegue controlar sentimentos de medo”; “é um doente com necessidade de supervisão, que corre o risco de passagem ao ato. De ressalvar que mantém planos futuros, sendo a ideação suicida devido à experiência traumática, onde com o devido tratamento e acompanhamento, permanecendo num ambiente que não ative constantemente estímulos e memórias relacionados como evento traumático, poderá ter um prognóstico mais favorável.” Conclui-se: “Assim, somos de parecer que este doente dever-se-á manter em tratamento, internado em Unidade de Internamento Psiquiátrico de Agudos, com acompanhamento médico psiquiátrico e psicológico”.

Extrai-se, pois, que o recorrente passa por uma situação clínica grave, num contexto de PSPT, com momentos de ideação suicida e de angústia de voltar a viver a situação traumática em que o indivíduo (nesses momentos) “não tem capacidade de racionalizar”, mas disso não resulta que se deva considerar que o recorrente não foi notificado, porquanto existe uma notificação formalmente executada e assinada e os relatórios médicos juntos, particularmente o do Hospital Prisional, não atestam a incapacidade do recorrente de compreender o que recebeu a título de notificação – antes inculca, o último relatório, a capacidade do recorrente para conhecer e prestar válido consentimento na elaboração e junção desse relatório clínico.

Não se evidencia, por conseguinte, a existência de uma incapacidade processual do recorrente, no âmbito do processo de mandado de detenção europeu, onde foi ouvido presencialmente, assistido por defensora e intérprete, sendo certo que a autoridade judiciária de emissão não deixará de avaliar a questão dessa eventual incapacidade já no âmbito do processo de investigação nela em curso, e bem assim a questão da imputabilidade / inimputabilidade reportada aos factos imputados.

Não existe, pois, qualquer omissão de pronúncia, reportada ao despacho de 23.12.2024 ou ao acórdão recorrido – que, no entender do recorrente, não teria emitido pronúncia quanto ao pedido de suspensão do processo nos termos do n.º1, do artigo 272.º do Código de Processo Civil, por “razões humanitárias e de doença grave” – que é o alegado em sede de oposição -, porquanto o acórdão em causa refere-se expressamente a essa matéria nos seguintes termos:

«Como questão prévia pugna o mesmo pela suspensão da execução do MDE (ao abrigo do art. 272º, nº1 do Código de Processo Civil e do art. 211º, nº1 CPP) enquanto o extraditando necessitar de tratamento ou internamento hospitalar (encontra-se actualmente detido na ala psiquiátrica do Hospital Prisional de ...) por razões humanitárias e de doença grave.

Responde o MP, com inteiro acerto, que “o Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu prevê a suspensão da entrega temporária do arguido por motivos humanitários graves, nomeadamente por existirem motivos sérios para considerar que a entrega colocaria manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa procurada, conforme artigo 29.º, n.º 4.

Sucede porém, que o estado de saúde mental em que se encontra o requerido, pese embora sofra oscilações em virtude das experiências da sua vida de maior ou menor estabilidade, não é uma situação decorrente da reclusão ou de uma possível entrega, mas sim uma condição já adquirida/pré-existente, que carece de acompanhamento e tratamento.

Serve isto para dizer que não é a entrega do requerido às autoridades alemãs que farão perigar a sua vida ou a sua saúde, pois a mesma já se encontra em perigo por ausência de tratamento e acompanhamento, muito provavelmente, desde há largos anos da sua vida.

Entendimento este que é reforçado pela jurisprudência, que, defende não bastar a existência de doença, mas antes a comprovação de «uma particular exigência: a de que a entrega imediata fizesse manifestamente perigar a vida ou saúde da pessoa procurada», conforme Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13.07.2022, proferido no processo 119/22.7YRPRT.S1”.

Ora, o MP tem inteira razão no tocante a esta matéria, sendo evidente que o disposto no Código de Processo Civil ou no art. 211º, nº1 CPP não são por qualquer forma convocáveis para o caso.

De facto, a única possibilidade de suspensão temporária prevista no regime especial do MDE é a constante do respectivo art. 29º, nº3, condicionada à verificação de que a entrega colocaria manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa procurada, o que in casu nem sequer é alegado, muito menos comprovado.

