CONFLITO DE COMPETÊNCIA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PLURALIDADE DE ACTOS
Sumário

I - O conflito negativo de competência em processo penal tem regras próprias previstas no Código de Processo Penal (artigos 34.º a 36.º), só sendo aplicáveis as regras do Código de Processo Civil, para a integração de lacunas, nos termos do artigo 4.º do mesmo Código.
II - Embora o Código de Processo Penal o não diga expressamente, foi criado um sistema dotado de celeridade e autoridade para resolver as questões de competência. Não existe trânsito em julgado das decisões até o tribunal superior resolver a questão por decisão irrecorrível (artigo 36.º, n.º 2). Tanto assim é que o conflito cessa quando um dos tribunais em conflito alterar a sua posição anterior (artigo 34.º, n.º 2). Por isso, para ser suscitado o conflito de competência, não tem de previamente de se ficar a aguardar o trânsito em julgado dos despachos proferidos pelos tribunais em conflito quanto à questão da competência.
III - O crime de violência doméstica, como resulta do próprio elemento objectivo do tipo previsto no artigo 152.º, n.º1 do Código Penal, não exige para a sua consumação a prática de actos sucessivos nem reiterados nem um só acto susceptível de se prolongar no tempo, para os quais vigora a regra da competência prevista no n.º 3 do artigo 19.º do Código de Processo Penal. O crime consuma-se logo que seja infligido um mau trato físico ou psíquico, que não necessita de ser reiterado, sendo incorrecto dizer-se que o crime de violência doméstica apenas se consuma com a prática do último acto. Se fosse assim, até esse momento, todos os actos de maus tratos físicos ou psíquicos consubstanciariam uma mera tentativa e não é essa a qualificação que resulta da Lei, da Jurisprudência ou da Doutrina.
IV – Quando o crime de violência doméstica se consubstancia na prática de uma pluralidade de actos relacionados com várias comarcas e houver dúvidas sobre aquela em que se localiza o elemento relevante para a determinação da competência, será de aplicar, por analogia, o n.º 3 do artigo 19.º do Código de Processo Penal e considerar que, embora dogmaticamente a violência doméstica não seja um daqueles crimes enunciados no preceito, é competente o tribunal em cuja área tiver cessado a consumação.

Texto Integral

I – Relatório:

1. No âmbito do processo n.º 1077/21.0PCSNT, distribuído ao Juízo Local Criminal de Sintra (juiz 3) o Exmo. Juiz, por despacho de 16 de Maio de 2024, declarou o tribunal incompetente nos seguintes termos:
«Analisada a acusação, constata-se que nenhum dos factos ocorreu na área desta comarca, razão pela qual considero este Juízo territorialmente incompetente para conhecer do presente processo.
Atento o disposto no n.º 1 do artigo 21.º do Código de Processo Penal e face à factualidade descrita na acusação, considera-se o Juízo Local Criminal de Cascais o tribunal territorialmente competente.
Em face do exposto, declaro este Juízo territorialmente incompetente para conhecer do presente processo, por tal competência pertencer ao Juízo Local Criminal de Cascais.»
2. No Juízo Local Criminal de Cascais (juiz3), onde o processo foi distribuído, foi proferido, pela Exma. Juíza, a 7/08/2024, o seguinte despacho, que posteriormente rectificou: (transcrição do despacho rectificado)
«O arguido AA, está acusado da prática, em autoria, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. nos termos no artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e n.ºs 4 a 6, do Código Penal –despacho de acusação de 28.2.2023.
A notícia do crime ocorreu em Sintra. – participação junta em ........ 2021.
Por despacho de 16.05.2024, transitado em julgado, o Juízo Local Criminal de Sintra – J3, declarou a incompetência territorial desse Tribunal para a tramitação destes autos, por entender que era competente o Juízo Local Criminal de Cascais
No crime de violência doméstica, enquanto crime de execução permanente, o momento temporalmente relevante para se aferir do local da consumação do crime é o local da prática do último ato de execução - por todos, Ac. da Relação de Évora de 19.12.2013, processo 119/12.5GBRMZ.E1, www.dgsi.pt.
Assim, não obstante resultar da acusação que arguido e vítima residiram em Carcavelos e, aí terem sido praticados atos de execução do crime, o certo é que, após esses actos, ocorreram ainda: atos de execução do crime praticados em Belém, concelho de Lisboa (factos 10 a 15 da acusação); e bem assim outros atos posteriores de execução do crime (facto 17.) relativamente aos quais, do teor da acusação pública, não resulta onde é que o crime se consumou (isto é, qual o local da prática do último ato de execução), havendo apenas referência “que o arguido dirigiu áudios à vítima”, desconhecendo-se em que concelho o último ato de execução ocorreu.
Na presente fase processual, a competência deverá ser aferida em conformidade com os elementos constantes da acusação pública. – Neste sentido, Ac. da Relação de Lisboa de 25.1.2017, proc. 714/11.0IDLSB-C.L1-3, in dgsi.pt
Com efeito, “a competência territorial afere-se exclusivamente pelos termos da acusação ou do despacho de pronúncia. A acusação ou a pronúncia delimitam o objecto do processo e contém os elementos que constituem os pressupostos para a determinação da competência territorial” – igualmente Ac. da Relação de Lisboa de 02.06.2020, proc. 5/13.1JBLSB-A.L1-5, in dgsi.pt
Ora, uma vez que a acusação pública não contém a indicação de onde o crime se consumou, ou seja, é omissão quanto ao elemento relevante para a fixação da competência, deverá aplicar-se o artigo 21º nº 2 do CPP, segundo o qual desconhecendo-se o local de consumação do crime indiciado, a competência pertence ao tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime - Ac. da Relação de Lisboa de 25.1.2017supra cit.
Segundo o artigo 119.º, e) do CPP, constitui nulidade insanável, que deve ser declarada oficiosamente em qualquer fase do processo, a violação das regras de competência do Tribunal, sem prejuízo do estatuído no artigo 32.º, n.º 2 do mesmo Código.
E de acordo com o artigo 32.º, n.º 1 do CPP, a incompetência do Tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente. Em caso de incompetência territorial, ela apenas pode ser deduzida e declarada, segundo o n.º 2, b) da mesma norma, até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de Tribunal de julgamento.
Em face ao exposto, e tendo a notícia do crime ocorrido junto da PSP de Sintra (Agualva-Cacém), nos termos dos artigos 19.º, 21.º e 28.º do CPP, é o presente Tribunal territorialmente incompetente para o julgamento do presente processo, incompetência que declaro, nos termos do artigo e 32.º, n.º 1 e 2 al. b) do CPP, considerando como Tribunal competente Juízo Local Criminal de Sintra – Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27.3.
Após trânsito, em face do trânsito em julgado do despacho de 16.05.2024 proferido nestes autos, cumpra o despacho de 9.9.2024 que suscitou oficiosamente o conflito negativo de competência, remetendo certidão ao Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do artigo 35.º, n.º 1 do CPP.»
4. Recebidos os autos de conflito neste tribunal, foi cumprido o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tendo a Exma. Procuradora-Geral Adjunta se pronunciado no sentido de se atribuir a competência para a realização do julgamento ao Juízo Local Criminal de Sintra. O arguido não se pronunciou sobre o conflito.
5. Sendo este o tribunal competente, cumpre apreciar e decidir.
II - Apreciação
Previamente, importa assinalar que o conflito negativo de competência em processo penal tem regras próprias previstas no Código de Processo Penal (artigos 34.º a 36.º), só sendo aplicáveis as regras do Código de Processo Civil, para a integração de lacunas, nos termos do artigo 4.º do mesmo Código. É, por isso, inadequada a tramitação que a Senhora juíza a quo determinou nos autos de incidente do conflito que suscitou, quando ordenou o cumprimento do disposto no artigo 112.º, do Código de Processo Civil e ordenou a remessa dos autos ao Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa1,
Quanto ao conflito em si:
Estabelece o artigo 34.º do Código de Processo Penal:
«1. Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando, em qualquer estado do processo, dois ou mais tribunais, de diferente ou da mesma espécie, se considerarem competentes ou incompetentes para conhecer do mesmo crime imputado ao mesmo arguido».
2. O conflito cessa logo que um dos tribunais se declarar, mesmo oficiosamente, incompetente ou competente, segundo o caso.»
