MEDIDA DE TRATAMENTO INVOLUNTÁRIO
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário

I – Em face do estabelecido pelo artigo 34.º, n.º1 da Lei n.º35/2023 de 21/07, da alínea bb) ao artigo 138.º, n.º 4, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e da alínea y) no artigo 114.º, n.º 3, da Lei de Organização do Sistema Judiciário, o critério que hoje determina qual o tribunal competente para a aplicação ou manutenção da medida de tratamento involuntário é o da situação de liberdade do requerido ou da sua privação.
II – Assim, enquanto se mantiverem as medidas privativas da liberdade a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 34.º da Lei da Saúde Mental, a competência para a tramitação do processo de saúde mental é do Tribunal de Execução das Penas e se o requerido não estiver privado da sua liberdade, então o tribunal competente é o juízo local criminal da sua área de residência, ou, não existindo este, o juízo de competência genérica.
III - Se no âmbito da execução de uma medida de segurança o Tribunal de Execução das Penas de Lisboa decidiu colocar o requerido em regime de liberdade para prova, que é equivalente ao regime da liberdade condicional e significa que o requerido não está mais privado da sua liberdade, no sentido de que não está mais sujeito a encarceramento, ainda que tenha sido determinado um programa terapêutico que inclui internamento numa comunidade terapêutica, a partir desse momento readquiriu plena aplicação a regra geral da alínea a) do n.º 1 do artigo 34.º da Lei da Saúde Mental, voltando a ser competente o Juízo Local Criminal para acompanhar e decidir da manutenção da medida de tratamento involuntário a que o requerido está sujeito.