Sendo certo, além disso, que a previsão do art. 29º, nº4, da Lei 65/2003, de 23-8 pressupõe que já esteja determinada a entrega, admitindo-se a prorrogação da sua efectivação fora dos prazos previstos nos números antecedentes nas condições excepcionalíssimas contempladas na norma.

Acresce, como muito bem refere o MP que “o estado de saúde mental em que se encontra o requerido, pese embora sofra oscilações em virtude das experiências da sua vida de maior ou menor estabilidade, não é uma situação decorrente da reclusão ou de uma possível entrega, mas sim uma condição já adquirida/pré-existente, que carece de acompanhamento e tratamento”.

Improcede, por conseguinte, esta questão.»

O recorrente poderá discordar da forma como foi equacionada a questão, mas não sustentar que sobre a mesma não haja sido emitida pronúncia, pelo que carece de razão o alegado.

Note-se que o recorrente, em sede de oposição, quis também questionar a sua imputabilidade reportada ao momento da prática do facto, pretendendo que no âmbito do mandado de detenção europeu fosse “declarado inimputável e consequentemente incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”.

O acórdão recorrido apreciou nos seguintes termos:

«Nega, depois, o requerido a prática dos factos, pretendendo ser declarado inimputável à data dos mesmos e alega que a única vez que ficou detido na Alemanha, ficou desprovido de quaisquer objetos com capacidade de atear fogo.

Ora tais invocações e pretensões só podem advir de lapso na percepção adequada do que seja o regime jurídico do MDE, tendo, de novo, inteira razão o MP ao responder que “Não cabe, de facto, às autoridades judiciárias portuguesas realizar uma apreciação da prova ou apreciar ou determinar quaisquer perícias que avaliem da imputabilidade do indivíduo, pois tais ditames de culpabilidade e punibilidade terão de ser alegados e demonstrados perante as autoridades judiciárias alemãs, em conformidade com a ordem jurídica ali aplicada”».

Efetivamente, tal questão só pode ser dirimida no processo em curso no Estado de emissão, sendo certo que a única causa de inimputabilidade que constitui causa de recusa de entrega (no caso, recusa obrigatória), é a da pessoa procurada ser inimputável em razão da idade, nos termos da lei portuguesa, em relação aos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu, conforme dispõe o artigo 11.º, al. c), da LMDE.

3.4. Alega-se no recurso que o «acórdão posto em crise» padece (à saciedade), dos vícios constantes do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal por existir contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, porquanto (o acórdão) «considera não haver perigo na entrega para a vida e para a saúde do Requerido, sem qualquer base científica, tirando conclusões médicas infundadas, decidindo contra perícias dos autos, sem fundamentar e, considerando afinal haver perigo na entrega, por razões do foro psiquiátrico do Requerido, recomendando acompanhamento, decidindo, pois, com grave contradição.»

Lê-se no acórdão recorrido, para além do acima já transcrito:

«Não se suscitando qualquer questão no tocante aos requisitos de forma e conteúdo necessários à execução do presente MDE, nem qualquer dúvida relativa à identidade do visado ou a verificação da existência de qualquer causa de recusa de execução (obrigatória ou facultativa) do MDE (arts. 11º e 12º da Lei 65/2003, de 23-8), tão pouco se vislumbra que com a entrega do requerido ao Estado membro emitente, se coloquem em causa os seus direitos fundamentais, para mais quando é conhecido que o sistema alemão (quer na vertente da justiça, quer da saúde) lhe garante senão maior pelo menos o mesmo nível do português.

Cumpre, por conseguinte, deferir a execução do MDE aqui em causa, havendo somente que alertar as autoridades alemãs para a particular situação de doença do requerido e solicitar à equipa médica do Hospital Prisional ... que o acompanha que providencie para que a entrega e a viagem para a Alemanha decorram com a máxima segurança para todos os intervenientes.»