A lei é clara quanto aos pressupostos legais do conflito. Traduz-se numa divergência entre dois ou mais tribunais em relação ao conhecimento de um feito jurídico-criminal, e surge quando mais do que um tribunal da mesma espécie (v.g. tribunal judicial) ou de espécie diversa (v.g. tribunal judicial e tribunal não judicial) se reconhecem ou não se reconhecem competentes para conhecer quanto à existência de um crime cuja prática é atribuída ao mesmo arguido.
Se todos os tribunais em oposição se arrogam competentes estamos perante conflito positivo; se declinam a competência ocorre conflito negativo.
Embora o Código de Processo Penal não o diga expressamente, foi criado um sistema dotado de celeridade e autoridade para resolver as questões de competência. Não existe trânsito em julgado das decisões até o tribunal superior resolver a questão por decisão irrecorrível (artigo 36.º, n.º 2). Tanto assim é que o conflito cessa quando um dos tribunais em conflito alterar a sua posição anterior (artigo 34.º, n.º 2).
Por isso, o Juízo Local Criminal de Cascais não tinha de ficar a aguardar o trânsito em julgado dos despachos proferidos pelos tribunais em conflito quanto à questão da competência, o que só redundou em maior atraso na decisão quanto à questão.
Está em causa saber qual o tribunal competente para o julgamento do processo n.º1077/21.0PCSNT, onde este incidente foi suscitado, em que o arguido está acusado, pelo Ministério Público, da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º1, alínea b) e n.ºs 4 a 6 do Código Penal, uma vez que ambos os tribunais em causa declinaram a sua competência – o Juízo Local Criminal de Sintra com fundamento de que nenhum dos factos ocorreu na área da competência territorial da comarca de Sintra e o Juízo Local Criminal de Cascais com fundamento em que no crime de violência doméstica o momento temporalmente relevante para se aferir do local da consumação do crime é o local da prática do último ato de execução que, sendo no caso desconhecido determina a aplicação do artigo 21º nº 2 do Código de Processo Penal, segundo o qual a competência pertence ao tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime, no caso em Sintra.
O critério geral de determinação da competência territorial é, segundo o artigo 19.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o lugar da consumação da infração, o que remete para o critério da consumação da lei penal substantiva. Por regra, a “coincidência, entre o preenchimento dos elementos do tipo e a consumação, que determina o locus delicto, permitirá fixar sem dificuldades a competência territorial” (cf. Henriques Gaspar in anotação ao artigo 19º, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 3ª edição, p. 74)
Existem, contudo, algumas excepções àquela regra resultantes precisamente das concepções, ao nível do direito penal substantivo, da consumação do crime, em função da configuração do tipo legal de crime, que estão previstas nos nºs 2, 3 e 4 do mesmo artigo.
Foi precisamente uma dessas excepções que o Juízo Local Criminal de Cascais (juiz 3) considerou existir, por entender que o crime de violência doméstica, sendo um crime de execução permanente apenas se consuma com o último acto de execução.
O crime de violência doméstica, como resulta do próprio elemento objectivo do tipo previsto no artigo 152.º, n.º1 do Código Penal, não exige para a sua consumação a prática de actos sucessivos nem reiterados nem um só acto susceptível de se prolongar no tempo, para os quais vigora o n.º 3 do artigo 19.º do Código de Processo Penal.
O crime consuma-se logo que seja infligido um mau trato físico ou psíquico, que não necessita de ser reiterado, sendo incorrecto dizer-se que o crime de violência doméstica apenas se consuma com a prática do último acto. Se fosse assim, até esse momento, todos os actos de maus tratos físicos ou psíquicos consubstanciariam uma mera tentativa e não é essa a qualificação que resulta da Lei, da Jurisprudência ou da Doutrina.
No caso dos autos o Ministério Público considerou que é um conjunto de actos praticados pelo arguido que integra a prática de um só crime de violência doméstica. De acordo com a acusação, o arguido e a vítima, enquanto viveram juntos, entre meados de ... e ..., fixaram residência em Carcavelos, comarca de Cascais (agora não se chama assim) e os actos que, segundo a acusação, integram o crime de violência doméstica foram praticados:
- No …de 2021, na Amadora;
- Em …de 2022, em Carcavelos, Cascais;
- Em ...-...-2021, em Lisboa;
- Depois desta última data, em lugar desconhecido.
Nenhum dos actos foi praticado em Sintra.
Se entendêssemos que seria competente o tribunal em que primeiro tinha havido notícia do crime, nos termos do n.º 1 do artigo 21.º do Código de Processo Penal, por o crime estar relacionado com várias comarcas e haver dúvidas sobre aquela em que se localizava o elemento relevante para a determinação da competência, não poderíamos considerar competente Sintra porque este tribunal, embora tenha sido aquele em que primeiro houve notícia do crime, não era um dos que estava relacionado com a sua prática.
Teríamos então de ver, de entre os outros, qual é que teria sido aquele que primeiro teve notícia do crime.
Seria então este o competente, embora qualquer um deles também o pudesse ser, entre os quais Cascais.
Outra via será a de aplicar, por analogia, o n.º 3 do artigo 19.º do Código de Processo Penal. Embora, como já referimos, dogmaticamente a violência doméstica não seja um daqueles crimes enunciados no preceito, uma vez que, no caso, o crime é integrado por uma pluralidade de actos, seria competente o tribunal em cuja área tivesse cessado a consumação, ou seja, o tribunal de Cascais visto o último acto descrito na acusação ter ocorrido em junho de 2022, em Carcavelos.
Face ao exposto e ao abrigo das citadas disposições legais, conclui-se ser competente, em razão do território, para a realização do julgamento, o Juízo Local Criminal de Cascais (juiz 3).
III – Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se dirimir o presente conflito atribuindo a competência, para efetuar o julgamento no âmbito do processo 1077/21.0PCSNT, ao Juízo Local Criminal de Cascais (juiz 3), do Tribunal Judicial de Lisboa Oeste.
Sem tributação.
*
Cumpra-se o disposto no artigo 36.º, n.º 3, do Código de Processo Penal

Lisboa, 29/11/2024
(processei e revi – art.º 94, n.º 2 do C.P.P.)
Maria José Machado
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1. Despacho proferido a 9/09/2024, no processo principal.