Texto Integral

I – Relatório

1. No processo n.º 1532/19.2T8CSC do Juízo Local Criminal de Cascais- Juiz 2 -, veio a Exma. Juíza suscitar o presente conflito negativo de competência, a opor o respetivo Tribunal ao Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, tendo em vista determinar qual deles deverá continuar a tramitar o acompanhamento da medida de tratamento involuntário, em ambulatório, que nesses autos foi aplicada ao requerido AA, melhor identificado nos autos.
2. Cumprido que foi o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, apenas o Exmo. Procurador-Geral Adjunto se pronunciou no sentido de que, por aplicação do artigo 34º, n.º1, alínea b) da Lei n.º 35/2023, de 21 de Julho (Lei da Saúde Mental) essa competência seja atribuída ao TEP, uma vez que o cidadão em causa se encontra em cumprimento de medida de segurança de internamento no ..., pertencente ao ….
3. Sendo este o tribunal competente para conhecer do conflito, nos termos do artigo 12.º, n.º 5, alínea a) do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Elementos relevantes obtidos através da consulta, no citius, do processo principal:
a) Por decisão proferida em acta de sessão conjunta, realizada a 27/06/2019, no âmbito do processo do qual este incidente é apenso, foi determinado que o requerido AA, aí melhor identificado, mantenha tratamento psiquiátrico em ambulatório compulsivo, ao abrigo da Lei n.º 36/98, de 24 de Julho (Lei da Saúde Mental, então vigente).
b) Essa medida foi reapreciada e mantida por despachos judiciais de 20/12/2019, 7/07/2020, 27/10/2020, 5/03/2021, 25/06/2021, 17/12/2021, 7/06/2022 e 7/03/2023
c) A 28/02/2024 foi promovido pelo Ministério Público o seguinte: (transcrição)
«Por decisão proferida nos presentes autos, no dia 07/03/2023, foi determinada a manutenção do tratamento involuntário em ambulatório de AA, o qual se encontrava em cumprimento no ... de medida de segurança de internamento.
No âmbito do despacho proferido pelo Juiz 6, do Juízo de Execução das Penas de Lisboa, foi determinado colocar o aí internado AA em regime de liberdade para prova, até ao dia 17/10/2029, bem como integrar o mesmo na ..., sita em ..., para programa terapêutico com a duração de 12 a 18 meses, em regime de internamento, encontrando-se este obrigado a cumprir com a terapêutica, comparecendo às consultas de psiquiatria determinadas, tomando sempre a medicação necessária à sua problemática de saúde e aderindo escrupulosamente à terapêutica farmacológica nos serviços de saúde competentes.
Nos termos do disposto no artigo 34º, nº 1, alínea b), da Lei nº 35/2023, de 21 de julho, em matéria de Saúde Mental, é competente o tribunal de execução das penas quando o requerido estiver em cumprimento de medidas de segurança privativas da liberdade.
In casu, atento a que AA se encontra em regime de liberdade para prova, no âmbito de medida de segurança de internamento, até ao dia 17/10/2029, promovo se excecione a incompetência material deste Juízo Local Criminal de Cascais, sendo competente em matéria de Saúde Mental, enquanto perdurar a medida de segurança de internamento aplicada a AA o Tribunal de Execução das Penas de Lisboa, nos termos do disposto no artigo 34º, nº 1, alínea b), da Lei nº 35/2023, de 21 de julho.»
d) Na sequência dessa promoção foi proferido, pela Senhora juíza, o seguinte despacho: (transcrição)
«Ofício ... junto em 19.02.2024 e promoção que antecede
Tomei conhecimento que por decisão do TEP de Lisboa foi determinado colocar o aí internado AA em regime de liberdade para prova, até ao dia 17/10/2029, bem como integrar o mesmo na ..., sita em ..., para programa terapêutico com a duração de 12 a 18 meses, em regime de internamento, encontrando-se este obrigado a cumprir com a terapêutica, comparecendo às consultas de psiquiatria determinadas, tomando sempre a medicação necessária à sua problemática de saúde e aderindo escrupulosamente à terapêutica farmacológica nos serviços de saúde competentes.
Como bem se refere na promoção que antecede, nos termos do disposto no artigo 34.º, n.º 1, alínea b), da Lei nº 35/2023, de 21 de julho (LSM), em matéria de Saúde Mental, é competente o tribunal de execução das penas quando o requerido estiver em cumprimento de medidas de segurança privativas da liberdade.
In casu, atento a que AA se encontra em regime de liberdade para prova, no âmbito de medida de segurança de internamento, até ao dia 17.10.2029, declara-se este Tribunal incompetente para a tramitação dos presentes autos, sendo competente em matéria de Saúde Mental, enquanto perdurar a medida de segurança de internamento aplicada a AA o Tribunal de Execução das Penas de Lisboa, nos termos do disposto no artigo 34º, nº 1, alínea b), da Lei nº 35/2023, de 21 de julho.
Após trânsito, remeta os autos ao TEP.»
e) Uma vez remetido o processo ao TEP de Lisboa, foi aí proferido, a 13/05/2024, o seguinte despacho:
«Este TEP não é competente para tramitar o processo de internamento compulsivo, mas tão só para acompanhar a medida de segurança aplicada.
Assim devolva o processo ao Juízo Local Criminal de Cascais –juiz 2»
f) A 28/06/2024, a Senhora Juíza do Juízo Local Criminal de Cascais – juiz 2 -, proferiu despacho a suscitar o presente conflito negativo de competência, nos seguintes termos:
«Em face do despacho proferido pelo TEP em 13.5.2024 (oficio junto aos autos em 24.5.2024) e pela signatária em 1.3.2024, ambos oportunamente transitados em julgado, cumpre suscitar oficiosamente o conflito negativo de competência – artigo 111.º, n.º 1 CPC Ex vi artigo 4.º CPP e artigo 37.º da LSM.