Quer isto dizer que, por um lado, o acórdão recorrido entendeu que não estavam reunidos os pressupostos para a suspensão temporária da entrega prevista no artigo 29.º, n.º4, da LMDE, porquanto “o estado de saúde mental em que se encontra o requerido, pese embora sofra oscilações em virtude das experiências da sua vida de maior ou menor estabilidade, não é uma situação decorrente da reclusão ou de uma possível entrega, mas sim uma condição já adquirida/pré-existente, que carece de acompanhamento e tratamento”; por outro, decidiu que havia somente que alertar as autoridades alemãs “para a particular situação de doença do requerido e solicitar à equipa médica do Hospital Prisional ... que o acompanha que providencie para que a entrega e a viagem para a Alemanha decorram com a máxima segurança para todos os intervenientes.”

Estabelece o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, que mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.

Trata-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto - vícios da decisão e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida -, de conhecimento oficioso, que hão-de derivar do texto da decisão recorrida por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada – e assim é porque, como já se disse, todos os vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., reportam-se à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto (cf. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., pp. 71 a 73).

Assim, a alínea b), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP, abrange dois vícios distintos, que são:

- A contradição insanável da fundamentação; e

- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação (de facto) desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado.

Quanto à segunda situação, abrange as circunstâncias em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão (de facto).

Manifestamente, não se verifica qualquer situação de contradição insanável: a circunstância de se entender não estarem reunidos os pressupostos legalmente previstos para determinar desde logo no acórdão a suspensão temporária da entrega, ao abrigo do artigo 29.º, n.º4, da LMDE, não está em contradição insanável com o facto de se entender que a situação clínica do recorrente, ainda assim, reclama a adoção de alguma cautelas no procedimento de entrega.

O recorrente refere os outros vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, mas sem desenvolver qualquer esforço no sentido da comprovação da sua verificação.

Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objeto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal.

O vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do n.º2 do artigo 410.º, por sua vez, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do Acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.

O recorrente, como se disse, afirma, genericamente, que o acórdão posto em crise enferma dos vícios do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP, mas apenas se refere, de forma concretizada, ao de contradição já supra referido e afastado.

Quanto aos demais, não se identificam no acórdão recorrido.

3.5. Alega o recorrente que o acórdão recorrido enferma de falta de fundamentação, por ausência de ponderação sobre a informação clínica presente nos autos e que a «informação clínica foi junta aos autos, contudo os Venerandos Desembargadores omitiram a sua pronúncia quanto ao referido documento, tendo violado pois, como acima se disse, o disposto nos art. 97º, nº 5 e 374º, nº 2 do CPP.».

Aquando da apresentação da oposição à execução do mandado de detenção europeu foram juntos dois documentos redigidos em língua alemã com indicação de que se tratava de relatórios médicos e, subsequentemente à apresentação desta, foi junto requerimento contendo email com informação clínica sobre o requerido e respetiva situação àquela data.

Assinale-se que o ora recorrente, ao juntar tais documentos, requereu a sujeição a perícia médico-legal para determinar da sua capacidade de avaliar a ilicitude da prática dos factos que lhe são imputados (os que originam o MDE), tendo em vista, como se infere da parte conclusiva da oposição, a sua declaração como inimputável e, consequentemente, “incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”.

Tal requerimento foi indeferido.

Na fundamentação do acórdão recorrido é evidente ter sido tomada em conta a situação clínica do recorrente, pois além de se dar como provado que o mesmo se encontra atualmente detido na ala psiquiátrica do Hospital Prisional de ..., “apresentando um quadro clínico de doença mental ainda em análise, em situação de descompensação aguda, com psicopatologia grave que impedia a alta à data de 3-12-2024 (doc. de fls. 228)”, também se diz, ainda que não no âmbito dos factos provados, que a situação do recorrente não é decorrente da reclusão ou de uma possível entrega, mas sim uma condição já adquirida/pré-existente, que carece de acompanhamento e tratamento, fazendo-se uma final advertência/alerta sobre a necessidade de dar conhecimento às autoridades alemãs sobre o seu estado presente para que a entrega seja feita em segurança.

A nosso ver, o que está em causa é a interpretação que o acórdão recorrido adotou, ao sustentar que sendo a condição do recorrente pré-existente à entrega e não decorrente da reclusão ou de uma possível entrega, não havia que determinar a suspensão temporária.

E, como se disse, já fora indeferida a requerida sujeição a perícia médico-legal, tendo em vista a pretendida declaração como inimputável, que aqueles documentos pretendiam suportar – declaração que, como já se disse, não compete às autoridades de Estado-Membro de execução.

Não se vislumbra, por conseguinte, a invocada falta de fundamentação.

Acresce que o tribunal de execução não tem de se pronunciar sobre a questão de saúde enquanto motivo de não execução – as condições de saúde apenas terão de ser observadas na transferência (execução da decisão de entrega).

3.6. Alega o recorrente a ausência de dupla incriminação e a prescrição do procedimento criminal.

Parte do pressuposto de que compete à autoridade do Estado membro de execução controlar a qualificação jurídica dos factos indicada pela autoridade do Estado membro de emissão.

Ou seja, caberia sindicar se os factos que suportam o MDE e que foram configurados como integradores do crime de fogo posto agravado, punível com 15 anos de prisão na secção 306ª do Código Penal Alemão, correspondem ou não a essa qualificação, tendo em vista os elementos que em Portugal tipificam o crime de incêndio p. e p. pelo artigo 272.º do Código Penal.

Vejamos.

Estabelece o artigo 2.º da LMDE:

«Âmbito de aplicação

1 - O mandado de detenção europeu pode ser emitido por factos puníveis, pela lei do Estado membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, quando tiver por finalidade o cumprimento de pena ou de medida de segurança, desde que a sanção aplicada tenha duração não inferior a 4 meses.

2 - Será concedida a entrega da pessoa procurada com base num mandado de detenção europeu, sem controlo da dupla incriminação do facto, sempre que os factos, de acordo com a legislação do Estado membro de emissão, constituam as seguintes infrações, puníveis no Estado membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a três anos:

a) Participação numa organização criminosa;

b) Terrorismo;

c) Tráfico de seres humanos;

d) Exploração sexual de crianças e pedopornografia;

e) Tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas;

f) Tráfico ilícito de armas, munições e explosivos;

g) Corrupção;

h) Fraude, incluindo a fraude lesiva dos interesses financeiros das Comunidades Europeias, na acepção da convenção de 26 de Julho de 1995 relativa à protecção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias;

i) Branqueamento dos produtos do crime;

j) Falsificação de moeda, incluindo a contrafacção do euro;

l) Cibercriminalidade;

m) Crimes contra o ambiente, incluindo o tráfico ilícito de espécies animais ameaçadas e de espécies e essências vegetais ameaçadas;

n) Auxílio à entrada e à permanência irregulares;

o) Homicídio voluntário e ofensas corporais graves;

p) Tráfico ilícito de órgãos e de tecidos humanos;

q) Rapto, sequestro e tomada de reféns;

r) Racismo e xenofobia;

s) Roubo organizado ou à mão armada;

t) Tráfico de bens culturais, incluindo antiguidades e obras de arte;

u) Burla;

v) Extorsão de protecção e extorsão;

x) Contrafacção e piratagem de produtos;

z) Falsificação de documentos administrativos e respectivo tráfico;

aa) Falsificação de meios de pagamento;

bb) Tráfico ilícito de substâncias hormonais e outros factores de crescimento;

cc) Tráfico ilícito de materiais nucleares e radioactivos;

dd) Tráfico de veículos roubados;

ee) Violação;

ff) Fogo posto;

gg) Crimes abrangidos pela jurisdição do Tribunal Penal Internacional;

hh) Desvio de avião ou navio;

ii) Sabotagem.

3 - No que respeita às infracções não previstas no número anterior só é admissível a entrega da pessoa reclamada se os factos que justificam a emissão do mandado de detenção europeu constituírem infracção punível pela lei portuguesa, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação.»

O transcrito n.º 2 é claro no sentido de que será concedida a entrega com origem num mandado de detenção europeu, sem controlo da dupla incriminação, sempre que os factos, de acordo com a legislação do Estado membro da emissão, constituam as infrações mencionadas nas alíneas seguintes, puníveis no Estado membro da emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos.