Consigna-se que os presentes autos mantêm a natureza urgente – artigo 111.º, n.º 3 CPC.
Notifique o requerido para, querendo, em 5 dias, se pronunciar - artigo 112.º, nº 1 do CPC.
Após, vão os autos ao Ministério Público - artigo 112.º, nº 2 do CPC.
Nada sendo requerido, remeta os autos ao Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, para decisão – artigo 110.º, n.º 2 CPC.»
2. Apreciação
Previamente, importa assinalar que o conflito negativo de competência em processo penal tem regras próprias previstas no Código de Processo Penal (artigos 34.º a 36.º), só sendo aplicáveis as regras do Código de Processo Civil, para a integração de lacunas, nos termos do artigo 4.º do mesmo Código. É, por isso, inadequada a tramitação que a Senhora juíza a quo determinou nos autos de incidente do conflito, que suscitou.
Quanto ao conflito em si:
Está em causa saber qual o tribunal competente para continuar a tramitar o processo n.º 1532/19.2T8CSC, do Juízo Local Criminal de Cascais, no qual foi imposto ao requerido a medida de tratamento ambulatório compulsivo, actualmente designado de tratamento involuntário, medida essa que tem vindo a ser reapreciada e mantida, em face do que estabelece actualmente a nova Lei da Saúde Mental ( Lei n.º 35/2023, de 21/07), que entrou em vigor na pendência do processo.
Estabelece o artigo 34.º, n.º 1 da referida lei, a propósito do tribunal competente para efeito de aplicação das medidas de “tratamento involuntário” e “Internamento de urgência”, previstas no seu capítulo IV, que, “sem prejuízo dos números seguintes”, é competente:
a) O juízo local criminal com competência na área de residência do requerido, ou o juízo de competência genérica, se a área referida não for abrangida por juízo local criminal;
b) O tribunal de execução das penas quando o requerido estiver em prisão ou internamento preventivos ou em cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade.
Concomitantemente, a mesma lei acrescentou uma alínea bb) ao artigo 138.º, n.º 4, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, para incluir na competência material do Tribunal de Execução das Penas a de “decidir sobre o tratamento involuntário do condenado com necessidade de cuidados de saúde mental, nos termos da lei”, e bem assim, uma alínea y) no artigo 114.º, n.º 3, da Lei de Organização do Sistema Judiciário, para aí contemplar, no âmbito das competências do mesmo Tribunal as de “decidir sobre o tratamento involuntário do condenado com necessidade de cuidados de saúde mental, nos termos da lei.”
Destas regras resulta que o critério que hoje determina qual o tribunal competente para a aplicação ou manutenção da medida de tratamento involuntário é o da situação de liberdade do requerido ou da sua privação.
Parece agora indiscutível que, enquanto se mantiverem as medidas privativas da liberdade a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 34.º da Lei da Saúde Mental, a competência para a tramitação do processo de saúde mental é do Tribunal de Execução das Penas e que se o requerido não estiver privado da sua liberdade, então o tribunal competente é o juízo local criminal da sua área de residência, ou, não existindo este, o juízo de competência genérica.
Conforme resulta do despacho da senhora Juíza do juízo local criminal de Cascais, onde o processo tem vindo a ser tramitado e onde foi determinado o tratamento involuntário, então com a designação de tratamento compulsivo, ao requerido terá sido, entretanto, aplicada uma medida de segurança, no âmbito de um processo crime, tendo o mesmo estado a cumprir tal medida no .... Por isso, implicando a execução de tal medida a privação da liberdade do requerido, seria competente o Tribunal de Execução das Penas para continuar a acompanhar a medida de tratamento involuntário que foi aplicada ao requerido pelo Juízo Local Criminal de Cascais e decidir quanto à sua manutenção. Deve notar-se que não existe sobreposição entre a finalidade da medida de segurança e a finalidade do internamento involuntário. O primeiro visa prevenir a perigosidade criminal, o último a perigosidade para os bens jurídicos pessoais ou patrimoniais, próprios ou alheios.
Porém, também resulta do mesmo despacho que, no âmbito da execução dessa medida de segurança o Tribunal de Execução das Penas de Lisboa decidiu colocar o requerido em regime de liberdade para prova, até ao dia 17/10/2029, o que, sendo equivalente ao regime da liberdade condicional, significa que o requerido não está mais privado da sua liberdade, no sentido de que não está mais sujeito a encarceramento, ainda que tenha sido determinado um programa terapêutico que inclui internamento numa comunidade terapêutica. Por isso, a partir desse momento, terá readquirido plena aplicação a regra geral da alínea a) do n.º 1 do artigo 34.º da Lei da Saúde Mental, voltando a ser competente o Juízo Local Criminal de Cascais para acompanhar e decidir da manutenção da medida em causa, a que o requerido está sujeito.
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se dirimir o presente conflito atribuindo a competência para continuar a assegurar a tramitação do processo n.º1532/19.2T8CSC, em que o requerido AA está sujeito a medida de tratamento involuntário em ambulatório, ao Juízo Local Criminal de Cascais - Juiz 2, enquanto se mantiver a situação daquele em regime de liberdade para prova.
Sem tributação.
Cumpra-se o artigo 36.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.

Lisboa, 29/08/2024
(processei e revi – art.º 94, n.º 2 do C.P.P.)
Maria José Machado