Na alínea ff) vem previsto o “fogo posto”, expressamente indicado no MDE aqui em causa, conforme assinalado no formulário respetivo.

Tendo em vista a lista de infrações que determinam a entrega sem controlo da dupla incriminação, cabe à autoridade judiciária de execução verificar se alguma das infrações indicadas pela autoridade judiciária de emissão integra uma das 32 categorias de infrações enumeradas no artigo 2.º, n.º 2, da Decisão-Quadro relativa ao MDE (Decisão Quadro do Conselho da União Europeia n.º 2002/584/JAI, de 13.06.2002).

A este propósito, o Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de esclarecer que a introdução de uma lista de 32 infrações para as quais não é necessário verificar a dupla incriminação não é violadora do princípio da legalidade (Processo C‑303/05, Advocaten voor de Wereld VZW contra Leden van de Ministerraad).

Porém, para este efeito, apenas é relevante a definição de infração e de pena máxima em vigor no direito do Estado membro de emissão, o que significa que a autoridade judiciária de execução tem de reconhecer o que a autoridade judiciária de emissão indicou no MDE.

Por conseguinte, se a infração pela qual foi emitido um MDE fizer parte da lista indicada no referido artigo e for punível com pena ou medida privativas de liberdade superior a três anos no Estado-Membro de emissão, não cabe à autoridade do Estado-Membro de execução sindicar a qualificação jurídico-penal constante do MDE e o seu enquadramento nas categorias de infrações indicadas no citado artigo 2.º, n.º2 – o que importa é a legislação do Estado membro da emissão -, nem controlar qual seria a qualificação jurídico-penal dos factos face à legislação do Estado-Membro de execução.

Conclui-se que a pretensão de afastar a indicação da referida alínea ff), em favor da consideração de que estariam em causa, apenas, factos suscetíveis de integrarem a prática de um crime de dano, conforme previsto e punido pelo artigo 212.º do Código Penal português, carece de cabimento legal.

Quanto à questão da prescrição do procedimento penal, o recorrente parte do princípio de que os factos a que se reporta o MDE devem ser qualificados face à lei portuguesa e, em função da mesma, determinado o prazo de prescrição.

Ora, como já se disse, não há lugar, in casu, à verificação da dupla incriminação, nem ao duplo controlo da prescrição, a efetuar de acordo com a lei do Estado requerente e com a lei portuguesa, como ocorre, por exemplo, com a Convenção CPLP.

A LMDE apenas prevê, no artigo 12.º, n.º1, alínea e), como motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu, o decurso dos prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu, o que teria como pressuposto a verificação dos requisitos do artigo 5.º do Código Penal, o que, manifestamente, não é o caso.

3.7. No caso em apreço, está em causa MDE para efeitos de procedimento criminal.

Quanto a causas de recusa, obrigatórias e facultativas, regem os artigos 11.º e 12.º - 12.º-A, do mencionado diploma.

No que toca ao artigo 11.º, manifestamente não se verificam quaisquer motivos de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu.

Quanto a causas de recusa facultativa, também não se verificam, nomeadamente a da alínea e), do n.º 1, do artigo 12.º, da LMDE.

A autoridade judiciária do Estado-Membro de execução encontra-se obrigada a executar o MDE que preencha os requisitos legais, estando limitado e reservado a essa autoridade judiciária um papel de controlo da execução e de emissão da decisão de entrega, a qual só pode ser negada em caso de procedência de motivo obrigatório ou facultativo de não execução (artigos 3.º, 4.º e 4.º-A da Decisão-Quadro, a que correspondem os artigos 11.º, 12.º e 12.º-A da Lei n.º 65/2003) ou de falta de prestação de garantias que possam ser exigidas (artigo 5.º da DQ, a que corresponde o artigo 13.º da Lei n.º 65/2003).

Não há qualquer nulidade ou vício da decisão, sendo que a autoridade judiciária do Estado-Membro de execução apenas tem de verificar a validade do MDE (requisitos formais e substanciais) e, estando preenchidos, se há motivo de recusa (obrigatória ou facultativa – artigos 11.º, 12.º, 12.º-A) ou condição (artigo 13.º) e, nada obstando, ordenar a entrega.

A não ocorrência de nulidade resulta, assim, também, do facto de o tribunal de execução, como já se disse, não ter de se pronunciar sobre a questão de saúde enquanto motivo de não execução – as condições de saúde apenas terão de ser observadas na transferência (execução da decisão de entrega).

No caso em apreço, não se identifica, como já se disse, qualquer das causas de recusa legalmente previstas.

3.8. Entendeu o acórdão recorrido que o quadro apresentado não preenche os requisitos legais exigidos pelo artigo 29.º, n.º 4 da LMDE que permitem a suspensão temporária da entrega do requerido, ora recorrente.

Não está aqui em causa a decisão de entrega do recorrente – que deve ser confirmada -, mas apreciar da suspensão temporária da sua efetivação.

Como é sabido, depois de a autoridade judiciária de execução decidir executar o MDE, começa a contar o prazo de 10 dias para a entrega da pessoa - a contar da decisão definitiva de execução do mandado de detenção europeu.

Contudo, a autoridade judiciária de execução pode, a título excecional, tomar a decisão de diferir a entrega temporariamente por motivos humanitários graves, nomeadamente, se existirem motivos válidos para considerar que a entrega colocaria manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa procurada (artigo 23.º, n.º 4, da Decisão-Quadro relativa ao MDE, a que corresponde o artigo 29.º, n.º4, da LMDE). A execução do MDE deve ser efetuada logo que tais motivos cessem. A autoridade judiciária de execução informa imediatamente do facto a autoridade judiciária de emissão e acorda com ela uma nova data de entrega. Neste caso, a entrega deve ser realizada no prazo de 10 dias a contar da nova data acordada.

Em situações em que esses motivos humanitários são de duração indeterminada ou permanente, as autoridades judiciárias de emissão e de execução podem consultar-se e examinar se existem alternativas ao MDE.

Neste quadro, constata-se um equívoco por parte do recorrente, pois não considera, a nosso ver, que a suspensão temporária da entrega não contende com a prolação da decisão de execução do mandado de detenção europeu, mas apenas com a subsequente concretização da entrega na sequência da definitividade de tal decisão.

O tribunal pode perfeitamente apenas decidir a suspensão temporária da entrega na fase de entrega e não na própria decisão de execução do MDE.

E a circunstância de não o fazer na decisão de execução do MDE, por entender não estarem preenchidos os respetivos pressupostos, não significa que a suspensão não seja decidida posteriormente.

Por outras palavras, a suspensão temporária não tem de ser decidida na decisão de execução do mandado, pois reporta-se à fase subsequente da entrega.

Estabelece o artigo 29.º, da LMDE, sob a epígrafe “Prazo para a entrega da pessoa procurada” (cf. artigo 23.º, n.º 4, da Decisão-Quadro relativa ao MDE):

«1 - A pessoa procurada deve ser entregue no mais curto prazo possível, numa data acordada entre o tribunal e a autoridade judiciária de emissão.

2 - A entrega deve ter lugar no prazo máximo de 10 dias, a contar da decisão definitiva de execução do mandado de detenção europeu.

3 - Se for impossível a entrega da pessoa procurada no prazo previsto no número anterior, em virtude de facto de força maior que ocorra num dos Estados membros, o tribunal e a autoridade judiciária de emissão estabelecem de imediato os contactos necessários para ser acordada uma nova data de entrega, a qual deverá ter lugar no prazo de 10 dias a contar da nova data acordada.

4 - A entrega pode ser temporariamente suspensa por motivos humanitários graves, nomeadamente por existirem motivos sérios para considerar que a entrega colocaria manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa procurada.

5 - O tribunal informa de imediato a autoridade judiciária de emissão da cessação dos motivos que determinaram a suspensão temporária da entrega da pessoa procurada e é acordada uma nova data de entrega, a qual deverá ter lugar no prazo de 10 dias a contar da nova data acordada.»

Afigura-se-nos que uma situação em que o estado de saúde da pessoa procurada não lhe permitir viajar, colocando manifestamente em perigo a sua vida ou a saúde, integra-se na previsão da Decisão-Quadro e do n.º 4 do referido artigo da LMDE, como contempla, por exemplo, o direito neerlandês, na transposição da Decisão-Quadro para a sua lei interna, onde se prevê, entre os motivos humanitários graves, que o estado de saúde da pessoa procurada seja impeditiva de viajar.

Não é a circunstância de se tratar de uma condição pré-existente que pode obstar a que se pondere se tal condição permite ou não, e em que condições, a efetivação da entrega, sem colocar manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa procurada.

Não basta, pois, afirmar que não é a entrega do requerido às autoridades de emissão que farão perigar a sua vida ou a sua saúde, “pois a mesma já se encontra em perigo por ausência de tratamento e acompanhamento, muito provavelmente, desde há largos anos da sua vida”, mas sim avaliar, com atualidade, das condições em que a entrega poderá ser efetuada sem tais perigos.

A nosso ver, é manifesto que a entrega não poderá ocorrer se a entidade hospitalar que vem acompanhando o requerido vier atestar, com atualidade, que é impossível garantir a entrega, ainda que ocorra entre os meios hospitalares portugueses e meios hospitalares alemães, com segurança para o próprio e os demais.

Por conseguinte, entendemos que, confirmando-se o acórdão recorrido quanto ao deferimento da entrega – ou seja, quanto à decisão de execução do mandado de detenção europeu -, impõe-se que o tribunal recorrido, desde já e independentemente do trânsito, indague, com a máxima urgência, junto da entidade hospitalar que vem acompanhando o ora recorrente, no sentido de saber em que condições será possível garantir a entrega, ainda que ocorra entre os meios hospitalares portugueses e meios hospitalares alemães, com segurança para o próprio e os demais e sem perigo manifesto para a vida e saúde daquele, por forma a que o tribunal fique habilitado, com atualidade, a decidir em conformidade (designadamente sobre se será ou não de suspender temporariamente a entrega).

3.9. Como já se disse no processo n.º 320/23.6YRPRT.S1, acórdão deste STJ, de 18.01.2024 (www.dgsi.pt), entende-se que as decisões dos tribunais superiores em recurso não têm de ser notificadas ao arguido, desde que o sejam ao advogado/defensor e o início do prazo para o recurso (ou reclamação) se conta desde essa notificação, o que é inteiramente aplicável a processos de MDE (artigo 33.º da Lei n.º 65/2003).

Esta questão não se confunde com o direito do arguido/requerido, num lapso de tempo razoável, a uma tradução escrita de todos os documentos essenciais, conferido ao abrigo da Diretiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho.

Da efetivação desse direito não decorre que só a contar da notificação da tradução dos documentos ou decisões ao arguido/requerido que não compreende a língua do processo se inicia a contagem do prazo de recurso ou de reclamação de tal decisão, caso a notificação tenha sido anteriormente efetuada ao advogado ou defensor.

Nesta conformidade, será ordenada a tradução das Partes II-3. e III do presente acórdão, a ser facultada ao requerido logo que junta aos autos.

*

III - DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto por AA, confirmando-se a decisão de execução do mandado de detenção europeu contra o mesmo emitido.

Determina-se, porém, que o tribunal recorrido, desde já e independentemente do trânsito, indague, com máxima urgência, junto da entidade hospitalar que vem acompanhando o ora recorrente, no sentido de saber em que condições será possível garantir a entrega, com segurança para o próprio e os demais e sem perigo manifesto para a vida e saúde daquele, por forma a que a Relação, com atualidade, fique habilitada a decidir em conformidade (designadamente sobre se será ou não de suspender temporariamente a entrega).

Dê conhecimento de imediato ao TRE.

Providenciar-se-á pela tradução das Partes II-3. e III, a ser facultada ao requerido logo que junta aos autos.

Supremo Tribunal de Justiça, 23 de janeiro de 2025

(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Jorge Gonçalves (Relator)

António Latas (1.º Adjunto)

Vasques Osório (2.º Adjunto)